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Processo n.º 269/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. foi condenado, por sentença do 1º Juízo de Competência
Especializada Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, pela
prática de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, previsto e punido
pelo artigo 105.º, n.º 5, do RGIT, na pena de 14 meses de prisão, suspensa na
execução pelo período de 14 meses.
Na sentença entendeu-se não dever fixar-se a condição de suspensão
da execução da pena a que se refere o artigo 14.º do RGIT (pagamento da
prestação tributária em dívida e acréscimos legais) porque “a mesma face às
regras do artigo 50.º do CP, na redacção da LN, conjugado com o artigo 51.º, n.º
2, do CP viola o princípio da proporcionalidade das penas, assim ferindo a CRP”.
Para chegar a este juízo de inconstitucionalidade a sentença
ponderou o seguinte:
“Cumpre, agora, analisar se a mencionada pena de 14 meses prisão deverá ou não
ser suspensa.
Neste particular cumpre dizer que com a entrada em vigor da LN (CP2007 – L
59/2007 de 4SET), no que agora interessa, muito de novo – e nem sempre benéfico
ao arguido – surgiu.
Como tal, na concreta determinação, atender-se-á a tal, o que se declara para
efeitos do art. 2.º do CP.
O art. 14.º do RGIT determina que a pena de prisão suspensa na execução o é
sempre sobre condição de pagamento, em prazo a fixar até 5 anos, da prestação
tributária e acréscimos legais (reposição de verdade fiscal).
Impõe, pois, regime mais restrito, ainda que não inconciliável com o demais, que
o art. 51.º do CP.
Sucede que, com a entrada em vigor do CP2007 se alargou a possibilidade de
suspensão até ao limite de pena de 5 anos, porém a pena ao ser suspensa é-o pelo
mesmo tempo que a pena fixada, salvaguardadas as situações em que a pena seja
inferior a um ano, caso em que a suspensão é por um ano.
Neste particular, por um lado a lei é mais benéfica para o arguido, dado que
alarga o campo de possibilidades de suspensão, mas por outro é mais restrito
pois impossibilita a suspensão por período superior ao da pena, o que quando
conjugado com a situação de suspensão mediante condição de pagamento pode ser, e
é, altamente agravante para o arguido.
Adiante, pois, a final se determinará o que se entende por conveniente.
[…]
Por todo o exposto, de harmonia com o disposto no art. 50.º, n.º 1 e 5 do CP,
decide-se suspender a execução da pena de prisão de 14 meses imposta ao arguido,
pelo período legal, ou seja, por 14 meses.
Como já se disse, o art. 14.º do RGIT determina que a pena de prisão suspensa na
execução o é sempre sobre condição de pagamento, em prazo a fixar até 5 anos, da
prestação tributária e acréscimos legais (reposição de verdade fiscal).
Impõe, pois, regime mais restrito, ainda que não inconciliável com o demais, que
o art. 51.º, n.º 2 do CP, a não ser que tais deveres, de índole económica,
signifiquem um encargo (mormente face à dilação temporal) que o arguido, face à
sua à sua capacidade económica não possa suportar.
É esse o grande problema que se suscita.
A questão, em paralelismo, mas com um brilhantismo explicativo quanto às
incompatibilidades entre o presente CP e o art. 14.º do RGIT está contida no Ac.
do TRP de 7N0V2007, onde se chega à conclusão da impossibilidade de aplicação
conjunta.
Nos termos do art. 204.º da CRP vigente – Apreciação da inconstitucionalidade –
Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que
infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.
Ora, aplicar o artigo 14.º do RGIT, impondo como condição que o arguido proceda
ao pagamento do valor de €74.352,16 no prazo concreto de 14 meses, como é o
caso, não mais é do que violar frontalmente a regra do art. 51º, n.º 2 do CP, na
parte que tal dever não signifique um encargo que o arguido face à sua à sua
capacidade económica não possa suportar, princípio este que não mais é do que o
postular do princípio constitucional da necessidade e proporcionalidade das
penas.
Tal princípio radica na asserção de que a legitimidade das penas criminais
depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito,
para protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados e o seu valor
assenta na verificação de que qualquer criminalização e punição determina a
restrição de direitos, liberdades e garantias das pessoas (maxime, do direito à
liberdade).
Ora, tal restrição só pode justificar-se, nos termos do nº 2 do artigo 18.º da
CRP (onde se prescreve o princípio da proporcionalidade na sua vertente tríptica
dos subprincípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade stricto
sensu), quando se mostre necessária para a salvaguarda de outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos, ou seja, está o julgador impedido de
aplicar sanção das quais resultem consequências gravosas desnecessárias para o
condenado, devendo as restrições aos direitos limitar-se ao estritamente
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos.
Não será o caso dos autos, pois sempre pode o Estado, através dos meios civis,
tentar obter o pagamento das quantias em causa.
Por outro lado, não se ostra adequado fixar um qualquer montante, ainda que
inferior ao devido, pois sempre o mesmo, por pequeno que fosse seria oneroso e
desnecessário.
É que sendo certo que não se pode negar que as motivações essencialmente
económicas que estão por detrás da prática destas infracções, aliadas ao tipo de
agentes que as praticam e à natureza das próprias sanções e do sacrifício que
visam impor não pode significar um violar dos interesses de defesa de direitos
fundamentais, sob pena de o Estado se revelar totalmente desrespeitador do
citado princípio da proporcionalidade.
Assim sendo, porque aplicar o art. 14.º do RGIT no caso concreto, conjugando-o
com as novas regras do art. 50.º do CP e atendendo à regra do art. 51.º, n.º 2
do CP, viola a CRP por via do desrespeito do princípio da proporcionalidade das
penas, o Tribunal, nos termos do art. 205.º da CRP, recusa a aplicação da norma.
Como tal, suspende a execução da pena de 14 meses de prisão, pelo período legal
de 14 meses, sem subordinação a qualquer dever ou regra de conduta postulados
nos art.s 51.º e 52.º do CP, por desnecessários ou inadequados ao caso concreto,
e sem subordinação às regras do art. 14.º do RGIT, pelos motivos supra.”
2. O Ministério Público interpôs recurso desta sentença para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º
3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), visando a apreciação
da inconstitucionalidade da norma a que o tribunal a quo recusou aplicação.
3. Nas alegações que apresentou, o Ministério Público, invocando a
jurisprudência do Tribunal relativa ao artigo 14.º do RGIT, sustenta o seguinte:
“1. Após as alterações do artigo 50º do Código Penal, que lhe foram introduzidas
pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, a norma do artigo 14º do Regime Geral das
Infracções Tributárias, que condiciona a suspensão de execução de pena de prisão
ao pagamento de determinadas quantias, continua a não padecer de qualquer vício
de desconformidade constitucional, designadamente por via do desrespeito do
princípio de proporcionalidade do artigo 18º, nº 2, da Lei Fundamental.
2. Termos em que, procedendo o presente recurso, não deverá ser confirmado o
juízo de inconstitucionalidade da decisão recorrida.”
4. O recorrido alegou e concluiu nos seguintes termos:
“1.- Como direito restritivo dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos,
a actuação do jus puniendi estadual só será legítima se, e na medida em que,
outros meios de intervenção social se revelem incapazes, inadequados ou
insuficientes para assegurar a protecção daqueles direitos ou bens juridicamente
tutelados.
2.- Nos termos do art. 50º do CP, para obter um juízo de prognose socialmente
favorável no sentido da suspensão da execução da pena de prisão aplicada na
sentença, o tribunal efectuará uma ponderação das circunstâncias relativas ao
agente (personalidade, condições de vida, conduta anterior e posterior ao crime)
de modo a aferir da bondade, adequação e suficiência dessa medida.
3.- Se o julgar conveniente e adequado para a realização das finalidades da
punição, pode o tribunal subordinar a suspensão ao cumprimento de deveres (art.
51º do CP), nomeadamente de conteúdo económico, desde que não representem para o
condenado obrigações cujo cumprimento no seja razoavelmente de lhe exigir (cfr.
número 2 do artigo 51º do CP).
4.- No âmbito dos crimes fiscais, o art. 14º do RGIT consagra regime diverso.
5.- O pagamento da prestação tributária em falta e dos acréscimos legais é
condição necessária para que seja determinada a suspensão, ainda que as
concretas condições económicas do agente ou a existência de outros meios
convenientes e eficazes impusessem medida diversa.
6.- As alterações operadas ao nível do regime da suspensão da execução da pena
de prisão, fruto da Lei 59/2007, de 4 de Setembro, abalaram seriamente a
fundamentação que esteve na base da jurisprudência maioritária deste Tribunal
que decidiu no sentido da plena conformidade daquela disposição.
7.- Com a entrada em vigor daquelas alterações, muito de novo – e nem sempre
benéfico ao arguido – surgiu, nomeadamente novas e fundadas dúvidas quanto
conformidade constitucional daquele preceito.
8.- A actual redacção do número 5 do artigo 50º do CP prevê que o período de
suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas
nunca inferior a 1 ano.
9.- Com a entrada em vigor das referidas alterações surgiu uma
incompatibilidade, real e não meramente aparente, entre aquele artigo 14º do
RGIT, que condiciona, necessariamente, a suspensão da pena ao pagamento da
prestação tributária e acréscimos legais em falta, num prazo afixar até ao
limite de 5 anos subsequentes à condenação, e a nova redacção do número 5 do
art. 50º do CP que estabelece que o prazo de suspensão será o mesmo da pena de
prisão a que foi condenado o arguido.
10.- Incompatibilidade essa que resulta do facto de poder ser fixado um prazo
para o cumprimento da condição (o pagamento) superior ao fixado para a suspensão
da execução da pena de prisão.
11.- Incompatibilidade que só pode ser torneada se se fixar um prazo igual para
a suspensão e para o cumprimento da obrigação (acompanhamos na íntegra as
conclusões a que chegou o douto Acórdão da Relação do Porto de 7 de Novembro de
2007, que pode ser consultado no sítio da DGSI na Internet).
12.- Solução que, todavia, representa um ónus insustentável para o arguido,
nomeadamente naqueles casos em que a suspensão é subordinada à condição de
pagamento, o que sempre sucederá no âmbito dos crimes fiscais em face daquele
artigo 14º.
13.- Onerosidade que ganha, neste tipo de crimes, ainda mais amplitude atento o
facto de aquele normativo não só não prever a possibilidade de pagamento parcial
das prestações tributárias como inculcar a ideia de que o pagamento deve ser
feito na totalidade.
14.- Como tal, afronta o princípio constitucional da necessidade e
proporcionalidade das penas (v. número 2 do art. 18º da CRP) e, por decorrência,
o imposto pelo numero 2 do artigo 51º do CP, pretender-se no caso concreto impor
ao arguido A. o pagamento do montante de 74.352,16 no prazo de 14 meses.
15.- A aplicação, in casu, do artigo 14º do RGIT, conjugado com a aplicação do
número 5 do artigo 50° do CP, na redacção que lhe foi dada pela Lei 59/2007, de
4 de Setembro, viola a Constituição da República Portuguesa por via do
desrespeito dos princípios da proporcionalidade e adequação das penas previstos
no número 2 do art. 18º da CRP e no número 2 do artigo 51º do CP, razão pela
qual deve ser recusada a sua aplicação nos termos do artigo 205º da CRP.”
5. O Tribunal Constitucional teve já, por diversas vezes,
oportunidade de se pronunciar sobre a norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, na
parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento,
pelo arguido, do imposto em dívida e respectivos acréscimos legais. Fê-lo,
designadamente, nos acórdãos n.ºs 256/03, 335/03, 376/03, 500/05, 309/06,
543/06, 587/06, 29/07 e 61/07 (todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt). E, à semelhança do que sucedera com o artigo
11º, n.º 7 do RJIFNA, preceito que antecedeu este artigo 14º, sempre concluiu,
por unanimidade ou por larga maioria, no sentido da não inconstitucionalidade da
norma em causa.
No primeiro dos arestos citados, para cuja fundamentação, em boa
parte, remetem os demais, ponderou o Tribunal:
«10.4. Comparando o artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA com o (posterior) artigo 14.º
do RGIT, verifica-se que ambos condicionam a suspensão da execução da pena de
prisão ao pagamento das quantias em dívida.
Não sendo pagas tais quantias, o primeiro preceito remetia (em parte) para o
regime do Código Penal relativo ao não cumprimento culposo das condições da
suspensão; já o segundo preceito – que englobou tal regime do Código Penal – é
mais dúbio, porque não faz referência à necessidade de culpa do condenado.
De qualquer modo, deve entender-se que a já referida aplicação subsidiária do
Código Penal, prevista no artigo 3.º, alínea a), do RGIT (cfr. os artigos 55.º e
56.º do referido Código), bem como a circunstância de só o incumprimento culposo
conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do
delinquente implicam a conclusão de que o artigo 14.º, n.º 2, do RGIT, quando se
refere à falta de pagamento das quantias, tem em vista a falta de pagamento
culposa (refira-se, a propósito, na sequência de Jorge de Figueiredo Dias,
Direito Penal Português/Parte Geral, II – As Consequências Jurídicas do Crime,
Aequitas, 1993, pp. 342-343, que pressuposto material de aplicação da suspensão
da execução da pena de prisão é a existência de um prognóstico favorável a esse
respeito).
[...]
10.7. A questão que ora nos ocupa tem algumas afinidades com uma outra que já
foi discutida no Tribunal Constitucional.
Assim, no acórdão n.º 440/87, de 4 de Novembro (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 10.º volume, 1987, p. 521), o Tribunal Constitucional
não julgou inconstitucional a norma do artigo 49.º, n.º 1, alínea a), do Código
Penal de 1982 (versão originária), na parte em que ela permite que a suspensão
da execução da pena seja subordinada à obrigação de o réu “pagar dentro de certo
prazo a indemnização devida ao lesado”. Nesse acórdão, depois de se ter
salientado que se deve considerar como princípio consagrado na Constituição a
proibição da chamada “prisão por dívidas”, entendeu-se, para o que aqui releva,
o seguinte:
“(...) nos termos do artigo 50.º, alínea d), do actual Código Penal, o tribunal
pode revogar a suspensão da pena, «se durante o período da suspensão o condenado
deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença», v.g.,
o de «pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado» [artigo 49.º,
n.º 1, alínea a), primeira parte]. Nunca, porém, se poderá falar numa prisão em
resultado do não pagamento de uma dívida: – a causa primeira da prisão é a
prática de um «facto punível» (artigo 48.º do Código). Como se escreveu no
acórdão recorrido, «o que é vedado é a privação da liberdade pela única razão do
não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente».
Aliás, a revogação da suspensão da pena é apenas uma das faculdades concedidas
ao tribunal pelo citado artigo 50.º para o caso de, durante o período da
suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres
impostos na sentença: – na verdade, «conforme os casos», pode o tribunal, em vez
de revogar a suspensão, «fazer-lhe [ao réu] uma solene advertência [alínea a)],
exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos» [alínea b)] ou
«prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas
não por menos de um ano» [alínea c)].”
Por outro lado, no acórdão n.º 596/99, de 2 de Novembro (publicado no Diário da
República, II Série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de 2000, p. 3600), o Tribunal
Constitucional não considerou inconstitucional, designadamente por violação do
artigo 27.º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo 51.º, n.º 1,
alínea a), do Código Penal, na parte em que permite ao juiz condicionar a
suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados
ao ofendido. Foram os seguintes os fundamentos dessa decisão:
“(...) 8. A alegada inconstitucionalidade do artigo 51.º, n.º 1, alínea a) do
Código Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.
Dispõe o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal que «a suspensão da
execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres
impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente pagar
dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a
indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução
idónea».
Trata-se mais uma vez, no entender do recorrente, da previsão de uma situação de
«prisão por dívidas», proibida pela Constituição.
Desde logo deve notar-se que tem inteira razão o Ministério Público quando
refere que, a proceder, a argumentação do recorrente acabaria por redundar em
seu próprio prejuízo, «na medida em que a considerar-se inconstitucional a norma
ora objecto de recurso, estaria afastada a possibilidade de suspensão da
execução da pena – que só se justifica pela ‘condição’ estabelecida naquele
preceito – restando-lhe o inexorável cumprimento da pena de prisão que a decisão
recorrida, em primeira linha, lhe impôs...».
É, no entanto, manifestamente improcedente a alegação de que a norma que se
extrai do artigo 51.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, traduz uma violação do
princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de
não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e
à segurança (artigo 27.º, n.º 1 da Constituição).
Na realidade, e mais uma vez, não se trata aqui da impossibilidade de
cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração
de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite
realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela –
suspensão da execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado,
traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização
devida (...).”
Apesar da afinidade com a questão de que ora cumpre apreciar, nos arestos
citados não estava em causa o problema da conformidade constitucional (à luz dos
princípios da adequação e da proporcionalidade) da imposição de uma obrigação
que, no próprio momento em que é imposta, pode ser de cumprimento impossível
pelo condenado, mas um outro (que Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 353,
aliás, considerou absolutamente infundado), que era o de “saber se o
condicionamento da suspensão pelo pagamento da indemnização não configuraria,
quando aquele pagamento não viesse a ser feito, uma (inconstitucional) prisão
por dívidas”.
De qualquer modo, dos arestos citados extrai-se uma ideia importante para a
resolução da presente questão: é ela a de que não faz sentido analisá-la à luz
da proibição da prisão por dívidas. Na verdade, mesmo que se considere – e é
isso que importa determinar – desproporcionada a imposição da totalidade da
quantia em dívida como condição de suspensão da execução da pena, o certo é que
o motivo primário do cumprimento da pena de prisão não radica na falta de
pagamento de tal quantia, mas na prática de um facto punível.
10.8. A questão em análise tem também algumas afinidades com a questão da
conformidade constitucional do estabelecimento dos limites da pena de multa em
função do valor da prestação em falta, analisada pelo Tribunal Constitucional a
propósito dos artigos 24.º, n.º 1, e 23.º, n.º 4, do RJIFNA (cfr., por exemplo,
os acórdãos n.ºs 548/01, de 7 de Dezembro, e 432/02, de 22 de Outubro,
respectivamente publicados no Diário da República, II Série, n.º 161, de 15 de
Julho de 2002, p. 12639, e n.º 302, de 31 de Dezembro de 2002, p. 21183).
Neste último aresto, disse-se nomeadamente o seguinte:
“(...) Por outro lado – e sendo certo que o legislador goza de ampla margem de
liberdade na fixação dos limites mínimo e máximo das molduras penais –, não se
afigura que o critério da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, adoptado
na norma em apreço, se revele ofensivo dos princípios da necessidade,
proporcionalidade e adequação das penas. Contrariamente ao que sustenta o
recorrente, a adopção de um tal critério não significa que a pena aplicável ao
crime de fraude fiscal prossiga o fim da retaliação ou da expiação. É que a
conduta que lhe subjaz é tanto mais grave e socialmente mais lesiva quanto mais
elevado for o montante envolvido: como tal, é ainda a protecção de um bem
jurídico o que se visa e não a mera censura do agente. (...).”
Desta passagem retira-se uma importante consideração para o problema que nos
ocupa.
É ela a de que, podendo a realização dos fins do Estado – dependente do
cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da
vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há
qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento
da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões
que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do
artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal [...] não têm necessariamente de assumir
preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do
sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a
relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da
obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida.
[...]
10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando
apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante
da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução
da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais,
assume o interesse em arrecadar impostos.
Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da
imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito
provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o
fazer.
Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido –
pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente
efectivamente estava impossibilitado de cumprir [...] –, não altera, todavia, a
conclusão a que se chegou.
Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a
possibilidade de suspensão da execução da pena.
Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não
seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução
da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de
cumprimento impossível.
Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz
necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da
obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora,
nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei –
bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos
ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução
da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de
pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O
juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito,
indiferente.
Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da
imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode
suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja
possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.
A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência
impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever
(cfr. artigo 51.º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da
situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão
para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos
princípios da proporcionalidade e da adequação.
Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação
não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente
decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11.º, n.º 7, do
RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14.º do RGIT, a revogação é sempre uma
possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (supra,
10.4.).
Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e
proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA, e no
artigo 14.º do RGIT. [...]».
6. A sentença recorrida não seguiu esta jurisprudência porque
entendeu que a conjugação do disposto no artigo 14.º do RGIT com o n.º 5 do
artigo 50.º do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 59/2007, de 4 de
Setembro – que considerou aplicável por mais favorável ao arguido –, com
equiparação (ou limitação) do período máximo do cumprimento da condição à
duração da pena de prisão aplicada na sentença, significa impor ao arguido que,
nesse prazo (no caso 14 meses), cumpra um encargo que, face à sua capacidade
económica, não pode suportar. O que, continua a sentença, violaria os princípios
constitucionais da proporcionalidade e da necessidade das penas.
Efectivamente, a questão de constitucionalidade colocada pelo artigo
14.º do RGIT tem sido apreciada face ao seguinte texto:
“Artigo 14º
Suspensão da execução da pena de prisão
1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao
pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à
condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos
benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de
quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 – Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal
pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente
fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.”
Segundo a sentença – e essa é matéria que não cabe na competência do
Tribunal Constitucional apreciar, por ser do domínio da interpretação do direito
ordinário e da sua aplicação aos factos da causa – haveria agora um elemento
normativo novo a considerar, decorrente da entrada em vigor das alterações
introduzidas na parte geral do Código Penal pela Lei n.º 59/97, de 9 de
Setembro. Entendeu-se que o prazo de cumprimento da condição deixou de poder ser
fixado até ao limite máximo de cinco anos, uma vez que tem de acompanhar a
duração do período de suspensão e este não pode, agora, exceder o da pena de
prisão concretamente aplicada. Isto por força da conjugação daquele preceito com
o n.º 5 do artigo 50.º do Código Penal que, quanto aos pressupostos e duração da
suspensão da execução da pena de prisão, passou a dispor:
'Artigo 50.º
(Pressupostos e duração)
1.
2.
3.
4.
5. O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão
determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em
julgado da decisão'.
Decorreria desta norma um tendencial encurtamento do prazo que é
permitido conceder aos infractores para cumprimento da condição (pagamento das
quantias em dívida) susceptível de exonerá-los da sujeição a prisão efectiva.
Nunca ao juiz será possível fixar (directamente ou mediante prorrogação) um
prazo superior à duração da pena de prisão concretamente aplicada, mesmo que, no
momento da sentença, antecipe a certeza da impossibilidade de cumprimento da
condição em tal prazo.
7. Suposto que corresponda à exacta interpretação da lei e apesar
deste efeito perverso, esta nova configuração do regime de suspensão da execução
da pena de prisão por crimes fiscais não é de molde a justificar a revisão do
entendimento consolidado do Tribunal na matéria.
Continuam a ser válidas as três razões pelas quais nesta
jurisprudência se afasta a objecção de que se está a impor ao arguido um dever
que se sabe de cumprimento impossível e, com isso, a violar os princípios da
proporcionalidade e da culpa: (i) o juízo quanto à impossibilidade de pagar não
impede legalmente a suspensão; (ii) sempre pode haver regresso de melhor
fortuna; (iii) e a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação
judicial da culpa no incumprimento da condição.
No limite, admitindo que a força convincente das outras razões tenha diminuído
na medida da perda do poder modelador do prazo por parte do tribunal, continua a
verificar-se a razão que essa jurisprudência enuncia como decisiva para não
julgar violados os princípios da culpa e da proporcionalidade e que se retira do
artigo 55.º do Código Penal: “o não cumprimento não culposo da obrigação não
determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre
do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA,
bem como do n.º 2 do artigo 14.º do RGIT, a revogação é sempre uma
possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado”
8. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma que se extrai do artigo 14.º
do Regime Geral das Infracções Tributárias, em conjugação com o n.º 5 do artigo
50.º do Código Penal, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da
pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até
ao limite de duração da pena de prisão concretamente determinada, a contar do
trânsito em julgado da decisão, da prestação tributária e acréscimos legais;
b) Determinar a reforma da sentença em conformidade com o juízo de
não inconstitucionalidade agora formulado.
c) Sem custas.
Lisboa, 18 de Junho de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão