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Processo n.º 1072/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – O representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial
de Coruche recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no
artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual redacção, da sentença proferida por aquela instância, na qual se recusou,
com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação da norma constante do
artigo 3.º, n.º 3, do Código do Registo Predial, na redacção decorrente do
Decreto-Lei n.º 67/96, de 31 de Maio.
2 – A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“(...)
A fls. 85 dos presentes autos, foi proferido despacho cuja parte decisória
passamos a transcrever: «pelo exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos
art. 2º, nº 1, alínea a) e 3º, nº 1, alínea a) e nº 2, ambos do Cód. do Reg.
Predial, e 508º, nº 1, alínea b) e nº 2, do Cód. de Proc. Civil, convido os
autores para, no prazo de 15 dias, procederam à junção aos autos do comprovativo
do registo da presente acção, sob expressa cominação de, não o fazendo, ser
determinada a suspensão da instância, nos termos do disposto no art. 276º, nº 1,
alínea d), do Cód. de Proc. Civil».
Notificados de tal despacho, os autores promoveram junto da
Conservatória do Registo Predial de Coruche o registo da acção. Acontece, porém,
que o registo da acção foi recusado pela Exma. Senhora Conservadora do Registo
Predial de Coruche, com fundamento na sua não sujeição a registo (cfr. cópia do
despacho por si proferido, que se encontra inserta a fls. 92 dos autos).
Sobre esta matéria, o art. 3º, nº 3, do Cód. do Registo Predial
estabelece que «sem prejuízo da impugnação do despacho do conservador, se o
registo for recusado com fundamento em que a acção a ele não está sujeita, a
recusa faz cessar a suspensão da instância a que se refere o número anterior».
Face à letra da lei, aparentemente nada mais restaria ao juiz do que
proceder à tramitação subsequente da acção, determinando a cessação da suspensão
da instância (caso, naturalmente, já a tivesse declarado). No entanto, nos
presentes autos recusar-se-á a aplicação daquela norma legal, pois entendemos
que a mesma é inconstitucional.
Vejamos porquê:
Conforme dispõe o art. 205º, nº 2, da Constituição da República
Portuguesa (CRP), «as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as
entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras
autoridades».
Ao convidar o autor a promover o registo da acção, o juiz (entendido em
sentido amplo) não está naturalmente a dar uma ordem ao Conservador do Registo
Predial (até porque não detém qualquer poder hierárquico sobre o mesmo).
Contudo, tal convite feito ao autor significa que o juiz entende – e afirma –
que determinada acção está sujeita a registo.
Ao recusar o registo da acção com o fundamento de que mesma não está sujeita a
registo, o Conservador do Registo Predial desautoriza o tribunal, pondo em causa
a sua decisão. Por seu turno, o art. 3º, nº 3, do Cód. do Reg. Predial, ao
dispor que tal despacho do Conservador faz cessar a suspensão da instância, mais
não faz do que estabelecer que a decisão do Conservador do Registo Predial
prevalece sobre a decisão do juiz.
Ora, a ser assim, tal norma padece de inconstitucionalidade, pois viola
directamente o comando constitucional ínsito no art. 205º, nº 2, da CRP.
***
Pelo exposto, decido:
a) Recusar a aplicação da norma constante do art. 3º, nº 3, do Cód. do
Registo Predial, com fundamento na sua inconstitucionalidade;
b) Determinar a suspensão da instância (o que ainda não tinha determinado
anteriormente), já que os autores, naturalmente não por culpa sua, não juntaram
aos autos o comprovativo do registo da acção”.
3 – Após admissão do recurso, o representante do Ministério Público
junto deste Tribunal, em sede de alegações, pugnou pela sua procedência,
sintetizando a sua argumentação nas seguintes proposições conclusivas:
“(...)
1º
A norma constante do artigo 3º, nº 3, do Código de Registo Predial, ao
prescrever que a recusa do registo predial – diligenciado pela parte, na
sequência de convite formulado liminarmente pelo juiz, pressupondo o
entendimento de que a acção estaria sujeita à publicidade registral por incidir
sobre factos com eficácia real – faz cessar a suspensão da instância, sem que
incida sobre o requerente o ónus de esgotamento de todos os meios impugnatórios
possíveis, face a tal recusa de registo pelo conservador, não viola o princípio
constitucional da prevalência das decisões judiciais sobre as administrativas.
2º
Na verdade, ao pronunciar-se liminarmente sobre a sujeição da causa á
publicidade emergente do registo predial, o juiz não está a determinar ou
ordenar a feitura de um acto de registo, no exercício da sua função
jurisdicional, mas tão somente a convidar a parte a diligenciar por tal registo
junto do órgão competente.
3º
Pelo que – se o conservador, a quem está cometida primacialmente a função de
zelar pela legalidade em matéria de registo, considerar que o mesmo não tem
cabimento – não se verifica uma situação de colisão ou conflito entre uma
decisão judicial e administrativa, a solucionar pela necessária prevalência da
primeira.
4º
Termos em que deverá proceder o presente recurso”.
B – Fundamentação
4 – Como resulta da definição do objecto do recurso, a questão
decidenda traduz-se em saber se a norma do artigo 3.º, n.º 3, do Código do
Registo Predial padece de inconstitucionalidade por violação do artigo 205.º,
n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Dispõe esse parâmetro constitucional que “as decisões dos tribunais
são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre
as de quaisquer outras autoridades”.
Por seu turno, a norma sindicanda estipula que “sem prejuízo da
impugnação do despacho do conservador, se o registo for recusado com fundamento
em que a acção a ele não está sujeita, a recusa faz cessar a suspensão da
instância a que se refere o número anterior”.
Vejamos, então.
5 – O artigo 3.º, n.º 1, do Código do Registo Predial – doravante,
abreviadamente, C.R.Predial –, sujeita a registo determinadas acções judiciais
(as que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a
constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos referidos no
artigo 2.º - alínea a); e as acções que tenham por fim, principal ou acessório,
a reforma, a declaração de nulidade ou a anulação de um registo ou do seu
cancelamento – alínea b) da referida norma).
Com o registo de tais acções pretende-se, como ensina Antunes Varela
(in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 103.º, p. 484), “dar
conhecimento a terceiros de que determinada coisa está a ser objecto de um
litígio e adverti-los de que devem abster-se de adquirir sobre ela direitos
incompatíveis com o invocado pelo autor, sob pena de terem de suportar os
efeitos da decisão que a tal respeito venha a ser proferida, mesmo que não
intervenham no processo”, constituindo, assim, “um instrumento de publicidade
que gera a cognoscibilidade sobre uma eventual causa de nulidade, anulação,
resolução, rescisão (...) de um facto inscrito ou susceptível de ser inscrito”,
ao mesmo tempo que permite, cautelarmente, “assegurar a exequibilidade da
sentença que venha a julgar procedente a lide, nas mesmas condições em que o
seria caso fosse proferida na data da propositura da acção” (Mónica Jardim, “O
registo de acções e decisões judiciais – Qualificação do registo e os poderes do
conservador”, trabalho apresentado no I Encontro de Notários e Conservadores dos
Países de Língua Portuguesa, realizado em Cabo Verde, entre 23 e 25 de Julho de
2007 (cedido pela Autora e que será publicado no volume LXXXIII do Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no prelo).
E, de modo a não comprometer o cumprimento desse escopo, o n.º 2 do
artigo 3.º do C.R.Predial estipula que “as acções sujeitas a registo não terão
seguimento após os articulados sem se comprovar a sua inscrição”, sendo que,
como vem sendo reiterado pelos nossos tribunais superiores, esta imposição legal
“visa submeter à competente instância do registo predial a pronúncia sobre caber
ou não a efectivação do registo suscitado em ordem a obter a sua comprovação nos
autos” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Janeiro de 1991,
disponível em www.dgsi.pt), permitindo assim “que os serviços do registo predial
se pronunciem sobre se é necessário ou não o registo da acção” (Acórdão do
Tribunal da Relação do Porto, de 2 de Abril de 1991, disponível na Colectânea de
Jurisprudência, Ano XVI, 1991, tomo 2, p. 251).
Ora, a norma em crise, aditada ao artigo 3.º do C.R.Predial pelo
Decreto-Lei n.º 67/96, de 31 de Maio, surge na sequência deste regime
pretendendo resolver alguns problemas relativos ao efeito da recusa do registo
da acção no posterior desenvolvimento processual.
De facto, pode ler-se no preâmbulo que antecede a alteração legislativa:
“O n.º 1 do artigo 3.º do Código de Registo Predial (...), enuncia as
acções que estão sujeitas a registo, acrescentando o seu n.º 2 que tais acções
‘não terão seguimento após os articulados sem se comprovar a sua inscrição’.
Este normativo tem originado indesejáveis paragens na marcha dos processos,
o que sucede nos casos em que, ordenado pelo juiz o registo da acção, o
conservador o recusa com o fundamento de que a acção não é registável.
Aí, documentada nos autos a recusa, são frequentes as situações em que o
juiz mantém o seu primitivo despacho, com o que se gera, ou pode gerar, um óbice
intransponível ao reatamento da lide.
Deste modo, na esteira de jurisprudência que crescentemente se estabiliza
nos tribunais superiores, entende-se conveniente esclarecer que a acção segue os
seus trâmites havendo recusa do registo, independentemente da impugnação pelo
requerente do despacho do conservador”.
Atento o regime decorrente a norma do artigo 3.º, n.º 3, do
C.R.Predial, pode, pois, dizer-se que o mesmo tem uma motivação claramente
compreensível na óptica do desenho de um direito fundamental de acesso à justiça
moldado pela imposição jusfundamental de processo justo e equitativo,
desonerando a parte da impugnação da recusa como condição necessária, mas não
suficiente, do prosseguimento dos autos, impedindo, assim, que ela suporte os
efeitos da paralisação processual que daí decorreria.
Cumprida esta explicitação preliminar e passando a considerar mais
incisivamente o problema concreto posto nos autos, importa começar por referir,
compulsados os fundamentos da decisão recorrida, que a recusa de aplicação do
artigo 3.º, n.º 3, do C.R.Predial resultou, no que é essencial, do facto do
conservador ter recusado, na sequência de convite para que a parte promovesse o
registo da acção, a sua inscrição no registo com o fundamento de que a acção em
causa a ele não estaria sujeita e de, por esse motivo, cessar ope legis a
suspensão da instância, entendendo o tribunal a quo que “o art. 3º, nº 3, do
Cód. do Reg. Predial, ao dispor que tal despacho do Conservador faz cessar a
suspensão da instância, mais não faz do que estabelecer que a decisão do
Conservador do Registo Predial prevalece sobre a decisão do juiz”, proposição
esta que autorizou o juízo de censura constitucional à luz do parâmetro
constante do artigo 205.º, n.º 2, da Constituição, afigurando-se claro que a
montante desse juízo, mas forçosamente contido nele como condição lógica da sua
existência, se encontram postos em causa os poderes do conservador para recusar
uma inscrição registral quando a mesma seja apresentada na sequência de um
convite a promover tal inscrição.
Começando, então, pela consideração desse específico pré-juízo
implicado na recusa de aplicação da norma sindicanda, cumpre mencionar que o
nosso sistema registral se encontra construído sob a égide do princípio da
legalidade – artigo 68.º do C.R.Predial –, nos termos do qual, “compete ao
conservador apreciar a viabilidade do pedido de registo, em face das disposições
legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores,
verificando especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos
interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos
dispositivos nele contidos”, o que pressupõe, para o seu cabal cumprimento, o
desenrolar de uma complexa função qualificadora direccionada a “comprovar a
legalidade de forma e de fundo dos documentos apresentados, tanto por si sós,
como relacionando-os com os eventuais obstáculos que o registo possa opor ao
assento pretendido” (Mónica Jardim, cit., pp. 2-3), sendo consabido, no que
concerne especificamente ao registo de acções que “a viabilidade do pedido de
registo não deixa de implicar também (...) toda uma problemática que vai desde a
exaustiva demanda sobre a registabilidade da acção titulada nos articulados
apresentados, até à verificação casuística, em face aliás da situação tabular
existente à data da apresentação do pedido do registo qualificando, das regras
técnicas de observância necessária à prossecução dos objectivos da segurança do
comercio jurídico (pressupostos processuais do registo ou requisitos de acesso
ao registo), de entre as quais há que salientar aquelas que se prendem não só
com o trato sucessivo na modalidade de continuidade das inscrições (art. 34.º,
n.º 2), mas também com a identidade do prédio e da sua harmonização entre a
matriz e o registo (arts. 28.º a 33.º e 79.º a 86.º, designadamente)” (cf. Silva
Pereira, O princípio da legalidade, o registo das decisões finais e a força do
caso julgado, p. 13, in http://www.fd.uc.pt/cenor/textos/DOC070314-004.pdf; e,
em idêntico sentido, Mónica Jardim, cit., pp. 7-8).
É dentro desse quadro impositivo que se recorta funcionalmente a
intervenção do conservador como primeiro garante da “defesa da legalidade
tabular” sobre o qual se faz recair, assim, um autêntico dever de aferição, em
concreto, do cumprimento dos pressupostos legais de registabilidade perante os
pedidos que lhe são apresentados.
Como é óbvio, o juízo de qualificação do conservador não é
insindicável, podendo a questão tabular em causa ser objecto de sindicância
hierárquica ou contenciosa.
E, no que concerne especificamente ao controlo jurisdicional aberto
por via do recurso contencioso da decisão do conservador, bem se compreenderá
que a decisão que o tribunal venha a proferir na sequência desse processo tenha
a força vinculativa própria das decisões jurisdicionais quanto à matéria
registal em causa, a implicar o cumprimento de um dever de obediência ao
julgado.
No entanto, não se pode é “confundir a atitude que o conservador
há-de assumir perante um pedido formulado numa acção judicial ou perante um
título de natureza judicial que seja apresentado na conservatória para ser
registado, com a atitude que o conservador há-de assumir perante uma decisão
judicial que se traduza num mandado especificamente dirigido a resolver a
controvérsia suscitada pela sua anterior decisão, depois de corrido o processo
próprio de impugnação” (Mónica Jardim, cit., p. 17), pelo simples facto de, na
primeira situação, não existir acto jurisdicional que, tendo como destinatário o
conservador, ordene ou imponha a realização de determinado acto de registo.
De resto, tendo presente tal diferença, bem se veria que a
apreciação da viabilidade do pedido de registo e a decisão que sobre ele recaia
não põe em crise a existência de qualquer decisão jurisdicional nem implica
“subordinação de uma das entidades à outra, mas apenas o cumprimento das suas
competências específicas” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de
Setembro de 2005, disponível em www.dgsi.pt).
Projectando esta realidade no caso dos autos, perante a inexistência
de um título judicial próprio a impor, como res judicata, a realização do
registo e atenta a legitimidade da pronúncia do conservador sobre a legalidade
dos pedidos que lhe são dirigidos, improcedem os fundamentos subjacentes ao
juízo lavrado na decisão recorrida.
Resta, portanto, concluir que a recusa de registo de uma acção cujo pedido tenha
sido formulado, pelas partes, na sequência de promoção judicial não compromete
as exigências de sentido firmadas na norma do artigo 205.º, n.º 2, da
Constituição, não padecendo de inconstitucionalidade a norma do artigo 3.º, n.º
3, do C.R.Predial, enquanto autoriza o prosseguimento da lide em face da recusa
de registo com o fundamento de que a acção a ele não se encontra sujeita, sendo
que, como se alvitrou, o regime aqui em crise acaba inclusivamente por ser
reclamado por injunções constitucionais não despiciendas em sede de um justo e
equitativo acesso ao direito e aos tribunais.
C – Decisão
6 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 3.º, n.º 3, do Código de
Registo Predial, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 67/96, de 31
de Maio; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão
recorrida em consonância com o presente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 29 de Maio de 2008
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos