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Processo n.º 74/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito dos autos de reclamação e graduação de créditos que correm por apenso
ao processo de falência, pendente no 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de
Barcelos sob o n.º 2427/03.7 TBBCL-D, foi proferida sentença de verificação e
graduação de créditos, a qual, por referência ao produto da liquidação do bem
imóvel aí apreendido, graduou os créditos reclamados pelos trabalhadores da
falida antes do crédito garantido por hipotecas voluntárias reclamado pela “A.,
S.A.”.
Para tanto, o tribunal aplicou a norma constante do artigo 377.º, n.º 1, alínea
b), do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, na
interpretação segundo a qual a referida norma é aplicável aos contratos de
trabalho vigentes à data da sua entrada em vigor e que os créditos laborais
deles emergentes são garantidos por privilégio imobiliário especial sobre os
bens imóveis do empregador nos quais os trabalhadores prestaram a sua
actividade, com preferência à hipoteca voluntária constituída sobre esses bens
em data anterior à da entrada em vigor da referida norma.
O referido credor bancário interpôs recurso de apelação desta decisão, mas o
Tribunal da Relação de Guimarães viria a julgá-lo totalmente improcedente,
mantendo assim a sentença recorrida.
O Tribunal da Relação de Guimarães fundamentou a respectiva decisão pela
seguinte forma, na parte que ora releva:
“(...)
i) Os créditos laborais preferem aos demais (ainda que garantidos com hipoteca)
por força do art. 377º do CT:
A questão colocada prende-se essencialmente com saber qual a lei aplicável aos
créditos dos trabalhadores no que respeita aos privilégios concedidos, e qual a
respectiva preferência no confronto com a garantia hipotecária do apelante.
Sustenta a apelante que encontrando-se o seu crédito garantido por hipoteca,
dispondo a lei para o futuro – artigo 12, nº 1 do CC –, o privilégio imobiliário
especial previsto no novo Código do Trabalho só prefere às hipotecas registadas
após a sua entrada em vigor, ocorrida a 01/12/2003.
A Lei 17/86, de 14/6 no seu artigo 12.º, nº 1, consagra para os créditos
emergentes do contrato individual de trabalho por ela regulados, privilégio
mobiliário e imobiliários gerais.
No nº 3 do citado artigo dispõe-se sobre a graduação dos créditos, referindo
quanto aos imobiliários que se graduam antes dos créditos referidos no art.
748.º, do C.C., e antes dos créditos de contribuições devidas à Segurança
Social.
A Lei 96/01, de 20.8, estabeleceu no seu art. 4.º, que os créditos emergentes de
contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei 17/86, de 14.6,
também gozavam de privilégio mobiliário e imobiliário gerais, exceptuando-se,
tão somente, os créditos de carácter excepcional, nomeadamente as gratificações
extraordinárias e a participação nos lucros das empresas.
Este quadro sofreu alterações como o novo C.T. aprovado pela Lei nº 99/2003, de
27/08.
O art. 377 do C.T. regula a matéria nos seguintes termos:
Privilégios creditórios:
1 – Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou
cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios
creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais
o trabalhador preste a sua actividade.
2 – A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos
referidos no nº 1 do artigo 747º do Código Civil;
b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos
referidos no artigo 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições
devidas à segurança social.
Foi este o normativo aplicado aos créditos dos trabalhadores, graduando-os à
frente do crédito da apelante garantido por hipoteca.
O C.T. entrou em vigor a 01/12/2003, conforme artigo 3º, nº 1 da L. 99/2003 de
27/8.
No anterior regime e relativamente ao privilégio imobiliário geral desenharam-se
duas correntes, uma no sentido da sujeição deste ao disposto no artigo 749º do
CC e outra no sentido da sujeição ao artigo 751º do CC.
A corrente que entendia ser aplicável o art. 749, claramente maioritário, muito
ficou a dever aos Acs. do TC nºs 362/2002 e 363/02 (DR I-A, de 16/10/02), que
declararam a inconstitucionalidade com forma obrigatória geral o artigo 104 do
CIRS (VO) e art. 11 da L.n.º 103/80, na interpretação segundo a qual os
privilégios imobiliários gerais aí concedidos aos créditos de IRS e da segurança
social preferem à hipoteca, nos termos do artigo 751º do CC.
Importa no entanto referir que relativamente a igual privilégio concedido aos
trabalhadores, não se pronunciando embora, porque tal não lhe competia, sobre
se é de aplicar o art. 749º ou 751º do C.Civ., o mesmo tribunal por Acórdão nº
498/2003 – DR, II de 3/1/04 –, concluiu por unanimidade, pela não
inconstitucionalidade da norma constante da al. b) do nº 1 do artigo 12º da
L.S.A. (na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela
conferido prefere à hipoteca.
A nova lei veio resolver esta querela.
Estamos agora face a um privilégio imobiliário especial, a que se aplica sem
margem para dúvidas a preferência do artº 751º, do C.C..
A questão que ora se coloca é a de saber se este privilégio prevalece sobre a
hipoteca voluntária constituída antes da data da entrada em vigor do CT.
A apelante faz apelo ao artigo 12 do CC.
Dispõe o normativo:
1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia
retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos
factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de
quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só
visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de
certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem,
entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que
subsistam à data da sua entrada em vigor.
O nº 2 do artigo, como refere Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao
Discurso Legitimador, Almedina, 2000, pág. 233, distingue dois tipos de leis ou
de normas, “aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou
formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos (1.ª parte)
e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o
modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2.ª parte). As
primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a
relações jurídicas (melhor: Ss Js) constituídas antes da LN mas subsistentes ou
em curso à data do seu IV” – (SJ – situações jurídicas; LN – Lei nova; IV –
início de vigência).
Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, 3ª ed. rev., pág. 61 em nota ao
artigo 12, referem que “Se, porém, tratando-se do conteúdo do direito for
indiferente o facto que lhe deu origem, a nova lei já é aplicável”.
Aos factos “passados” que deram origem às “situações jurídicas”, no caso da 2ª
parte do n º 2 aludido, não é atribuído valor constitutivo, sendo utilizados
apenas como pontos de referência para a definição do regime de direito material
da situação jurídica existente – Baptista Machado, mesma obra, obra, pág. 236.
Como refere o Ac. STJ de 5/5/94, 4J 437, pág. 480, seguindo a obra “ Sobre a
aplicação no tempo do novo Código Civil” daquele mesmo autor, “a disposição
legislativa «abstrairá dos factos constitutivos da situação jurídica
contratual, quando for dirigida à tutela dos interesses duma generalidade de
pessoas que se achem ou possam vir a achar ligadas por uma certa relação
jurídica (por exemplo uma relação jurídica de trabalho, por uma relação jurídica
de arrendamento, etc.) – de modo a poder dizer-se que tal disposição atinge as
pessoas não enquanto contratantes, mas enquanto pessoas ligadas por certo
vínculo contratual (enquanto patrões e operários, enquanto senhorios e
inquilinos, etc.)”. Os preceitos relativos a privilégios dispõem
directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos
factos que lhes deram origem. Limitam-se a definir, de acordo com a recente
opção do legislador, a garantia patrimonial de determinados créditos. Caiem
consequentemente na alçada na 2ª parte do nº 2 do artigo 12 do CC., aplicando-se
aos créditos já constituídos.
Não ocorre sequer, no caso presente, alteração de qualquer regra relativa à
hipoteca. A relação entre a apelante enquanto credora e a devedora não foi
objecto de qualquer nova regra. O que se verifica é efeito reflexo sobre a
hipoteca, por força do privilégio concedido aos trabalhadores no art. 377 do CT,
“desgraduando-a” no “computo” das “garantias” (isto para quem entenda que ao
anterior privilégio era aplicável o artigo 749 do CC).
Poderia entender-se que não tendo a norma em causa regulado a relação jurídica
invocada pela apelante, haveria que respeitar tal relação nos termos da lei
anterior. Tal conclusão é contrária ao disposto no artigo 12, nº 2, 2ª parte do
CC.
O que o princípio da não retroactividade ressalva, grosso modo, são os efeitos
já produzidos por factos passados. Ora a hipoteca voluntário respeita ao modo de
realização do direito, conferindo ao crédito garantido determinada preferência
de pagamento no confronto com outros credores. O efeito próprio da hipoteca
apenas se realiza a partir do momento em que pode ser “accionada”. A menos que
se considere como efeito directo da hipoteca, como resultado directo e imediato
do registo desta, a atribuição do direito a determinada posição preferencial no
quadro das garantias, ou seja, do direito à cristalização, em tal data, das
regras atinentes às garantias e para efeitos do respectivo crédito.
Tal é contrário à natureza da hipoteca. A simples garantia atribui ao credor um
direito em potência, dependendo a sua efectivação do preenchimento de certos
requisitos. Assim e quanto à hipoteca;
– Desde logo é necessária a existência de um crédito, o que nem sempre ocorre,
podendo a hipoteca constituir-se para garantia de obrigação futura (art. 686, 2
do CC, como o ex: das “linhas de crédito”);
– Depende da ocorrência de incumprimento (salvo cláusula de vencimento
antecipado em caso de venda do bem – art. 695 do CC –, ou outra causa legalmente
prevista);
– A venda tem que efectuar-se em processo executivo – art. 817 do CC.
Por outro o regime e efeitos da hipoteca são de natureza imperativa, visando-se
com a garantia hipotecária colocar na disposição dos contraentes um mecanismo
jurídico visando a atribuição de determinada preferência no pagamento, que há-de
valer nos termos fixados na lei e no cômputo do sistema legal de garantias
(legais e contratuais). Este sistema modela pois o conteúdo de certas relações
jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem. A preferência deve
aquilatar-se de acordo com o regime em vigor à data da sua efectivação.
O apelante enquanto credor hipotecário detém uma posição jurídica que subsiste
aquando da entrada em vigor do CT, sendo o conteúdo dessa relação afectado
reflexamente pela entrada em vigor do artigo 377 do CT., em virtude de os
efeitos da garantia constituída apenas ocorrerem no âmbito temporal de vigência
desta norma.
Sobre a aplicação imediata da lei que regula a garantia patrimonial, RC. de
11-10-2005, www.dgsi.pt,processo nº 2239/95; Ac. STJ de 29/5/80, BMJ 297, pág.
278; do S.T.J., de 5/6/1996, na Col. Jur. S.T.J. T. II, pág. 112, RL, de
28/1/1999, Col. Jur., T. I, pág. 95; RC. de 13/6/06, www.dgsi.pt,processo nº
1327/06; Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, pág.
27.
Importa por fim verificar qual a lei aplicável na graduação posta em crise.
A graduação visa regular um conflito entre credores, face a urna potencial
insuficiência do património do devedor. A norma é chamada a regular a situação
quando o conflito surge, não antes. A lei aplicável é a lei em vigor no momento
em que ocorre o facto que determina o conflito a solucionar.
No presente caso, deve atender-se à data da declaração da falência – Ac. RP de
30/10/06, www.dgsi.pt/jtrp, processo nº 330556102-.
É nesta data que se inicia o procedimento tendente à liquidação do património em
benefício dos credores, encerrando-se os livros da falida (art. 148 do CPEREF),
são imediatamente exigíveis todas as obrigações da falida estabilizando-se o
passivo (art. 151 do CPEREF), os negócios realizados pelo falido, posteriormente
à declaração de falência, são inoponíveis à massa falida salvo se celebrados a
título oneroso com terceiros de boa fé, caso em que serão inoponíveis se
celebrados depois do registo da sentença. (art. 155º, nº 1, do CPEREF).
É com a declaração de falência que se abre a fase da reclamação de créditos –
artigos 128, nº 1, al. e) e 188 do CPEREF.
No entanto a estranha opção do artigo 5 da L. 96/01, relativa ao artigo 152 do
CPEREF, no sentido de aplicação da nova redacção, a todos os processos em que
não tenha havido sentença de verificação e graduação de créditos.
À data da declaração da falência estava já em vigor o actual CT, pelo que aos
créditos dos trabalhadores é aplicável o privilégio imobiliário especial
consagrado no artigo 377, 1, b) e 2 do citado diploma e a respectiva
preferência.
Quanto à alegada violação do princípio da confiança e da segurança jurídica, a
mesma não assume foros de inconstitucionalidade como se refere no acórdão do TC
nº 498/2003, acima referido.
O sacrifício imposto a tal princípio constitui uma opção do legislador em face
de valores constitucionalmente consagrados com ele conflituante – o direito à
remuneração enquanto meio de garantir uma existência condigna, consagrado no
artigo 59º, n.1, al. a) da CRP –. A remuneração do trabalho dependente,
normalmente a única fonte de rendimento do trabalhador, tem, no dizer de João
Leal Amado, A Protecção do Salário, Coimbra, 1993, pag. 22, citado no acórdão
referido, carácter alimentar e não meramente patrimonial.
Tal opção não constitui sacrifício excessivo do “interesse preterido”, face ao
direito que se pretendeu salvaguardar. Como refere o acórdão aludido, nos casos
de falência, é este frequentemente o único meio de dar guarida efectiva ao
direito consagrado no artigo 59, 1, a) da CRP.
É aceitável do ponto de vista social o sacrifício daquele princípio geral em
prol da garantia do direito a uma existência condigna, tanto mais que
normalmente estamos face a entes financeiros poderosos, cuja preterição não
causará problemas sociais nem afectará largas camadas da população, como a
solução contrária implicaria – os trabalhadores e respectivos agregados
familiares –.
Invoca a recorrente que os créditos dos trabalhadores possivelmente nem sequer
existiriam se o credor não tivesse financiado a entidade patronal. É certo que o
crédito é importante para o funcionamento da economia, dele dependendo as
empresas e assim os trabalhadores. Não é no entanto menos certo que a concessão
de crédito é o “negócio” da “banca”, nessa medida dependendo também ela dos
trabalhadores, pois não será demais afirmar constituir o “trabalho” o motor da
produção, contribuindo para os lucros das empresas, que lhes permitem o
pagamento dos respectivos débitos.
Nesta conformidade, deve entender-se, como se conclui no citado acórdão do TC.,
que a restrição do princípio da confiança operada pela norma em análise “não
encontra obstáculo constitucional.»
Inconformado com esta decisão, o credor bancário interpôs recurso de revista da
mesma, mas o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão datado de 18 de Dezembro
de 2007, viria a julgá-lo também improcedente, aderindo integralmente à
fundamentação da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães acabada de
transcrever, ao abrigo do disposto no n.º 5, do artigo 713.º, do Código de
Processo Civil.
O credor bancário interpôs então recurso desta decisão do Supremo Tribunal de
Justiça para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do
n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional (LTC), suscitando a apreciação da inconstitucionalidade
material da norma constante da alínea b), do n.º 1, do art. 377.º, do Código do
Trabalho, na interpretação segundo a qual os créditos laborais garantidos por
privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o
trabalhador preste a sua actividade prevalecem sobre os créditos garantidos por
hipoteca voluntária constituída sobre esses bens em data anterior à da entrada
em vigor da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, por violação do princípio
constitucional da protecção da confiança, ínsito no Estado de Direito
Democrático, consagrado no artigo 2.º, da Constituição da República Portuguesa.
A Recorrente apresentou alegações, culminando as mesmas com a formulação das
seguintes conclusões:
“(...)
1. “O princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito
democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas
expectativas que lhe são juridicamente criadas, censurando as afectações
inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se
poderia moral ou razoavelmente contar” – Ac. TC nº 362/02, de 17/09/02.
2. A norma constante da alínea b), do nº 1, do artº 377º do actual Código de
Trabalho, interpretada no sentido da sua aplicação às relações creditícias
constituídas antes da sua entrada em vigor, despreza por completo as razões que
subjazem ao entendimento jurisprudencial maioritário que, no domínio da Lei
anterior, concedia preferência ao crédito hipotecário sobre o crédito laboral.
3. No caso dos autos, a graduação do crédito hipotecário acima ou abaixo do
crédito dos trabalhadores determinará a recuperação integral ou a total
irrecuperabilidade do crédito da CGD.
4. Os financiamentos concedidos pela CGD foram garantidos por forma a, de acordo
com o direito vigente, garantir ao banco financiador a primazia sobre os demais
credores em sede de eventual cobrança coerciva ou falimentar.
5. A opção adoptada da hipoteca sobre as instalações fabris afigurava-se, à
data, como a mais adequada ao caso concreto por duas ordens de razão: em
primeiro lugar porque tais instalações constituíam o mais significativo acervo
patrimonial da sociedade financiada; em segundo lugar porque a possibilidade de
execução hipotecária sobre as instalações em apreço garantiam ao financiador uma
especial e acrescida preocupação, por parte da entidade financiada, na
manutenção do regular e pontual cumprimento dos contratos de financiamento.
6. Nunca, em circunstância alguma, teria a CGD, no actual quadro legal,
garantido o crédito reclamado do modo como o fez em 2000 e 2003, em face dos
normativos então vigentes.
7. À data da concessão dos financiamentos reclamados era impossível à CGD prever
quer a publicação do Código de Trabalho, quer a inclusão no mesmo de um
privilégio imobiliário especial em benefício dos trabalhadores, com preferência
sobre a hipoteca.
8. A vontade e o modo de contratar da CGD alicerçaram-se nos institutos
jurídicos vigentes e na confiança depositada no Estado no sentido da efectiva
protecção e materialização dos direitos reconhecidos por tais institutos.
9.É absolutamente inadmissível, por excessivamente oneroso, que a prevalência do
credor hipotecário (que apenas por virtude de tal prevalência assim contratou)
caia por terra com a entrada em vigor de uma nova lei, que o desprotege por
completo relativamente a direitos e expectativas já legitimamente constituídos.
10. A declaração de falência dos autos data de 09 de Novembro de 2004. Tivesse a
mesma ocorrido 13 dias antes e a prevalência da hipoteca da CGD permaneceria
intocável. Não poderá a recuperabilidade ou irrecuperabilidade de um crédito
superior a seiscentos mil euros depender de uma tômbola da sorte temporal, que
num lapso de tempo inferior a duas semanas decide quem detém privilégio sobre
quem, na distribuição dos proventos da massa falida.
11. Que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, terá o cidadão
perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real
proveniente da hipoteca, constituída e registada em momento bem anterior ao do
conhecimento e entrada em vigor de nova lei que altera por completo o quadro
garantístico vigente, de tal forma que o à data da contratação constituía uma
prática segura e prudente é hoje uma actuação de alto risco.
12. A aplicação do normativo constante da alínea b), do nº 1, do artº 377º do
Código de Trabalho em situação em que dessa aplicação resulta a prevalência de
créditos laborais sobre créditos hipotecários constituídos em data anterior à da
entrada em vigor da nova lei, constitui uma clara violação do princípio da
confiança do comércio jurídico, ínsito no princípio do Estado de Direito
Democrático, consagrado no artº 2º da Constituição.”
O Ministério Público pronunciou-se sobre o presente recurso e concluiu que a
norma constante do artigo 377.º, n.º 1, alínea b), do Código de Trabalho, ao
conferir aos trabalhadores um privilégio imobiliário especial que prevalece
sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente constituída (reformulando o regime do
privilégio imobiliário geral que era outorgado aos créditos laborais desde 1986)
não afronta – pelos fundamentos expostos no Acórdão nº 498/03, a que adere –
qualquer preceito ou princípio constitucional.
*
Fundamentação
1. Do objecto do recurso
A recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a
inconstitucionalidade material da norma constante da alínea b), do n.º 1, do
artigo 377.º, do Código do Trabalho, na interpretação segundo a qual os créditos
laborais garantidos por privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do
empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade prevalecem sobre os
créditos garantidos por hipoteca voluntária constituída sobre esses bens em data
anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto.
A questão de constitucionalidade assim configurada pela Recorrente surge com uma
amplitude que não transmite rigorosamente a particular interpretação normativa
que constituiu a verdadeira ratio decidendi da decisão recorrida, sobretudo para
efeito de avaliação das variáveis relevantes em matéria de aplicação da lei no
tempo que o presente caso convocou.
Estando, obviamente, pressuposto um concurso de credores, mais concretamente um
concurso universal de credores no âmbito de um processo de falência, importa
precisar que a declaração de falência e a ulterior reclamação dos créditos ora
em confronto ocorreram já após a entrada em vigor do Código de Trabalho e que o
tribunal a quo erigiu o momento da declaração da falência como o momento
relevante para a determinação da lei aplicável à graduação desses mesmos
créditos.
Assim sendo, o objecto do presente recurso, porque ainda contido nos limites
daquele que foi proposto pela Recorrente, restringir-se-á à questão da
constitucionalidade da norma constante da alínea b), do n.º 1, do artigo 377.º,
do Código do Trabalho, na interpretação segundo a qual, declarada a falência do
empregador após a entrada em vigor do Código do Trabalho, os créditos que venham
a ser reclamados pelos respectivos trabalhadores são garantidos por privilégio
imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais os
trabalhadores prestem a sua actividade e prevalecem sobre os créditos
garantidos por hipoteca voluntária constituída sobre esses bens em data
anterior à da entrada em vigor do referido diploma legal.
Obviamente, não se cuidará aqui de aferir da bondade da decisão recorrida no que
respeita ao sentido com que a norma que constitui o fundamento jurídico da
decisão foi interpretada e aplicada ao caso concreto no plano do direito
infraconstitucional.
Em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, apenas compete ao
Tribunal Constitucional apreciar se essa interpretação normativa aplicada pelo
tribunal recorrido contraria qualquer norma ou princípio constitucional,
nomeadamente o invocado princípio constitucional da protecção da confiança, em
termos de merecer um julgamento de inconstitucionalidade.
2. Da questão da constitucionalidade da interpretação normativa do art. 377.º,
n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho
2.1. Dos termos da questão
O objecto do presente recurso de constitucionalidade versa a matéria da
aplicação da lei no tempo no domínio dos direitos reais de garantia, tendo como
pano de fundo o concurso de credores e a graduação de créditos em processo de
falência.
Para melhor se compreender o alcance da questão de constitucionalidade sob
apreciação, revela-se útil recuperar e descrever sumariamente a situação
concreta da vida que mereceu a aplicação da interpretação normativa ora posta em
crise pela Recorrente.
Após ter sido declarada a falência de determinada sociedade comercial no dia 9
de Novembro de 2004, vieram a ser reclamados inter alia créditos de que são
titulares trabalhadores da falida e créditos emergentes de contratos de mútuo
bancário, sendo estes últimos garantidos por duas hipotecas voluntárias sobre
imóveis da falida, constituídas em Fevereiro de 2000 e Julho de 2003.
Chegado o momento da graduação dos créditos reclamados e verificados, o tribunal
recorrido, por referência ao bem imóvel onerado com a referida hipoteca, graduou
os créditos reclamados pelos trabalhadores da falida antes do crédito
hipotecário reclamado pela Recorrente.
Para tanto, o tribunal recorrido aplicou ao caso concreto a norma constante do
artigo 377.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho, aprovado pela Lei
99/2003, de 27 de Agosto, com a seguinte redacção, na parte que ora releva:
Artigo 377.º
Privilégios creditórios
1 – Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou
cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios
creditórios:
a) (...);
b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais
o trabalhador preste a sua actividade.
O tribunal recorrido aplicou a referida norma na interpretação segundo a qual,
declarada a falência do empregador após a entrada em vigor do Código do
Trabalho, os créditos que venham a ser reclamados pelos respectivos
trabalhadores são garantidos por privilégio imobiliário especial sobre os bens
imóveis do empregador nos quais os trabalhadores prestem a sua actividade e
prevalecem sobre os créditos garantidos por hipoteca voluntária constituída
sobre esses bens em data anterior à da entrada em vigor do referido diploma
legal.
Com o presente recurso de constitucionalidade, a Recorrente pretende obstar à
pretensa aplicação retroactiva da referida norma do Código do Trabalho, porque
entende que a referida interpretação normativa viola o princípio constitucional
da protecção da confiança inerente ao conceito de Estado de Direito Democrático,
consagrado no artigo 2.º da C.R.P., uma vez que a recorrente tinha a expectativa
legítima que se mantivesse a prevalência do seu crédito sobre os créditos dos
trabalhadores sobre a falida, consagrada na legislação vigente aquando da
constituição das hipotecas que garantiam os seus créditos.
2.2. Do princípio da protecção da confiança dos cidadãos
Desde a Revisão Constitucional de 1982 o artigo 2.º, da C.R.P., afirma
expressamente que “a República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático”.
Do princípio do Estado de Direito, a doutrina deduz os seus subprincípios
concretizadores e essenciais da segurança jurídica e da protecção da confiança
dos cidadãos (vide GOMES CANOTILHO, em “Direito constitucional e teoria da
Constituição”, pág. 257 e seg., da 7.ª Edição, da Almedina, e JORGE REIS NOVAIS,
em “Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa”, pág.
261 e seg., da ed. de 2004, da Coimbra Editora).
É inestimável o valor da segurança jurídica na vida em sociedade, a qual apenas
é propiciada pelo Direito, por não estar ao alcance de qualquer outra ordem
normativa (vide J. BAPTISTA MACHADO, em “Introdução ao Direito e ao Discurso
Legitimador”, pág. 57-59, da 3.ª Reimpressão (1989), da Almedina).
Na verdade, “o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e
conformar autónoma e responsavelmente a sua vida” (GOMES CANOTILHO, na ob. cit.,
p. 257).
E conforme sintetiza Jorge Reis Novais “(…)a protecção da confiança dos cidadãos
relativamente à acção dos órgãos do Estado é um elemento essencial, não apenas
da segurança da ordem jurídica, mas também da própria estruturação do
relacionamento entre Estado e cidadãos em Estado de Direito. Sem a
possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis
desenvolvimentos da actuação dos poderes públicos susceptíveis de repercutirem
na sua esfera jurídica, o indivíduo converter-se-ia, em última análise com
violação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, em mero objecto
do acontecer estatal.” (na ob. cit., pp. 261-262).
Não oferece dúvidas que a alteração frequente das leis pode perturbar a
confiança das pessoas, sobretudo quando as suas situações jurídicas sejam
objectivamente lesadas pela entrada em vigor de uma nova lei que pretenda dispor
sobre elas de forma retroactiva.
Todavia, a protecção da confiança dos particulares não pode conduzir à
impossibilidade de qualquer alteração das leis em vigor, isto é, a segurança
jurídica não pode caracterizar-se simplesmente pela imutabilidade e
cristalização do direito legislado.
Para além da função estabilizadora já enunciada, o Direito cumpre igualmente
“uma função dinamizadora e modeladora, capaz de ajustar a ordem estabelecida à
evolução social e de promover mesmo esta evolução num determinado sentido”
(BAPTISTA MACHADO, na ob. cit., p. 223).
Efectivamente, o legislador do Estado de Direito Democrático está igualmente
vinculado à prossecução do interesse público ditado pela Constituição e,
consequentemente, tem de dispor de uma ampla margem de conformação da ordem
jurídica ordinária para prosseguir fins constitucionalmente legítimos em
cumprimento do mandato democrático recebido dos eleitores (JORGE REIS NOVAIS,
ob. cit., pp. 263-264).
Assim sendo, por um lado, o legislador ordinário não pode estar espartilhado por
uma absoluta proibição de retroactividade de normas jurídicas; por outro lado, o
legislador está obrigado a não desrespeitar arbitrariamente a confiança dos
cidadãos quando decide modificar os regimes jurídicos.
Mas nem sempre é fácil delimitar o alcance prático da protecção da confiança nas
situações de sucessão de leis no tempo fora dos casos em que existe uma norma da
Constituição a estabelecer uma proibição expressa de retroactividade, como
sucede no caso das leis penais (artigo 29.º, n.º 1 a 4, da C.R.P.), das leis
restritivas de direitos liberdades e garantias dos cidadãos (artigo 18.º, n.º 3,
da C.R.P.) e das leis fiscais (artigo 103.º, n.º 3, na redacção da LC 1/97).
De entre as várias hipóteses de retroactividade, as situações de
retrospectividade (ou retroactividade inautêntica) – em que a norma jurídica
incide sobre situações ou relações jurídicas já existentes embora a nova
disciplina pretenda ter efeitos para o futuro – são das mais frequentes e as que
colocam problemas mais difíceis de delimitação da margem de conformação que deve
ser reconhecida ao legislador ordinário.
“É que do Código Civil ao Código Comercial, do Código do Trabalho ao Direito da
Família, não há praticamente quaisquer hipóteses de alteração legislativa sem
que, com isso, de alguma forma se afectem situações ou posições constituídas no
passado e que permanecem à entrada em vigor da nova lei. Vedar a possibilidade
de o legislador alterar a legislação em vigor ou obrigá-lo a considerar, excluir
ou tratar diferenciadamente todas as situações provindas do passado seria
fragmentar de uma forma praticamente inadmissível a ordem jurídica ordinária,
incluindo à luz do princípio da igualdade, e degradar inconstitucionalmente a
própria posição do legislador democrático” (JORGE REIS NOVAIS, na ob. cit., pp.
266-267).
Tem cabido à Justiça Constitucional o papel de “sumo guardião da segurança
jurídica do ordenamento” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, em “Segurança jurídica e
Justiça Constitucional”, na “Revista da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa”, 2000, pág. 625).
Entre nós, o Tribunal Constitucional, aliás na esteira da extinta Comissão
Constitucional, cedo firmou e nunca deixou de reiterar o entendimento de que
apesar de a Constituição não proibir, com carácter geral, as leis retroactivas,
deve entender-se, por apelo ao princípio da protecção da confiança inerente à
própria ideia de Estado de direito, que a lei fundamental exclui a
retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os
direitos e expectativas legítimos dos cidadãos (v.g. os acórdãos n.º 11/83, em
“Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 1.º, p. 25; n.º 3/84, em “Acórdãos
do Tribunal Constitucional”, vol. 2.º, p. 207; n.º 141/85, no B.M.J. n.º 360
suplemento, pág. 567; n.º 50/88, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol.
11.º, pág. 571; n.º 287/90, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 17.º,
pág. 159; n.º 29/2000, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 46.º, pág.
245; e n.º 158/2008, no Diário da República, II Série, n.º 75, de 16-04-2008,
pág. 17.465).
Densificando em que se traduz esta inadmissibilidade, arbitrariedade ou
onerosidade excessiva, o Tribunal Constitucional teve a oportunidade de dizer
que “a ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos
dois seguintes critérios:
a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível,
quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os
destinatários das normas delas constantes não possam contar; e, ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos que devam considera-se prevalecentes (deve
recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado,
a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do art. 18.º da
Constituição, desde a 1.ª Revisão).
Pelo primeiro critério, a afectação das expectativas será extraordinariamente
onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se
excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária”
(cfr. acórdão n.º 287/90, publicado em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”,
17.º vol., pág. 159 e seg.).
Este critério tem vindo a ser adoptado pelo Tribunal Constitucional e dele
resulta que a violação do princípio da confiança por normas retrospectivas só
ocorre quando estas afectam uma expectativa particular legítima, sólida e
relevante na manutenção duma determinada situação jurídica, e quando num
exercício de ponderação de interesses, o interesse público perseguido pela
introdução dessas normas não prevalece sobre essa expectativa.
2.3. Da evolução recente da protecção legal aos créditos laborais
O tribunal recorrido aplicou o artigo 377.º, n.º 1, b), do Código de Trabalho,
na interpretação segundo a qual, declarada a falência do empregador após a
entrada em vigor do Código do Trabalho, os créditos que venham a ser reclamados
pelos respectivos trabalhadores são garantidos por privilégio imobiliário
especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais os trabalhadores prestem
a sua actividade e prevalecem sobre os créditos garantidos por hipoteca
voluntária constituída sobre esses bens em data anterior à da entrada em vigor
do referido diploma legal.
Este critério de aplicação da lei no tempo confere à norma em causa um alcance
retrospectivo, uma vez que embora se considere que a mesma só dispõe para o
futuro (apenas vale em concurso de créditos abertos com declarações de falência
posteriores à entrada em vigor da norma) tem incidência reflexa sobre situações
ou relações jurídicas já existentes, nomeadamente créditos garantidos por
hipotecas já constituídas em data anterior à entrada em vigor do novo preceito,
que venham a ser reclamados no processo de falência.
Para sabermos, em primeiro lugar, se os titulares de créditos garantidos por
hipoteca voluntária constituída antes da entrada em vigor do Código de Trabalho
de 2003, tinham uma expectativa legítima, sólida e relevante de que os seus
créditos em caso de falência do devedor prevaleceriam sobre os créditos dos
trabalhadores deste, há que fazer um breve excurso pela história legislativa
recente que permita identificar as diferenças eventualmente existentes em
matéria de garantias creditícias entre a lei nova e a lei vigente à data da
constituição das hipotecas em causa neste processo, quando aplicadas aos
créditos reclamados, por referência ao bem imóvel apreendido e liquidado no
processo de insolvência.
O Código do Trabalho foi aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto.
Antes da entrada em vigor do Código do Trabalho, ocorrida em 1 de Dezembro de
2003, os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação, gozavam
de privilégio imobiliário geral (artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º
17/86, de 14 de Junho, e artigo 4.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 96/2001, de 20
de Agosto), sendo que esta figura surgia como anómala à luz do regime dos
privilégios creditórios previstos no Código Civil, para o qual todos os
privilégios imobiliários eram sempre especiais (artigo 735.º, n.º 3).
E esta anomalia fazia-se sentir sobretudo pela incerteza que se gerou no
concurso desses créditos com outros munidos de garantias de índole diversa.
Assim, até à entrada em vigor das alterações introduzidas no artigo 751.º, do
Código Civil, pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março – ocorrida em 15 de
Setembro de 2003 -, quando os referidos créditos laborais concorressem com
créditos de terceiros garantidos por hipoteca voluntária, a doutrina e
jurisprudência adoptavam, em alternativa, duas posições substancialmente
diferentes a respeito da graduação de créditos:
- ora submetiam esse concurso ao regime previsto no artigo 749.º, do Código
Civil, na redacção originária, graduando o crédito laboral depois do crédito
garantido por hipoteca que fosse oponível ao exequente (vide ALMEIDA COSTA, em
“Direito das obrigações”, pág. 825, da 5.ª ed., da Almedina, A. MONTEIRO
FERNANDES, em “Direito do trabalho”, pág. 425, da 11.ª ed., da Almedina, LUÍS
GONÇALVES, em “Privilégios creditórios: Evolução histórica. Regime. Sua
Inserção no tráfico creditício”, na “Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra”, LXVII, 1991, págs. 37-41, JOÃO LEAL AMADO, em “A
protecção do salário”, pág. 151-155, da Separata do Volume XXXIX do Suplemento
ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1993, CATARINA
SERRA, em “A crise da empresa, os trabalhadores e a falência”, na R.D.E.S., Ano
XLII, nº 3 e 4, pág. 434-439, MIGUEL LUCAS PIRES, em “Os privilégios creditórios
dos créditos laborais”, em “Questões Laborais”, 2002, p. 173, e os acórdãos do
S.T.J. de 12/10/1988, no B.M.J. n.º 380, pág. 462; de 31/10/1990, no B.M.J. n.º
400, pág. 640; e de 27/5/2003, acessível no site www.dgsi.pt).
- ora submetiam esse concurso ao regime previsto no artigo 751.º do Código
Civil, na redacção originária, graduando o crédito laboral antes do crédito
garantido por hipoteca, ainda que esta garantia fosse anterior – sobretudo por
causa da também anómala prevalência legal expressa dos créditos laborais
garantidos por privilégio imobiliário geral sobre os créditos respeitantes a
despesas de justiça garantidos por privilégio imobiliário especial (vide, neste
sentido, SOVERAL MARTINS, em “Legislação anotada sobre salários em atraso”, pág.
30, da ed. de 1980, da Centelha, MENEZES CORDEIRO, em “Manual de direito do
trabalho”, pág. 741-742, da ed. de 1991, da Almedina, PEDRO ROMANO MARTINEZ, em
“Direito do trabalho”, pág. 569, da ed. de 2002, da Almedina, e os acórdãos do
S.T.J. de 29/5/1980, no B.M.J. n.º 297, pág. 287; de 17/11/1981, no B.M.J. n.º
311, pág. 358; de 22/1/1985, no B.M.J. n.º 346, pág. 306; de 22/10/1997, no
B.M.J. n.º 397, pág. 298; do S.T.J. de 18/11/1999, no B.M.J. n.º 491, pág. 233).
No seio desta incerteza, a jurisprudência constitucional viria a declarar
inconstitucionais, com força obrigatória geral, determinadas normas que também
concediam privilégios imobiliários gerais em matéria de contribuições para a
segurança social e de imposto sobre o rendimento, quando interpretadas no
sentido de tais privilégios preferirem à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do
Código Civil, por violação do princípio constitucional da confiança (vide os
acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 362/2002 e n.º 363/2002, públicos no
Diário da República, Série I-A, de 16-10-1982).
Desta forma, a justiça constitucional acabou por interpelar indirectamente o
legislador ordinário a intervir e a interpretar autenticamente a norma constante
do artigo 751.º, do Código Civil, no sentido de resolver a incerteza que se
gerara no âmbito do concurso de credores e de esclarecer expressamente que aí se
pretende regular tão-só o concurso entre privilégio imobiliário especial e
direitos de terceiro.
Assim, após a entrada em vigor das alterações introduzidas no artigo 751.º, do
Código Civil, pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, o concurso entre um crédito
garantido por privilégio imobiliário geral e um crédito de terceiro garantido
por hipoteca voluntária passou, sem razões aparentes para mais divergências, a
ser sujeito ao regime previsto no artigo 749.º, do Código Civil, ficando o
crédito assim privilegiado graduado depois do crédito hipotecário que fosse
oponível ao exequente.
A jurisprudência dos tribunais comuns registaria a intervenção legislativa no
regime jurídico dos privilégios creditórios inerente ao Decreto-Lei n.º 38/2003
e não mais deixaria de a reflectir até aos nossos dias sempre que se decide pela
aplicação do artigo 12.º, n.º 1, al. b), da Lei 17/86, nomeadamente quando a
declaração de insolvência do empregador antecede a entrada em vigor do Código do
Trabalho (vide os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, todos acessíveis no
site www.dgsi.pt, datados de 22/6/2004, 13/1/2005, 22/6/2005, 25/10/2005,
21/9/2006, 22/3/2007 e 1/4/2008).
Todavia, a verdade é que o mesmo legislador ordinário aparentava não pretender
esta solução para a graduação dos créditos laborais com direitos de terceiros
munidos de garantia de índole diversa, razão pela qual, menos de três meses
depois da aludida alteração do Código Civil, viria a adoptar solução diversa a
seu respeito.
Aliás, importa verificar que, numa intervenção intercalar, o próprio Tribunal
Constitucional teve oportunidade de se debruçar sobre esta questão e, por
acórdão tirado em 22 de Outubro de 2003, após encontrar diferenças relevantes
entre os créditos laborais e os créditos do Estado e da Segurança Social, não
julgou inconstitucional a norma constante da alínea b), do n.º 1, do artigo
12.º, da Lei 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio
imobiliário geral nele conferido aos créditos emergentes de contrato individual
de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil
(acórdão n.º 498/2003, publicado no Diário da República, Série II, de 3-1-2004,
cuja orientação foi posteriormente confirmada nos acórdãos n,º 672/2004 e 257/08
acessíveis no site www.tribunalconstitucional.pt). O Tribunal Constitucional
surpreendeu atributos no direito à retribuição do trabalho – nomeadamente a
respectiva conexão com os imóveis onerados com o privilégio imobiliário geral e
a respectiva natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias – que o
diferenciavam dos demais créditos garantidos por privilégio imobiliário geral e
que não inviabilizavam, antes pelo contrário, a prevalência desse específico
privilégio imobiliário geral sobre a hipoteca anteriormente constituída, nos
termos do artigo 751.º do Código Civil.
Em conformidade com este pensamento, com a aprovação e entrada em vigor do
Código do Trabalho, os créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua
violação ou cessação, passaram a gozar de privilégio imobiliário especial sobre
os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade
(este privilégio já tinha constado do Anteprojecto elaborado por Pessoa Jorge
para a LCT, não tendo sido, contudo acolhido na versão final deste diploma) o
que, em abstracto, e não obstante a redução dos bens imóveis do empregador sobre
os quais recai a garantia, não deixa de traduzir um reforço inquestionável da
tutela dos créditos dos trabalhadores (vide MIGUEL LUCAS PIRES, em “Dos
privilégios creditórios: regime jurídico e sua influência no concurso de
credores”, pág. 288-290, e JOANA VASCONCELOS, em “Sobre a garantia dos créditos
laborais no Código do Trabalho”, em “Estudos de direito do trabalho em homenagem
ao Prof. Manuel Afonso Olea”, pág. 326-328, da ed. de 2004).
Na verdade, o privilégio imobiliário geral traduz um reforço da garantia geral
das obrigações constituída pelo património do devedor mas apenas se constitui
integralmente no momento da penhora ou acto equivalente, isto é, não permite
atingir senão os bens existentes, nessa data, no património do devedor (artigo
735.º, n.º 2, do Código Civil). Por seu turno, o privilégio imobiliário especial
constitui-se no momento da formação do crédito e é oponível a terceiro que
tenha, sobre a mesma coisa, qualquer direito real de garantia anterior ou
posterior ao privilégio (artigo 751.º, do Código Civil).
Diversamente do que pudesse sugerir, o privilégio imobiliário geral, quando
considerado na pureza conceptual do legislador ordinário de 1966, não garante
melhor o direito de credor que o privilégio imobiliário especial.
Assim, com a solução adoptada pelo Código do Trabalho, quando os créditos
laborais concorram, por referência a bens imóveis do empregador onde os
trabalhadores prestavam a sua actividade, com créditos de terceiros garantidos
por hipoteca voluntária constituída sobre os mesmos bens, esse concurso é
submetido ao regime previsto no artigo 377.º, n.º 1, alínea b), do referido
diploma legal e nos artigos 686.º, n.º 1, e 751.º, do Código Civil, o que
equivale a dizer que o crédito laboral fica graduado antes do crédito garantido
por hipoteca, ainda que esta garantia seja anterior.
2.4. Da expectativa dos credores hipotecários
Facilmente se alcança, em abstracto, que as diferenças de regime jurídico
existentes entre privilégio imobiliário geral e privilégio imobiliário especial
não são nada despiciendas no plano da graduação de créditos e, sobretudo, que as
mesmas não são irrelevantes para o credor beneficiário de hipoteca voluntária
sobre o bem imóvel onde os trabalhadores da falida prestavam a sua actividade.
Será que se pode dizer que o credor hipotecário, cuja hipoteca foi constituída
em data anterior à entrada em vigor do Código de Trabalho, tinha uma
expectativa legítima, sólida e relevante, de que, em caso de falência do
devedor, o seu crédito, por força da hipoteca, prevaleceria sobre os dos
trabalhadores da falida, no caso da hipoteca recair sobre o imóvel onde aqueles
laboravam ?
Previamente é necessário realçar que o Código do Trabalho não trouxe qualquer
alteração directa do regime jurídico do instituto da hipoteca previsto no Código
Civil, mas antes, e apenas, uma alteração do próprio regime jurídico das
garantias dos créditos laborais vindas do Decreto-Lei n.º 17/86, com as
consequentes e necessárias repercussões nas restantes garantias reais já
existentes, incluindo a hipoteca voluntária.
Ao conferir-se aos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação
ou cessação, pertencentes ao trabalhador, um privilégio imobiliário especial
sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador prestava a sua
actividade e ao determinar-se que esses créditos são graduados antes dos
créditos referidos no artigo 748.º, do C.C., e dos créditos de contribuições
devidas à segurança social (artigo 377.º, n.º 1, b), e n.º 2, b), do Código do
Trabalho), alteraram-se as regras de graduação dos diferentes créditos num
concurso de credores.
Na verdade, as garantias especiais reais de satisfação dos direitos de crédito
foram criadas em benefício dos credores para acautelar situações de
insuficiência patrimonial do devedor e só se exercitam plenamente quando
sobrevenha um concurso de credores em processo executivo ou de falência. O
valor de cada garantia real é assim estruturalmente relativo na medida em que o
mesmo dependerá sempre do valor das outras garantias com as quais concorra.
Neste contexto, a alteração do regime jurídico de qualquer garantia real poderá
influenciar o regime jurídico das demais garantias reais.
Dito isto, poderá um credor hipotecário pretender que não só o regime da sua
garantia, como também o regime de todas as outras garantias, permaneça imutável
até aquela ser exercitada ?
Em primeiro lugar, há que ter presente que as normas que regem as graduações de
créditos dizem sobretudo respeito ao modo de realização de direitos e não à
substância dos mesmos, sendo naquela matéria mais ténue a relevância dos
interesses e expectativas particulares (vide, neste sentido, BAPTISTA MACHADO,
em “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil”, pág. 256, da ed. de 1968,
da Almedina).
Em segundo lugar, se com a constituição duma hipoteca voluntária sobre um
determinado imóvel se assiste a um reforço da garantia geral das obrigações que
representa todo o património do devedor, uma vez que há um bem que fica
destinado preferencialmente ao pagamento do crédito garantido, essa preferência
não é absoluta, podendo a hipoteca ser preterida em caso de concurso com outras
garantias reais, como é o caso, no nosso direito positivo, dos privilégios
creditórios especiais e do direito de retenção (artigos 751.º e 759.º, nº 2,
ambos do Código Civil). Ora, no momento da constituição da hipoteca não é
possível saber da existência de outros créditos dotados de garantias com valor
superior, os quais até se poderão constituir posteriormente, pelo que o alcance
da expectativa legitima que um credor hipotecário poderá ter é a de que irá
usufruir duma preferência na satisfação do seu crédito através do bem
hipotecado, não podendo essa expectativa já abranger qual o grau ou valor
relativo dessa preferência.
Em terceiro lugar, entre a constituição da hipoteca e a produção de ocorrência
incerta do seu efeito principal (a satisfação do direito de crédito garantido
através do bem hipotecado) decorre um período de tempo mais ou menos prolongado
no qual não é expectável que as intervenções legislativas ocorridas nesse
domínio, em tempo em que se desconhece se esse efeito vai ter lugar,
nomeadamente através da atribuição de novos privilégios creditórios a
determinado tipo de créditos, por razões de interesse público, não possam
reforçar a posição de créditos já constituídos ou a constituir. Se é legítimo
que as regras de um concurso não se alterem após o anúncio da sua realização,
não há razão para não se considerarem as alterações ocorridas antes de se saber
da necessidade de realização do concurso.
Daí que não seja possível dizer-se que os credores cujos créditos se encontravam
garantidos por hipotecas constituídas em data anterior à entrada em vigor do
Código de Trabalho, tinham uma expectativa legítima, sólida e relevante de que,
em caso de falência do devedor, os seus créditos, por força das hipotecas que os
garantem, prevaleceriam sobre os dos trabalhadores da falida, no caso das
hipotecas recaírem sobre o imóvel onde aqueles laboravam.
No caso concreto acresce, relativamente à hipoteca constituída em 2000, que
nesse momento eram conhecidas as divergências existentes na doutrina e na
jurisprudência relativamente à sua graduação em concurso com créditos laborais,
pelo que tais dúvidas sempre retirariam solidez a qualquer expectativa.
2.5. Do interesse público na protecção dos créditos salariais
Mas, mesmo que, por mera hipótese de raciocínio, se entendesse que a recorrente
era titular de uma expectativa atendível de que o seu crédito preferia sobre os
créditos dos trabalhadores da devedora, em caso de falência desta, tal
expectativa deveria ceder perante a sua ponderação com o interesse que motivou a
valorização da garantia legalmente atribuída aos créditos laborais.
O regime previsto no art. 377.º, n.º 1, al. b), do Código do Trabalho,
destinou-se nitidamente a melhorar a graduação concedida aos créditos laborais
no confronto com outros direitos reais de garantia.
Ora, os salários devem gozar expressamente de garantias especiais segundo a
Constituição pelo que o legislador ordinário está constitucionalmente
credenciado para limitar ou restringir os direitos patrimoniais dos demais
credores para assegurar aquele desiderato (artigo 59.º, n.º 3 da C.R.P.).
Aliás, com o objectivo de reforçar a ténue tutela do salário inicialmente
prevista no art. 737.º, n.º 1, al. d), do Código Civil de 1966, tem sido o que
tem acontecido sucessivamente com as intervenções legislativas consubstanciadas
na aprovação do regime constante do art. 12.º da Lei 17/86 e das suas ulteriores
alterações, entre as quais se conta o próprio regime previsto no art. 377.º do
Código do Trabalho.
Esta última intervenção do legislador procurou sobretudo evitar que, numa
situação de falência da entidade empregadora, os créditos laborais não
obtivessem pagamento pelos bens da falida, face a uma preferência dos créditos
garantidos por hipoteca, os quais, muito frequentemente, pelo seu valor
elevado, exaurem a massa falida, colocando a sobrevivência condigna dos
trabalhadores e seus agregados familiares em risco.
“A protecção especial de que beneficiam os créditos salariais advém – como
refere NUNES DE CARVALHO – da consideração de que a retribuição do trabalhador,
para além de representar a contrapartida do trabalho por este realizado,
constitui o suporte da sua existência e, bem assim, da subsistência dos que
integram a respectiva família. Fala-se, para designar esta vertente da
retribuição, como a dimensão social ou alimentar do salário” (em “Reflexos
laborais do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de
Falência”, na R.D.E.S., Ano XXXVII (X da 2ª Série), nº 1 – 2 – 3, pág. 67).
Ou como se disse em recente acórdão deste Tribunal “a retribuição da prestação
laboral, quer na sua causa, que na sua destinação típica, está intimamente
ligada à pessoa do trabalhador. Ela é a contrapartida da disponibilização da sua
energia laborativa, posta ao serviço da entidade patronal. Ela é também, por
outro lado, o único ou principal meio de subsistência do trabalhador, que se
encontra numa situação de dependência da retribuição auferida na execução do
contrato para satisfazer as suas necessidades vivenciais.
É esta dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os
créditos laborais, justificando a tutela constitucional reforçada de que gozam,
para além da conferida, em geral, às posições patrimoniais activas.” (acórdão
n.º 257/08, acessível no site www.tribunalconstitucional.pt).
Esta especial consideração pelos créditos laborais afasta qualquer juízo de
arbitrariedade sobre a aplicação retrospectiva da norma constante da alínea b),
do n.º 1, do artigo 377.º, do Código Trabalho, com a consequência dos créditos
laborais garantidos por privilégio imobiliário especial sobre o bem imóvel do
empregador onde o trabalhador preste a sua actividade prevalecerem sobre os
créditos garantidos por hipoteca voluntária constituída sobre esses bens em data
anterior à da entrada em vigor do referido diploma legal, desde que a data do
evento que determinou o concurso entre os dois tipos de créditos – a falência do
devedor-empregador – seja superveniente.
Justifica-se seguramente, face ao peso do interesse social almejado perante as
frágeis expectativas dos credores hipotecários, que se procure uma rápida
unidade e homogeneidade do ordenamento jurídico perante a nova solução
legislativa introduzida, evitando-se um protelamento indefinido da sua vigência
efectiva, com o consequente agravamento dos males a que essa intervenção
legislativa se propôs dar remédio.
E, no cumprimento deste pensamento revela-se perfeitamente razoável fixar o
momento definidor da lei aplicável na data da declaração de falência,
salvaguardando-se os concursos de credores já iniciados.
Nestes termos, à luz do princípio constitucional da protecção da confiança, não
se pode censurar a aplicação retrospectiva da interpretação normativa da alínea
b), do n.º 1, do artigo 377.º, do Código do Trabalho, levada a cabo pelo
tribunal a quo, pelo que deve ser julgado improcedente o recurso interposto.
*
Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente o recurso interposto para o
Tribunal Constitucional pela “A., S.A.”, relativamente ao acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça datado de 18 de Dezembro de 2007 proferido nestes autos.
*
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
ponderados os critérios enunciados no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
*
Lisboa, 19 de Junho de 2008
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos