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Processo n.º 675/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos autos recorridos, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de
Coimbra, nos termos do qual foi confirmada decisão de primeira instância que
condenou o ora recorrente A. “pela prática do crime de falsificação de documento
na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos
256º, n.º 1, al c), 255º, al a) e 22, nº 1, al b), todos do Código Penal, na
pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 30,00, o que perfaz o montante
global de € 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros)” (fls. 1011 e 1012).
O recorrente A. interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo das alíneas b) e
g) do artigo 70º da LTC, para que fosse apreciada a inconstitucionalidade das
normas constantes dos artigos 1º, alínea f); 127º; 358º; 359º; 374º, n.º 2;
410º, n.º 2; 412º, n.º 3, alínea b); 412º, n.º 4, todos do Código de Processo
Penal [CPP] e 23º, n.º 3, do Código Penal (ainda que, por manifesto lapso de
escrito, identificado como artigo 22º, n.º 3, a fls. 1105 e 1106) e 256º, n.º 2,
por referência ao artigo 255º do Código Penal [CP].
2. Perante a falta de identificação suficiente dos acórdãos sobre os quais se
fundava o recurso ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, em 19 de
Julho de 2007, a Relatora proferiu despacho de convite a aperfeiçoamento, de
modo a que o recorrente esclarecesse quais as decisões jurisdicionais a que se
referia no requerimento de recurso (fls. 1149 a 1150), ao qual aquele respondeu
em 05 de Setembro de 2007 (fls. 1152 e 1153).
3. Em 04 de Outubro de 2007, foi proferida decisão sumária parcial, já
transitada em julgado, nos termos da qual foi decidido:
“i) Não conhecer do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da LTC, quanto à alegada inconstitucionalidade das normas contidas
nos artigos 1º, alínea f), 127º, 358º, 359º, 374º, n.º 2, 410º, n.º 2, 412º, n.º
3, alínea b), e n.º 4, todos do CPP;
ii) Não conhecer do recurso, interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do
artigo 70º da LTC, quanto à inconstitucionalidade das normas constantes dos
artigos 358º e 359º do CPP, por não se verificar identidade entre a dimensão
normativa julgada inconstitucional no Acórdão n.º 674/99 e a interpretação
normativa efectivamente aplicada pela decisão alvo de recurso nos presentes
autos;
iii) Não conhecer do recurso, interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do
artigo 70º da LTC, quanto à inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do
artigo 374º do CPP, por não se verificar identidade entre a dimensão normativa
julgada inconstitucional nos Acórdãos n.º 680/98 e n.º 636/99 e a interpretação
normativa efectivamente aplicada pela decisão alvo de recurso nos presentes
autos.”
Esta decisão sumária foi objecto de reclamação para a conferência, a qual a
indeferiu, por acórdão de 5 de Março de 2008, também já transitado em julgado.
4. Resta, portanto, aferir do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1
do artigo 70º da LTC, na parte que diz respeito à alegada inconstitucionalidade
da norma extraída do n.º 2 do artigo 256º, quando conjugada com o n.º 3 do
artigo 23º e com a alínea a) do artigo 255º, do Código Penal [na redacção
anterior à Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro]:
“(…) com o entendimento, segundo o qual, o agente pode ser punido pelo crime de
falsificação de documento sob a forma tentada, nos termos do artigo 22º nº 3 do
CP ainda que o documento em causa não tenha as características exigidas pelo
artigo 255º para que se possa caracterizar como documento penalmente relevante e
não preencha o elemento normativo do tipo previsto no artigo 256º nº 1 do CP,
por ofender irremediavelmente as garantias de defesa do arguido e dos princípios
constitucionais da tipicidade e da legalidade das normas penais previsto nos
artigos 18º nº 1 e 29º nº 1 e 3 da CRP.” (fls. 1126);
Quer ainda da norma extraída do n.º 3 do artigo 22º do Código Penal
[na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro], quando
interpretada:
“(…) no sentido de ser punido como tentativa impossível uma acção em que não se
verifica a tipicidade e em relação à qual é a própria ordem jurídica vigente que
lhe retira qualquer relevância ou efeito não podendo lesar a confiança da
comunidade, nem a ordem nem a paz jurídica. É igualmente inconstitucional o
entendimento de que a mera impressão de insegurança é fundamento aceitável de
punibilidade, por ofender irremediavelmente o princípio da necessidade da pena,
o artigo 18 nº 2 e os princípios constitucionais da tipicidade e da legalidade
das normas penais previstas nos artigos 29º nº 1 e 3 da CRP”. (fls. 1127)
5. Notificado para alegar, o recorrente A. apresentou as seguintes
conclusões:
“1- Por envolver a restrição de direitos fundamentais, o Direito Penal só
adquire legitimidade como intervenção excepcional e directa, na protecção de
bens elegidos como essenciais pela comunidade, se a sua intervenção se
justificar, numa lógica de intervenção excepcional e do primado da liberdade da
acção, para prevenir a afectação graves desses bens — princípio da ofensividade
previsto no artigo 18° n°2 da Constituição da República Portuguesa.
2- O artigo 22° do Código Penal define a tentativa e exprime um critério, que à
luz do princípio da legalidade, estabelecido no artigo 29° da Constituição da
República Portuguesa é condição essencial da punição da mera tentativa, por se
tratar de uma extensão de punibilidade, antecipando a tutela penal aos actos de
execução. Por essa razão, deve ser aplicado de acordo com mesmo critério
material de ilícito do crime consumado, por só dessa forma se respeitar os
princípios constitucionais, da legalidade, da necessidade da pena, da
ofensividade e da culpa. O fundamento da punibilidade de qualquer tentativa,
seja ela possível ou impossível, consiste na criação voluntária pelo agente, de
condições insuportáveis de insegurança para a existência do bem jurídico.
3- A criação de condições insuportáveis de insegurança para a manutenção do bem
jurídico tem de se verificar através da prática, pelo agente, de actos
executivos, que serão todos aqueles que, dentro do plano do agente, e tendo
presente o resultado ou a actividade tipificados na Lei, afectem a esfera de
protecção do bem jurídico tipicamente protegido.
4- O uso do critério material do ilícito é então determinante e essencial, na
verificação, para além de um entendimento causal dos factos, e face do plano do
agente, o momento em que se inicia a execução típica.
5- Esse critério também se aplica à tentativa impossível. Esta última, só poderá
ser punida, se o agente tiver praticado actos de execução, de acordo com um
Direito Penal do Facto e o princípio da legalidade, e se nela ainda for possível
estabelecer uma relação entre a esfera de liberdade de acção do agente e a
protecção dos bens jurídicos que legitime a intervenção do Direito Penal, ou
seja, quando se provoque uma situação de “vitimação ou insegurança para bens
jurídicos “.
6- A aplicação o artigo 23° n°3 do CP com base na mera impressão de insegurança
é inconstitucional, na medida em que permite punir criminalmente todas as
tentativas impossíveis, que apesar de não interferirem na esfera de protecção
dos bens jurídicos, não sejam manifestas. As restrições dos direitos, liberdades
e garantias devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos e a mera impressão, a mera aparência
de insegurança ou de confiança no direito ou, até mesmo, a mera vontade
contrária ao direito, que não seja exteriorizada nem modifique o mundo real
através de actos de execução, não legitima a intervenção do Direito Penal na
restrição da liberdade do seu agente.
7- Nos Autos, os arguidos foram punidos pela tentativa impossível de um crime de
falsificação de documento, em que ambas as decisões judiciais em crise
concluíram, que o documento ou a declaração falsa, não se subsumia ao artigo
255° do CP por não se tratar da declaração de um facto juridicamente relevante,
nem idónea a provar um facto juridicamente relevante. Consequentemente, os
arguidos não foram punidos pelos crimes previstos nos artigos 256° alíneas a) e
c) do Código Penal. Contudo, as decisões aplicaram o artigo 23° n°3 do C.P.
punindo-os por uma tentativa impossível de um crime de falsificação de um
documento, juridicamente irrelevante.
8- Em cumprimento do princípio de ofensividade que se retira do art. 18° da CRP,
do primado da liberdade de acção e de intervenção excepcional do Direito Penal,
por detrás de cada tipo, o legislador assegura a tutela de um ou mais bens
jurídicos. E o princípio da legalidade e da tipicidade exigem que as normas
incriminadoras, ou os tipos, sejam prévias, escritas e precisas, só podendo
cumprir com a sua finalidade preventiva geral e satisfazer o desígnio da
segurança jurídica que enforma o princípio da legalidade e o próprio Estado de
direito democrático, se as normas existirem, descreverem, com precisão, um
comportamento proibido e se houverem entrado em vigor antes da prática das
condutas criminosas.
9- No crime de falsificação de documentos tem-se em vista a protecção de um
específico bem jurídico criminal - a segurança e credibilidade do tráfico
jurídico — probatório, que o legislador entendeu que a sua tutela penal deveria
ser antecipada à verificação do perigo abstracto de lesão daquele bem jurídico.
Mas os elementos subjectivos e objectivos do tipo, descritos no artigo 256° a) e
c) do C.P., não são o mero acto de fabricar, usar ou falsificar qualquer
documento indeterminado, mas sim o querer e ter executado o acto de falsificar,
fabricar ou usar um documento penalmente relevante, tal como o mesmo vem
descrito no artigo 255°
10- A definição do artigo 255° está intrinsecamente relacionada com o bem
jurídico protegido pela norma penal e com a caracterização do ilícito formal e
material do crime de falsificação de documento. Como a falsificação de
documentos tem como objectivo primordial proteger a especial segurança e
credibilidade do tráfico jurídico probatório, evitando a ocorrência de ameaça ou
perigos de lesões a esses bens, esse perigo de lesão ou lesão só têm
possibilidade de se verificar, se essa declaração falsa tiver por objecto um
facto ou conjunto de factos juridicamente relevantes e a sua corporização seja
apta a demonstrá-los judicialmente.
11- Por essa razão, não será toda e qualquer declaração de facto falsa que tem
dignidade penal para que seja incriminada pelo direito. No nosso Código Penal, a
declaração terá, em conformidade com os princípio da legalidade e ofensividade,
de reunir os requisitos necessários previstos no artigo 255°, para que seja
considerada ou se possa, sequer, chamar de DOCUMENTO.
12- O documento do artigo 255° é um elemento essencial determinante do desvalor
da acção e sem o qual a conduta NÃO É PROIBIDA. Se apenas relevasse, para o
legislador penal, enquanto desvalor da acção, o mero acto de falsificar,
independentemente do objecto da acção, não seria necessário que o legislador
utilizasse na descrição típica a palavra “documento”, que o crime se denominasse
por “falsificação de documento” e muito menos o esforço legal empregue em
autonomizar e descrever todo o conceito de documento.
13- “(... )dever jurídico só se verifica se estiver em causa algum facto, ou
relato de facto, juridicamente relevante, cuja falsidade por si só, seja
susceptível de vir a causar um perigo de lesão do bem jurídico aqui em causa;
quando tal acontece (e só acontece quando o documento particular,
simultaneamente é relevante como meio de prova de um direito ou relação
jurídica, e o facto é juridicamente relevante, como vimos) é que o particular
deverá ser punido por falsidade de documento. 11(Helena Moniz, “O crime de
falsificação de documento”, Coimbra Editora, 2ª reimpressão, 2004, pag. 226)
14 - Nos presentes Autos provou-se que os arguidos incorporaram num papel, uma
declaração de facto falsa sem qualquer relevância jurídica, sendo insusceptível
de perigar ou violar o bem jurídico protegido pela norma. A conduta dos arguidos
não se subsume à conduta proibida, nem chega a preencher uma parte dos elementos
objectivos e subjectivos da factualidade típica, uma vez que a relevância penal
e o desvalor da acção do acto de falsificar, fabricar ou usar só se verifica, e
por isso é indissociável, se aquela actividade for exercida sobre um documento
penalmente relevante.
15- Excluída a tipicidade do comportamento, em consequência da aplicação do
artigo 255° do CP, não podem as mesmas decisões judiciais, que a excluem, punir
os arguidos por um crime de falsificação de documento mas sob a forma de
tentativa impossível, aplicando o artigo 23° O 3 do CP. Não há actos de execução
que fundamentem, objectivamente, a tentativa, segundo um Direito Penal do Facto.
A punição é fundada na simples vontade interior dos agentes em querer cometer um
crime que não é considerado crime pela ordem jurídica, e essa aplicação viola os
princípio da culpa, da necessidade da pena da legalidade e da tipicidade do
Direito Penal.
16- A aplicação constitucional do artigo 23° do CP obrigava que os arguidos
tivessem praticado actos de execução do crime de falsificação, quer na vertente
formal, quer na vertente material do ilícito e da aplicação do artigo 255° a
“contrario” resulta: que a declaração falsa perpetrada pelo agente não é um
documento penalmente relevante, é inapta a servir como meio de prova de qualquer
facto juridicamente relevante, é insusceptível de interferir ou provocar
qualquer diminuição das condições concretas de liberdade ou segurança da
sociedade em geral; de criar perigo de segurança e credibilidade no tráfico
jurídico probatório no que respeita à prova documental ou de interferir com a
esfera jurídica de protecção desse bem.
17- Em consequência da aplicação do artigo 255° a “contrario” NÃO SE VERIFICA
NEM O DESVALOR DA ACÇÃO NEM O DESVALOR DO RESULTADO a conduta dos arguidos não é
perigosa, em abstracto, nem contém qualquer substrato de afectação de bens
jurídicos, não se verificando qualquer interferência na esfera de protecção do
bem jurídico e em qualquer alternativa de acção concebível.
18 — A aplicação, nas decisões judiciais, das normas previstas nos art. 22° e
23° do CP, punindo os arguidos pela tentativa impossível, em conjugação com os
artigos 255 e 256 - estes últimos aplicados no sentido dos documentos dos Autos
não constituírem uma declaração de facto juridicamente relevante e
consequentemente, não serem idóneos a provar esse facto nem aptos a provocar um
perigo de lesão na segurança e credibilidade do tráfico jurídico — probatório, é
inconstitucional, por violar o princípio da ofensividade, previsto no artigo 18°
n°2 da CRP, os princípios da legalidade e tipicidade das normas penais previsto
no artigo 29° nº 1 e 3° da CRP e em consequência destes último, do princípio da
necessidade da pena, do Direito Penal do facto e da culpa, na medida em que as
restrições da liberdade através da punição só são justificadas, pelas mais
graves ofensas a bens jurídicos, através de uma acção livre e criativa,
tipificada previamente na lei, que modifique e transforme o mundo real.
19- O artigo 255° do CP existe no nosso ordenamento jurídico, não só como
primado do princípio da legalidade e da tipicidade das normas jurídicas penais,
previsto no artigo 29° n°1 e 2 da CRP, mas enquanto corolário do princípio
Constitucional da ofensividade, previsto no artigo 18° n°2 do CP, porque as
restrições dos direitos, liberdades e garantias através da Lei Penal, devem
limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegido e o crime de falsificação de documento só coloca
em perigo o bem jurídico protegido pela norma, justificando a tutela penal ou a
antecipação da tutela penal desse bem jurídico, ao mero perigo abstracto de
lesão, quando se reportar a um documento penalmente relevante. Todos os
restantes documentos que não reúnam aquelas características escapam à tutela
penal por não interferirem com o bem jurídico.
20- A aplicação do artigo 23° n°3 é inconstitucional por ter sido efectuada com
fundamento exclusivo na mera impressão de insegurança ou de sentimentos de
confiança no direito e o fundamento da punibilidade da tentativa impossível não
poder ser uma ideia de ilícito, diversa daquela que norteia e justifica a
intervenção penal das tentativas possíveis ou nos crimes consumados, por ser
contrário aos princípios da legalidade e da ofensividade que se retira do artigo
18° n°2 e 29° da Constituição da República Portuguesa.
21 — Aplicado o artigo 255° no sentido do documento do Autos não constituir uma
declaração de facto juridicamente relevante e consequentemente, não serem
idóneos a provar esse facto nem aptos a provocar um perigo de lesão na segurança
e credibilidade do tráfico jurídico — probatório, não cometeram os arguidos
nenhum crime de falsificação de documento, nem na sua forma consumada nem na sua
forma tentada.” (fls. 1264 a 1269)
6. Tendo sido para tal notificado, o Ministério Público veio contra-alegar o
seguinte:
“1. Apreciação de questão de constitucionalidade suscitada.
1.1. Inconformado com o decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o arguido
A. interpôs o presente recurso de constitucionalidade circunscrito — após a
delimitação operada a fls. 1169 — à apreciação da conformidade à Lei Fundamental
da norma do nº 2 do artigo 256°, em conjugação com o nº 3 do artigo 23° e com a
alínea a) do artigo 255°, todos do Código Penal, “com o entendimento, segundo o
qual, o agente pode ser punido pelo crime de falsificação de documento sob a
forma tentada, nos termos do artigo 23 n°3 do Código Penal ainda que o documento
em causa não tenha as características exigidas pelo artigo 255° para que se
possa caracterizar como documento penalmente relevante e não preencha o elemento
normativo do tipo previsto no artigo 256°, nº 1 do Código Penal, por ofender
irremediavelmente as garantias de defesa do arguido e dos princípios
constitucionais da tipicidade e da legalidade das normas penais previstas nos
artigos 18°, nº 1 e 29°, nº 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa”.
1.2. A matéria em apreciação é tratada pela decisão recorrida a fls. 1081 a
1087, com o apoio jurisprudencial e doutrinário aí constante, tendo concluído
que: “Os factos praticados pelos recorrentes são manifestamente aptos só por si
para evidenciarem perigosidade relevante, perante os padrões normais de
experiência, em relação ao bem jurídico protegido pela norma, pelo que merecem
ser punidos”.
Nos seus considerandos resulta ainda ter sido entendido estar-se perante um
crime de perigo abstracto e que a infracção foi cometida na forma tentada, sendo
certo que a verificação efectiva de um perigo em concreto, nem sequer é exigida
na forma consumada deste tipo legal de infracção.
Relativamente à tentativa prevista no artigo 23°, nº 3 do Código Penal
assentou-se no entendimento que apenas a inidoneidade absoluta do meio empregue
afasta o juízo de censura penal e já não a idoneidade relativa, conforme foi a
situação apurada no processo.
Por outro lado, a afirmação de que falsificação de documento não apresenta todas
as características exigidas quer pelo disposto no artigo 255° do Código Penal,
quer pelo artigo 256° do mesmo diploma, tem que ser entendida no contexto da
fundamentação da decisão recorrida e no quadro de que se está perante a forma
tentada e não consumada de prática da infracção penal.
1.3. Sustenta o recorrente que a inconstitucionalidade radica no facto de ter
ocorrido violação dos artigos 18°, nº 1 e 29°, nº 1 e 3 da Lei Fundamental.
Quanto à eventual ofensa do princípio da tipicidade ou de legalidade penal tem o
Tribunal Constitucional entendido (nem sempre por unanimidade) que em situações
idênticas à que é objecto do presente recurso, não estão em causa verdadeiras
questões de inconstitucionalidade normativa mas sim da própria decisão recorrida
ou do acto de julgamento, pelo que não estando legalmente consagrado o
denominado “recurso de amparo” não pode o Tribunal Constitucional conhecer da
questão nesta base suscitada — cf., entre outros, os Acórdãos nos 634/94,
221/95, 154/98 e 674/99.
Este entendimento é aplicável no caso em apreço.
Relativamente à eventual violação dos princípios da proporcionalidade e da
necessidade das penas contidos no artigo 18° da Constituição, é de trazer à
colocação o que se assinalou no Acórdão do Tribunal Constitucional n°634/93, e
se retomou depois no Acórdão nº 99/02: “o juízo sobre a necessidade do recurso
aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de
reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade”.
Só deverá, assim, haver censura do ponto de vista de conformidade constitucional
“quando a punição criminal se apresenta como manifestamente excessiva”, o que de
todo não se verifica na interpretação normativa em apreciação, levada a cabo na
decisão recorrida.
2. Conclusão
Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se:
1. Na parte que diz respeito à eventual ofensa dos princípios da tipicidade e de
legalidade, consagrados no artigo 29° da Lei Fundamental, não pode o Tribunal
Constitucional conhecer do recurso já que não está em causa uma verdadeira
questão de inconstitucionalidade normativa.
2. Não se tendo excedido a margem de discricionariedade concedida ao legislador
no recurso aos meios criminais, nem se revelando excessiva a punição criminal no
caso realizada, não é inconstitucional a norma contida no nº 2 do artigo 256°,
quando conjugada com o nº 3 do artigo 23° e com a alínea a) do artigo 255°,
todos do Código Penal, “com o entendimento, segundo o qual, o agente pode ser
punido pelo crime de falsificação de documento sob a forma tentada, nos termos
do artigo 22°, nº 3 do Código Penal, ainda que o documento em causa não tenha as
características exigidas pelo artigo 255° para que se possa caracterizar como
documento penalmente relevante e não preencha o elemento normativo do tipo
previsto no artigo 256°, nº 1 do Código Penal”.
3. Termos em que não deverá proceder o presente recurso” (fls. 1274 a 1277).
7. Na sequência das contra-alegações do Ministério Público, e por
ter entendido subsistirem dúvidas quanto à possibilidade de conhecimento sobre o
objecto do recurso, por falta de suscitação de uma questão de
inconstitucionalidade normativa, a Relatora notificou o recorrente, nos termos
dos artigos 704º e 702º/2 do CPC, aplicáveis “ex vi” artigo 69º da LTC, para que
aquele se viesse pronunciar sobre a possibilidade de não conhecimento. Em
síntese, no que releva para o presente acórdão, o recorrente veio então
pronunciar-se nos seguintes termos:
«O recorrente defende que, durante o processo, suscitou a questão de
inconstitucionalidade em apreço, não obstante, o poder ter feito, nalgumas
passagens, com recurso a expressões menos adequadas em função do que realmente
pretendia dizer. Mas mesmo com recurso às referidas expressões e superadas as
questões de forma, a questão de inconstitucionalidade normativa, acima
referenciada, foi exposta de forma clara e inconfundível nas suas alegações e
conclusões de recurso, não deixando margem para dúvidas ao Tribunal a quo sobre
qual a concreta questão de inconstitucionalidade normativa, invocada pelo
recorrente, em termos de lhe ser exigível que dela conhecesse antes de esgotado
o seu poder jurisdicional – art. 72º, nº 2, da LTC.
(…)
A fls. 70 a 76 da Motivação do seu Recurso para o Tribunal da Relação de
Coimbra, o recorrente suscitou a questão de constitucionalidade normativa,
identificou as normas cuja aplicação reputou de inconstitucional, fê-lo por
confronto com os preceitos e princípios constitucionais identificados,
justificando fundamentadamente a inconstitucionalidade suscitada.
(…)
4º - O recorrente colocou o Tribunal da Relação de Coimbra perante uma questão
de constitucionalidade normativa, indicando as normas cuja aplicação reputa de
inconstitucional por violação de determinadas normas e princípios
constitucionais, fundamentando, ainda que sucintamente, a inconstitucionalidade
arguida, conferindo àquele Tribunal, todas as possibilidades de se poder
pronunciar sobre a questão concreta.» (fls. 1349, 1350 e1356)
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Não conhecimento do objecto do recurso
8. Em sede de contra-alegações, invocou o Ministério Público que seria
impossível conhecer da eventual violação do princípio da legalidade penal, em
função de jurisprudência anterior deste Tribunal (v.g. Acórdãos n.º 634/94, n.º
221/95, n.º 154/98 e n.º 674/99) que, alegadamente, o impediria.
Antes, porém, importa apreciar se o recorrente invocou as mencionadas
inconstitucionalidades de modo processualmente adequado, pois se o não fez, esta
questão ficará precludida.
Relembre-se então o objecto do presente recurso. Através da interposição de
recurso, o recorrente pretende que seja, simultaneamente, apreciada a
inconstitucionalidade de duas interpretações normativas:
i) A resultante da norma extraída do n.º 2 do artigo
256º, quando conjugada com o n.º 3 do artigo 23º e com a alínea a) do artigo
255º, do Código Penal [na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04 de
Setembro], “(…) com o entendimento, segundo o qual, o agente pode ser punido
pelo crime de falsificação de documento sob a forma tentada, nos termos do
artigo 22º nº 3 do CP ainda que o documento em causa não tenha as
características exigidas pelo artigo 255º para que se possa caracterizar como
documento penalmente relevante e não preencha o elemento normativo do tipo
previsto no artigo 256º nº 1 do CP” (fls. 1126);
ii) A resultante da norma extraída do n.º 3 do artigo 22º
do Código Penal [na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro],
quando interpretada “(…) no sentido de ser punido como tentativa impossível uma
acção em que não se verifica a tipicidade e em relação à qual é a própria ordem
jurídica vigente que lhe retira qualquer relevância ou efeito não podendo lesar
a confiança da comunidade, nem a ordem nem a paz jurídica. É igualmente
inconstitucional o entendimento de que a mera impressão de insegurança é
fundamento aceitável de punibilidade”. (fls. 1127).
Com efeito, no requerimento de interposição de recurso, o recorrente apresenta
duas questões de inconstitucionalidade relacionadas com as supra referidas
interpretações normativas. Contudo, verificados exaustivamente os autos
recorridos, é forçoso verificar-se que o recorrente nunca colocou aquelas
questões de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal recorrido,
conforme lhe era exigido pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC, pelo que aquele
tribunal não pôde delas conhecer. Senão, vejam-se as seguintes passagens:
i) “A sentença é ainda inconstitucional porque viola o artigo
29º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.” (fls. 883);
ii) “O Tribunal, tendo interpretado e aplicado correctamente o
artigo 255º do CP ao caso dos Autos, não podia, simultaneamente, porque violador
dos princípios da tipicidade e da legalidade das normas penais
constitucionalmente tuteladas nos artigo 29º nº 1 e 3º da CRP, punir os arguidos
pelo crime de artigo 256º nº 3 e 23º nº 3 do Código Penal ainda que na sua forma
tentada.” (fls. 889);
iii) “A decisão é ilegal e inconstitucional” (fls. 889).
Ou seja, extrai-se das alegações de recurso para o Tribunal da Relação de
Coimbra que o recorrente nunca chegou a reputar de inconstitucionais as normas
que agora pretende ver apreciadas, nos mesmos e exactos termos em que as reputou
de inconstitucionais no requerimento de interposição de recurso. Como tal, é
evidente que o recorrente não suscitou de modo processualmente adequado as duas
questões de inconstitucionalidade que pretende ver agora apreciadas, conforme
lhe competia por força do n.º 2 do artigo 72º da LTC.
Acresce ainda ser notório que o recorrente, de modo reiterado, apelida de
inconstitucional a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, ao
invés de atacar a constitucionalidade das normas por aquele aplicadas. Ora, por
força do sistema de fiscalização da constitucionalidade português, este Tribunal
apenas pode conhecer da inconstitucionalidade de normas, mas não já da
inconstitucionalidade das decisões jurisdicionais que as aplicam (cfr. artigo
277º, n.º 1, da CRP).
III – DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos supra expostos, decide-se não conhecer do
objecto deste recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC´s, nos
termos do n.º 1 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 18 de Junho de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão