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Processo nº 256/08
Plenário
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 - O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da
Madeira, invocando o disposto no art.º 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição
da República Portuguesa, requer a apreciação e declaração, com força obrigatória
geral, da inconstitucionalidade e da ilegalidade dos artigos 117.º e 118.º da
Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2008).
2 – O teor das normas em questão é o que se segue:
«Artigo 117.º
Necessidades de financiamento das regiões autónomas
1 - As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira não podem acordar
contratualmente novos empréstimos, incluindo todas as formas de dívida, que
impliquem um aumento do seu endividamento líquido.
2 - Podem excepcionar-se do disposto no número anterior, nos termos e condições
a definir por despacho do ministro responsável pela área das finanças,
empréstimos e amortizações destinados ao financiamento de projectos com
comparticipação de fundos comunitários.
3 - O montante de endividamento líquido regional, compatível com o conceito de
necessidade de financiamento do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais
(SEC95), é equivalente à diferença entre a soma dos passivos financeiros,
qualquer que seja a sua forma, incluindo nomeadamente os empréstimos contraídos,
os contratos de locação financeira e as dívidas a fornecedores, e a soma dos
activos financeiros, nomeadamente o saldo de caixa, os depósitos em instituições
financeiras e as aplicações de tesouraria.
Artigo 118.º
Transferências orçamentais para as regiões autónomas
1 - Nos termos do artigo 37.º da Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro,
são transferidas as seguintes verbas:
a) …
b) € 185 863 280 para a Região Autónoma da Madeira.
2 - Nos termos do artigo 38.º da Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro,
são transferidas as seguintes verbas:
a) …
b) € 24 394 555 para a Região Autónoma da Madeira.».
3 – Fundamentando o seu pedido, o Requerente alegou, em síntese, o
seguinte:
- Os artigos 117.º e 118.º da Lei do Orçamento de Estado para 2008
padecem de inconstitucionalidade e de ilegalidade.
Foi violado o direito de audição dos órgãos de governo das regiões
previsto na Constituição e nos Estatutos e, no que especificamente respeita ao
artigo 118.º da Lei do Orçamento, foram ainda violados o artigo 118.º, n.º 2, do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e o artigo 88.º,
n.º 2, da Lei de Enquadramento do Orçamento de Estado.
- O Requerente tem legitimidade para pedir a declaração de
inconstitucionalidade e de ilegalidade das referidas normas orçamentais, uma vez
que está em causa a violação dos direitos das regiões autónomas e, ainda, do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
− A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não foi
devidamente ouvida no processo de aprovação da Lei do orçamento e houve, deste
modo, ofensa do artigo 229.º, n.º 2, da Constituição, dos artigos 89.º e
seguintes, do Estatuto da Região Autónoma da Madeira e do artigo 4.º da Lei n.º
40/96, de 31 de Agosto, que regula a audição dos órgãos de governo das Regiões
Autónomas.
A votação final global da Lei do Orçamento ficou concluída a 23 de
Novembro de 2007. Ora a respectiva Proposta só foi enviada para parecer da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em 16 de Novembro de 2007,
tendo a sua efectiva recepção apenas ocorrido no dia 19 de Novembro de 2007.
Antes que tivesse oportunidade de se pronunciar foi drasticamente surpreendida
com a votação final nos dias 22 e 23 de Novembro.
A Assembleia da República 'no decurso do prazo concedido para a
emissão de parecer por parte da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da
Madeira e sem esperar por ele, inopinadamente efectuou a votação na
especialidade e encerrou a sua participação no procedimento legislativo pela
votação final global da futura Lei do Orçamento de Estado para 2008'.
Deste modo, foi atribuído, à Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira, um prazo de apenas 3 dias para se pronunciar, em manifesta
violação do prazo de 15 dias, conferido pela Lei n.º 40/96, de 31 de Agosto, que
lhe permitiria exercer devidamente o seu direito de audição.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional é a este respeita clara.
Os Acórdãos nºs 670/99 e 581/2007 postulam uma 'consideração substancialista do
direito de audição'. E o Acórdão n.º 130/2006 confirma que a obrigatoriedade do
direito de audição não pode ser convertida numa 'formalidade sem sentido útil'.
− O artigo 118.º da Lei do Orçamento de Estado viola a cláusula do
não retrocesso financeiro, consagrada no artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM, na
redacção aprovada pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto.
De facto, o valor transferido em 2008, de € 185 863 280 é inferior
ao que foi transferido em 2006, € 204 888 536. É verdade que tal valor é
superior ao valor de € 170 895 000 transferido em 2007, mas este valor era
'também ele inconstitucional'.
Nem sequer se diga que o único padrão aferidor das relações entre o
Estado e as Regiões Autónomas é o constante da Lei das Finanças das Regiões
Autónomas, Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro, que se aplicou
retroactivamente – e também inconstitucionalmente – a partir de 1 de Janeiro de
2007'.
É a própria Lei das Finanças das Regiões Autónomas que expressamente
se subordina aos Estatutos Político-Administrativos.
- O mesmo artigo 118.º da Lei do Orçamento para 2008 viola, ainda, o
artigo 88.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento do Orçamento de Estado.
Na verdade, o Programa de Estabilidade e Crescimento não permite
legitimar a redução do valor das transferências orçamentais para as regiões.
Basta ver que, por um lado, as transferências para os Açores
aumentaram. De facto, 'enquanto que os Açores receberam, em 2008, € 286 060 663
e em 2007, € 223 436 000 contra os € 210 066 776 de 2006, já a Madeira recebeu
em 2008, € 185 863 280, e em 2007, € 170 895 000, contra os € 204 888 536 de
2006'.
Por outro lado, é manifesto que o próprio Estado não mostra
capacidade para cumprir os parâmetros do Programa de Estabilidade e Crescimento,
'bastando dizer, para o justificar, que para 2007 e em relação a 2006, as
despesas de funcionamento do Estado aumentaram 9,4 %, as despesas sobem 3,1%, o
serviço da dívida aumenta 16% e os encargos financeiros da dívida pública
aumentaram 8,1%'.
Assim, a redução das transferências orçamentais para a Região
Autónoma da Madeira não se pode justificar com base em tal Programa uma vez que
o próprio Estado não reduziu o seu passivo orçamental de modo a cumpri-lo.
- Conclui, pois, o Requerente, pedindo ao Tribunal que declare, com
força obrigatória geral, a inconstitucionalidade e a ilegalidade dos artigos
117.º e 118.º da Lei do Orçamento de Estado para 2008 (Lei n.º 67-A/2007, de 31
de Dezembro).
4 – Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e
55.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), o
Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos,
enviando, simultaneamente, cópia da documentação relativa aos trabalhos
preparatórios da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro − Orçamento de Estado para
2008 −, acompanhada de um índice detalhado.
5 – Discutido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal
Constitucional, nos termos do art. 63.º da LTC, e fixada a orientação do
Tribunal, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora dar corpo à
decisão.
B – Fundamentação
6 – A questão da legitimidade do requerente
Nos termos do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da
Constituição da República Portuguesa (CRP), os Presidentes das Assembleias
Legislativas das Regiões Autónomas podem requerer ao Tribunal Constitucional a
declaração de inconstitucionalidade de normas, com força obrigatória geral,
quando 'o pedido de declaração de inconstitucionalidade se fundar em violação
dos direitos das regiões autónomas ou o pedido de declaração de ilegalidade se
fundar em violação do respectivo estatuto”.
Este pressuposto está realizado, no que respeita ao pedido de
declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade, agora formulado, com
fundamento em violação do dever de audição das Regiões Autónomas, previsto na
Constituição e no Estatuto Político-Administrativo.
O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira
é, também, parte legítima para pedir a declaração da ilegalidade do artigo 118.º
da Lei do Orçamento para 2008, alegando violação do Estatuto
Político-Administrativo da Madeira.
Todavia, não tem ele legitimidade processual para suscitar questões
de ilegalidade com base em outras leis que não sejam o Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e, deste modo, não pode
suscitar a questão de ilegalidade à luz do artigo 88.º, n.º 2, da Lei de
Enquadramento Orçamental.
Foi o que explicou este Tribunal, no Acórdão n.º 581/07, publicado
no Diário da República II Série, de 8 de Janeiro de 2008, e disponível, também,
em www.tribunalconstitucional.pt (onde se impugnava a norma do artigo 126.º da
Lei do Orçamento de Estado para 2007, com base precisamente nos mesmos preceitos
que agora se invocam, ou seja, o artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM e o artigo 88.º,
n.º 2, da Lei de Enquadramento do Orçamento):
'Quanto à regra do não retrocesso financeiro, é patente que ela se
inscreve no EPARAM estando contida no seu artigo 118.º. De um ponto de vista
formal, não pode, pois, negar-se que esta norma é susceptível da qualificação
habilitante do requerimento de declaração de ilegalidade apresentado.
Já o mesmo se não diga do disposto no artigo 88.º, n.º 2, da Lei de
enquadramento orçamental. Ainda que este diploma seja uma lei de valor
reforçado, com valência paramétrica da legalidade das normas constantes das Leis
anuais do Orçamento (artigo 106.º, n.º 1, da CRP), a verdade é que ele não cai
dentro da esfera de legitimidade restringida, quanto a iniciativas de
fiscalização abstracta da legalidade, consagrada na alínea g) do n.º 2 do artigo
281.º da CRP.'
Quando o Requerente pede a declaração de ilegalidade do artigo 118.º
da Lei do Orçamento para 2008 com base no artigo 88.º, n.º 2, da Lei de
Enquadramento do Orçamento, não formula nem um pedido de 'declaração de
inconstitucionalidade fundado em violação dos direitos das regiões', nem um
pedido de 'declaração de ilegalidade fundado no respectivo estatuto'.
Ora, só a violação da Constituição da República Portuguesa e do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira conferem ao
Presidente da respectiva Assembleia Legislativa legitimidade para impugnar a
validade de normas legais, requerendo ao Tribunal Constitucional a declaração da
sua inconstitucionalidade ou ilegalidade.
Ao pedir a declaração de ilegalidade do artigo 118.º da Lei do
Orçamento com base no artigo 88.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento do Orçamento,
o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não se está
a basear nem na Constituição da República Portuguesa nem Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
Não tem, portanto, legitimidade processual para o fazer.
7 – Da alegada violação do direito de audição das regiões autónomas
É indiscutível que existe uma obrigatoriedade de audição das regiões
sempre que a Assembleia da República aprove leis que lhes digam respeito.
De facto o artigo 229.º, n.º 2, da Constituição estabelece
peremptoriamente que 'os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente às
questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de
governo regional'. Essa obrigatoriedade de audição surge também reiterada no
artigo 89.º, n.º 1, do EPARAM, onde se prescreve que 'a Assembleia e o Governo
da República ouvem os órgãos de governo próprio da Região Autónoma sempre que
exerçam poder legislativo ou regulamentar em matérias da respectiva competência
que à Região digam respeito'.
Este dever de audição dos órgãos próprios das regiões, no que
respeita às matérias que lhes digam respeito deve ser cumprido de modo a
garantir que as regiões autónomas são efectivamente ouvidas num momento em que
as sugestões que porventura façam possam ainda ser tidas em conta na discussão
das propostas ou projectos de lei.
A este respeito é particularmente esclarecedor o Acórdão n.º
130/2006 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se pode ler:
'Entende o Tribunal que – sob pena de se esvaziar o direito de
audição, convertendo a obrigatoriedade de audição numa formalidade sem sentido
útil – a oportunidade da pronúncia do titular do direito deve situar-se numa
fase do procedimento legislativo adequada à ponderação, pelo órgão legiferante,
do parecer que aquele venha a emitir, com a possibilidade da sua directa
incidência nas opções da legislação projectada.
O cabal exercício do direito de audição pressupõe, assim, que, além de um prazo
razoável para o efeito, ele se exerça (ou possa exercer) num momento tal que a
sua finalidade (participação e influência na decisão legislativa) se possa
atingir, tendo sempre em conta o objecto possível da pronúncia'.
O Requerente entende que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma
da Madeira não foi ouvida em tempo útil.
Vejamos se realmente assim foi.
A Proposta de Lei n.º 162/X, que deu início ao processo de aprovação
do Orçamento de Estado para 2008, entrou na Assembleia da República no dia 12 de
Outubro de 2007.
Dessa Proposta de lei constava um artigo 114.º, que se referia aos
limites do endividamento líquido das regiões e um artigo 115.º, que era relativo
às transferências orçamentais para as regiões autónomas.
Estes artigos da proposta de Lei correspondem, respectivamente, aos
artigos 117.º e 118.º da Lei do Orçamento de Estado, que agora se impugnam por
falta de audição.
O citado artigo 115.º manteve-se inalterado no decurso de todo o
processo legislativo na Assembleia da República; o artigo 116.º, pelo contrário,
foi objecto de uma rectificação referente aos valores em euros das
transferências para as regiões.
Em concreto procedeu-se a um aumento de tais valores face ao que
constava da Proposta que entrou na Assembleia da República.
Essa rectificação foi feita através do Ofício n.º 1789, de 12 de
Outubro, que deu entrada no Gabinete do Ministro dos Assuntos Parlamentares no
dia 17 de Outubro de 2007. Este Ministro encaminhou, no mesmo dia, tal
rectificação (através do Ofício n.º 8299 MAP de 17 de Outubro), ao Presidente da
Assembleia da República. E este, por sua vez, enviou-a, no dia seguinte de manhã
(18 de Outubro), por via electrónica, às 11 horas e 53 minutos, com a menção de
'urgente', ao Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da
Madeira.
Em resposta à Proposta de Lei n.º 162/X (com a rectificação
introduzida pelo Ofício n.º 1789, de 12 de Outubro), foi enviado à Assembleia da
República, no dia 2 de Novembro de 2007, também por via electrónica, o Parecer
da 2ª Comissão Especializada Permanente (Economia, Finanças e Turismo) da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.
Era o seguinte o teor de tal Parecer, na parte que agora importa:
'10ª Proposta de alteração do artigo 114.º
Propõe-se a seguinte alteração ao artigo 114.º para permitir o aumento do
endividamento líquido da Região Autónoma da Madeira em 50 milhões:
Artigo 114.º
Necessidades de financiamento das regiões autónomas
1 - As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira podem acordar contratualmente
novos empréstimos, incluindo todas as formas de dívida, que impliquem um aumento
do seu endividamento líquido superior a 50 milhões de euros para cada região
autónoma.
2. …
3. …
11ª Aditamento de um artigo 115.º-A
Propõe-se o aditamento de um artigo referente ao IVA, de modo a garantir que as
Regiões Autónomas receberão em 2008 o mesmo valor de receita de IVA que
receberiam pela aplicação do método da capitação, em cumprimento do disposto no
artigo 21.º, n.º 3, da Lei n.º 13/98 de 24 de Fevereiro, conjugado com a alínea
a) do n.º 1 do artigo 59.º da Lei Orgânica n.º 1/2007 de 19 de Fevereiro:
Artigo 115.º-A
Transferência a Título de compensação do IVA
Fica o Governo autorizado, através do Ministro responsável pela área das
finanças, a transferir para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, as
verbas necessárias para cumprir o disposto no artigo 21.º, n.º 3, da Lei n.º
13/98, de 24 de Fevereiro, tendo como referência o valor que resultaria para
cada região da aplicação em 2007 e em 2008 do método da capitação.'
Como se vê, o Parecer da Assembleia Legislativa da Região Autónoma
da Madeira propõe uma alteração ao artigo 114.º da Proposta de Lei n.º 162/X e
sugere, ainda, que seja acrescentado um artigo 115.º-A (que, obviamente se
seguiria ao artigo 115.º).
O debate na generalidade iniciou-se no dia 6 de Novembro (Diário da
Assembleia da República, I série, de 7 de Novembro).
No dia 8 de Novembro, terminou o debate na generalidade.
Foi enviada à Mesa uma declaração de voto dos deputados Jacinto
Serrão, Maximiano Martins e Júlia Caré, do PS, que fazia referência à questão
das transferências orçamentais para as regiões autónomas e à correcção feita nos
valores, no sentido do seu aumento [pelo acima citado Ofício n.º 1789, de 12 de
Outubro], 'face a uma aparente divergência dos critérios da Lei de Finanças das
Regiões Autónomas' (Diário da Assembleia da República, I série, de 9 de
Novembro, p. 39-40).
Nesse mesmo dia, a Proposta de Lei n.º 162/X foi aprovada na
generalidade, com os votos a favor do PS e os votos contra dos restantes
partidos. Baixou à Comissão para aprovação na especialidade.
No dia 23 de Novembro, os artigos 114.º e 115.º da Proposta de Lei
n.º 162/X foram aprovados na especialidade (Diário da Assembleia da República, I
série, de 24 de Novembro, p. 56) e, nesse mesmo dia, se procedeu à votação final
global do Orçamento.
Destes factos, documentados nos trabalhos preparatórios, resulta
claro que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira teve
oportunidade de se pronunciar sobre os preceitos constantes dos artigos 114.º e
115.º (com a rectificação introduzida pelo ofício n.º 1789, de 12 de Outubro).
Fê-lo através do seu Parecer de 2 de Novembro, elaborado pela 2ª
Comissão Especializada Permanente (Economia, Finanças e Turismo).
Esse parecer entrou na Assembleia da República 6 dias antes da
aprovação da Proposta de lei n.º 162/X, na generalidade, e 21 dias antes da
aprovação, na especialidade, das normas dos artigos 114.º e 115.º dessa
Proposta, que correspondem aos artigos 117.º e 118.º da lei do Orçamento que
agora se impugnam.
É certo que, no dia 16 de Novembro de 2007, foram enviadas à
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira alterações à Proposta de
Lei n.º 162/X para esta se pronunciar, e que, segundo o Requerente, só terão
sido recebidas no dia 19.
E é também certo que, logo nos dias 22 e 23 decorreria a votação na
especialidade do Orçamento.
Contudo, as alterações à Proposta que estavam em causa não se
referiam, em nada, aos artigos 114.º e 115.º da Proposta de Lei n.º 162/X, que
viriam a dar origem aos artigos 117.º e 118.º da Lei do Orçamento de Estado para
2008, agora impugnados por falta de audição.
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira teve, pois,
oportunidade de se pronunciar, e pronunciou-se, efectivamente, sobre as normas
que agora impugna.
E a audição realizou-se em termos constitucional e legalmente
adequados. Foi-lhe concedido um prazo razoável que lhe permitiu pronunciar-se
antes do início da discussão.
De facto, no Acórdão 670/99 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal considerou que o prazo de 15 dias é
suficiente para garantir a efectividade prática do direito de audição, previsto
no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição da República e no artigo 89, n.º 1, do
EPARAM, concluindo nestes termos: 'Pode, então, tomar-se como medida razoável de
prazo para a generalidade dos casos o que a Lei nº 40/96 definiu como regra –
quinze dias').
Aí se entendeu também que, dado que a pronúncia das regiões
autónomas só pode incidir sobre normas específicas (as que especificamente digam
respeitem às regiões), o momento relevante para efeitos de direito de audição
seria a discussão e aprovação na especialidade.
Esta doutrina viria depois a ser reafirmada no Acórdão n.º 529/01
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt) e, mais recentemente, no referido
Acórdão n.º 581/07.
Nesses arestos, o Tribunal reafirmou uma distinção básica quanto ao
momento adequado para a audição das regiões autónomas, em função do âmbito ou da
extensão do objecto dessa audição.
Assim, se a audição incidir “sobre a globalidade da proposta de lei
ou sobre os respectivos princípios”, o pedido de parecer há-de ser formulado
“com a antecedência suficiente sobre a data do início da discussão na
generalidade”; se respeitar apenas a normas específicas da proposta, a audição
pode ser desencadeada antes do “início da discussão da proposta de lei na
especialidade”.
Ora, como vimos, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da
Madeira foi chamada a pronunciar-se, e pronunciou-se, sobre as normas agora
impugnadas, bastante tempo antes da sua discussão e votação na especialidade,
tendo disposto para tal do prazo de 15 dias legalmente previsto (no artigo 6.º
da Lei n.º 40/96, que regula a audição dos órgãos de governo das regiões
autónomas).
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira foi,
portanto, devidamente ouvida sobre as normas constantes dos artigos 114.º e
115.º da Proposta de Lei n.º 162/X que vieram a ser aprovadas, na especialidade,
a 23 de Novembro de 2007.
A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não pode
negar que teve oportunidade de se pronunciar sobre o conteúdo dos artigos 117.º
e 118.º da Lei do Orçamento de Estado para 2008, nos exactos termos em que foram
aprovados.
Note-se que não houve a mínima alteração entre as normas constantes
da proposta de lei n.º 162/X (devidamente rectificada) que foi apresentada à
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira para que ela se
pronunciasse (e sobre a qual ela efectivamente se pronunciou) e a versão final
dessas mesmas normas que veio a constar da Lei do Orçamento aprovada pela
Assembleia da República. Os preceitos são absolutamente idênticos, seja nas
palavras usadas, seja nos números apresentados.
É certo que as propostas de alteração formuladas no Parecer não
foram aprovadas pela Assembleia da República. Mas, como é evidente, o direito de
audição das regiões autónomas não implica um direito à aprovação das propostas
de alteração por elas apresentadas. Como se esclareceu no já citado Acórdão n.º
670/99: 'sem dúvida que o órgão de soberania não está vinculado aos termos da
resposta dada [pela região autónoma]'.
Deste modo, não há qualquer violação do dever de audição da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.
8 – A questão da violação da cláusula de não retrocesso financeiro
do artigo 118.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma
da Madeira
A Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro (Lei de Finanças das
Regiões Autónomas), determina que será a Lei do Orçamento de Estado a fixar,
anualmente, 'as verbas a transferir para cada uma das Regiões Autónomas' (artigo
37.º, n.º 1).
O artigo 118.º da Lei do Orçamento de Estado para 2008 dá pois
execução ao que o artigo 37.º, n.º 1, da Lei das Finanças das Regiões Autónomas
determina.
O Requerente alega, contudo, que a norma da Lei do Orçamento para
2008 é ilegal, por violação do artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM.
Essa disposição, recorde-se, determina que '[e]m caso algum, as
verbas a transferir pelo Estado podem ser inferiores ao montante transferido
pelo Orçamento do ano anterior multiplicado pela taxa de crescimento da despesa
pública corrente no Orçamento do ano respectivo'.
O Tribunal já afirmou, por mais de uma vez, que as normas relativas
às 'relações financeiras entre o Estado e as regiões autónomas' não estão
abrangidas na 'reserva de Estatuto' e não possuem por isso a força normativa
própria de tal diploma.
De facto, já no Acórdão n.º 567/2004 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal considerou que o artigo 85.º da Lei
de Enquadramento do Orçamento de Estado, ao admitir que a Lei do Orçamento de
Estado pudesse 'determinar transferências de montante inferior àquele que
resultaria das leis financeiras aplicáveis a cada subsector', não violaria a
reserva de Estatuto.
Aí se explicou que «não ocorre violação da “reserva de estatuto”
sempre que uma norma o contrarie. E depois explica-se (começando por citar o
Acórdão n.º 162/1999):
“ «Não basta, pois, que uma determinada norma conste de um estatuto regional
para que a sua alteração por um decreto-lei importe violação da reserva de
estatuto […] Essa violação só existirá se essa norma constante do estatuto
pertencer ao âmbito material estatutário – ou seja: se ela regular questão
materialmente estatutária».
Ora, fora da reserva de estatuto está necessariamente “o regime de finanças das
regiões autónomas” – alínea t) do artigo 164.º da Constituição – e nomeadamente
a matéria das “relações financeiras entre a República e as regiões autónomas” –
n.º 3 do artigo 229.º da Constituição –, que é matéria reservada à competência
legislativa da Assembleia da República.'
Também no Acórdão n.º 238/2008 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), em que o Tribunal apreciou a conformidade das
normas do artigo 37.º, nºs 2 a 7, da Lei de Finanças das Regiões Autónomas com o
artigo 118.º do EPARAM, se concluiu:
'De tudo o que anteriormente se expôs decorre a necessária conclusão
de que, por força da repartição constitucional de competências, os parâmetros de
validade jurídica das normas relativas às relações financeiras entre o Estado e
as Regiões Autónomas se devem procurar na Constituição e não nos Estatutos
Político-Administrativos das Regiões Autónomas'.
Além disso o Tribunal teve já oportunidade de se pronunciar sobre
uma questão perfeitamente idêntica, nos seus traços essenciais, àquela que agora
se suscita.
Tal sucedeu no referido Acórdão n.º 581/2007.
O Requerente pede a declaração de ilegalidade da norma da Lei do
Orçamento que se referia às transferências orçamentais para a Região Autónoma da
Madeira (artigo 118.º da Lei do Orçamento de Estado para 2008), fundado no
preceito constante 118.º, n.º 2, do EPARAM.
Ora, no processo que deu origem àquele acórdão, decidido no ano
passado, o mesmo Requerente pediu a declaração de ilegalidade da norma da Lei do
Orçamento que se referia às transferências orçamentais para a Região Autónoma da
Madeira (o artigo 126.º da Lei do Orçamento de Estado para 2007), fundado no
mesmo artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM.
Como se vê, as questões são, essencialmente, idênticas.
No mencionado Acórdão n.º 581/2007, o Tribunal apreciou pois, a
pedido do ora Requerente, a questão da ilegalidade da norma contida no artigo
126.º da Lei do Orçamento do Estado para 2007 (Lei n.º 53-A/2006, de 29 de
Dezembro), que corresponde, no seu conteúdo essencial, à norma do artigo 118.º
da Lei do Orçamento de Estado para 2008 (Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro).
O Tribunal começou, nesse acórdão, por reconhecer que compete à
Assembleia da República «definir, em cada ano, na Lei do Orçamento do Estado, o
montante a transferir para os Açores e para a Madeira», para, depois, ponderar o
seguinte:
'A cláusula de não retrocesso consta da norma contida no n.º 2 do
artigo 118.º (transferências orçamentais) do EPARAM, a qual é do seguinte teor:
«Em caso algum, as verbas a transferir pelo Estado podem ser
inferiores ao montante transferido pelo Orçamento do ano anterior multiplicado
pela taxa de crescimento da despesa pública corrente no Orçamento do ano
respectivo.»
Vem arguido que a Lei do Orçamento do Estado, ao determinar um
montante de transferência financeira, para 2007, inferior ao do ano anterior,
viola aquela norma estatutária, norma de legalidade reforçada, que não pode ser
desvirtuada por uma lei comum, como o é a lei orçamental.
Em abono desta tese, desenvolvem-se considerações tendentes a
demonstrar a prevalência hierárquica de cada Estatuto Político-Administrativo
das Regiões Autónomas sobre a Lei de Finanças das Regiões Autónomas (Lei
Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro) e sobre a Lei de enquadramento
orçamental (Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto).
Importa reconhecer, na verdade, que uma definição rigorosa da
natureza e âmbito normativo dos Estatutos das Regiões Autónomas é determinante
do juízo a emitir sobre o facto de o n.º 2 do artigo 118.º do EPARAM não ter
sido obedecido.
A Constituição não nos indica, pela positiva, quais as matérias que devem
constituir objecto de reserva de lei estatutária. Mas daí não pode concluir-se
que ganham necessariamente essa qualidade, à margem de qualquer predicado
material objectivo do seu conteúdo, todas as normas que constam dos Estatutos,
por simples decorrência dessa formal localização sistemática'.
Depois continuou, ainda, o mesmo Acórdão:
“Compete a este órgão de soberania [ou seja, à Assembleia da
República] definir, em cada ano, na Lei do Orçamento do Estado, o montante a
transferir para os Açores e para a Madeira. Por isso mesmo, no artigo 106.º, n.º
3, alínea e), da CRP, se determina que a proposta de Orçamento seja acompanhada
de relatórios sobre «as transferências de verbas para as regiões autónomas».
Não pode, pois, uma regra formalmente integrada nos Estatutos impor
um limite aos poderes parlamentares de fixação do montante das verbas a
transferir, restringindo a competência da Assembleia da República para efectuar
os ajustamentos anuais que entenda justificados.
A tese contrária implicaria uma constrição da competência
parlamentar na regulação das relações financeiras entre o Estado central e as
regiões autónomas que não estaria constitucionalmente sufragada.
Por isso mesmo, é seguro concluir que, seja qual for o significado a
atribuir aos termos literais da proibição peremptória de retrocesso, cominada no
n.º 2 do artigo 118.º do EPARAM, esta norma não pode prevalecer-se de um
estatuto que não possui – o de integrante da reserva material de estatuto – para
suplantar o regime instituído por uma Lei do Orçamento do Estado.
Daí que o facto de o comando contido naquela norma não ter sido
observado não representa uma violação estatutária, inexistindo a ilegalidade que
daí decorreria”.
O Tribunal não encontra, nem foram apresentadas pelo Requerente,
quaisquer razões que justifiquem que não aceite a fundamentação desenvolvida no
citado Acórdão n.º 581/07, que, por isso, aqui se renova.
C – Decisão
9 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não conhecer, por falta de legitimidade do requerente, do pedido
de declaração de ilegalidade do artigo 118.º da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de
Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2008), na parte em que se funda na
violação do artigo 88.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento Orçamental;
b) Não declarar a inconstitucionalidade nem a ilegalidade, com
fundamento na preterição do direito de audição das regiões autónomas, dos
artigos 117.º e 118.º da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro;
c) Não declarar a ilegalidade da norma do artigo 118.º da Lei n.º
67-A/2007, de 31 de Dezembro, por violação da cláusula de não retrocesso
financeiro constante do artigo 118.º, n.º 2, do EPARAM.
Lisboa, 25 de Junho de 2008
Benjamim Rodrigues
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Maria João Antunes
Gil Galvão
João Cura Mariano
José Borges Soeiro
Ana Maria Guerra Martins
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Carlos Pamplona de Oliveira, com declaração
Vítor Gomes (Com declaração de
voto idêntica à apontada no acórdão n.º 581/07)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão, mas devo precisar o seguinte: assevera-se, no acórdão, de resto
em consonância com a jurisprudência do Tribunal, que os presidentes dos Governos
Regionais não têm 'legitimidade processual' para suscitar questões de
ilegalidade com base em outras leis que não sejam os estatutos
político-administrativos de cada uma das Regiões.
Tal entendimento radica no disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 281º da
Constituição, preceito que fixa, no seu n.º 1, os poderes do Tribunal
Constitucional em matéria de 'fiscalização abstracta da constitucionalidade e da
legalidade', e que, no n.º 2, identifica os órgãos e as entidades com
competência para formular ao Tribunal Constitucional os correspondentes pedidos.
Todavia, a alínea g) deste n.º 2, ao tratar especificamente dos órgãos e
entidades de âmbito regional que selecciona para o efeito, não lhes confere
competência irrestrita neste domínio, pois apenas permite a formulação de
pedidos de declaração de inconstitucionalidade fundados na 'violação dos
direitos das regiões autónomas', e a formulação de pedidos de declaração de
ilegalidade fundados na 'violação do respectivo estatuto'.
No que agora interessa, antes da 6ª revisão constitucional o preceito autorizava
as entidades regionais a formularem pedidos de declaração de ilegalidade
fundados não só na violação do estatuto da respectiva região, mas também na
violação de 'lei geral da República'.
Afigura-se-me que a alteração desta norma traiu o pensamento do legislador
constituinte que, não desejando limitar a competência das autoridades regionais
nesta matéria, teria pretendido, apenas, adequar o texto constitucional à
extinção das 'leis gerais da República', como categoria própria de actos
legislativos. Ora, sendo certo que antes da revisão de 2004 as autoridades
regionais podiam indubitavelmente pedir a declaração de ilegalidade de quaisquer
normas legais 'com fundamento em violação de lei com valor reforçado' (alínea b)
do n.º 1 do preceito) – por estas serem necessariamente 'leis gerais da
República' –, tudo indica que, a partir daquela lei de revisão, deixaram de
poder pedir a declaração de ilegalidade de normas 'com fundamento em violação de
lei com valor reforçado' (a alínea b) do n.º 1 do preceito não sofreu alteração)
por a sua competência, nesta área, ter ficado reduzida aos casos em que o pedido
é formulado unicamente com fundamento na violação 'do respectivo estatuto'.
Esta circunstância tem consequências relevantes, uma vez que por força da actual
redacção do n.º 3 do artigo 229º da Constituição 'as relações financeiras entre
a República e as regiões autónomas' passam a ser reguladas por uma lei de valor
reforçado, mas obrigatoriamente não estatutária (artigos 229º n.º 3, 164º
alínea t) e 166º n.º 2 da Constituição).
Mantenho, todavia, o entendimento – que já expressei em declaração anexa ao
Acórdão n.º 581/07 – de que a norma constante do n.º 2 do artigo 118º do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira não pode ser
considerada como parâmetro de legalidade por ser, ela própria, desconforme com o
citado n.º 3 do artigo 229º da Constituição.
Carlos Pamplona de Oliveira