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Processo n.º 447/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O Ministério Público deduziu acusação contra A.,
imputando‑lhe a autoria material, em concurso real e na forma consumada, de: (i)
um crime de associação de auxílio à imigração ilegal, previsto e punido pelo
artigo 135.º, n.ºs 1 e 3; (ii) um crime de angariação de mão‑de‑obra ilegal,
previsto e punido pelo artigo 136.º‑A; (iii) 198 crimes de auxílio à imigração
ilegal, previstos e punidos pelo artigo 134.º‑A, n.º 2, todos do Decreto‑Lei n.º
244/98, de 8 de Agosto, na redacção introduzida pelo Decreto‑Lei n.º 34/2003, de
25 de Fevereiro; (iv) 198 crimes de falsificação de documento, previstos e
punidos pelo artigo 256.º, n.ºs 1 e 3; (v) 24 crimes de corrupção activa,
previstos e punidos pelo artigo 374.º, n.º 1; (vi) 17 crimes de lenocínio,
previstos e punidos pelo artigo 170.º, n.º 2; (vii) 7 crimes de tráfico de
influência, previstos e punidos pelo artigo 335.º; (viii) 4 crimes de burla,
previstos e punidos pelo artigo 217.º; (ix) um crime de descaminho, previsto e
punido pelo artigo 355.º; e (x) um crime de extorsão, previsto e punido pelo
artigo 223.º, todos do Código Penal.
A referida arguida apresentou requerimento de abertura
de instrução no qual, além do mais, arguiu: (i) a nulidade das escutas
telefónicas, por alegada violação do disposto nos artigos 187.º e 188.º do
Código de Processo Penal (CPP) e 32.º, n.ºs 1 e 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º
2, da Constituição da República Portuguesa (CRP); e (ii) a
inconstitucionalidade orgânica e material do artigo 134.º‑A, n.º 2, do
Decreto‑Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo Decreto‑Lei n.º 34/2003, e
a inconstitucionalidade orgânica do artigo 2.º, alínea o), da Lei n.º 22/2002,
de 21 de Agosto e dos artigos 135.º e 136.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 244/98,
na redacção introduzida pelo Decreto‑Lei n.º 34/2003, por violação do artigo
165.º, n.º s 1, alíneas b) e c), e 2, da CRP.
Pela decisão instrutória do Tribunal de Instrução
Criminal do Porto, de 1 de Agosto de 2007, foi desatendida quer a arguição da
nulidade das escutas telefónicas quer a arguição de inconstitucionalidade dos
artigos 2.º, alínea o), da Lei n.º 22/2002 e 134.º‑A, n.º 2, 135.º e 136.º, n.º
2, do Decreto‑Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo Decreto‑Lei n.º
34/2003, tendo, a propósito desta questão de inconstitucionalidade, sido tecidas
as seguintes considerações:
“Os arguidos B., C. e A. vêm ainda invocar:
– a inconstitucionalidade orgânica e material do artigo 134.º‑A, n.º
2, do [Decreto‑Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo] Decreto‑Lei n.º
34/2003, de 25 de Fevereiro, por ofensa do disposto no artigo 165.º, n.º 1,
alínea c), da Constituição da República Portuguesa, alegando, para tanto, que a
alteração introduzida no Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, não respeitou a
Lei de Autorização Legislativa n.º 22/2002, de 21 de Agosto, a qual não tinha o
sentido nem a extensão de autorizar o Governo a incriminar o auxílio à
permanência ilegal de estrangeiros em território nacional;
– a inconstitucionalidade orgânica do artigo 2.º, alínea o), da Lei
n.º 22/2002, de 21 de Agosto, e do artigo 136.º, n.º 2, do [Decreto‑Lei n.º
244/98, na redacção introduzida pelo] Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de
Fevereiro, por violação do artigo 165.º, n.º s 1, alíneas b) e c), e 2, da
Constituição da República Portuguesa;
– a inconstitucionalidade orgânica do artigo 2.º, alínea o), da Lei
n.º 22/2002, de 21 de Agosto, e do artigo 135.º do [Decreto‑Lei n.º 244/98, na
redacção introduzida pelo] Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, por
violação do artigo 165.º, n.ºs 1, alíneas b) e c), e 2, da Constituição da
República Portuguesa;
– a alínea o) da predita Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto, apenas
autorizara o Governo a criminalizar o trânsito ilegal de estrangeiros em
Portugal;
– a inconstitucionalidade da alínea o) do artigo 2.º da Lei n.º
22/2002, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 2, da Constituição da
República Portuguesa, por não definir, com rigor, o sentido da autorização
concedida ao Governo.
Cumpre decidir.
O n.º 2 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa
prescreve que «as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o
sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada».
A Lei de Autorização n.º 22/2002, de 21 de Agosto, observa todos
estes requisitos.
Desde logo, e quanto ao objecto da autorização, o artigo 1.º da
referida Lei diz que «É concedida ao Governo autorização para alterar o regime
de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros em
território nacional».
O sentido e extensão, ou seja, os princípios orientadores do Governo
na emanação do decreto‑lei autorizado sobre a imigração, vêm definidos no seu
artigo 2.º: aí indica‑se o conteúdo e as questões materiais sobre que irá
incidir o decreto‑lei autorizado. Entre elas está o de «aperfeiçoar o regime
sancionatório das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração,
criando novos tipos criminais (…)» – cf. a alínea o) do art. 2.º
Os arguidos entendem que, pelo facto de na referida alínea o) se
dizer, expressamente, que se deverá criminalizar o trânsito ilegal de cidadãos
estrangeiros em território nacional, não fora o Governo autorizado a incriminar
o auxílio à permanência ilegal, e, ao tê‑lo feito, o decreto‑lei autorizado, n.º
34/2003, de 25 de Fevereiro, excedeu os limites da lei de autorização.
Mas não é assim.
A mencionada alínea o) autorizou o Governo a «aperfeiçoar o regime
sancionatório das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração
criando novos tipos criminais (…)» – realce nosso.
A lei de autorização tem de ser interpretada no contexto em que foi
concedida, sem esquecer que é ao Governo que compete a iniciativa legislativa
da autorização. Não é o Parlamento que, de motu proprio, concede a autorização.
No artigo 1.º do Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro,
estabelece‑se que «O presente diploma transpõe para a ordem jurídica interna a
(…) Directiva n.º 2002/90/CE, do Conselho, de 28 de Novembro, relativa à
definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares».
O artigo 1.º da referida Directiva prescreve que «1 – Os
Estados‑Membros devem adoptar sanções adequadas: (…) b) Contra quem, com fins
lucrativos, auxilie intencionalmente uma pessoa que não seja nacional de um
Estado‑Membro a permanecer no território de um Estado‑Membro, em infracção da
legislação aplicável nesse Estado em matéria de residência de estrangeiros» –
sublinhado nosso.
Ora, se o legislador pretendeu aplicar, na ordem jurídica interna, a
disciplina da referida Directiva, tinha que alterar, em conformidade, o regime
previsto no Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, o qual não prescrevia
quaisquer sanções contra quem, com fins lucrativos, auxiliasse,
intencionalmente, uma pessoa que não fosse nacional de um Estado‑Membro a
permanecer no território de um Estado‑Membro.
Com efeito, no regime anterior, apenas se previa e punia o auxílio à
entrada ilegal de cidadãos estrangeiros, fosse ele com ou sem intenção lucrativa
– cf. o artigo 134.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto.
Não faria qualquer sentido que o legislador, querendo transpor para
a ordem jurídica interna a predita Directiva, viesse, afinal, criminalizar,
apenas, o auxílio ao «trânsito» ilegal, como pretendem os arguidos.
Daí que a Assembleia da República, através da Lei n.º 22/2002, de 21
de Agosto, expressamente, como dela consta, tivesse autorizado o Governo a
alterar o regime que regula a permanência de cidadãos estrangeiros em
território nacional, previsto no Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto – cf. o
artigo 1.º
E, no artigo 2.º, alínea o), diz, expressamente, que a lei tem o
sentido e a extensão de autorizar o Governo a «aperfeiçoar o regime
sancionatório das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração,
criando novos tipos criminais, designadamente, no sentido de criminalizar o
trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional e agravar as
medidas das penas aplicáveis» – realce nosso.
Se a Assembleia da República pretendesse autorizar o Governo a
incriminar apenas o auxílio ao «trânsito» ilegal de estrangeiros em Portugal,
devia, então, ter dito que autorizava o Governo a «aperfeiçoar o regime
sancionatório das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração,
criminalizando o trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros em território
nacional e agravar as medidas das penas aplicáveis».
Se esta última hipótese tivesse acontecido, então, a Assembleia da
República não estaria a respeitar a advertência contida na Directiva n.º
2002/90/CE, para a necessidade de criminalizar o auxílio à permanência ilegal.
A imigração ilegal não comporta, apenas, as vertentes da «entrada» e
do «trânsito», mas, também, o da «permanência», como consequência da «entrada».
Daí que, nesse novo regime sancionatório das infracções criminais associadas à
imigração ilegal, tem cabimento a criminalização do auxílio à permanência
ilegal.
Não pode, por isso, sufragar‑se a tese dos arguidos de que a lei de
autorização legislativa não definia, com rigor, o sentido e extensão da
autorização concedida ao Governo.
Em conformidade com o que acaba de dizer‑se, pode ler‑se no
preâmbulo do Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, que, «Por fim,
procede‑se à transposição, para o direito interno (…) do previsto na Directiva
n.º 2002/90/CE, do Conselho, de 28 de Novembro, relativa à definição do auxílio
à entrada, ao trânsito e à residência irregulares, e, na Decisão Quadro, do
Conselho, de 28 de Novembro de 2002, relativa ao reforço do quadro penal para a
prevenção do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares» – realce
nosso.
Concluindo, pelo que acaba de dizer‑se, porque abrangida pela
autorização legislativa a criminalização do auxílio à permanência ilegal de
cidadãos estrangeiros no território nacional, os artigos 134.º‑A, 136.º, n.º 2,
e 135.º do [Decreto‑Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo] Decreto‑Lei
n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, não padecem de inconstitucionalidade material e
orgânica, como também não enferma de tal vício o artigo 2.º, alínea o), da Lei
n.º 22/2002, de 21 de Agosto.
No sentido do aqui decidido, que se seguiu de perto, pronunciou‑se o
acórdão da Relação de Porto, de 15 de Fevereiro de 2006, no proc. n.º 0545889
(disponível no sítio da internet in www.dgsi.pt/jtrp/00038816), dizendo que o «O
Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, que criminaliza o auxílio à
permanência ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional, respeitou os
limites da Lei de Autorização n.º 22/2002, de 21 de Agosto, não havendo, aí, por
isso, qualquer inconstitucionalidade orgânica».
Pelo exposto, este Tribunal decide:
– julgar improcedente a invocada inconstitucionalidade orgânica e
material do artigo 134.º-A, n.º 2, do [Decreto‑Lei n.º 244/98, na redacção
introduzida pelo] Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, por ofensa do
disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República
Portuguesa;
– julgar improcedente a invocada inconstitucionalidade orgânica do
artigo 2.º, alínea o), da Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto, e do artigo 136.º,
n.º 2, do [Decreto‑Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo] Decreto‑Lei n.º
34/2003, de 25 de Fevereiro, por suposta violação do artigo 165.º, n.ºs 1,
alíneas b) e c), e 2, da Constituição da República Portuguesa;
– julgar improcedente a invocada inconstitucionalidade orgânica do
artigo 2.º, alínea o), da Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto, e do artigo 135.º do
[Decreto‑Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo] Decreto‑Lei n.º 34/2003,
de 25 de Fevereiro, por suposta violação do artigo 165.º, n.ºs 1, alíneas b) e
c), e 2, da Constituição da República Portuguesa;
– julgar improcedente a interpretação da alínea o) da predita Lei
n.º 22/2002, de 21 de Agosto, no sentido de que apenas autorizou o Governo a
criminalizar o trânsito ilegal de estrangeiros em Portugal;
– julgar improcedente a invocada inconstitucionalidade da alínea o)
do artigo 2.º da Lei n.º 22/2002, por suposta violação do disposto no artigo
165.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, interpretada no sentido
de que não definia, com rigor, o sentido da autorização concedida ao Governo.”
Passando de seguida ao “juízo de indiciação”, a decisão
instrutória em causa viria a não pronunciar a arguida pelos crimes de auxílio à
imigração ilegal reportados a factos ocorridos antes do dia 12 de Março de 2003
– por “julgar procedente a invocada inconstitucionalidade do artigo 134.º‑A do
[Decreto‑Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo] Decreto‑Lei n.º 34/2003,
de 25 de Fevereiro, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 1, da CRP,
interpretado no sentido de que incrimina os actos de auxílio à «permanência»
ilegal de estrangeiros em território nacional praticados antes do dia 12 de
Março de 2003” –, nem pelos 17 crimes de lenocínio, pelos 4 crimes de burla,
pelo crime de descaminho e pelo crime de extorsão, e a alterar a incriminação
pelo crime de angariação de mão‑de‑obra ilegal, previsto no artigo 136.º‑A,
para o crime de auxílio à entrada ilegal de cidadão estrangeiro em território
nacional, com intenção lucrativa, previsto pelo artigo 134.º‑A, n.º 2, do
referido diploma.
Contra a decisão instrutória interpuseram recurso para o
Tribunal da Relação do Porto o Ministério Público e a arguida A., além de
outros arguidos.
No seu recurso, o Ministério Público, no que a esta
arguida respeita, propugnou a sua pronúncia por todos os crimes de auxílio à
imigração ilegal por que fora acusada e ainda pelos 17 crimes de lenocínio e
pelo crime de extorsão.
Por seu turno, a motivação do recurso da referida
arguida foi sintetizada nas seguintes conclusões:
“1.ª – A alteração introduzida pelo Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25
de Fevereiro, no Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, não respeitou a alínea
o) do artigo 2.º da Lei de Autorização n.º 22/2002.
2.ª – Essa Lei de Autorização não tinha o sentido nem a extensão de
autorizar o Governo a incriminar o auxílio à permanência ilegal de
estrangeiros em território nacional.
3.ª – O n.º 2 do artigo 134.º‑A do Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de
Agosto, na redacção resultante do Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro,
está, assim, ferido de inconstitucionalidade, por ofensa ao disposto na alínea
c) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.
4.ª – Caso se entenda que a incriminação inovadora do auxílio à
permanência ilegal contida naquele artigo 134.º‑A, n.º 2, está coberta pela
fórmula não taxativa da citada alínea o), expressa no advérbio «designadamente»,
nem por isso ela deixa de ofender a reserva relativa de competência legislativa
da Assembleia da República (logo, a alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP),
5.ª – uma vez que essa interpretação implica a inconstitucionalidade
da própria norma da alínea o) do artigo 2.º da Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto,
por violação do comando contido no n.º 2 do artigo 165.º da CRP.
6.ª – Em resumo: seja porque extravasa o sentido admissível da lei
de autorização, seja porque tal sentido não está definido nesta lei com rigor,
a incriminação do auxílio à permanência ilegal de estrangeiros, estatuída pelo
artigo 134.º‑A, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, na redacção do
Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, está ferida de
inconstitucionalidade orgânica e material e não pode fundar‑se nela a
incriminação da arguida.
7.ª – Ao decidir em sentido contrário, a douta decisão impugnada
ofendeu as disposições normativas que ficaram citadas.
8.ª – Sempre que no decurso do prazo da vigência da autorização de
escutas telefónicas ocorra a intercepção e gravação de qualquer conversa
telefónica, tem de ser lavrado imediatamente auto desse facto e o mesmo,
acompanhado dos suportes técnicos da gravação efectuada, levado de imediato ao
conhecimento do juiz, que terá de proceder também de imediato à leitura do auto
e ao controlo do seu conteúdo, através da audição das gravações.
9.ª – É o juiz de instrução criminal, portanto, quem tem de efectuar
a selecção dentre as gravações efectuadas, não podendo as mesmas ser valoradas
sem que tenham sido por ele previamente seleccionadas em função da sua
relevância para a investigação.
10.ª – Nos presentes autos, não resulta documentado, nomeadamente,
dos doutos despachos que ordenaram a transcrição das escutas telefónicas – fls.
284, 314, 352, 401, 513, 565, 660, 904, 951, 1232, 1241, 1759, 1974, 4783, 4968,
5039, 5104, 5434, 5460 e 6019 –, que o juiz de instrução criminal tivesse
procedido à sua audição para, desse modo e de forma criteriosa, seleccionar
aquelas que considerava serem de interesse para a investigação em curso, ou,
sequer, que tivesse validado a selecção efectuada pelo órgão de polícia
criminal.
11.ª – De facto, a selecção das escutas foi efectuada pelo órgão de
polícia criminal e foi com base nesta selecção que o juiz de instrução criminal
ordenou a respectiva transcrição e a destruição das sessões que foram, também
pelo órgão de polícia criminal, consideradas sem interesse para a prova dos
factos em investigação.
12.ª – Mesmo no entendimento de que o juiz de instrução criminal
podia limitar‑se à audição das escutas previamente seleccionadas pelo órgão de
polícia criminal, o certo é que, nos presentes autos, isso não ocorreu, ou seja,
o juiz de instrução criminal não procedeu à audição de qualquer passagem de
gravação.
13.ª – Assim, o juiz de instrução criminal ordenou a transcrição sem
que previamente tivesse procedido à audição das escutas que não acompanhou nem
controlou.
14.ª – Pelo exposto, a inexistência de qualquer controlo judicial da
legalidade das escutas telefónicas em apreço – audição e selecção dos registos
telefónicos ou validação das sessões indicadas pelo órgão de polícia criminal –
determina a viciação deste meio de prova, por violação do disposto no n.º 3 do
artigo 188.º do CPP e [no artigo] 34.º da CRP, e importa a nulidade das
intercepções telefónicas efectivadas nos presentes autos, o que devia ter sido
declarado.
15.ª – Acresce que não foram observadas nem respeitadas algumas das
formalidades essenciais a que tem de obedecer a execução das escutas, o que
reflecte, afinal, a falta de acompanhamento e controlo das escutas pelo juiz de
instrução criminal, que se manifesta, relativamente aos alvos 28 479, 28 677, 31
607, 31 687, 31 688 e 31 692, no facto de:
– decorrerem enormes e, a todos os títulos, inadmissíveis períodos
de tempo entre o dia das gravações das sessões e a validação da respectiva
transcrição;
– decorrerem grandes lapsos de tempo entre a data da escuta e a data
da sua documentação em auto – o órgão de polícia criminal estava obrigado a
apresentar as sessões gravadas ao juiz de instrução criminal no prazo de 15 dias
– e a ordem de transcrição ou destruição dada pelo juiz;
– não ser cumprido o prazo para a transcrição das sessões tidas por
relevantes;
– o juiz de instrução criminal prorrogar o prazo das intercepções
telefónicas sem que tenha ouvido as gravações anteriormente efectuadas;
– o juiz de instrução criminal validar transcrições sem que de facto
as tenha verificado uma vez que se o tivesse feito jamais poderia ter validado a
transcrição de escutas de conversas mantidas entre o arguido e o seu
mandatário, como aconteceu, mas foi justamente reparado pela douta decisão em
mérito, na parte não impugnada.
16.ª – Este padrão não é compatível com a natureza excepcional deste
meio de recolha de prova e ofende o disposto nos artigos 187.º e 188.º do CPP,
sendo nula a prova obtida com violação destes preceitos legais.
17.ª – A interpretação destes preceitos, subscrita pela douta
decisão em mérito, em que se admita a ocorrência dos enormes períodos de tempo
observados neste processo entre o dia em que se realiza a escuta e a data em
que é ordenada a sua transcrição, em que se legitima a intercepção de conversas
telefónicas efectuadas por telefones cujo número foi obtido através de sessões
cuja transcrição não foi ordenada e em que se permita o não cumprimento de
prazos e formalidades judicialmente ordenadas, é inconstitucional, por ofensa
das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º,
n.º 2, da CRP.
18.ª – Acresce que o juiz de instrução criminal ordenou a destruição
de vários suportes magnéticos de conversações interceptadas e gravadas, que ele
considerou sem interesse, por indicação do órgão de polícia criminal, e essa
ordem foi executada.
19.ª – Deste modo, à recorrente não foi dada a possibilidade de
conferir a utilidade para a sua defesa dos elementos destruídos, tendo ficado,
assim, a constar dos autos, apenas, a selecção de conversas efectuada pela
acusação e sancionada pelo juiz.
20.ª – A destruição dos elementos de prova feita à revelia da
arguida tem como consequência a impossibilidade de esta poder explicar e
contextualizar as conversas em que possa ter participado.
21.ª – Essa destruição implica a nulidade da prova, por força da
inconstitucionalidade da segunda parte do n.º 3 do artigo 188.º, que ofende os
mencionados artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP,
inconstitucionalidade essa que fica alegada.
22.ª – Ao indeferir a nulidade das escutas telefónicas suscitada
pela arguida, o douto despacho em mérito ofendeu, entre outras, as citadas
disposições dos artigos 187.º e 188.º do CPP e 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e
43.º, n.ºs 1 e 2, da CRP”.
Pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de
Fevereiro de 2008, foi negado provimento ao recurso do Ministério Público na
parte em que se reportava à aludida arguida, e, quanto ao recurso desta
arguida, não tomou conhecimento do mesmo na parte respeitante à
inconstitucionalidade do artigo 134.º‑A, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 244/98,
aditado pelo Decreto‑Lei n.º 34/2003, e do artigo 2.º alínea o), da Lei n.º
22/2002, e julgou‑o procedente apenas na parte relativa à inconstitucionalidade
do artigo 188.º, n.º 3, do CPP, na redacção anterior à dada pela Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, “interpretado no sentido de permitir a destruição de
elementos obtidos pela intercepção e gravação de conversações ou comunicações
telefónicas e considerados irrelevantes para a prova pelo juiz de instrução
criminal, mas sem que ao arguido seja dado conhecimento dos mesmos e para se
pronunciar sobre a sua relevância para esse efeito”.
A decisão de não conhecimento da aludida questão de
inconstitucionalidade foi fundamentada nas seguintes considerações:
“Eis a 9.ª questão: a Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto, e o artigo
134.º‑A, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, padecem de
inconstitucionalidade, suscitada pela arguida A.?
É evidente que esta questão não surge teoricamente ou em abstracto,
mas, sim, porque a norma em causa teve uma concreta e precisa «conformação»,
assente, naturalmente, nos factos que permitiam sustentá‑la em termos de
relevância criminal; ou seja, de modo mais simples, a sua referência deveu‑se à
circunstância de, constituindo um tipo criminal, o mesmo ter sido preenchido
pelos pertinentes factos, que foram imputados à arguida A., segundo o despacho
de pronúncia.
Só que o foram em termos idênticos aos da acusação.
Sucede que o despacho de pronúncia que assim decida é irrecorrível
(artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à dada
pelo artigo 1.º da Lei n.º 48/2007, de 29 Agosto).
Por isso, não se toma conhecimento da questão em referência e,
necessariamente, do recurso interposto pela arguida A. nesta parte.”
Por seu turno, a propósito da questão da
inconstitucionalidade da norma que determina a destruição imediata dos suportes
das escutas tidas por irrelevantes e suas consequências, desenvolveu‑se, no
acórdão, a seguinte argumentação:
“Eis a 7.ª questão: a decisão de destruição, prevista na segunda
parte do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção anterior
à dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, sem que os arguidos
devessem pronunciar‑se, nesta interpretação, está ferida de
inconstitucionalidade, suscitada pelos arguidos A., B. e D., por violação do
disposto nos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa?
O artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção
anterior à dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, impõe a
destruição dos elementos recolhidos quando os mesmos não sejam considerados
relevantes para a prova.
No caso, houve essa destruição, em rigorosa conformidade com este
ditame legal, isto é, e indo no sentido que nos importa, sem que aos arguidos
(A., B. e D.) fosse dado conhecimento desses elementos antes dessa decisão de
destruição.
Começando pela resposta ou solução, propendemos (ainda que com
algumas dúvidas ou hesitações, confessamos) por julgar inconstitucional essa
interpretação, designadamente porque a mesma coloca o arguido numa posição de
desigualdade processual (em detrimento do que se tem de haver por um processo
leal) que parece não ter justificação substancial razoável (até porque a sua
intervenção pode contribuir para a própria de decisão sobre a relevância para a
prova dos elementos recolhidos) e que, no limite, pode pôr em crise (ainda que,
em muitas situações, senão todas, de forma não absoluta ou definitiva, como
adiante tentaremos explicar …), em termos objectivos, as garantias de defesa
(artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
Isto mesmo nos é dito pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
660/2006, proc. n.º 729/2006, de 28 de Novembro de 2006, in Diário da
República, II Série, n.º 7, de 10 de Janeiro de 2007, págs. 745/758): «O
arguido não chega sequer a ter conhecimento do conteúdo das comunicações antes
da sua destruição, muito menos fazendo valer, ou fundamentar, a sua apreciação
sobre a sua relevância, ficando, por isso, colocado numa posição de
inferioridade, ou desigualdade, que objectivamente põe em causa as suas
garantias de defesa; por outro lado, sendo ao arguido que compete organizar a
sua defesa, contraditando os elementos invocados pela acusação e utilizando‑os
para se defender, tem de lhe ser deixada a possibilidade de ser ele a ajuizar,
com base no conteúdo das conversações em causa, sobre a sua relevância, para,
pelo menos, a poder justificar (por exemplo, porque entende que dela resulta uma
atenuação da sua culpa, ou até uma causa de justificação), sem que esse juízo
possa ser antecipadamente inviabilizado pela destruição dos suportes magnéticos
com base numa apreciação alheia (ainda que do juiz de instrução). Aliás, não
está apenas em causa a possibilidade de conhecimento pelo arguido do conteúdo
das comunicações, para efectuar e fundamentar a sua apreciação sobre a sua
relevância, mas também a própria possibilidade de um controlo judicial da
decisão de destruir os registos das conversações.»
Expliquemos esta conclusão, para o que vamos seguir de perto o
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 450/2007, proc. n.º 452/2007, de 18 de
Setembro de 2007, in Diário da República, II Série, n.º 205, de 24 de Outubro de
2007, págs. 30 739/30 745.
Não estamos, agora, no âmbito e sentido da reserva de juiz, pois não
se põe em causa que a ordem de destruição em referência esteja no âmbito desse
princípio, de forma que, não estando em causa saber quem deve decidir,
definitivamente, sobre a relevância para a prova dos elementos recolhidos, o
que se questiona é se tal decisão do juiz de instrução criminal pode ser tomada
sem o arguido ter tido acesso aos mesmos, integralmente; mais concretamente, se
essa ordem, quando no sentido da destruição, não corresponde a uma intervenção,
por restritiva dos direitos fundamentais do arguido, constitucionalmente
ilegítima.
Essa ordem (nessa dimensão) implica uma compressão das garantias de
defesa do arguido, inaceitável e desnecessária, designadamente quando em
confronto com a posição da acusação, pois quando o arguido sofrera, já, aquela
primeira intervenção restritiva, ainda que, e apenas, justificada pelas ditas
razões de necessidade, nos direitos fundamentais correspondentes, ao ser alvo de
intercepção e gravação das conversações ou comunicações telefónicas, vê
destruídos dados elementos, sem que do seu conteúdo tenha tomado conhecimento,
sequer para se pronunciar sobre a respectiva relevância, ao mesmo tempo que quer
o Ministério Público, quer o órgão de polícia criminal (este, aliás, em primeiro
lugar), tiveram acesso aos elementos (todos), em termos de, este, seleccionar e
indicar as passagens das gravações relevantes para a prova, o que corresponde a
uma intervenção claramente substancial anterior à da apreciação, pelo juiz, e da
sua consequente decisão sobre a relevância ou irrelevância dos elementos, que,
por isso, pode influenciar (v. o artigo 188.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal, na redacção anterior à dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto).
Ademais, muito na linha do que acima se disse, o direito,
inviolável, ao sigilo dos meios de comunicação privada corresponde à refracção
de outros bens jurídicos: os protegidos pelo direito à palavra e pelo direito à
reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa).
O primeiro desses direitos assenta numa precisa realidade, qual seja
o que é dito fora do espaço público tem, como regra, o propósito de não ser
escutado, o que faz parte da acção comunicativa espontânea, inocente e
autêntica, pressupondo, portanto, a existência de uma liberdade de disposição
na área da comunicação não pública. Nesta dimensão, a comunicação humana abrange
os discursos fragmentários, a expressão não reflectida nem contida ou a sua
formulação somente compreensível no contexto de uma situação especial, o que
determina a conclusão de que quem escuta, nestes termos, infere sentidos, por
decisão unilateral e externa (sem conhecimento do autor do discurso). E isto é
de tal maneira assim que se pode caminhar no sentido de uma descontextualização
pela sequência de inferências de sentido, até terminar numa redução de
compreensibilidade em relação ao que fora dito.
Sucede que se não pode desprezar um específico aspecto, qual seja o
de que a ordem de destruição em destaque pode, na mesma, justificar‑se sem a
audição do arguido para a devida protecção da reserva da intimidade da vida
privada de terceiros, já que no âmbito daquele especial tipo de comunicação
também se atinge a esfera pessoal de terceiros, assim se concretizando uma
devassa da privacidade, na sua esfera mais íntima.
Nestas situações, que dão forma a uma autêntica colisão de direitos
(a do arguido a um processo equitativo, com todas as garantias de defesa, e que
inclui, pelo dito, o acesso à integralidade das gravações efectuadas, e a de
terceiros, em relação aos bens jurídicos pelo atinente direito protegido), a
mesma não pode resolver‑se unilateralmente (com prevalência de um e com prejuízo
do outro) mas através da ponderação, de forma a fazer prevalecer qualquer deles
sobre o outro.
Ou seja: a destruição, por irrelevância para a prova, pura e simples
(isto é, sem audição do arguido), dos elementos recolhidos pela intercepção e
gravação das conversações ou comunicações telefónicas, prevista naquele artigo
188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, determina a inconstitucionalidade
desta norma, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa.
**
Segue‑se, então, a 8.ª questão: em caso afirmativo, verifica‑se a
nulidade prevista no artigo 189.º do Código de Processo Penal, na redacção
anterior à dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto?
Como se acabou de ver, a solução para a questão anterior foi
positiva (afirmativa, portanto).
E como se impõe, forçosamente, há que retirar as devidas
consequências daquele juízo de inconstitucionalidade.
Os arguidos A., B. e D. sustentaram, una voce, a nulidade da prova
obtida por este meio de obtenção, nos termos do artigo 189.º do Código de
Processo Penal, na redacção anterior à dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 48/2007,
de 29 de Agosto.
Ainda que se possa compreender (no sentido de entender as razões)
esta posição, o certo é que pensamos ser a mesma fortemente injustificada e,
até, possibilitar uma interpretação inconstitucional por violação do princípio
da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República
Portuguesa).
Mas abalancemo‑nos à explicitação das razões pelas quais assim
pensamos.
Um aspecto nos parece, desde já, decisivo: a questão que fundou o
dito juízo de inconstitucionalidade foi, somente, o de a ordem de destruição dos
elementos considerados irrelevantes para a prova, que cabe, sempre, ao juiz de
instrução criminal, ser proferida sem que ao arguido fosse dada a oportunidade
para se pronunciar.
Então, e numa primeira (e coerente) abordagem, o que estaria viciado
seria a decisão que continha aquela ordem, de forma a poder ser renovada para
decidir‑se, previamente, no sentido de conceder ao arguido a possibilidade de se
pronunciar sobre esses elementos e, depois, decidir‑se no sentido, ou não, da
destruição, por se considerarem irrelevantes para a prova.
Neste quadro, que temos por relevante para o que de seguida se vai
evidenciar, levando‑se a cabo a audição do arguido, a consequência somente
podia ser a seguinte: ou decisão, mesmo que em parte, no sentido da relevância
dos elementos em referência, ampliando‑se, então, a transcrição dos havidos por
relevantes para a prova, ou decisão, ainda que em parte, no sentido da
destruição, por consideração dos mesmos como irrelevantes para esse efeito.
De uma forma que nos pareceria a mais ajustada, então: audição do
arguido de todos os elementos recolhidos (com a excepção dos que se teriam de
excluir por força do juízo de ponderação acima explicitado em caso de colisão
de direitos) e, após, a decisão tida por atinente.
Sucede que esse procedimento, no caso, é, presentemente, uma
impossibilidade existencial (a ordem de destruição foi dada e cumprida sem a
audição dos arguidos A., B. e D.).
É claro que o que acaba de ser dito pode entender‑se como redutor ou
como não integralmente relevante, já que mais pode e deve ser dito, e, na
verdade, assim pode ser (é), designadamente para efeitos de validade ou
invalidade da prova obtida pelo meio em referência.
Assentemos nesta realidade: nada nos permite dizer (os arguidos A.,
B. e D. não o sugeriram sequer …) que os elementos recolhidos pelas intercepções
e gravações das conversações ou comunicações telefónicas que foram considerados
relevantes para a prova o foram por decorrência, imposição ou forte sugestão
daqueles que foram julgados irrelevantes para a prova e, por isso, objecto da
ordem de destruição; o que estes arguidos vieram sustentar foi a relevância para
a prova (ainda que muito vagamente, com excepção do arguido B., tudo como melhor
adiante se verá) dos elementos objecto da ordem de destruição e efectivamente
destruídos, ainda que, como é óbvio, a decisão sobre esta relevância seria,
sempre, do juiz de instrução criminal.
Isto é, e para o caso, muito sinteticamente: o juízo de relevância,
em princípio, não podia ser atingido.
Somente assim não seria se intercedessem factores de relevo
decisivo.
A nosso ver, eles somente podiam relevar do que se pode ter como o
núcleo essencial dos direitos do arguido (na vertente, já afirmada, das
garantias de defesa).
Aquela posição (a que sustentou o juízo de inconstitucionalidade
daquele artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal) nada tem a ver com o
princípio do contraditório, que somente vale para as fases da audiência de
julgamento e para os actos instrutórios que a lei determinar.
Tem a ver, sim, com a garantia de que todo o processo criminal se
cumpra como se deve cumprir, de forma a fazer ressaltar as razões da acusação e
da defesa, equiparando, o mais possível, o arguido à acusação; nas palavras do
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 450/2007, proc. n.º 452/2007, de 18 de
Setembro de 2007, in Diário da República, II Série, n.º 205, de 24 de Outubro de
2007, págs. 30 739/30 745, «exigir que semelhante garantia se cumpra não
equivale a transfigurar um processo penal de estrutura mitigada em outro
diverso, de estrutura radicalmente acusatória. A exigência significa apenas que
se obedece ao princípio contido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, pois
que em todas as garantias de defesa englobam‑se indubitavelmente todos os
direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e
contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a
acusação (normalmente apoiada pelo poder institucional do Estado) e a defesa, só
a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa
desigualdade de armas.»
Ora, violando, a norma em referência, como se disse para fundar o
afirmado juízo de inconstitucionalidade, as garantias de defesa do arguido, não
podemos deixar de ponderar, também, na possibilidade de a dita compressão dessas
garantias poder ser eliminada (ou, quando menos, acentuadamente reduzida) por
intervenção de outros instrumentos que concretizam essas mesmas garantias de
defesa, destacando‑se, em primeira e decisiva via, os que decorrem do princípio
do contraditório.
Na verdade, e se bem vemos, neste domínio ele é praticamente
evidente (e muito mais quando atentamos no que, neste mesmo âmbito, os arguidos
A., B. e D. evidenciaram …).
Estamos, como acima se disse, e somente, no domínio do direito (do
arguido) à palavra, à conversação ou comunicação não pública, sendo que a
audição dessa conversação, no que se reporta à palavra, somente permite, a quem
ouve, externamente, inferir sentidos.
Sucede que ninguém melhor do que o titular do direito à palavra (o
arguido, repete‑se) pode intervir, valiosamente, na definição dessas
inferências, explicando‑a, contextualizando‑a e, portanto, eliminando a redução
da compreensibilidade.
E tal, exactamente porque estamos nesse domínio, tanto podia ser
alcançado pela disponibilização, como relevante, de outros elementos
recolhidos pela intercepção ou gravação das conversações ou comunicações
telefónicas, como através (até de forma mais segura, como nos parece de toda a
evidência, pela conformação fragmentária e, muitas e muitas vezes, de apertada
síntese, de que se revestem essas conversações ou comunicações …) de prova
(desde logo, as declarações do arguido e, depois, a testemunhal …).
É claro que se poderia objectar, em tese, que tal seria
empreendimento claramente insuportável (e insustentável) para o arguido, pois
estava‑se num domínio demasiado fluido, mas o certo é que assim não tem de ser
(nem é) quando o que está em causa são matérias relevantes, muito distantes,
portanto, do que são as conversas do dia‑a‑dia, corriqueiras, irrelevantes,
despiciendas (estas, sim, passíveis daquela crítica), para mais quando há, na
base, uma localização (no tempo, no espaço e no assunto) delas, disponibilizada
pela transcrição das que foram julgadas relevantes para a prova, que, a final,
é o que releva.
No caso, se atentarmos no que o arguido B. veio dizer como que
confirma o que se acabou de referir, pois foi peremptório em mencionar a
existência de prova testemunhal que podia rebater a interpretação que a
acusação havia feito dos elementos recolhidos pela intercepção e gravação das
conversações ou comunicações das conversações telefónicas e transcritas.
Daí que, também, se não possa conceber o que a arguida A. considerou
a impossibilidade de poder explicar e contextualizar as conversas em destaque.
E não é que a arguida D. nada, a este respeito, disse …
Ou seja, por tudo o que se referiu, não se justifica que a
consequência da sobredita declaração de inconstitucionalidade do indicado artigo
188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal seja a nulidade da prova obtida pela
intercepção e gravação das comunicações ou conversações telefónicas e prevista
naquele artigo 189.º do Código de Processo Penal.
Se assim não fosse entendido, ou seja, que tal implicaria a nulidade
da prova assim obtida, estaríamos face a interpretação inconstitucional, por
violação do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, como se disse, a restrição do direito do arguido
derivada da eliminação de elementos recolhidos pela intercepção das conversações
ou comunicações telefónicas, por terem sido considerados irrelevantes para a
prova, sem a sua audição, porque afectam as suas garantias de defesa, é
eliminada pelo exercício, por si, do princípio do contraditório.
A nulidade da prova obtida através desse meio, então, e por isso,
redundaria na afectação, necessariamente injustificada, do já dito interesse ou
valor constitucionalmente protegido num Estado de Direito que é a prossecução
da justiça penal.
Em conclusão: não se verifica a nulidade prevista no artigo 189.º do
Código de Processo Penal, na redacção dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 48/2007,
de 29 de Dezembro.”
Notificados deste acórdão, interpuseram recursos para o
Tribunal Constitucional:
I – o Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do n.º
1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra
o referido acórdão, na parte em que recusou, com fundamento em
inconstitucionalidade, por violação das garantias de defesa asseguradas pelo
artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a aplicação do segmento da norma da segunda parte
do n.º 3 do artigo 188.º do CPP, na redacção anterior à dada pelo artigo 1.º da
Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretado no sentido de permitir a
destruição de elementos obtidos pela intercepção e gravação de conversações
telefónicas consideradas irrelevantes para a prova pelo juiz de instrução
criminal, mas sem que ao arguido seja dado conhecimento dos mesmos e para se
pronunciar sobre a sua relevância para o efeito; e
II – a arguida A., ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC:
1) contra o mesmo acórdão, para apreciação da
inconstitucionalidade:
“A. – Do conjunto normativo formado pelos artigos 187.º
e 188.º do Código de Processo Penal (na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29
de Agosto), na interpretação que admite a ocorrência de enormes períodos de
tempo entre o dia em que se realiza a escuta e a data em que é ordenada a sua
transcrição, em que se legitima a intercepção de conversas telefónicas
efectuadas por telefones cujo número foi obtido através de sessões cuja
transcrição não foi ordenada e em que se permita o não cumprimento de prazos e
formalidades judicialmente ordenadas, por ofensa das disposições conjugadas dos
artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP;
B. – Do conjunto normativo formado pelos artigos 188.º,
n.º 3, e 189.º do Código de Processo Penal (na versão anterior à Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto), na interpretação segundo a qual a declaração de
inconstitucionalidade da norma daquele n.º 3 do artigo 188.º (na interpretação
segundo a qual a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção
de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público
conheceram e que são consideradas irrelevantes pelo Juiz de Instrução Criminal,
sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a
sua relevância) não implica a nulidade da prova obtida através da parte das
intercepções telefónicas cuja gravação não foi destruída”; e
2) contra a decisão instrutória, para apreciação da
inconstitucionalidade:
“C. – Do conjunto normativo formado pela alínea o) do
artigo 2.º da Lei de Autorização n.º 22/2002, de 21 de Agosto, e pelo n.º 2 do
artigo 134.º‑A do Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, na redacção resultante
do Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, por ofensa do disposto na
alínea c) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 165.º da CRP.”
A interposição deste último recurso, a título cautelar,
como no respectivo requerimento se assinala, deveu‑se à circunstância de se
pretender recorrer para o Tribunal Constitucional de duas decisões diferentes,
proferidas por instâncias distintas (e sendo o recurso da decisão instrutória,
na parte relativa à questão de inconstitucionalidade suscitada a propósito da
pronúncia, interposto na sequência do acórdão da Relação que não conheceu dessa
parte do recurso ordinário, por inadmissibilidade do mesmo – artigo 75.º, n.º 2,
da Lei do Tribunal Constitucional) e o artigo 76.º, n.º 1, desta Lei determinar
que compete ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a
admissão do respectivo recurso, pelo que a aplicação rigorosa desta disposição
pressuporia que fosse o autor da decisão instrutória a proferir despacho sobre a
admissão do recurso dessa decisão. Neste Tribunal Constitucional, o relator
consignou, no despacho liminar, que, tendo o Desembargador Relator do Tribunal
da Relação do Porto proferido despachos em que admitiu expressamente os dois
recursos, razões de celeridade e economia processual justificavam que se
evitasse o envio dos autos à 1.ª instância para o referido efeito.
Nesse mesmo despacho, em que se determinou a apresentou
de alegações, foram as partes convidadas a pronunciarem‑se, querendo, sobre a
eventualidade de não se conhecer do recurso da arguida:
– na parte relativa à questão enunciada na parte A do
respectivo requerimento de interposição de recurso, por duas ordens de razões:
(i) por não se revestir das características de generalidade e abstracção
próprias das questões de inconstitucionalidade normativa, antes ser susceptível
de ser vista como representando a imputação directa da violação da Constituição
à decisão judicial, em si mesma considerada, em termos inseparáveis das
especialidades irrepetíveis do presente caso concreto; e (ii) por não existir
inteira coincidência entre os critérios normativos que a recorrente reputou
inconstitucionais na parte correspondente da sua motivação de recurso para o
Tribunal da Relação do Porto e os critérios normativos efectivamente aplicados,
como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido; e
– na parte relativa à questão enunciada na parte B do
dito requerimento, também por duas ordens de razões: (i) por não se revestir
das características de generalidade e abstracção próprias das questões de
inconstitucionalidade normativa, antes ser susceptível de ser vista como
representando a imputação directa da violação da Constituição à decisão
judicial, em si mesma considerada, em termos inseparáveis das especialidades
irrepetíveis do presente caso concreto; e (ii) por falta de prévia suscitação,
pela recorrente, antes de proferida a decisão recorrida, da questão de
constitucionalidade em causa, apesar de não se poder considerar insólito,
inesperado ou anómalo o critério adoptado no acórdão recorrido.
O representante do Ministério Público apresentou
alegações relativas ao respectivo recurso, em que, após invocar o juízo emitido
pelo Plenário do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 70/2008, concluiu:
“1. Não é inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 188.º do
Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, quando
interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode destruir o material
coligido através de escutas telefónicas quando considerado irrelevante, sem que
previamente ao arguido seja dado conhecimento e possa pronunciar‑se sobre o
eventual interesse para a defesa.
2. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Relativamente ao recurso por si interposto, a arguida A.
começou por reconhecer “no que respeita às questões que suscitou na alínea A) do
requerimento de interposição de recurso, que não existe coincidência entre os
critérios normativos por si reputados inconstitucionais e os efectivamente
aplicados pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, pelo que desiste do
recurso, nessa parte”, mantendo‑o, todavia, quanto ao mais, e formulando, a
final, as seguintes conclusões:
“1. O conjunto normativo formado pelos artigos 188.º, n.º 3, e 189.º
do CPP interpretado no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade da
norma daquele n.º 3 do artigo 188.º (na interpretação segundo a qual a
destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de
telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público
conheceram e que são consideradas irrelevantes pelo Juiz de Instrução Criminal,
sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a
sua relevância) não implica a nulidade da prova obtida através da parte das
intercepções telefónicas cuja gravação não foi destruída, é inconstitucional,
por ofensa, entre outros, dos artigos 32.º, n.ºs 1 e 8, 202.º, n.º 2, e 204.º da
CRP.
2. A alteração introduzida pelo Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de
Fevereiro, no Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, não respeitou a alínea o)
do artigo 2.º da Lei de Autorização n.º 22/2002.
3. Essa lei de autorização não tinha o sentido nem a extensão de
autorizar o Governo a incriminar o auxílio à permanência ilegal de estrangeiros
em território nacional.
4. O n.º 2 do artigo 134.º‑A do Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de
Agosto, na redacção resultante do Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro,
está, assim, ferido de inconstitucionalidade por ofensa do disposto na alínea c)
do n.º 1 do artigo 165.º CRP.
5. Caso se entenda que a incriminação inovadora do auxílio à
permanência ilegal contida naquele artigo 134.º‑A, n.º 2, está coberta pela
fórmula não taxativa da citada alínea o), expressa no advérbio
«designadamente», nem por isso ela deixa de ofender a reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República (logo, a alínea c) do n.º 1
do artigo 165.º CRP),
6. uma vez que essa interpretação implica a inconstitucionalidade da
própria norma da alínea o) do artigo 2.º da Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto,
por violação do comando contido no n.º 2 do artigo 165.º CRP.
7. Em resumo: seja porque extravasa o sentido admissível da lei de
autorização, seja porque tal sentido não está definido nesta lei com rigor, a
incriminação do auxílio à permanência ilegal de estrangeiros estatuída pelo
artigo 134.º‑A, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, na redacção do
Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, está ferida de
inconstitucionalidade orgânica e material e não pode fundar‑se nela a
incriminação da arguida.
8. Ao decidir em sentido contrário, a douta decisão impugnada
ofendeu as disposições normativas que ficaram citadas.”
O representante do Ministério Público apresentou
contra‑alegações relativas ao recurso da arguida, concluindo:
“1. Por não estarem reunidos os respectivos pressupostos não poderá
conhecer‑se da conformidade constitucional do conjunto normativo formado pelos
artigos 188.º, n.º 3, e 189.º do Código de Processo Penal.
2. Não é inconstitucional a norma do artigo 134.º‑A, n.º 2, do
Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, na redacção do Decreto‑Lei n.º 34/2003,
de 28 de Fevereiro, editado a coberto da credencial parlamentar da Lei de
autorização n.º 22/2002, de 21 de Agosto.
3. Termos em que não deverá proceder o presente recurso.”
Em resposta às alegações de recurso do Ministério
Público, sustenta a arguida que a decisão tomada no Acórdão (do Plenário) n.º
70/2008, para além de não ter força vinculativa, é inconstitucional, uma vez
que a existência de três acórdãos que julgaram inconstitucional a norma em
causa impunha, por força do disposto nos artigos 82.º da LTC e 281.º, n.º 3, da
CRP, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dessa
norma, não sendo lícito, em cada processo concreto posterior à prolação de três
decisões conformes de inconstitucionalidade, os tribunais proferirem juízo
diferente do contido nessas decisões.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Recurso do Ministério Público
O Tribunal Constitucional, através dos Acórdãos n.º
660/2006, da 2.ª Secção, e n.ºs 450/2007 e 451/2007, ambos da 3.ª Secção,
apreciando a questão que constitui objecto do recurso do Ministério Público,
pronunciou‑se no sentido da inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º,
n.º 1, da CRP, da norma do artigo 188.º, n.º 3, do CPP, na interpretação segundo
a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção
de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público
conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o
arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua
relevância.
Atendendo à existência de vários votos de vencido
apostos a esses Acórdãos e para evitar divergências jurisprudenciais, determinou
o Presidente do Tribunal Constitucional, com a concordância do Tribunal, ao
abrigo do artigo 79.º‑A, n.º 1, da LTC, a intervenção do Plenário, que, pelo
Acórdão n.º 70/2008 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), embora com
diversos votos dissidentes, inflectiu aquela orientação, decidindo “não julgar
inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na
redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no
sentido de que o juiz de instrução pode destruir o material coligido através de
escutas telefónicas, quando considerado não relevante, sem que antes o arguido
dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse para a
sua defesa”.
A orientação assim definida foi posteriormente seguida
pelos Acórdãos n.ºs 128/2008, 204/2008 e 205/2008 e pela Decisão Sumária n.º
202/2008.
É essa mesma orientação que ora se reitera, o que
determina o provimento do recurso do Ministério Público, com a consequente
reformulação, nesta parte, da decisão recorrida.
Como é sabido, a existência de três decisões do
Tribunal Constitucional, proferidas em sede de fiscalização concreta da
constitucionalidade, que tenham julgado inconstitucional determinada norma não
determina necessariamente que, no processo de “generalização” previsto no artigo
82.º da LTC, a decisão do Tribunal não possa ser outra senão a confirmação
daqueles juízos de inconstitucionalidade. A “generalização” dos juízos
concretos de inconstitucionalidade não se produz automaticamente, sendo a
existência de três decisões concretas de inconstitucionalidade mero pressuposto
da instauração de um processo autónomo de fiscalização abstracta da
constitucionalidade da norma em causa, que seguirá os termos do esquema comum
dessa forma processual, designadamente com audição do autor da norma (que não
teve lugar nos processos de fiscalização concreta). Assim, estando‑se perante um
processo autónomo, nada impede que a decisão do Plenário seja divergente dos
juízos de inconstitucionalidade proferidos pelas Secções (decisões estas que
inclusivamente podem ser provenientes de uma mesma Secção e ter sido aí
aprovadas por uma maioria tangencial de três dos respectivos juízes, pelo que
não faria sentido impor o sentido dessa decisão ao Plenário, integrado por
treze juízes). Como refere Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, tomo
VI, 3.ª edição, Coimbra, 2008, p. 280), “uma automática declaração de
inconstitucionalidade, concomitante com a terceira decisão em concreto,
brigaria com a letra da Constituição, com o seu espírito e com a distinção de
competência das secções e do plenário” (posição reafirmada em Jorge Miranda e
Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra, 2007, p. 811).
No sentido da não automaticidade da “generalização” dos juízos de
inconstitucionalidade também se pronunciaram J. J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Coimbra, 2003, p. 1025; e
José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª
edição, Coimbra, 2007, p. 91 e nota 122) e constitui entendimento desde sempre
sustentado por este Tribunal, tendo‑se referido no Acórdão n.º 457/94: “O facto
de determinada norma ter sido julgada inconstitucional em três casos concretos
não conduz, por sua vez, e como pondera o Acórdão n.º 347/92 (…), na esteira de
outros, a uma declaração automática da sua inconstitucionalidade com força
obrigatória geral, mas implica reapreciar a questão pelo Tribunal
Constitucional: como então se observou, «é um novo processo de fiscalização
que se abre e uma nova decisão que se tem de tomar»”.
A existência de juízos concretos de
inconstitucionalidade por parte de Secções do Tribunal Constitucional,
independentemente do número desses juízos, não tem força vinculativa fora dos
processos em que foram proferidos, nem em relação aos restantes tribunais, nem
sequer face ao próprio Tribunal Constitucional, nada impedindo que, quer em
Secção, quer em Plenário, e seja este chamado a intervir ao abrigo do artigo
82.º ou dos artigos 79.º‑A ou 79.º‑C da LTC, venha a obter vencimento posição no
sentido da não inconstitucionalidade. E, por outro lado – embora, em estrito
rigor, não seja juridicamente vinculativa –, a pronúncia do Plenário chamado a
intervir ao abrigo do artigo 79.º‑A da LTC, intervenção motivada justamente por
o Tribunal, colegialmente, a ter considerado “necessária para evitar
divergências jurisprudenciais”, deva ser seguida em posteriores decisões do
Tribunal, mesmo pelos juízes que dela divergiram, ao menos enquanto se mantiver
a composição do Plenário e não sobrevierem alterações relevantes do quadro
jurídico existente.
2.2. Recursos da arguida A.
2.2.1. Tendo a recorrente abandonado, nas suas
alegações, a questão de inconstitucionalidade mencionada na parte A do seu
requerimento de interposição de recurso, restariam as questões enunciadas na
parte B (reportada ao recurso do acórdão do Tribunal do Porto) e na parte C
(reportada ao recurso da decisão instrutória) do mesmo requerimento.
Acontece que o provimento do recurso do Ministério
Público, acabado de decidir, faz precludir a possibilidade de conhecimento da
questão de inconstitucionalidade referida na aludida parte B – que tinha por
objecto “o conjunto normativo formado pelos artigos 188.º, n.º 3, e 189.º do
Código de Processo Penal (na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto), na interpretação segundo a qual a declaração de inconstitucionalidade
da norma daquele n.º 3 do artigo 188.º (na interpretação segundo a qual a
destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de
telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público
conheceram e que são consideradas irrelevantes pelo Juiz de Instrução Criminal,
sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a
sua relevância) não implica a nulidade da prova obtida através da parte das
intercepções telefónicas cuja gravação não foi destruída” –, já que, tendo a
decisão recorrida de vir a ser reformulada no sentido de não julgar
inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º 3, do CPP, na aludida versão, na
parte em que determina a destruição dos elementos recolhidos mediante
intercepção de telecomunicações considerados irrelevantes para a prova, sem que
antes o arguido deles tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual
interesse para a sua defesa, deixa forçosamente de subsistir (porque tinha como
pressuposto lógico necessário o juízo de inconstitucionalidade dessa norma) o
critério, cuja conformidade constitucional integra esta parte do recurso,
segundo o qual tal juízo de inconstitucionalidade “não implica a nulidade da
prova obtida através da parte das intercepções telefónicas cuja gravação não foi
destruída”.
Feita esta constatação, nem se torna necessário apurar
se seriam, ou não, subsistentes as duas razões avançadas no despacho do relator
que determinou a apresentação de alegações, no sentido do não preenchimento dos
requisitos de admissibilidade desta parte do recurso.
2.2.2. Resta, assim, o recurso da arguida tendo por alvo
a decisão instrutória, e que visa a apreciação da inconstitucionalidade do
“conjunto normativo formado pela alínea o) do artigo 2.º da Lei de Autorização
n.º 22/2002, de 21 de Agosto, e pelo n.º 2 do artigo 134.º‑A do Decreto‑Lei n.º
244/98, de 8 de Agosto, na redacção resultante do Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25
de Fevereiro, por ofensa do disposto na alínea c) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo
165.º da CRP”.
Na sua redacção originária, o Decreto‑Lei n.º 244/98,
diploma que regulou a entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros
do território nacional, previa apenas dois tipos de crime: (i) o crime de
“auxílio à imigração ilegal” (artigo 134.º), punindo com prisão até 3 anos “quem
favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada irregular de cidadão
estrangeiro em território nacional” (n.º 1), sendo a pena de prisão de 1 a 4
anos se o agente praticasse essas condutas com intenção lucrativa (n.º 2); e
(ii) o crime de “associação de auxílio à emigração ilegal” (artigo 135.º),
punindo com prisão de 1 a 5 anos “quem fundar grupo, organização ou associação
cuja actividade seja dirigida à prática do crime previsto no artigo anterior”
(n.º 1) ou “quem fizer parte de tais grupos, organizações ou associações” (n.º
2), sendo a pena de 2 a 8 anos para “quem chefiar os grupos, organizações ou
associações referidos nos números anteriores” (n.º 3).
O Governo apresentou na Assembleia da República a
Proposta de Lei n.º 10/IX (Diário da Assembleia da República, II Série‑A, n.º
13, de 15 de Junho de 2002, p. 377), de autorização para alteração do regime
previsto no Decreto‑Lei n.º 244/98, assinalando na respectiva exposição de
motivos a necessidade de se consagrar “uma política de imigração assente em três
eixos fundamentais: promoção da imigração legal em conformidade com as
possibilidades reais do País; integração efectiva dos imigrantes e combate firme
à imigração ilegal”, inserindo‑se neste último vector a harmonização da
legislação nacional “com as orientações e directivas comunitárias” e a “previsão
de um regime sancionatório criminal mais adequado a prevenir e reprimir os actos
ilícitos relacionados com a imigração clandestina e com a exploração de
mão‑de‑obra dos estrangeiros em situação não regularizada”.
Na sequência da aprovação dessa Proposta de Lei, foi
publicada a Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto, que concedeu ao Governo
“autorização para alterar o regime de entrada, permanência, saída e afastamento
de cidadãos estrangeiros em território nacional” (artigo 1.º), precisando o
artigo 2.º que essa lei de autorização tinha “como sentido e extensão autorizar
o Governo a: (…) o) Aperfeiçoar o regime sancionatório das infracções criminais
associadas ao fenómeno da imigração ilegal, criando novos tipos criminais,
designadamente no sentido de criminalizar o trânsito ilegal de cidadãos
estrangeiros em território nacional e agravar as medidas das penas aplicáveis;
(…)” [O inciso “designadamente no sentido de criminalizar o trânsito ilegal de
cidadãos estrangeiros em território nacional” não constava da Proposta de Lei,
tendo sido aditado no decurso dos trabalhos parlamentares].
No uso desta autorização legislativa, o Governo editou o
Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, que alterou e aditou diversos
artigos ao Decreto‑Lei n.º 244/98, e que, em matéria criminal, para além da
criação de dois novos tipos de crime – o crime de angariação de mão‑de‑obra
ilegal (artigo 136.º‑A) e o crime de violação da medida de interdição de
entrada (artigo 136.º‑B) – e da elevação para 6 anos do limite máximo da pena
aplicável ao crime de associação de auxílio à imigração ilegal (artigo 135.º,
n.º 1), passou a prever a punição do crime de auxílio à imigração ilegal no novo
artigo 134.º‑A, punindo com pena de prisão até 3 anos “quem favorecer ou
facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão
estrangeiro em território nacional” (n.º 1), sendo a pena de prisão de 1 a 4
anos para “quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a
permanência ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em território nacional
com intenção lucrativa” (n.º 2).
Comparando estas previsões com as do originário artigo
134.º, constata-se que enquanto este apenas previa expressamente o favorecimento
ou facilitação da entrada irregular de cidadão estrangeiro em território
nacional, sem (n.º 1) ou com (n.º 2) intenção lucrativa, o novo artigo 134.º‑A
passou a incriminar expressamente o favorecimento ou facilitação, para além da
entrada irregular, também do trânsito ilegal, sem intenção lucrativa (n.º 1), e
o favorecimento ou facilitação quer do trânsito quer da permanência ilegais, com
intenção lucrativa (n.º 2).
Constata‑se, assim, que, para o que releva no presente
recurso, a lei passou a incriminar inovatoriamente o favorecimento ou a
facilitação da permanência ilegal de cidadão estrangeiro em território nacional,
com intenção lucrativa.
Tratando‑se de matéria integrada na reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea
c), da CRP), a conformidade constitucional da emissão da norma em causa pelo
Governo depende quer da verificação da sua cobertura por autorização legislativa
parlamentar, quer da própria conformidade constitucional desta autorização. A
recorrente questiona estas duas conformidades, reputando inconstitucional a
própria autorização, por alegada deficiência na definição do seu sentido, em
violação do n.º 2 do referido artigo 165.º, e também por a norma emitida pelo
Governo extravasar o sentido da norma autorizadora.
Nenhuma destas objecções procede, como este Tribunal já
decidiu no Acórdão n.º 396/2007, em recurso em que, além de outras questões,
estavam em causa as ora em apreço.
Relativamente à exigência constitucional de a lei de
autorização legislativa definir, não apenas o objecto e a extensão, mas também o
sentido da autorização (requisito apenas aditado na revisão constitucional de
1982), a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem reiteradamente aderido
às formulações avançadas no Acórdão n.º 358/92, segundo as quais:
“(…) o sentido de uma autorização legislativa, sendo um dos
elementos do «conteúdo mínimo exigível» da lei de autorização, só é
efectivamente observado quando as indicações a esse título constantes da lei de
autorização permitam um juízo seguro de conformidade material do conteúdo do
acto delegado em relação ao da lei delegante, pelo que, se o «sentido» não tem
que exprimir‑se em abundantes princípios ou critérios directivos, deverá, pelo
menos, ser suficientemente inteligível para que o seu conteúdo possa preencher a
função paramétrica que a Constituição lhe confere.
Nesta ordem de ideias escreveu António Vitorino (op. cit., págs. 238
e 239): «O sentido da autorização legislativa, sendo algo mais do que a mera
conjugação dos elementos objecto (matéria ou matérias da reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República sobre que incidirão os
poderes delegados) e extensão (aspectos da disciplina jurídica daquelas
matérias que integram o objecto da autorização que vão ser modificados), não
constitui, contudo, exigência especificada de princípios e critérios
orientadores (...), mas algo mais modesto ou de âmbito mais restrito, que deve
constituir essencialmente um pano de fundo orientador da acção do Governo numa
tripla vertente:
– por um lado, o sentido de uma autorização deve permitir a
expressão pelo Parlamento da finalidade da concessão dos poderes delegados na
perspectiva dinâmica da intenção das transformações a introduzir na ordem
jurídica vigente (é o sentido na óptica do delegante);
– por outro lado, o sentido deve constituir indicação genérica dos
fins que o Governo deve prosseguir no uso dos poderes delegados, conformando,
assim, a lei delegada aos ditames do órgão delegante (é o sentido na óptica do
delegado);
– e, finalmente, o sentido da autorização deverá permitir dar a
conhecer aos cidadãos, em termos públicos, qual a perspectiva genérica das
transformações que vão ser introduzidas no ordenamento jurídico em função da
outorga da autorização (é o sentido na óptica dos direitos dos particulares,
numa zona revestida de especiais cuidados no texto constitucional – as matérias
que incluem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República).”
Nesta mesma linha se insere o Acórdão n.º 213/95, no qual
se lê:
“(…) dir‑se‑á que o objecto constitui o elemento enunciador da
matéria sobre que versa a autorização, a extensão especifica qual a amplitude
das leis autorizadas e através do sentido são fixados os princípios base, as
directivas gerais, os critérios rectores que hão‑de orientar o Governo na
elaboração da lei delegada.
Este último elemento de condicionamento substancial constitui já,
não um limite externo, definidor dos contornos da autorização, mas um verdadeiro
limite interno à própria autorização, pois que é essencial para a determinação
das linhas gerais das alterações a introduzir numa dada matéria legislativa.
Assim sendo, a autorização há‑de conter os princípios, as normas
fundamentais que concedem unidade lógico‑política à disciplina a editar pelo
Governo, e há‑de estabelecer também as directivas, reconduzíveis à determinação
das finalidades a que aquela disciplina tem de adequar‑se.
E deve sublinhar‑se com especial destaque, que se o sentido da autorização não
tem de exprimir‑se em abundantes princípios ou critérios directivos (que
levados às últimas consequências poderiam até condicionar por inteiro em
termos de conteúdo o exercício dos poderes delegados), deverá, no mínimo, como
condição da sua própria verificação, ser suficientemente inteligível a fim de
poder operar como parâmetro de aferição dos actos delegados e,
consequentemente, como padrão de medida por parte do legislador delegado do
essencial dos ditames do legislador delegante (cf., por todos, os Acórdãos n.ºs
107/88 e 70/92, Diário da República, respectivamente, I série, de 21 de Junho de
1988 e II série, de 18 de Agosto de 1992).”
Apreciando as normas questionadas da Lei n.º 22/2002,
entendeu‑se no Acórdão n.º 396/2007:
“Resulta do texto da Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto, nomeadamente
dos seus artigos 1.º e 2.º, alínea o), que a mesma concedeu ao Governo
autorização para, aperfeiçoando o regime sancionatório até aí vigente,
criminalizar as condutas associadas ao fenómeno crescente da imigração ilegal.
Não restam, pois, dúvidas, que a lei de autorização concedida para a
edição do Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, é válida, pois nela é
definido, claramente, o sentido e extensão da autorização que nela se contém, ou
seja, aí se encontram condensados os princípios fundamentais a seguir pelo
Governo na definição dos critérios de delimitação substanciais indispensáveis à
respectiva concretização legislativa, não sendo a mesma, por conseguinte, ao
contrário do que defende a recorrente, inconstitucional.”
É este juízo que ora se reitera.
Sendo constitucionalmente válida a autorização
legislativa ao abrigo da qual o Decreto‑Lei n.º 34/2003 foi emitido, cumpre
apurar se a criminalização do favorecimento ou facilitação da permanência ilegal
de estrangeiros em território nacional, com intenção lucrativa, se pode
considerar coberta por aquela credencial parlamentar.
A resposta é seguramente positiva, como se concluiu no
citado Acórdão n.º 396/2007, pois o sentido da autorização legislativa concedida
foi o de criar um programa legislativo mais severo para este tipo de
criminalidade, com a agravação das incriminações já existentes e a adopção de
novas. Ora, a criminalização do favorecimento à permanência ilegal de
estrangeiros, com intenção lucrativa, enquadra‑se perfeitamente na ideia de
combate a este tipo de criminalidade, resultando num real aperfeiçoamento do
regime sancionatório até então em vigor. E a tal não obsta a expressa
referência, feita na lei de autorização, à criminalização do trânsito ilegal, já
que o assumido carácter exemplificativo dessa referência (inequivocamente
decorrente do uso do advérbio designadamente) nunca poderia significar que a
intervenção consentida ao Governo se restringiria à incriminação do tráfico
ilegal.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 188.º,
n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de
29 de Agosto, quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode
destruir o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado
não relevante, sem que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa
pronunciar‑se sobre o eventual interesse para a sua defesa; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso do Ministério Público,
determinando a reformulação da decisão recorrida, na parte aí impugnada;
c) Considerar prejudicada, face à anterior decisão, a
apreciação da questão, suscitada no recurso da arguida, da inconstitucionalidade
do conjunto normativo formado pelos artigos 188.º, n.º 3, e 189.º do Código de
Processo Penal, interpretado no sentido de que a declaração de
inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 188.º não implica a nulidade
da prova obtida através da parte das intercepções telefónicas cuja gravação não
foi destruída;
d) Não julgar inconstitucionais as normas constantes da
alínea o) do artigo 2.º da Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto, e do 2 do artigo
134.º‑A do Decreto‑Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, na redacção introduzida pelo
Decreto‑Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro; e, consequentemente,
e) Negar provimento ao recurso da arguida, confirmando a
decisão recorrida na parte aí impugnada.
Custas pela arguida recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Junho de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos