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Processo n.º 115/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Relatório
Por sentença do juiz do 1º Juízo Criminal da Comarca do Porto (a fls. 898 e
seguintes), decidiu-se condenar A. como autor material de um crime de abuso de
confiança em relação à Segurança Social, na pena de 210 dias de multa, à taxa
diária de 50 euros, e, bem assim, suspender a execução da pena de multa pelo
período de 3 anos, condicionada ao pagamento à Segurança Social do montante
ainda em dívida e respectivos acréscimos legais, num prazo de 2 anos.
O Ministério Público recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação do Porto
(a fls. 918), sustentando, na motivação respectiva (a fls. 919 e seguintes), que
ao determinar a suspensão da pena de multa o juiz a quo violara o artigo 11º do
Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, bem como o artigo 50º, n.º 1, do
Código Penal.
Posteriormente, e por requerimento de fls. 943 e seguintes, veio A. requerer,
junto do Tribunal da Relação do Porto, que se declarasse extinto o procedimento
criminal, atendendo a que a redacção do n.º 4 do artigo 105º do Regime Geral das
Infracções Tributárias (RGIT) havia sido alterada, tendo o tipo legal do crime
de abuso de confiança contra a Segurança Social passado a incluir, como novo
elemento, o não pagamento das contribuições comunicadas através das competentes
declarações, juros respectivos e valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias
após notificação para o efeito.
O Ministério Público emitiu o parecer de fls. 950 e seguintes, no qual sustentou
nomeadamente que a alteração legislativa a que o arguido fizera referência no
precedente requerimento introduziu mais uma condição objectiva de
procedibilidade ou punibilidade, por isso se devendo suspender o recurso que
havia interposto (fls. 918 e seguintes) e ordenar a notificação do arguido para
o efeito do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT,
aguardando-se, no decurso do prazo estipulado, que o arguido eventualmente
satisfizesse a nova condição de punibilidade ali cominada.
Foi, então, proferido pelo relator o despacho de fls. 954, ordenando a
notificação dos arguidos para, em 30 dias, procederem ao pagamento previsto no
artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT.
A. arguiu, a fls. 963 e seguinte, a nulidade ou irregularidade deste despacho,
por falta de fundamentação.
A arguição de nulidade foi julgada improcedente, por despacho de fls. 967.
Notificado para o efeito, A. respondeu ao mencionado parecer do Ministério
Público (o de fls. 950 e seguintes), para o que agora releva nos seguintes
termos (fls. 973 e seguintes):
“[…]
19.É, pois, inconstitucional, por violação do princípio constitucional da não
retroactividade da penalização (art. 29.°, n.° 1, da CRP), a norma, que se
extraia da interpretação conjugada da anterior e da actual versão dos n.ºs 1 e 4
do art. 105º e dos n.ºs 1 e 2 do art. 107.° do RGIT e do n.° 4 do artigo 2.° do
Código Penal, segundo a qual não foi descriminalizada (continuando a constituir
crime) a não entrega das contribuições devidas à Segurança Social por sujeito
passivo que cumpriu as suas obrigações declarativas e que (ainda) não foi
notificado nos termos do disposto na alínea b) do n.° 4 do referido artigo 105º
do RGIT.
20. Do mesmo modo, é inconstitucional, por violação do princípio constitucional
da não retroactividade da penalização (art. 29.°, n.° 1, da CRP), a norma, que
se extraia da interpretação da anterior e da actual versão dos n.ºs 1 e 4 do
art. 105.° do RGIT, conjugada com as normas do artigo 107.° do mesmo RGIT,
segundo a qual é criminalmente punível, constituindo crime, a não entrega das
contribuições devidas à Segurança Social por sujeito tributário passivo que
cumpriu a obrigação de declaração constante da alínea b) do mencionado n.° 4 mas
não foi notificado para proceder ao pagamento previsto nesta alínea.
[…]
27. […] mesmo que o novo pressuposto consagrado na alínea b) do n.° 4 do artigo
105.º do RGIT seja julgado uma condição objectiva de punibilidade, dos
princípios constitucionais do acusatório e da plenitude das garantias de defesa
dos arguidos decorre que o tribunal do julgamento ou de recurso não pode agir
nem como uma entidade que acuse nem como — o que seria ainda mais grave — uma
entidade que crie as condições para que venha a ocorrer (no plano da realidade
da vida), um facto sem o qual o Arguido não poderia ser criminalmente punido.
[…]
34.Face ao que antecede, tendo em conta os mais elementares princípios
enformadores do processo penal e, em bom rigor, do Estado de Direito, afigura-se
intolerável que seja o tribunal de recurso (ou o do julgamento) a providenciar
pela notificação a que alude a alínea b) do n.° 4 do artigo 105.° do RGIT, uma
vez que assim está claramente a agir como órgão acusador ou, mesmo,
pré-acusador.
35. O que também configuraria claramente uma violação dos princípios da
separação de poderes (art. 2.° da CRP), da independência dos tribunais {art.
203.° da CRP) e da titularidade do exercício da acção penal pelo Ministério
Público (art. 219°. n.° 1, da CRP e 48.° do CPP).
36.A única solução consentânea com os referidos princípios constitucionais é a
do arquivamento dos autos ou a da absolvição do arguidos, sem prejuízo de
eventual reabertura por impulso do Ministério Público ou do Instituto do
Segurança Social caso este venha a decidir realizar a referida notificação e o
Arguido não proceda aos pagamentos legalmente previstos.
37. É, assim, inconstitucional designadamente por violação dos princípios do
acusatório (art. 32°, n.° 5, do CRP), da plenitude das garantias de defesa dos
arguidos (art.32º n.° 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.° da CRP) e da
independência dos tribunais (art. 203º da CRP) a norma que se retire da
interpretação conjugada da anterior e da actual versão dos artigos 105°, n.° 1 e
4, e 107°, n.ºs 1 e 2, do RGIT, segundo a qual, nos casos em que o sujeito
tributário passivo acusado, pronunciado ou condenado (sem trânsito em julgado)
pela prática do crime da abuso de confiança contra a Segurança Social deu
cumprimento às suas obrigações declarativas e não foi notificado para pagar a
contribuição para a Segurança Social acrescida dos juros respectivos e do valor
da coima aplicável (disso não tendo sido sequer acusado ou pronunciado), compete
ao tribunal de recurso providenciar pela realização de tal notificação.
38 É, igualmente, inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais
do acusatório (art. 32°, n.° 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa
dos arguidos (art.32.°, n.º 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.° da
CRP) e da independência dos tribunais (art. 203.° da CRP) a norma que se retire
da interpretação conjugada da anterior e da actual versão do artigo 105°, n.° 1
e 4, e do artigo 101°, n.ºs 1 e 2, do RGIT e do artigo 2°, n.° 4, do Código
Penal, segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo acusado,
pronunciado ou condenado (sem trânsito em julgado) pela prática do crime da
abuso de confiança contra a Segurança Social deu cumprimento às suas obrigações
declarativas e não foi notificado para pagar as contribuições para a Segurança
Social, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável (disso não
tendo sido sequer acusado ou pronunciado), o processo não deve ser arquivado ou
o arguido absolvido.
[…].”
A fls. 986 e seguintes, veio ainda A. requerer, ao abrigo do disposto no artigo
700º, n.º 3, do Código de Processo Civil, que sobre a matéria do já referido
despacho de fls. 954 recaísse acórdão, suscitando as inconstitucionalidades que
já havia invocado na transcrita resposta ao parecer do Ministério Público.
Por despacho do relator (a fls. 1000) foi determinado que a decisão da
reclamação seria tomada aquando da decisão do recurso. Foi ainda determinada a
notificação deste despacho ao reclamante.
Por acórdão de fls. 1012 e seguintes, o Tribunal da Relação do Porto julgou
improcedente a reclamação do arguido e procedente o recurso do Ministério
Público, revogando, em consequência, a sentença, na parte em que decidiu no
sentido da suspensão da execução das penas de multa, que deixou de ser
subsistente.
Pode ler-se no texto do acórdão, para o que agora releva, o seguinte:
“[…]
2. Fundamentação
O objecto da reclamação prende-se com a notificação, determinada pelo relator, a
que alude o art. 105º, n.º 4, al. b), do Regime Jurídico das Infracções
Tributárias.
O objecto do recurso, por sua vez, é parametrizado pelas conclusões (resumo das
razões do pedido) formuladas quando termina a motivação (…)
Há que, então, definir qual a questão que se coloca para apreciação na
reclamação e que é a seguinte:
Deve a notificação a que alude o art. 105º, n.º 4, al. b), do Regime Jurídico
das Infracções Tributárias, ser determinada pelo relator?
E a questão que se perfila para conhecimento, no recurso, é a que segue:
A pena de suspensão da execução das penas de multa cominada aos arguidos, é
admissível, face ao disposto no art. 11.º, n.º 6, do Regime Jurídico das
Infracções Fiscais não Adianeiras?
(…)
Atentemos, em primeiro lugar, na reclamação.
Eis a respectiva questão: deve a notificação a que alude o art. 105º, n.º 4, al.
b), do Regime Jurídico das Infracções Tributárias, ser determinada pelo relator?
O art. 105º, n.º 4, al. b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, é do
seguinte teor (a da redacção dada pelo art. 95º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de
Dezembro):
«Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se a prestação
comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não
for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no
prazo de 30 dias após notificação para o efeito».
Anote-se, em primeiro lugar, que os mencionados factos anteriores são, em breves
termos (para o que presentemente releva), os que integram o tipo objectivo do
crime de abuso de confiança, isto é, os seguintes: não entrega (total ou
parcial) à administração tributária de prestação tributária deduzida nos termos
da lei e que estava legalmente obrigado à entrega (art. 105º, n.º 1, do Regime
Geral das Infracções Tributárias).
E, em segundo lugar, o art. 107º do Regime Jurídico das Infracções Tributárias,
que contempla, no seu n.º 1, o tipo objectivo do crime de abuso de confiança
contra a segurança social, consagra, no seu n.º 2, uma precisa remissão: para o
disposto no n.º 4 do art. 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Sendo aquela a norma que se destaca, procedamos à respectiva interpretação.
[…] no caso, a letra da lei, em termos de interpretação, não permite qualquer
hesitação, pois somente um sentido possibilita, qual seja o de que a concreta
punibilidade (daqueles factos previstos no art. 105º, n.º 1, do Regime Geral das
Infracções Tributárias) somente tem lugar quando o obrigado não efectuar o
pagamento da prestação referida na declaração que veio a ser apresentada à
administração fiscal, com específicos acréscimos, para o que dispõe do prazo de
30 dias, contados da notificação que, para o efeito, lhe é feita.
Dito isto, não podemos deixar de dizer, mais, em termos técnico-jurídicos, e em
perfeita coerência: que essa norma consagra uma circunstância com incidência na
punibilidade, enfim, um pressuposto de punibilidade, que corresponde, na acepção
tradicional, a uma causa de exclusão da punição, que, por isso, deve ser
ponderado nos termos do art. 2º, n.º 4, do C. Penal […]
Neste enquadramento, a notificação em destaque impunha-se, com naturalidade,
razoabilidade, ponderação, senso, coerência, inteligência, enfim, em rigorosa
obediência à lei; se assim não fosse, cair-se-ia na tese que o identificado
arguido defendeu e que acarretaria um inaceitável privilégio, pois beneficiaria
da norma que ora nos ocupa sem que, absolutamente, não cumprisse o ditame da
mesma, o ónus que sobre si impendia para obter o benefício da não punibilidade
(a final, da não punição), já que não efectuou o pagamento inerente e não queria
(mero voluntarismo) que fosse, sequer, notificado para o efeito.
Convenhamos que não percebemos o identificado arguido, a não ser que se julgue
titular de direitos, pura e simplesmente, mesmo daqueles que, legalmente,
dependiam do cumprimento de uma obrigação sua, mas sem que este tivesse de
ocorrer; ao cabo e ao resto, a norma favoreceu-o com uma condição de não
punibilidade que devia preencher, mas ousou arrogar-se (com arrogância) merecer
esse favorável tratamento sem que preenchesse essa condição.
Se fosse como o arguido quer, estaria consagrado um autêntico absurdo,
irracionalidade incomensurável, a afirmação de que o legislador padeceria de
ingenuidade primária quando criou aquela precisa norma, que levaria ao mais
inacreditável resultado: a ilibação de um arguido que, nas circunstâncias
legalmente valiosas, não cumpriu.
E o que se diria perante aqueles que, entendendo a valia dos direitos, tal como
a lei os configurava, cumpriram?
Mas o mais curioso é que a tese do arguido ia determinar, numa outra
perspectiva, o mais absurdo (e, por isso, jamais por nós subscrito) dos
resultados, tendo presente a dita norma: não sendo (não querendo ser, mais
rigorosamente) notificado, não se lhe podia aplicar o benefício contido nessa
mesma norma (para mais quando nem sequer ousou pagar o que era devido) …
Assim, essa indispensável notificação, para o efeito que importava, podia ser
determinada pelo tribunal de recurso (se a lei não fixava a quem cumpria ordenar
essa notificação, claramente que a mesma podia, não se perfilando qualquer
obstáculo - que não se perfila, pelo que se vai dizer adiante -, ser ordenada
pelo tribunal onde o processo se encontrava quando ela entrou em vigor; face ao
caso prevenido no art. 105º, n.º 6, do Regime Geral das Infracções Tributárias,
em que essa incumbência foi deferida à administração tributária, sempre, face ao
seu não cumprimento, podia o tribunal determinar a atinente notificação - v.
Isabel Marques da Silva, in Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos
IDEFF, n.º 5, 2ª edição, pág. 180, nota 533), pois se houvesse o cumprimento
mencionado naquela norma tirar-se-iam, imediatamente, as necessárias
consequências: a não punição, com o concreto recurso a ver o seu conhecimento
prejudicado; no caso de o referido cumprimento não ocorrer (que, segundo a
experiência nos ensina, é resultado esmagador …), pois não havia que sustentar a
não punição e conhecer o mesmo recurso.
Tudo, portanto, na mais rigorosa obediência ao princípio da economia processual.
E, de acordo com o que fomos dizendo, não vemos como abordar, sequer, o rol das
inconstitucionalidades que o referido arguido veio invocar, pois,
definitivamente, elas são, no presente caso, mera retórica, e, a ela, somente se
podia responder com retórica. O que, para lá de inútil, é ocioso.
Na verdade, onde se encontra a violação dos arts. 2º, 29º, n.º 1, 32º, n.ºs 1 e
5, 203º, 219º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, quando o
que está em causa é uma norma que condiciona a punição e que, assim sendo,
consagra um regime que, por ser mais favorável ao arguido (permite, cumprindo
uma determinada obrigação, a sua não punição), tinha, imperiosamente, de ser
cumprida, sob pena de violação, desde logo, do art. 29º, n.º 4, da Constituição
da República Portuguesa?
Uma nota final: como é evidente, não houve, no tempo devido, por parte daquele
arguido (nem, já agora, da arguida), o pagamento a que alude o art. 105º, n.º 4,
al. b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, o que faz com que a punição
sofrida por aquele (e por esta) não possa ser, nos termos desta norma, afastada.
Pelo exposto, impõe-se, com clareza, a conclusão: a reclamação improcede.
Apreciemos, agora, o recurso.
[…] impõe-se a conclusão: a suspensão da execução das penas não pode subsistir.
O recurso merece provimento.
3. Dispositivo
Improcede a reclamação.
Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a sentença na parte
que decidiu no sentido da suspensão da execução das penas de multa, que deixa de
ser subsistente.
[…].”
Notificado deste acórdão, A. dele veio interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos (fls. 1040 e seguintes):
“ […]
1. Com o presente recurso pretende o Recorrente que o Tribunal Constitucional
aprecie a inconstitucionalidade das seguintes normas:
a) A norma extraída da interpretação conjugada da anterior e da actual versão
dos n°s 1 e 4 do art. 105.° do RGIT, do artigo 107.° do RGIT e do n.° 4 do
artigo 2.° do Código Penal, segundo a qual não foi descriminalizada (continuando
a constituir crime) a não entrega das contribuições devidas à Segurança Social
por sujeito passivo que cumpriu as suas obrigações declarativas e que não fora
notificado nos termos do disposto na alínea b) do n.° 4 do referido artigo 105º
do RGIT quando tal questão foi suscitada em sede de recurso;
b) A norma que se retira da interpretação conjugada da anterior e da actual
versão do artigo 105°, n.° 1 e 4, do RGIT e do artigo 107.° do mesmo RGIT,
segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo condenado (sem
trânsito em julgado) pela prática do crime da abuso de confiança contra a
Segurança Social deu cumprimento às suas obrigações declarativas e não foi
notificado para pagar as contribuições devidas à Segurança Social, acrescida dos
juros respectivos e do valor da coima aplicável (disso não tendo sido sequer
acusado ou pronunciado), compete ao tribunal de recurso providenciar pela
realização de tal notificação;
c) A norma que se retira da interpretação conjugada da anterior e da actual
versão do artigo 105.°, n.° 1 e 4, do RGIT, do artigo 107.° do mesmo RGIT e do
artigo 2.°, n.° 4, do Código Penal, segundo a qual, nos casos em que o sujeito
tributário passivo condenado (sem trânsito em julgado) pela prática do crime da
abuso de confiança fiscal deu cumprimento às suas obrigações declarativas e não
foi notificado para pagar a prestação tributária, acrescida dos juros
respectivos e do valor da coima aplicável (disso não tendo sido sequer acusado
ou pronunciado), o processo não deve ser arquivado ou o arguido absolvido.
2. As normas referidas na alínea a) supra violam o princípio constitucional da
não retroactividade da penalização (art. 29°, n.° 1, da CRP).
3. As normas mencionadas nas alíneas b) e c) supra violam os princípios do
acusatório (art. 32.°, n.° 5, da CRP). da plenitude das garantias de defesa dos
arguidos (art. 32.°, n.° 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.° da CRP) e
da independência dos tribunais (art. 203.° da CRP).
4. A questão da inconstitucionalidade das referidas normas foi suscitada pelo
ora Recorrente no requerimento que apresentou, em 06.06.2007, ao abrigo do
disposto no artigo 700°, n.° 3, do C.P.C., ex vi artigo 4.° do C.P.P.
[…].”
O recurso de constitucionalidade foi admitido, por despacho de fls. 1043.
Por decisão sumária (fls. 1055 a 1070) proferida ao abrigo do disposto no
artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, não se tomou
conhecimento do recurso com os seguintes fundamentos:
“ […]
1. As questões de constitucionalidade que o recorrente agora submete à
apreciação do Tribunal Constitucional assemelham-se a outras também por si
colocadas a este Tribunal, e decididas no Acórdão n.º 377/2007, de 3 de Julho.
Na verdade, num dos recursos de que emergiu este aresto, pedira o recorrente,
entre o mais, que o Tribunal Constitucional apreciasse a inconstitucionalidade
das seguintes normas, pelos seguintes fundamentos:
a) A extraída da interpretação conjugada da anterior e da actual versão dos n.º
s 1 e 4 do art. 105.º do RGIT e do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal, segundo
a qual não foi descriminalizada (continuando a constituir crime) a não entrega
da prestação tributária por sujeito passivo que cumpriu as suas obrigações
declarativas e que (ainda) não foi notificado nos termos do disposto na alínea
b) do n.º 4 do referido artigo 105.º do RGIT;
b) A extraída da interpretação da anterior e da actual versão dos n.ºs 1 e 4 do
art. 105.º do RGIT, segundo a qual é criminalmente punível, constituindo crime,
a não entrega da prestação tributária por sujeito tributário passivo que cumpriu
a obrigação de declaração constante da alínea b) do mencionado n.º 4 mas não foi
notificado para proceder ao pagamento previsto nesta alínea;
c) A extraída da interpretação conjugada da anterior e da actual versão do
artigo 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT, segundo a qual, nos casos em que o sujeito
tributário passivo acusado, pronunciado ou condenado (sem trânsito em julgado)
pela prática do crime da abuso de confiança fiscal deu cumprimento às suas
obrigações declarativas e não foi notificado para pagar a prestação
tributária, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável
(disso não tendo sido sequer acusado ou pronunciado), compete ao tribunal do
julgamento providenciar pela realização de tal notificação;
d) A extraída da interpretação conjugada da anterior e da actual versão do
artigo 105.º, n.º 1 e 4, do RGIT e do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal,
segundo a qual, nos casos em que o sujeito tributário passivo acusado,
pronunciado ou condenado (sem trânsito em julgado) pela prática do crime da
abuso de confiança fiscal deu cumprimento às suas obrigações declarativas e não
foi notificado para pagar a prestação tributária, acrescida dos juros
respectivos e do valor da coima aplicável (disso não tendo sido sequer acusado
ou pronunciado), o processo não deve ser arquivado.
2. As normas referidas nas alíneas a) e b) supra violam o princípio
constitucional da não retroactividade da penalização (art. 29.º, n.º 1, da CRP).
3. As normas mencionadas nas alíneas c) e d) supra violam os princípios do
acusatório (art. 32.º, n.º 5, da CRP), da plenitude das garantias de defesa dos
arguidos (art. 32.º, n.º 1, da CRP), da separação de poderes (art. 2.º da CRP) e
da independência dos tribunais (art. 203.º da CRP).
Ora, no mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 377/2007, partindo-se
do pressuposto de que apenas são susceptíveis de recurso para o Tribunal
Constitucional as decisões que decidam em definitivo determinada questão, e
considerando que o acórdão então recorrido (acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa de 6 de Fevereiro de 2007) apenas decidira a remessa dos autos ao
tribunal da 1ª instância para aí se proceder à notificação a que alude o artigo
105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, na pessoa do recorrente, entendeu-se não ser de
conhecer do recurso de constitucionalidade, com os seguintes fundamentos:
[…]
Quanto às consequências a extrair do resultado dessa notificação, nada está
decidido e mesmo a referência a que a mencionada alínea b), do n.º 4, do artº
105º, do RGIT, integra uma condição objectiva de punibilidade, não vincula a
decisão que vier a ser proferida sobre a aplicação da referida alínea.
Assim, das quatro questões colocadas neste recurso apenas a mencionada na alínea
c) se poderia considerar decidida com cariz definitivo na decisão recorrida.
Contudo, se verificarmos como essa questão foi suscitada pelo recorrente no
requerimento que antecedeu o acórdão recorrido, facilmente constatamos que a
mesma tem como seu fundamento as questões suscitadas nas restantes alíneas do
requerimento de interposição de recurso, pelo que, por tais questões não terem
sido ainda objecto de decisão definitiva o impedimento ao seu conhecimento
estende-se também à enunciada na referida alínea c).
[…].
E acrescentou-se ainda o seguinte:
[…]
A questão colocada na alínea d) pressupõe uma decisão definitiva do Tribunal
recorrido sobre as consequências da alteração legislativa ocorrida no artº 105º,
do RGIT, a qual não foi tomada pelo acórdão recorrido. Este limitou-se a ordenar
ao tribunal da 1ª instância que procedesse à notificação prevista no artº 105º,
nº 4, b), do RGIT, sem extrair conclusões definitivas quanto às consequências
dos resultados dessa notificação, pelo que tal decisão não é susceptível de
recurso para o Tribunal Constitucional para apreciação dessa questão, uma vez
que não contém qualquer juízo definitivo sobre uma eventual decisão de
“arquivamento”.
A questão colocada na alínea c), apesar de se reportar à competência para
realizar a notificação referida na alínea b), do nº 4, do artº 105º, do RGIT,
conforme facilmente se constata pelos termos em que tal questão foi suscitada
pelo recorrente no requerimento que antecedeu o acórdão recorrido, tem como seu
pressuposto exactamente as questões enunciadas nas restantes alíneas do
requerimento de interposição de recurso, pelo que a impossibilidade de
conhecimento destas se estende necessariamente à enunciada na alínea c).
Na verdade, verifica-se que a competência para a realização dessa notificação é
questionada pelo recorrente face a um eventual juízo valorativo dos resultados
dessa notificação, o qual, como se referiu não foi efectuado pelo acórdão
recorrido, pelo que é prematuro, também quanto a esta questão o recurso
interposto pelo recorrente.
[…].
2. No acórdão que constitui objecto do presente recurso, não obstante as
diversas considerações tecidas sobre a questão de saber se o artigo 105º, n.º 4,
do RGIT consagra actualmente uma nova condição objectiva de punibilidade ou,
antes, um novo elemento objectivo do tipo do crime em causa (abuso de confiança
em relação à Segurança Social), apenas se decidiu a questão da competência do
relator para proceder à notificação prevista naquele preceito, concluindo-se em
sentido afirmativo.
Assim sendo, é transponível, para o presente caso – mais precisamente, para
efeitos da decisão a proferir quanto às questões suscitadas nas alíneas a) e c)
do requerimento de interposição do presente recurso - a fundamentação do acima
transcrito Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 377/2007: mais precisamente, a
de que quanto às consequências a extrair do resultado da notificação prevista no
artigo 105º, n.º 4, do RGIT, nada está decidido, e mesmo a referência a que a
mencionada alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT integra uma condição
objectiva de punibilidade não vincula a decisão que vier a ser proferida sobre a
aplicação da referida alínea, pelo que não é possível conhecer do objecto do
recurso.
A isto acresce o seguinte: o Tribunal Constitucional, como decorre das várias
alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, apenas possui
competência para sindicar a constitucionalidade (e, em certos casos, a
legalidade) de normas ou interpretações normativas aplicadas pelos tribunais,
não podendo fixar a melhor interpretação do direito ordinário, isto é, controlar
o próprio resultado da interpretação da lei a que chegam os tribunais, sob o
ponto de vista da sua obediência aos princípios gerais que norteiam essa
interpretação.
Ora, é isto o que o recorrente, no fundo, pretende, ao submeter ao Tribunal
Constitucional as questões constantes das alíneas a) e c) do requerimento de
interposição do recurso: que este Tribunal declare autoritariamente se a nova
redacção do artigo 105º, n.º 4, do RGIT consagra uma nova condição objectiva de
punibilidade ou um novo elemento objectivo do tipo e se, como consequência dessa
qualificação, o processo deve ser suspenso ou pura e simplesmente arquivado.
Estes pedidos extravasam a competência do Tribunal Constitucional, definida nas
várias alíneas do n.º 1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo
que deles não pode conhecer-se.
No que diz respeito à questão suscitada na alínea b) do requerimento de
interposição do presente recurso, é também transponível a fundamentação do
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 377/2007: na verdade, esta questão,
apesar de se reportar à competência para realizar a notificação referida na
alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, conforme facilmente se constata pelos
termos em que tal questão foi suscitada pelo recorrente na reclamação de que
emergiu o acórdão recorrido, tem como seu pressuposto exactamente as questões
enunciadas nas restantes alíneas do requerimento de interposição de recurso,
pelo que a impossibilidade de conhecimento destas se estende necessariamente à
enunciada na alínea b); na verdade, verifica-se que a competência para a
realização dessa notificação é questionada pelo recorrente face a um eventual
juízo valorativo dos resultados dessa notificação, o qual, como se referiu, não
foi efectuado pelo acórdão recorrido, pelo que é prematuro, também quanto a esta
questão, o recurso interposto pelo recorrente.
[…].”
Desta decisão sumária reclama o recorrente para a conferência, ao abrigo do
disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 1075 a
1077), aduzindo o seguinte:
“[…]
1. Como resulta da douta decisão sumária de que se reclama, o Exmo. Senhor
Conselheiro Relator não tomou conhecimento do recurso por entender que o mesmo
era prematuro.
2. Ora, o recurso em apreço foi interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal da
Relação do Porto a fls. 1012 e seguintes dos autos.
3. Esse Acórdão era (é) insusceptível de recurso ordinário, pelo que constitui,
salvo revogação por parte desse Venerando Tribunal Constitucional, a última
decisão proferida pelos Tribunais Comuns sobre o caso em apreço nos presentes
autos.
4. Tal Acórdão constituí, pois, também, salvo revogação por parte desse
Venerando Tribunal Constitucional, a última decisão dos Tribunais Comuns sobre
todas as questões suscitadas pelo Arguido, ora Recorrente, designadamente quanto
à descriminalização da conduta por que foi condenado e à competência do tribunal
de recurso para providenciar pela realização da notificação prevista na alínea
b) do n.° 4 do artigo 105.° do RGIT.
5. Tanto assim é que: o douto Acórdão recorrido já julgou preenchida a alínea b)
do n.° 4 do artigo 105.° do RGIT e revogou a douta sentença do Tribunal de 1.ª
instância na parte em que havia suspenso a execução da pena de multa aplicada ao
Arguido.
6. O pedido de conhecimento da inconstitucionalidade das normas mencionadas no
requerimento de interposição de recurso dirigido a esse Venerando Tribunal
Constitucional não é, assim, prematuro, devendo, consequentemente, ser apreciado
e objecto de decisão quanto ao seu mérito.
7. Acresce, ainda, que, salvo melhor entendimento, a inconstitucionalidade da
norma referida na alínea b) do ponto 1 do requerimento de interposição de
recurso não depende da resposta a dar à questão da inconstitucionalidade das
normas mencionadas nas alíneas a) e c) do mesmo ponto.
8. Com efeito, a inconstitucionalidade da norma referida na alínea b) assenta no
entendimento de que, por força dos princípios do acusatório, da plenitude das
garantias de defesa dos arguidos, da separação de poderes e da independência dos
tribunais, não deve ser o Tribunal de Recurso a ordenar a notificação do arguido
para que este pratique determinado acto (o pagamento do tributo em dívida, dos
juros respectivos e do valor da coima aplicável) e, em função da prática ou não
desse acto, absolver ou não o arguido.
9. Permitir que essa notificação se faça na fase de recurso (ou mesmo de
julgamento) afigura-se manifestamente violador daqueles princípios
constitucionais, independentemente de se saber se a conduta do arguido foi, ou
não, descriminalizada.
l0. Nestes termos, salvo melhor entendimento, em conferência, deverá ser
determinado o prosseguimento dos autos para conhecimento das questões suscitadas
no requerimento de interposição do recurso.
[…].”
O representante do Ministério Público junto deste tribunal respondeu (a fls.
1080), defendendo o seguinte:
“[…]
1ºA presente reclamação é obviamente improcedente.
2° Desde logo, não constitui questão de inconstitucionalidade normativa,
susceptível de caber nos poderes cognitivos deste Tribunal Constitucional, a
qualificação de certo requisito legal, condicionador do sancionamento penal do
arguido, em termos de, interpretando a lei penal, determinar se se trata de novo
elemento do tipo ou mera condição de punibilidade.
3ºSendo evidente que nada na Lei Fundamental obsta a que o legislador penal, na
sua livre discricionariedade, pudesse optar por esta última configuração.
4º Relativamente à outra questão de constitucionalidade suscitada — para além de
ela se configurar como manifestamente infundada, não se vendo qualquer razão
válida para obstar a que a notificação, prevista na norma impugnada, pudesse ser
praticada pelo Tribunal onde pendia o processo na data em que entrou em vigor a
nova lei penal — procedem inteiramente os obstáculos ao conhecimento do recurso,
nos termos preconizados na douta decisão reclamada.
[…].”
2. Fundamentação
Numa primeira análise, poderia entender-se – tal como se ponderou na decisão
sumária agora reclamada – que o recurso interposto pelo recorrente é prematuro,
por no acórdão que constitui objecto do presente recurso apenas se ter decidido
a questão da competência do relator, para proceder à notificação prevista no
artigo 105º, n.º 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).
Na verdade, na decisão recorrida enuncia-se expressamente como única questão a
resolver, no âmbito da “reclamação” apresentada pelo arguido, a da competência
do relator para determinar a notificação a que alude o artigo 105.º, n.º 4,
alínea b) do RGIT.
Contudo, percorrendo o texto da decisão recorrida, constata-se que esta para
além de decidir que aquela notificação “podia ser determinada pelo tribunal de
recurso” estatui, em nota final, que “não houve, no tempo devido, por parte
daquele arguido (nem, já agora, da arguida), o pagamento a que alude o art.
105º, n.º 4, al. b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, o que faz com
que a punição sofrida por aquele (e por esta) não possa ser, nos termos desta
norma, afastada.”
Ou seja, decide-se não só que o relator é competente para determinar a
notificação a que alude a alínea d) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das
Infracções Tributárias, mas também que a punição sofrida pelo arguido, ora
reclamante, não pode ser afastada, por este não ter efectuado, no tempo devido,
o pagamento a que alude essa mesma norma.
O acórdão recorrido decide assim, em definitivo, as consequências a extrair do
resultado daquela notificação.
A reclamação é, pois, de acolher.
Verifica-se, no entanto, que na decisão sumária reclamada foi invocado um outro
fundamento para o não conhecimento das questões constantes das alíneas a) e c)
do requerimento de interposição do recurso, o qual o reclamante não atacou na
reclamação em apreço.
Subsiste, pois, um obstáculo ao conhecimento destes pedidos – estes extravasam a
competência do Tribunal Constitucional, definida nas várias alíneas do n.º 1, do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.
3. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Indeferir a reclamação quanto ao conhecimento das questões suscitadas nas
alíneas a) e c) do requerimento de interposição de recurso;
b) Deferir a reclamação quanto ao conhecimento da questão suscitada na alínea b)
do requerimento de interposição de recurso e ordenar que o processo prossiga
mediante notificação das partes para alegações.
Sem custas.
Lisboa, 13 de Maio de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão