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Processo n.º 1181/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
A – Relatório
1 – A Câmara Municipal de Águeda, com os demais sinais dos autos,
recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º,
n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual redacção
(LTC), pretendendo ver apreciada a constitucionalidade do artigo 13.º, n.º 4, do
Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, por
atribuir competência aos tribunais comuns para declararem a caducidade da
declaração de utilidade pública, à luz do disposto nos artigos 209.º, n.º 1,
211.º, n.º 1 e 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
2 – Com interesse para o recurso, cumpre relatar:
2.1 – A recorrente, inconformada com a sentença proferida no 2.º
Juízo do Tribunal Judicial de Águeda, pela qual se declarou a caducidade da
declaração de utilidade pública de um prédio, apelou para o Tribunal da Relação
de Coimbra, aí formulando as seguintes conclusões:
“(...)
1. O acto de declaração de utilidade pública é um acto administrativo e
como tal está sujeito a recurso contencioso de anulação da competência dos
Tribunais Administrativos e Fiscais.
2. Encontra-se pendente no pleno da Secção do Supremo Tribunal
Administrativo recurso de anulação do despacho ministerial que declarou a
utilidade pública, sendo em nosso entender essa a instância própria para ser
invocada a caducidade do mesmo.
3. De acordo com as regras de competência material – artigos 66º e 67º do
CPC e 209º e 212º da Constituição da República Portuguesa – é da competência dos
Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento de acções e recursos que tenham
por objecto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e
fiscais.
4. Pelo que a norma do artigo 13º, nº 4 do Código das Expropriações, no
qual se atribui competência para declarar a caducidade da declaração de
utilidade pública aos Tribunais comuns para conhecer da decisão arbitral é
inconstitucional porque viola o disposto nos artigos 209º e 212º da Constituição
da República Portuguesa.
5. O Tribunal Judicial de Águeda, por ser um Tribunal comum não é
competente em razão da matéria para apreciar e declarar a caducidade de um acto
administrativo.
6. Deve ser dado provimento ao recurso e ser proferido acórdão que julgue o
Tribunal recorrido incompetente em razão da matéria para declarar a caducidade
da declaração de utilidade pública”.
2.2 – Por acórdão de 6 de Novembro de 2007, o Tribunal da Relação de
Coimbra julgou o recurso improcedente, estribando-se, para tal, na fundamentação
que se passa a transcrever:
“(...)
4. Cumpre decidir
O objecto do recurso é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente,
estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias não incluídas – nas
conclusões – a não ser que, tal como acima se referiu, sejam de conhecimento
oficioso.
*
4.1 - Incompetência dos Tribunais comuns em razão da matéria para declarar a
caducidade de um acto administrativo.
A competência dos Tribunais é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles
se fracciona e reparte o poder jurisdicional que, tomado em bloco, pertence ao
conjunto dos Tribunais (…). Na definição da competência em razão da matéria, a
lei atende à matéria da causa, quer dizer ao seu objecto, encarado sob o ponto
de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada. Trata-se
pois duma competência ratione materiae[1].
A propósito da competência em razão da matéria prescreve o artigo 66º do Código
de Processo Civil: são da competência dos tribunais judiciais as causas que não
sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. Por outro lado, o artigo 67º do
mesmo diploma declara que as leis de organização judiciária determinam quais as
causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais
dotados de competência especializada.
Se atentarmos na redacção dada ao artigo 66º do C.P.C., constatamos que todas as
causas a que por lei não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, são os
tribunais comuns competentes para a julgar. Também o nº 1 do artigo 18º da Lei
nº 3/99, de 3 de Janeiro, declara que: são da competência dos Tribunais
Judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Assim determinando-se a competência dos Tribunais comuns por exclusão, importa
verificar se as leis de organização judiciária dos Tribunais Administrativos e
Fiscais lhes confere ou não competência para declarar a caducidade da declaração
de utilidade pública nos termos do disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 13º do
Código das Expropriações.
Na data de entrada em Tribunal do requerimento da entidade expropriante estava
em vigor a Lei nº 13/2002[2], de 19.2 que aprovou o ETAF e revogou o decreto-lei
nº 129/84, de 27.4 (cf. artigo 9º da Lei nº 13/2002).
A competência dos Tribunais Administrativos passou a estar fixada no artigo 4º
da Lei nº 13/2002, sendo que o nº 1 do seu artigo 5º preceitua que a competência
dos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da
propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito
que ocorram posteriormente.
Se corremos as diversas alíneas do artigo 4º do ETAF concluiremos, sem margem
para qualquer dúvida, pelo conhecimento dos Tribunais comuns para conhecer de
todas as questões associadas ao processo expropriativo, incluindo, naturalmente,
a declaração de caducidade da declaração de utilidade pública administrativa.
E dizemos «naturalmente» na justa medida em que os Tribunais comuns quando
chamados a tomar posição sobre a declaração de caducidade fazem-no unicamente
tendo por referência à extinção ou perda de um direito ou de uma acção pelo
decurso do tempo, não podendo, aí sim por falta de competência em razão da
matéria, tomar posição sobre a legalidade ou ilegalidade de um acto
materialmente administrativo – alínea c) do artigo 4º do ETAF – como é o caso da
declaração de utilidade pública. Repete-se que o pronunciamento dos Tribunais
comuns à luz da previsão do nº 4 do artigo 13º do Código das Expropriações é o
de apenas verificar se a entidade expropriante promoveu, ou não, a constituição
de arbitragem no prazo de 1 ano ou, não tendo o processo sido remetido ao
Tribunal competente se a promoveu no prazo de 18 meses – nº 3 do artigo 13º do
Código das Expropriações (No caso em apreço é aplicável o Código das
Expropriações aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro, posteriormente
alterado pelas Leis nº 13/2002 de 19 de Fevereiro e nº 4-A/2003 de 19 de
Fevereiro).
Tal como se ensina no acórdão do Tribunal da Relação do Porto[3] «a questão
encontra-se hoje legislativamente resolvida no sentido da competência dos
Tribunais comuns para declarar a caducidade da declaração de utilidade pública.
Na verdade, sendo pacífico que a lei substantiva a aplicar é a vigente à data da
publicação de utilidade pública da parcela a expropriar, pois, como o Prof.
Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, pág. 995, a define, a
expropriação é uma relação jurídica através da qual o Estado, atendendo à
conveniência de utilizar certos bens imóveis num determinado fim de interesse
público, extingue os direitos subjectivos constituídos sobre eles e determina a
sua transferência definitiva para o património da pessoa encarregada da
prossecução desse fim, cabendo a esta pagar ao titular dos direitos extintos uma
indemnização compensatória, como se defende, nomeadamente nos Acs. do STJ de
04/01/79, BMJ nº 283, pág. 172, de 20/11/80, BMJ nº 301, pág. 309, da RL de 10 e
24 de Março de 1994, CJ, Tomo II/94 págs. 83 e 98, e de 23/03/95, CJ, Tomo II,
pág. 89, da RP de 10/10/96, CJ, Tomo IV, pág. 221, e Prof. Oliveira Ascensão,
CJ, Tomo II/92, págs. 29 a 34, e Fernando Alves Correia, As Grandes Linhas da
Recente Reforma do Direito Urbanístico Português, pág. 70, o facto constitutivo
da relação jurídica da expropriação é a declaração da utilidade pública».
Seguindo os ensinamentos acima expressos, verificamos que o nº 4 do artigo 13º
confere ao «expropriado ou a qualquer interessado o direito de requerer ao
Tribunal competente para conhecer do recurso da decisão arbitral» a declaração
de caducidade. Ora, o nº 1 do artigo 51º do Código das Expropriações determina
que a entidade expropriante «remeta o processo de expropriação ao Tribunal da
Comarca da situação do bem expropriado, no prazo de 30 dias a contar do
recebimento da decisão arbitral». Por aqui se vê que a questão da competência
dos Tribunais comuns para conhecer da caducidade da declaração de utilidade
pública desde que tal questão tenha sido suscitada pelo expropriado ou por
qualquer interessado.
Aliás, se tomarmos em atenção as doutas conclusões da apelante, concluiremos que
não coloca em questão o decurso do prazo da caducidade, o que defende é que a
competência para o seu conhecimento está aferida aos Tribunais Administrativos e
Fiscais, pese o facto de não indicar a norma que suporte o seu entendimento.
Em conclusão diremos em face da análise conjugada dos artigos 66º e 67º do CPC,
18º, nº 1, da LOFTJ, artigo 4º do ETAF, artigos 13º, nºs 3 e 4, e 51º do Código
das Expropriações que os Tribunais comuns são os competentes em razão da matéria
para declararem a caducidade da declaração de utilidade pública.
*
4.2 - Inconstitucionalidade do artigo 13º, nº 4, do Código das Expropriações,
por atribuir competência aos Tribunais comuns para declararem a caducidade da
declaração de utilidade pública, porque viola o disposto nos artigos 209º e 212º
da Constituição da República Portuguesa.
Determina o nº 3 do artigo 212º da CRP:
Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento de acções e
recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das
relações jurídicas administrativas e fiscais.
Entende-se por relação jurídica de direito administrativo a que confere poderes
de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante
os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres aos particulares
perante a administração. Quanto aos actos de gestão pública são aqueles que a
administração actua no exercício de poderes de autoridade, disciplinados pelas
normas da administração pública, no exercício de uma função pública, sob o
domínio de normas de direito público. Por contraposição são actos de gestão
privada, aqueles que a administração actua despida do seu ius imperii e sujeita
às regras que vigorariam no caso de serem praticados por particulares[4]
Uma leitura atenta das alíneas a) a n) do artigo 4º do ETAF reconduz-nos à ideia
que o âmbito da jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais está,
essencialmente, relacionada com a tutela de direitos fundamentais; a
fiscalização de normas e actos emanados de pessoas colectivas de direito
público; actos administrativos praticados por órgãos do Estado ou das Regiões
Autónomas; fiscalização de actos praticados por entidades concessionadas,
contratos administrativos e responsabilidade civil extracontratual das pessoas
colectivas de direito público e titulares de órgãos. Assume papel relevante na
definição da competência material dos Tribunais Administrativos, o facto destes
tribunais só terem competência para dirimirem conflitos em que estejam em causa
relações jurídicas públicas e nunca questões de direito privado, não relevando
para este efeito quem praticou ou omitiu o acto, mas sim a natureza do acto em
causa.
Neste contexto, não encontramos fundamento, nem em bom rigor o apelante o
individualiza, que possibilite defender que o nº 4 do artigo 13º do Código das
Expropriações é inconstitucional por, em conjugação com o artigo 51º, conferir
competência aos Tribunais comuns para conhecer da caducidade da declaração de
utilidade pública. Aliás, diga-se que pouco ou nenhum sentido faria que o
legislador conferisse competência aos Tribunais comuns para um conjunto de actos
no âmbito das expropriações por utilidade pública – v.g. artigos 51º, 58º a 66º
– e cometesse aos Tribunais Administrativos e Fiscais o conhecimento da
caducidade a que se reporta o nº 4 do artigo 13º do CE.
Em conclusão diremos que a competência dos Tribunais Administrativos – artigos
209º e 212º do CRP – foi respeitada, na medida em que não cabe no âmbito da sua
jurisdição conhecer da caducidade da declaração de utilidade pública, na justa
medida em que não está em causa o acto administrativo em si, mas tão só o prazo
para constituição da arbitragem que se inicia na data da publicação da
declaração.
(...)”.
2.3 – Novamente inconformada, a Câmara Municipal de Águeda recorreu
para o Tribunal Constitucional, tendo motivado o recurso com base nos argumentos
que sintetizou dizendo:
“(...)
1 – Por sentença proferida em 05/12/2005, pelo Tribunal Judicial de
Águeda, foi declarada a caducidade da declaração da utilidade pública no âmbito
do processo de expropriação n.º 1947/05.3TBAGD, sentença essa confirmada pelo
Venerando Tribunal da Relação de Coimbra pelo Acórdão proferido em 06/11/2007.
2 – Com efeito, o acto de declaração de utilidade pública é um acto
administrativo e, como tal, está sujeito a recurso contencioso de anulação da
competência dos tribunais administrativos e fiscais.
3 – Encontra-se pendente no pleno da secção do Supremo Tribunal
Administrativo recurso de anulação de despacho ministerial que declarou a
utilidade pública, sendo em nosso entender essa a instância própria para ser
invocada a caducidade do mesmo.
4 – De facto, de acordo com as regras da competência material
constantes dos artigos 66.º e 67.º do Código de Processo Civil e ainda dos
artigos 209.º e 212.º da Constituição da República Portuguesa é da competência
dos tribunais administrativos e fiscais o julgamento de acções e recursos que
tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e
fiscais.
5 – Pelo que, a interpretação da norma constante do artigo 13.º, n.º
4 do Código das Expropriações, mediante a qual se atribua competência para
declarar a caducidade da declaração de utilidade pública aos tribunais comuns
para reconhecer da decisão arbitral é inconstitucional porque viola o disposto
nos artigos 209.º e 212.º da Constituição da República Portuguesa.
6 – Sendo que, a competência enquanto pressuposto processual e
enquanto medida de jurisdição de cada tribunal, afere-se pelos termos em que a
acção é proposta, ou seja pela relação jurídica subjacente.
7 – Acresce que não é aceitável que a apreciação da caducidade da
declaração de utilidade pública enquanto acto administrativo constitua uma mera
questão incidental e de mero controlo do processo expropriativo.
8 – Sendo a norma constante do artigo 13.º, n.º 4, do Código das
Expropriações, na qual se institui o regime da caducidade, uma norma de direito
administrativo, é nos tribunais administrativos e fiscais que deve ser
apreciada.
9 – O Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, por ser um tribunal
comum, não é competente em razão da matéria para apreciar e para declarar a
caducidade de um acto administrativo (...)”.
2.4 – A recorrida contra-alegou nos termos seguintes:
“(...)
1 – O processo que deu origem ao presente recurso iniciou-se por
impulso da Câmara Municipal de Águeda, a qual pediu ao Tribunal Judicial da
Comarca de Águeda a constituição da arbitragem e adjudicação da propriedade do
prédio objecto dos autos, por requerimento entrado a 01.07.2005.
2 – Ou seja, a Câmara Municipal de Águeda, nessa data, considerava
competentes os Tribunais comuns para constituírem a arbitragem e adjudicarem-lhe
a propriedade de um prédio e, por conseguinte, para considerarem verificado um
requisito essencial para tais decisões: a existência de declaração de utilidade
pública eficaz e em vigor.
3 – Não está em causa qualquer decisão proferida pelo Tribunal comum
no sentido de sindicar a legalidade do acto administrativo de declaração de
utilidade pública.
4 – Somente se verificou, ao abrigo da Lei, a regularidade formal e
processual do requerimento apresentado pela Câmara Municipal de Águeda, não
estando, a partir daquele, a Câmara Municipal a agir nas suas vestes de
autoridade pública, mas sim, como consagra a Constituição da República, inserida
numa relação jurídica paritária e de igualdade com o particular.
5 – Como tal, ao declarar a caducidade do acto o Tribunal comum não
está a dirimir qualquer litígio emergente de relação administrativa, apenas a
verificar a regularidade formal dos requisitos exigidos para o pedido efectuado,
efectuando a simples contagem do prazo para a recorrente efectuar tal pedido.
6 – Não se verifica, pois, com o devido respeito, qualquer
inconstitucionalidade na interpretação dada pelo Tribunal da Relação de Coimbra
no douto acórdão recorrido à norma ínsita no artigo 13.º, n.º 4, do Código das
Expropriações, não violando nenhuma das alegadas normas constitucionais (...)”.
B – Fundamentação
3 – A norma sindicanda, artigo 13.º, n.º 4, do Código das
Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, dispõe, sob a
epígrafe “Declaração de utilidade pública”, o seguinte:
“A declaração de caducidade pode ser requerida pelo expropriado ou por qualquer
outro interessado ao tribunal competente para conhecer do recurso da decisão
arbitral ou à entidade que declarou a utilidade pública e a decisão que for
proferida é notificada a todos os interessados”.
Como resulta da decisão recorrida, a competência para a declaração
de caducidade foi atribuída aos tribunais comuns por serem estes os legalmente
competentes para conhecerem do recurso da decisão arbitral, nos termos do artigo
51.º do Código das Expropriações.
No entanto, a recorrente, ao invés de suscitar a
inconstitucionalidade do bloco normativo resultante da conjugação das
disposições dos artigos 13.º, n.º 4, e 51.º, n.º 1, daquele código, acabou por
delimitar a questão de constitucionalidade exclusivamente em torno da norma do
n.º 4 do artigo 13.º, “por [nele se] atribuir competência para declarar a
caducidade da declaração de utilidade pública aos Tribunais comuns”,
precipitando nessa norma o resultado interpretativo decorrente da remissão
legal.
Dado que a recorrente suscitou a questão de constitucionalidade
tendo em conta o referido sentido interpretativo, impor-se-á o conhecimento do
recurso apesar do mesmo se encontrar interposto apenas da norma do artigo 13.º,
n.º 4, do Código das Expropriações, uma vez que o preceito contém suporte
textual bastante para imputação do questionado sentido normativo.
4 – Por sua vez, os parâmetros constitucionais invocados, têm a seguinte
redacção:
“Artigo 209.º
(Categorias de tribunais)
1. Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de
tribunais:
a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de
segunda instância;
b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e
fiscais;
c) O Tribunal de Contas.
2. Podem existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz.
3. A lei determina os casos e as formas em que os tribunais previstos nos
números anteriores se podem constituir, separada ou conjuntamente, em tribunais
de conflitos.
4. Sem prejuízo do disposto quanto aos tribunais militares, é proibida a
existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas
categorias de crimes”.
“Artigo 212º
(Tribunais administrativos e fiscais)
1. O Supremo Tribunal Administrativo é o órgão superior da hierarquia dos
tribunais administrativos e fiscais, sem prejuízo da competência própria do
Tribunal Constitucional.
2. O Presidente do Supremo Tribunal Administrativo é eleito de entre e pelos
respectivos juízes.
3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e
recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das
relações jurídicas administrativas e fiscais”.
5 – No presente recurso está em causa a constitucionalidade da norma
do artigo 13.º, n.º 4, do Código das Expropriações, interpretado no sentido de
atribuir competência aos tribunais comuns para declararem a caducidade da
declaração de utilidade pública.
Como se compreende, o thema decidendum impõe, por um lado, que se
delimite o alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa
definido pelos parâmetros constitucionais pertinentes e, por outro, que se
determine a natureza do litígio sub judicio.
Começando pelo primeiro ponto do problema, cumpre referir que se
encontra hoje estabilizado na jurisprudência constitucional que a injunção
constante do artigo 212.º, n.º 3, da Constituição, não consagra uma reserva
material absoluta de jurisdição dos tribunais administrativos.
Os fundamentos de uma tal proposição encontram-se bem elucidados no
recente Acórdão n.º 218/07 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
“(...)
há que atentar, agora, no alcance de que se revestiu, na revisão constitucional
de 1989, a par da consagração da jurisdição administrativa como uma jurisdição
obrigatória (e não meramente facultativa, como até então ocorrera), a definição
do âmbito material dessa jurisdição.
Como se referiu no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 14 de Março de
1996, processo n.º 296 (Apêndice ao Diário da República, de 28 de Novembro de
1997, pág. 22, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 455, pág. 222, e Acórdãos
Doutrinais, n.º 415, pág. 891):
“(...) face a essa norma (artigo 214.º, n.º 3, da Constituição,
na redacção da revisão de 1989), já tem sido entendido não ser lícito ao
legislador ordinário atribuir aos tribunais administrativos competência para
julgar outras questões ou atribuir o conhecimento de questões de natureza
administrativa a outros tribunais (cf. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra, 1993,
pág. 814; cf. também RUI CHANCERELLE DE MACHETE, «A Constituição, o Tribunal
Constitucional e o Processo Administrativo», em TRIBUNAL CONSTITUCIONAL,
Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, Coimbra, 1995, pág. 160).
No primeiro sentido, cf. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10 de
Maio de 1994, recurso n.º 32 422, que julgou inconstitucional, por violação do
citado artigo 214.º, n.º 3, da Lei Fundamental, o n.º 1 do artigo 36.º do
Regulamento do Serviço de Registo de Imprensa, aprovado pela Portaria n.º
640/76, de 26 de Outubro, que atribuía competência aos tribunais administrativos
para conhecerem dos recursos das decisões que recusassem os registos ou
determinassem o seu cancelamento, por se entender que tais decisões, visando
essencialmente a defesa de direitos privados, não criam, modificam ou extinguem
relações jurídicas administrativas. No segundo sentido, cf. o acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo, de 8 de Julho de 1993, recurso n.º 30 099, que julgou
inconstitucional, por violação do mesmo artigo 214.º, n.º 3, as normas dos
artigos 26.º da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, e 38.º, n.º 3, do Decreto-Lei
n.º 322/82, de 12 de Agosto, que atribuíam ao Tribunal da Relação de Lisboa
competência para conhecer dos recursos dos actos relativos à atribuição,
aquisição ou perda da nacionalidade portuguesa, por se haver entendido que estes
actos são materialmente administrativos.
Não parece, porém, ser a melhor leitura do aludido preceito
constitucional ver nele consagrada uma reserva material absoluta de jurisdição
atribuída aos tribunais administrativos, no duplo sentido de que, por um lado,
os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito
administrativo, e de que, por outro lado, só eles poderão julgar tais questões.
Como refere JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE (Direito
Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º Ano do Curso de 1995/96, Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, págs. 10 a 12):
«A melhor doutrina (...) parece ser, no entanto, a que não lê o
referido preceito constitucional como um imperativo estrito, contendo uma
proibição absoluta, mas (em nosso juízo, sem sequer forçar o texto), como uma
regra definidora de um modelo típico, susceptível de adaptações ou de desvios em
casos especiais, desde que não fique prejudicado o núcleo caracterizador do
modelo.
De facto, o preceito constitucional, introduzido na revisão de
1989, explica-se historicamente pela intenção de consagrar a ordem judicial
administrativa como uma jurisdição própria, ordinária, e não como uma jurisdição
especial ou excepcional em face dos tribunais judiciais, na linha da alteração
do artigo 211.º, que deixou de considerar os tribunais administrativos como
tribunais facultativos.
Assim, o preceito contém a mera definição da área própria (do
âmbito-regra) da ‘nova’ ordem judicial administrativa e fiscal no contexto da
organização dos tribunais, sem com isso pretender necessariamente estabelecer
uma reserva material absoluta.
Dessa definição do âmbito-regra (que corresponde à justiça
administrativa em sentido material) deriva para o legislador ordinário tão
somente a obrigação de respeitar o núcleo essencial da organização material das
jurisdições (...).
Mas só isso: não fica proibida a atribuição pontual a outros
tribunais do julgamento (por outros processos) de questões substancialmente
administrativas, sendo certo que essas ‘remissões’ orgânico-processuais (muitas
delas tradicionais) podem ter justificações diversas, devendo, por isso,
incluir-se na margem de escolha política e, portanto, de liberdade constitutiva
própria do poder legislativo.
Por outro lado, aquele preceito serve ainda para delimitar o
sentido da parte final do n.º 1 do artigo 213.º (continuado no artigo 66.º do
Código de Processo Civil), que atribui aos tribunais judiciais uma competência
jurisdicional residual, de modo que uma questão de natureza administrativa passa
a pertencer à ordem judicial administrativa quando não esteja expressamente
atribuída a nenhuma jurisdição.
(...)
Por fim, uma interpretação tão rigorosa implicaria a
inconstitucionalização – ou, pelo menos, suscitaria dúvidas e questões sobre a
constitucionalidade – de leis importantes e de práticas de longa tradição,
designadamente em matéria de polícia judiciária, contra-ordenações e de
expropriações por utilidade pública, uma revolução que só deveria operar-se se
tivesse sido claramente assumida pela revisão constitucional.
Em resumo, o preceito constitucional visa apenas consagrar os
tribunais administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa.»
No sentido da constitucionalidade da atribuição aos tribunais
judiciais de competência para conhecerem das impugnações das decisões
administrativas aplicativas de coimas, cf. JOAQUIM PEDRO FORMIGAL CARDOSO DA
COSTA, «Recurso para os Tribunais Judiciais da Aplicação de Coimas pelas
Autoridades Administrativas», em Ciência e Técnica Fiscal, n.º 366, págs. 39-69.
Também JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA («A Arbitragem Voluntária no
Domínio dos Contratos Administrativos», em Estudos em Memória do Professor
Doutor João de Castro Mendes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Lisboa, 1995, pág. 254, nota 34) sustenta que «O preceito constitucional citado
[artigo 214.º, n.º 3] deve ser lido (...) como indicação de uma regra geral que
o legislador ordinário poderá pontuar de excepções desde que com isso não
esvazie do seu âmago essencial a competência dos tribunais administrativos».
No mesmo sentido já decidiu este Tribunal dos Conflitos, no
acórdão de 12 de Maio de 1994, processo n.º 266, onde se escreveu:
«A Constituição da República Portuguesa, na versão resultante
da Lei de Revisão Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho, partindo da unidade do
sistema judiciário, instituiu várias ordens ou categorias de tribunais – artigo
211.º –, cada um deles consagrado como órgão de soberania – artigo 205.º, n.º 1
–, e a cada categoria ou ordem atribuindo, explicitamente ou implicitamente,
espaço de jurisdição devidamente delimitado, não em função de uma estrita e
absoluta especialização, que funciona apenas como critério indicativo, mas em
obediência a critérios organizacionais e de racionalidade na distribuição das
matérias respeitantes à administração da justiça, por intermédio da actividade
específica dos juízes, função do Estado pertencente, em globo, à função judicial
e ao poder soberano dos tribunais – artigos 213.º, 214.º, 215.º e 216.º –.
Todas as jurisdições, assim criadas, são, no plano
constitucional e abstractamente, de igual dignidade e competência
técnico-jurídica no respectivo âmbito material – artigo 205.º, n.ºs 1 e 2 –,
todos os tribunais e juízes de tribunais estaduais gozam das mesmas garantias de
imparcialidade e independência – artigos 206.º e 218.º.
Entre as jurisdições instituídas, com organização
constitucionalmente estabelecida, surge a jurisdição administrativa e fiscal,
com estatuto autónomo e com competência específica, nos termos do disposto no
artigo 214.º, n.º 3, para: ‘o julgamento das acções e recursos contenciosos que
tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais’.
Nenhuma dúvida, portanto, que à jurisdição administrativa cabe
o julgamento de questões, em termos decisórios finais, com força de caso julgado
material, prevalecente e imperativo, conforme ao disposto no artigo 208.º, n.º
2, da Constituição, que tenham por objecto ‘dirimir litígios emergentes de
relações administrativas ...’, sem quaisquer limitações ou restrições de ordem
constitucional.
(...)
Há que fixar-se, pois, como ponto de partida incontestável,
que, em princípio, cabe aos tribunais da jurisdição administrativa o julgamento
de quaisquer acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das
relações jurídicas administrativas.
Em princípio, dissemos, porque nada obsta, de acordo com os
indicados preceitos constitucionais, como acima advertimos, que o legislador
ordinário possa, ressalvadas as matérias de natureza criminal, no uso do seu
poder conformador concreto do interesse público, atribuir a uma jurisdição a
competência de julgar sobre ‘matérias’ que, em principio e em geral, caberiam a
outras jurisdições, conforme ao critério de especialização, meramente indicador
e operacional, na repartição das competências das várias ordens de tribunais que
instituiu.
Resulta isso da filosofia subjacente ao sistema judicial
unitário constitucionalmente instituído e do disposto no artigo 168.º, n.º 1,
alínea q), da Constituição, onde se consagra a reserva relativa da Assembleia da
República para legislar sobre ‘Organização e competência dos tribunais e do
Ministério Público ...’.
Sendo, pois, exacto que ao definir a competência da jurisdição
administrativa reportando-a às relações jurídicas administrativas, ou seja, ao
círculo de interesses que se jogam no âmbito do direito aplicável à
Administração Pública, abrangendo as relações jurídicas, que nasçam e se
desenvolvam sob a égide do direito administrativo, já não sob a égide do direito
público em geral, como se dizia antes, caberá, naturalmente, aos tribunais
administrativos a apreciação e julgamento de todos os litígios originados no
âmbito da administração pública, globalmente considerada, com excepção dos que o
legislador ordinário tenha expressamente atribuído, ou venha a atribuir, a outra
jurisdição.
É isto, aliás, que dizem os artigos 3.º, 4.º, n.º 1, alínea g),
e 51.º, n.º 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais,
ao estabelecer que ‘incumbe aos tribunais administrativos e fiscais, na
administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos
de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas
administrativas e fiscais’, salvo os que forem excluídos por lei e os recursos e
as acções pertencentes ao contencioso administrativo para que não seja
competente outro tribunal.
Por outras palavras, aos tribunais administrativos está
atribuída a jurisdição comum em matéria administrativa.
A eles pode-se aplicar, devidamente adaptado, o artigo 66.º do
Código de Processo Civil: as causas, em matéria de administração pública, que
não sejam atribuídas por lei a outra jurisdição são da competência dos tribunais
administrativos – cf. VITAL MOREIRA e J. J. GOMES CANOTILHO, na Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pág. 214.
E há bastantes exemplos da aplicação desta doutrina, a começar
pela cláusula geral da alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais, no direito positivo português recente.
Recordam-se os mais importantes: processos eleitorais relativos
à eleição do Presidente da República, da Assembleia da República, das
Assembleias Regionais e dos órgãos do poder local, de deputados ao Parlamento
Europeu, actos da Comissão Nacional de Eleições ou de outros órgãos da
administração eleitoral – artigos 225.º, n.º 2, alínea c), da Constituição, Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, e Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro –, atribuídas ao
Tribunal Constitucional; o julgamento, em via de recurso, dos actos
administrativos aplicativos de coimas, em processo contra-ordenacional, está
atribuído aos tribunais comuns – Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro; os
actos de aplicação de penas disciplinares aos juízes dos tribunais judiciais
estão atribuídos ao Supremo Tribunal de Justiça – Lei n.º 21/85, de 30 de Julho;
a fiscalização financeira jurisdicionalizada dos partidos políticos está
atribuída ao Tribunal Constitucional – Lei n.º 72/93, de 30 de Novembro, etc. »
Registe-se, por último, que o Tribunal Constitucional já
decidiu não ser inconstitucional a norma do artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei
n.º 48 953, de 5 de Abril de 1969, na redacção do Decreto-Lei n.º 693/70, de 31
de Dezembro, que atribui competência aos tribunais fiscais para a cobrança
coerciva de todas as dívidas de que seja credora a Caixa Geral de Depósitos e as
suas instituições anexas, mesmo que não esteja em causa uma relação
administrativa ou fiscal: cf. Acórdãos n.ºs 371/94 e 372/94, de 11 de Maio de
1994 (publicados no Diário da República, II Série, n.ºs 204 e 207, de 3 e 7 de
Setembro de 1994, págs. 9231 e 9346, respectivamente), n.º 417/94, de 18 de Maio
de 1994, n.ºs 508/94 e 509/94, de 14 de Julho de 1994 (publicados no Diário da
República, II Série, n.ºs 286 e 287, de 13 e 14 de Dezembro de 1994, págs. 12
517 e 12 612, respectivamente), n.º 579/94, de 26 de Outubro de 1994, e n.ºs
610/94, 629/94 e 630/94, de 22 de Novembro de 1994.”
Do exposto retira-se que, a par da possibilidade de o legislador ordinário
atribuir pontualmente a tribunais não administrativos o conhecimento de litígios
emergentes de relações jurídicas administrativas, desde que tais “desvios” se
mostrem providos de fundamento material razoável e desde que, pelo seu número ou
importância, não esvaziem do seu âmago essencial a competência dos tribunais
administrativos [entendimento este que tem sido adoptado pelo Tribunal
Constitucional, designadamente nos Acórdãos n.ºs 746/96, 965/96, 347/97, 253/98
e 458/99], resulta da revisão constitucional de 1989 que a jurisdição
administrativa passou a ser a jurisdição “comum” para o conhecimento de litígios
emergentes de relações jurídicas administrativas: assim, enquanto anteriormente,
nos casos em que não resultava expressamente da lei qual a jurisdição competente
para decidir determinada causa, se entendia que eram competentes os “tribunais
judiciais”, depois da revisão constitucional de 1989, não existindo norma legal
a definir concretamente qual a jurisdição competente, há que indagar qual a
natureza da relação jurídica de que emerge o litígio e, se se concluir que
possui natureza administrativa, então impõe-se o reconhecimento de que
competente é a jurisdição administrativa, como jurisdição “comum” para a
apreciação dos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
Reiterando a formulação de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE (A Justiça
Administrativa, 8.ª edição, Coimbra, 2006, p. 114), o artigo 212.º, n.º 3, da
CRP serve ainda para delimitar o sentido da parte final do n.º 1 do artigo 211.º
da CRP (“os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e
criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens
judiciais”), continuado no artigo 66.º do Código de Processo Civil (“São da
competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra
ordem jurisdicional”), que atribui aos tribunais judiciais uma competência
jurisdicional residual, de modo que uma questão de natureza administrativa passa
a pertencer à ordem judicial administrativa quando não esteja expressamente
atribuída a nenhuma jurisdição. É esta também a posição de SÉRVULO CORREIA
(Direito do Contencioso Administrativo, I vol., Lisboa, 2005, p. 586), que,
apesar de entender que a Constituição não impõe uma reserva material absoluta da
jurisdição administrativa, mas tão-só uma reserva tendencial (“visto que o
preceito constitucional deve ser lido como indicação de uma regra geral que o
legislador ordinário poderá pontuar de excepções, desde que com isso não esvazie
do seu âmago a competência dos tribunais administrativos e de que para tanto
exista fundamento material razoável, ou seja, outros valores ou interesses
constitucionalmente razoáveis”), sublinha que “a Constituição atribui ao juiz
administrativo o papel de juiz comum ou ordinário da justiça administrativa,
cabendo-lhe, sem necessidade de atribuição específica, a competência para julgar
os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”.
Tal jurisprudência surge na esteira de outros arestos deste Tribunal
nos quais, ponderando especificamente o regime das expropriações, se firmou
orientação paralela.
A título de exemplo, atente-se no que se deixou consignado no
Acórdão n.º 965/96 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
“(...)
O regime da expropriação de bens imóveis dos cidadãos por motivos de utilidade
pública, com a supressão pura e simples do direito de propriedade dos
particulares (se não for possível a aquisição amigável desses bens), consagrado
no Código das Expropriações, prevê uma primeira fase puramente administrativa,
regulada no Título II do referido Código. Tal fase compreende a declaração de
utilidade pública, prevista no artigo 11º, que implica um processo, regulado nos
artigos 12º, 13º (no caso de urgência na expropriação) e 14º, e culmina com a
posse administrativa, consagrada nos artigos 17º a 21º.
Nesta fase processual pode, na verdade, falar-se em relação
jurídico-administrativa, por intervir o Estado Administração, numa típica acção
de lesão da esfera jurídica dos particulares, com vista à prossecução de um
interesse público.
(...) Porém, quando esta fase termina e, esgotada a possibilidade de acordo com
o expropriado, se dá início à fase da expropriação litigiosa, parte da doutrina
entende haver uma alteração do enquadramento jurídico da situação.
Na verdade, a fase de expropriação litigiosa compreende, como momento
fundamental, a arbitragem (artigos 37º e 42º e ss. do Código das Expropriações).
Finda a arbitragem, o processo é remetido ao tribunal competente, para ser
adjudicada ao expropriante a propriedade e a posse e, simultaneamente, ordenada
a notificação da decisão arbitral, quer ao expropriante, quer aos diversos
interessados (nº 4 do artigo 50º do citado Código). Dessa arbitragem cabe
recurso, previsto e regulado nos artigos 51º e 56º e ss. do mesmo diploma, para
o tribunal da comarca da situação dos bens a expropriar ou da sua maior
extensão.
Segundo parte da doutrina, estar-se-á, então, na presença de uma relação
jurídica suscitada por um conflito entre os interesses dos sujeitos envolvidos
na fixação do valor global da indemnização. A composição desse conflito
(entendido como um verdadeiro conflito de interesses) deverá ser, nessa
perspectiva, da competência dos tribunais judiciais, na medida em que estará em
causa a determinação do montante da 'justa indemnização' pelo sacrifício do
direito de propriedade do particular e é vedada à jurisdição administrativa a
competência para dirimir litígios relativos a direitos reais de natureza privada
[artigo 4º, nº 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril].
Para quem assim pense, já não estará em causa, neste momento, em primeira linha,
o interesse colectivo prosseguido pelo Estado com a expropriação. O Estado não
surgirá, na determinação do montante indemnizatório, munido de poderes de
autoridade. Tratar-se-á agora da conversão do direito de propriedade, extinto em
consequência da expropriação, num valor pecuniário, que conferirá ao litígio
emergente um cariz eminentemente privado (cf. Alves Correia, As Garantias do
Particular na Expropriação por Utilidade Pública, 1982, pp. 154/155).
(...) Mesmo que assim se não entenda, segundo uma outra linha argumentativa
sempre se admitirá a competência dos tribunais comuns por ter sido esta a nossa
tradição jurídica, desde a entrada em vigor da primeira lei sobre o processo
expropriativo (a Lei de 23 de Julho de 1850), intervindo sempre o juiz comum
para decidir a matéria da indemnização (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional
nº 746/96, de 29 de Maio de 1996, inédito, e na doutrina, Alves Correia,
ob.cit., passim, a propósito dos aspectos históricos do conceito de
expropriação; e António Pais de Sousa e Manuel Fernandes da Silva, Da Justa
Indemnização nas Expropriações de Utilidade Pública, 1980, dando notícia, a p.
27 e ss., da legislação portuguesa e das características da sua evolução, e
considerando aquela lei de 1850 '... a trave-mestra e ponto obrigatório de
referência de todo o direito legislado posteriormente sobre expropriação').
(...) Em suma: a consideração de que a relação jurídica em análise não possuirá
natureza administrativa permitiria concluir, desde logo, que as normas em crise
não violariam o disposto no artigo 214º, nº 3, da Constituição.
Mas, também, se se perfilhar um outro entendimento, a inserção, na 2ª Revisão
Constitucional, da actual redacção do nº 3 do artigo 214º não exclui, em
absoluto, a possibilidade de manter nos tribunais judiciais a competência para
julgar questões de direito administrativo.
Uma parte da doutrina sustenta mesmo que o nº 3 do artigo 214º da Constituição
apenas visou a criação de 'tribunais comuns' em matéria administrativa e não a
criação de uma reserva material absoluta dos tribunais administrativos.
Assim, segundo Vieira de Andrade, da 'definição do âmbito-regra (que corresponde
à justiça administra em sentido material) deriva para o legislador ordinário tão
somente a obrigação de respeitar o núcleo essencial da organização material das
jurisdições - por exemplo, seria inconstitucional a opção do legislador
ordinário pelo sistema italiano, remetendo para os tribunais judiciais o
julgamento de todas as questões relativas a direitos subjectivos dos
particulares'. Porém, acrescenta o autor, 'não fica proibida a atribuição
pontual a outros tribunais do julgamento (por outros processos) de questões
substancialmente administrativas, sendo certo que essas 'remissões'
orgânico-processuais (muitas delas tradicionais) podem ter justificações
diversas, devendo por isso, incluir-se na margem de escolha política e,
portanto, de liberdade constitutiva própria do poder legislativo.' (cf. Direito
Administrativo e Fiscal, 1995, p. 11).
Por fim, mesmo que não se rejeite que o artigo 214º, nº 3, da Constituição
atribui aos tribunais administrativos uma reserva material absoluta de
jurisdição, ainda se terá de admitir que, em casos excepcionais, ditados por
razões constitucionalmente relevantes, é possível atribuir a tribunais judiciais
a competência para o julgamento de questões de direito administrativo (cf.,
neste sentido, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 607/95, D.R., II
Série, de 15 de Março de 1996, e 746/96, citado). Assim, da alegada natureza
administrativa do presente litígio, não resultaria, necessariamente, a
inconstitucionalidade das normas em crise”.
Explicitados os contornos conformadores do parâmetro constitucional aqui
pertinente – consagrado, na redacção em vigor, na norma do artigo 212.º, n.º 3,
da Constituição –, importará apurar se o controvertido regime legal se afigura
compatível com as exigências constitucionais.
Vejamos, então.
6 – Decorre das considerações supra tecidas que a aferição da natureza do
litígio sub judice não se assume como condição suficiente ou determinante de um
juízo de censura constitucional meramente suportado pela conclusão de que a
relação em causa assume natureza administrativa.
É certo, porém, que a determinação da natureza do litígio como suporte da
intervenção de uma ordem jurisdicional não será uma questão
jurídico-constitucionalmente inócua, posto que será a partir dessa
caracterização que se deverá considerar o problema da bondade constitucional da
norma em causa, tendo em conta, nesse domínio, a validade da justificação
endógena ao regime legal.
No caso sub judicio, está em causa a competência dos tribunais para declararem a
caducidade de uma “declaração de utilidade pública”. Esta declaração constitui,
como se sabe, o “acto constitutivo da expropriação” (Alves Correia, As garantias
do particular na expropriação por utilidade pública, Coimbra, 1982, p. 114),
corporizando-se, qua tale, como uma manifestação de autoridade dos poderes
públicos regida pelo direito administrativo, o que assume um significado
particular no que concerne à coloração jurídica do instituto da “caducidade” uma
vez que este, não se conformando como um conceito exclusivo de um determinado
ramo do direito, acaba por ser qualitativamente recortado, pela natureza dos
efeitos que projecta, em função do âmbito dogmático material no qual emerge por
via legislativa.
Por esse motivo, estando circunstancialmente em causa a caducidade de um acto
administrativo, a importar a extinção da posição jurídica por ele constituída,
apresenta-se como mais congruente a tese de reconduzir tal problemática ao
domínio do direito administrativo.
Contudo, não pode olvidar-se que a verificação da caducidade da declaração de
utilidade pública também acaba por assumir relevo no que concerne à
possibilidade da intervenção judicial dos tribunais comuns no âmbito do controlo
que estes exercem sobre o processo expropriativo, designadamente quanto aos
prazos a que aquele se encontra sujeito.
O que vale por dizer que o problema posto nos autos não pode ser compreendido de
forma isolada e, como tal, ser destacado dos termos em que aparece autorizada a
intervenção dos tribunais comuns. Como se passa a considerar.
A norma em crise surge na sequência da disposição constante do artigo 13.º, n.º
3, do Código das Expropriações, no qual se estabelece que “(...) a declaração de
utilidade pública caduca se não for promovida a constituição da arbitragem no
prazo de um ano ou se o processo de expropriação não for remetido ao tribunal
competente no prazo de 18 meses, em ambos os casos a contar da data da
publicação da declaração de utilidade pública”.
Como é consabido, a caducidade opera ex legis, determinando a extinção de um
direito pelo simples decurso de um prazo, no fim do qual fica “inalteravelmente
definida a situação jurídica das partes” (Manuel de Andrade, Teoria Geral da
Relação Jurídica, 3.ª reimpressão, Coimbra 1972, II, p. 464), sendo que a
verificação do pressuposto de facto gerador da caducidade faz, por si só,
despoletar o efeito extintivo estatuído por lei, razão pela qual se conclui que
a intervenção judicial nessa matéria assume uma veste meramente declarativa
desse efeito jurídico, não estando, pois, em causa a emissão de qualquer juízo
valorador da legalidade do acto administrativo que aquela declaração
consubstancia.
Como se disse na decisão recorrida, “o pronunciamento dos Tribunais comuns à luz
da previsão do nº 4 do artigo 13º do Código das Expropriações é o de apenas
verificar se a entidade expropriante promoveu, ou não, a constituição de
arbitragem no prazo de 1 ano ou, não tendo o processo sido remetido ao Tribunal
competente se a promoveu no prazo de 18 meses – nº 3 do artigo 13º do Código das
Expropriações”.
Não sendo questionável a intervenção dos tribunais comuns no desenrolar do
processo expropriativo e a sua competência para outorgar o acto formal de
transferência da propriedade dos bens expropriados, bem como para determinar o
quantum da justa indemnização, construída normativamente essencialmente com
referência a critérios de direito privado e de economia de mercado (cf. art.ºs
23.º e segs. do Código das Expropriações - Lei n.º 168/99, de 18-09),
compreender-se-á que a sua intervenção possa demandar uma actividade
direccionada a sindicar a regularidade formal dos actos do procedimento
expropriativo (Alves Correia, As garantias do particular na expropriação por
utilidade pública, Coimbra, 1982, pp. 114-5), principaliter quanto àqueles que
são pressupostos inarredáveis da decisão judicial.
Ora, é nesta dimensão que se aceita que os tribunais comuns possam, sem
preterição dos princípios constitucionais, declarar a caducidade da declaração
de utilidade pública, apurando se a constituição da arbitragem ou a remessa do
processo ao tribunal ocorreram nos prazos legalmente estabelecidos, dado que,
nesse caso, acaba por estar em causa a mera verificação de um requisito formal
que se tem por necessário para o prosseguimento dos autos nos tribunais comuns e
para a decisão que deles é esperada: a adjudicação ao expropriante do direito
expropriado e a atribuição da justa indemnização.
Ou seja, se esta intervenção dos tribunais comuns no âmbito de um processo de
expropriação surge como materialmente justificada, igual juízo poderá fazer-se
quando estão em causa questões, como a presente, que se assumem como
pressupostos dessa mesma intervenção, e isto porque a referida declaração de
caducidade acaba por consubstanciar ou traduzir-se na extinção do direito de
acção a exercer junto desses tribunais.
Por esse motivo, pode concluir-se que os referidos parâmetros constitucionais
não impedem que o legislador ordinário opte pela intervenção dos tribunais
comuns quanto à declaração de caducidade da declaração de utilidade pública.
C – Decisão
7 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar
improcedente o presente recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 25 (vinte) UCs.
Lisboa, 29 de Maio de 2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Sr. Prof. Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo
Civil, 1979, págs. 88, 89, 94 e 95.
[2] Com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de
Fevereiro.
[3] Relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Amaral Ferreira; datado de 1 de
Janeiro de 2006,proferido no âmbito do processo nº 0632578 e publicado no
endereço electrónico www.dgsi.pt.
[4] Ac. RL, datado de 9 de Março de 2004, processo nº 6086/2002-7, publicado in
www.dgsi.pt.