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Processo n.º 787/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. O presente recurso vem interposto pelo Ministério Público, com natureza
obrigatória, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da CRP e dos
artigos 70º, n.º 1, alínea a) e 72º, n.º 3, ambos da LTC, da sentença proferida
pela 3ª Secção do 1º Juízo de Execução do Porto e registada em 11 de Junho de
2007 (fls. 41 a 45) que deu provimento ao pedido de impugnação judicial de
decisão final do Instituto de Solidariedade e Segurança Social que indeferiu
pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e
demais encargos, com nomeação e pagamento de honorários do patrono.
Nos termos da referida sentença, procedeu-se à desaplicação – sem especificação
detalhada – das normas extraídas do Anexo ao regime de acesso ao Direito e aos
tribunais (aprovado pela Lei n.º 34/2004, e de ora em diante, abreviada por
RADT) e da Portaria n.º 1085/2004, de 31 de Agosto, que determinam que a
insuficiência económica é aferida em função do rendimento do agregado familiar
do requerente, com fundamento na sua contradição com o direito fundamental de
acesso à Justiça, independentemente da eventual insuficiência económica do
beneficiário daquele direito. Para fundamentar tal decisão de desaplicação, a
decisão recorrida fundamenta-se no Acórdão n.º 654/2006, proferido pela 1ª
Secção do Tribunal Constitucional, em 28 de Novembro de 2006. Entre outras
considerações, a decisão recorrida entendeu que:
“Cumpre referir que realizando os cálculos de acordo com o simulador que existe
no site da CRSS, dado ter-se em conta o agregado familiar, se obtem a decisão
dada pelo CRSS, ou seja, de acordo com a fórmula de cálculo prevista na lei
actual do apoio [j]udiciário[], o requerente apenas teria direito ao pagamento
faseado tal como foi decidido.
(…)
Tal fórmula consta dos artigos 6º, 7º, 8º e 9º da Portaria nº
1085/2004 de 31/8 que concretiza o que se deve entender por rendimento relevante
e explicita a fórmula de calcular esse rendimento.
(…)
Sobre tal matéria foi já proferido douto Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 654/2006 (…).
Refere o citado Acórdão, que vamos seguir de perto, que o n.º 5 do
artigo 8º da lei em análise delimita o direito de acesso ao direito e aos
tribunais, por critérios de apreciação tabelados e fixados, por recurso a uma
fórmula matemática.
(…)
Por outras palavras, fazendo-se as contas ao valor 4629,6 no
simulador da CRSS o requerente teria direito ao apoio judiciário, mas tendo-se
em conta o valor do subsídio da esposa tal conduz a conceder o pagamento
faseado.
(…)
Portanto, entende o tribunal não aplicar a norma acima mencionada
por se entender que se viola o artigo 20º, nº 1 da CRP (…)
A aplicação do anexo e destes artigos não garante o acesso ao
direito e aos tribunais, dado que o valor do rendimento relevante é determinado
pelo do agregado familiar independentemente de o requerente fruir ou não desse
rendimento do terceiro que integra a economia comum (mas tal poderá não ser
assim, poderão existir conflitos). Tal como se refere no citado Acórdão, o dever
de alimentos não compreende as despesas relativas à taxa de justiça, e como tal
não se pode dar como assente que o requerente dispõe do valor do subsídio da
esposa (cfr. Lei nº 6/2001, de 11/5).
Portanto, o tribunal entende que as normas do Anexo da Lei 34/2004 e
da Portaria nº 1085-A/2004 de 31/8, na parte em que impõe que o rendimento
relevante para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário seja
necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado familiar
independentemente de o requerente fruir esse rendimento, não garantem o acesso
aos tribunais e violam o artigo 20º, nº 1 da CRP, sendo inconstitucionais.”
(fls. 42 a 44)
2. Perante esta decisão, o Ministério Público fixou o objecto do recurso, para
si obrigatório, nos seguintes termos:
“(…) vem interpor RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL da referida decisão,
para apreciação da alegada inconstitucionalidade das normas constantes do Anexo
da Lei 34/2004 e da Portaria n.º 1085-A/2004, publicada no D.R. I-B de 31 de
Agosto de 2004, na parte em que impõem que o rendimento relevante para efeitos
de concessão do benefício do apoio judiciário seja necessariamente determinado a
partir do rendimento do agregado familiar independentemente de o requerente
fruir desse rendimento.”
3. Notificado para alegar, o Ministério Público apresentou as suas
alegações, cujo teor ora se reproduz:
“1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida nos Juízos de Execução do Porto, nos autos de impugnação da
decisão da Segurança Social que denegou, em parte, o pretendido beneficio de
apoio judiciário, requerido por A., recusando aplicar o “bloco normativo”
integrado pelos artigos 6° a 10° da Portaria nº 1085-A/04, conjugados com o
Anexo à Lei nº 34/04, interpretado em termos de ser considerado para efeito de
cálculo do rendimento relevante do requerente o rendimento do respectivo
agregado familiar, sem possibilidade de indagação da eventual contitularidade ou
fruição desse rendimento por parte do requerente e de saber se as pessoas que
com ele vivem em economia comum têm qualquer tipo de obrigação de suportar as
despesas inerentes à demanda em que aquele se encontra envolvido.
A decisão recorrida funda-se no juízo de inconstitucionalidade já formulado por
este Tribunal no acórdão nº 654/06. E a situação dos autos é paradigmática da
violação do direito de acesso à justiça por parte do economicamente carenciado,
potenciada pelo esquema legal, absolutamente rígido e “matemático”, de aferição
de insuficiência económica. Na verdade, o juízo de (parcial) suficiência
económica, formulado administrativamente, baseia-se nos rendimentos (subsidio de
desemprego) auferidos por terceiros (cônjuge do requerente), sem que se saiba se
a “execução” a propor — e para a qual é peticionado o apoio judiciário — tem
alguma conexão com direitos, bens ou interesses do casal.
Consideramos, deste modo, plenamente transponível para o caso dos autos a
solução acolhida no citado acórdão nº 654/06, que se mostra, aliás, em
consonância com a posição sustentada na alegação ali produzida pelo Ministério
Público.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º
Constitui restrição excessiva e desproporcionada ao direito fundamental de
acesso à justiça, sem discriminações fundadas na situação económica, a tabelar
ponderação do rendimento global auferido por todas as pessoas que vivem em
economia comum com o requerente, incluindo os rendimentos auferidos pelo
cônjuge, independentemente da natureza da demanda para que é peticionado o apoio
judiciário e da sua possível e exclusiva conexão com interesses pessoais do
requerente.
2°
É inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 20° da Constituição da
República Portuguesa, o Anexo à Lei nº 34/04, conjugado com os artigos 6° a 10º
da Portaria nº 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impõe que o
rendimento relevante para efeitos de concessão do beneficio de apoio judiciário
seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado familiar,
independentemente de o requerente de protecção jurídica fruir tal rendimento.
3°
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida.”
4. Por sua vez, notificado das alegações do Ministério Público, o
recorrido deixou expirar o prazo de resposta, sem que viesse aos autos
pronunciar-se.
5. Durante a fase de exame preliminar, a Relatora entendeu que, face
às circunstância concretas do caso em apreço – acção executiva instaurada contra
devedor casado em regime de comunhão de adquiridos –, se impunha a obtenção de
peças processuais que não constavam dos autos, com vista a apurar do eventual
interesse do cônjuge-mulher na improcedência da acção executiva movida contra o
ora recorrido. Nesse sentido, em 29 de Novembro de 2007, foi proferido o
seguinte despacho:
“Ao abrigo dos poderes que me são atribuídos ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-B
da LTC, determino que seja oficiado o Ex.mo Senhor Juiz da 3ª Secção do 1º Juízo
de Execução do Porto para que, relativamente à acção executiva que aí corre
termos sob o Proc. n.º 5860/06.9YYPRT, bem como relativamente a eventuais
apensos de oposição à execução, de oposição à penhora ou de embargos de
terceiro, ordene a remessa ao Tribunal Constitucional de cópias das fls. das
quais constem as seguintes peças processuais:
i) Requerimento Executivo;
ii) Oposição à execução (caso haja sido deduzida);
iii) Oposição à penhora (caso haja sido deduzida);
iv) Embargos de terceiro (caso haja sido deduzida).
A remessa das cópias a este Tribunal reveste-se de manifesta utilidade para a
boa decisão dos autos de recurso que correm perante a 3ª Secção do Tribunal
Constitucional, relativos a recurso por inconstitucionalidade deduzido no âmbito
do Proc. n.º 5860/06.9YYPRT-C (apenso), da 3ª Secção do 10 Juízo de Execução do
Porto, relativos a impugnação de decisão administrativa sobre pedido de apoio
judiciário.
Notifique-se, de imediato, por telefax.”
Na sequência do cumprimento do referido despacho, foram juntos aos
autos: i) certidão do requerimento executivo apresentado por Banco B. , S.A –
Sociedade …, contra o recorrido e mais quatro executados, na qualidade de
avalistas de empréstimo concedido à C., Crl; ii) oposição à execução deduzida
pelo recorrido, com junção de: a) contrato de mútuo com promessa de hipoteca; b)
respectivo aditamento; c) escritura de hipoteca; d) condições do empréstimo; e)
requerimento de apoio judiciário apresentado pelo recorrido.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
6. Em primeiro lugar, impõe-se fixar o objecto do presente recurso, uma vez que,
na sequência da desaplicação genérica, sem individualização precisa, por parte
da decisão recorrida, o Ministério Público optou por interpor recurso para
julgamento da constitucionalidade das normas extraídas do “Anexo da Lei 34/2004
e da Portaria n.º 1085-A/04, publicada no D.R. I-B de 31 de Agosto de 2004, na
parte em que impõem que rendimento relevante para efeitos de concessão do
benefício do apoio judiciário seja necessariamente determinado a partir do
rendimento do agregado familiar independentemente de o requerente fruir desse
rendimento” (fls. 48).
Sucede que, conforme jurisprudência consolidada neste Tribunal, apenas pode
conhecer-se das normas que hajam sido efectivamente aplicadas ou desaplicadas –
como é o caso – por parte do tribunal “a quo”. É certo que a decisão recorrida
refere-se genericamente às “normas do Anexo da Lei n.º 34/2004 e da Portaria nº
1085-A/2004, na parte em que impõem que rendimento relevante para efeitos de
concessão do benefício do apoio judiciário seja necessariamente determinado a
partir do rendimento do agregado familiar independentemente de o requerente
fruir desse rendimento” (fls. 44), mas tal não se afigura suficiente para
assegurar a clareza necessária à decisão da questão em apreço nos presentes
autos. Ora, apesar de a decisão recorrida não especificar de modo inequívoco
quais as normas que desaplicou (atente-se na margem interpretativa permitida
pela mera remissão, a final, para as diversas normas mencionadas ao longo da
decisão), deve esclarecer-se que tais normas são necessariamente aquelas que
fazem referência à consideração do rendimento total do agregado familiar do
requerente de apoio judiciário e não outras.
Assim, e em suma, o presente Acórdão não apreciará nem todas as normas
constantes do Anexo à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, nem todas as normas
constantes da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto. Muito menos apreciará
quaisquer outras interpretações normativas que não passem pela consideração do
rendimento total do agregado familiar do requerente de apoio judiciário, ainda
que não auferido por este, para efeitos de determinação da insuficiência
económica justificadora de apoio.
Obviamente em causa estarão apenas aquelas normas que foram especificamente
aplicadas à situação concreta do ora recorrido. Num esforço interpretativo que
visa a clareza da presente decisão, frisa-se que este Tribunal apenas indagará
da constitucionalidade das normas constantes da alínea c) do n.º 1 e do n.º 3 do
§ I do Anexo, bem como das normas constantes dos artigos 6º, n.º 1, 7º, n.ºs 1 e
2, 8º, n.ºs 1, 2 e 3 e 9º da Portaria n.º 1085-A/2004, pois só estas normas
foram efectivamente aplicadas ao caso concreto ora em apreço.
Feita esta prevenção, passemos à ponderação, em concreto, da questão
suscitada pelos presentes autos de recurso.
7. A questão central que se impõe decidir é a de saber se o sentido decisório do
Acórdão n.º 654/2006, proferido pela 1ª Secção deste Tribunal, é passível de
transposição para o caso concreto em apreço, conforme entendeu a decisão
recorrida e defende o Ministério Público.
Ao apreciar a constitucionalidade das normas constantes do “Anexo à Lei nº
34/2004, de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6º a 10º da Portaria nº
1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impõe que seja considerado para
efeitos do cálculo do rendimento relevante do requerente de benefício do apoio
judiciário, maior, estudante, a quem são prestados alimentos pela avó, o
rendimento desta”, a 1ª Secção deste Tribunal veio julgar inconstitucionais
aquelas normas “na parte em que impõe[m] que o rendimento relevante para efeitos
de concessão do benefício do apoio judiciário seja necessariamente determinado a
partir do rendimento do agregado familiar, independentemente de o requerente de
protecção jurídica fruir tal rendimento”.
A fundamentação que presidiu àquele acórdão residiu, sucintamente,
na seguinte linha de argumentação:
i) A consideração do rendimento global do agregado familiar
para efeitos de determinação da insuficiência económica do requerente de apoio
judiciário descura situações concretas da vida em que aquele não beneficia
efectivamente dos rendimentos de outros membros do agregado familiar;
ii) No caso hipotético de se verificarem interesses
conflituantes entre os membros do agregado familiar, que possam ser alvo de
contradição no âmbito de processo a correr perante órgão jurisdicional, os
restantes membros do agregado familiar não podem permanecer vinculados a
suportar (indirectamente) os custos do litígio;
iii) No caso daqueles autos, em que se aferia dos deveres de
assistência entre uma avó e um neto, não podia afirmar-se que o dever de
alimentos previsto nos artigos 2003º e 2005º do Código Civil abrangesse as
despesas relativas às custas judiciais e aos honorários de mandatário forense;
iv) No caso de execução por dívida de custas judiciais, o n.º 1
do artigo 116º do Código das Custas Judiciais não determina que respondam pela
dívida os bens de pessoas que vivem em economia comum com o devedor, nos termos
da Lei n.º 6/2001, de 11 de Maio, “já que as pessoas que integram esta economia
não estão obrigadas a contribuir para despesas como as que estão em causa nos
presentes autos” (cfr. § 4, parágrafo 3º).
Sucede, porém, que nenhum destes argumentos se pode transpor para os presentes
autos, por falta de similitude com o caso ora concretamente em apreço. Senão,
veja-se.
8. Enquanto que naqueles autos se ponderou da constitucionalidade de
interpretação normativa que fizesse imputar o rendimento auferido por
determinada pessoa, a título de pensão de sobrevivência, a um neto que com
aquela vivia em economia comum, por ser órfão, estudante e apenas auferindo uma
pensão de sobrevivência de 100,00 €, nestes autos discute-se da imputação do
rendimento auferido pelo cônjuge-mulher ao respectivo cônjuge-marido, para
efeitos de determinação da insuficiência económica deste.
Importa assim aferir se as particularidades do presente caso concreto impõem
decisão distinta.
Em primeiro lugar, decorre dos elementos juntos aos autos que:
i) O requerimento de apoio judiciário foi apresentado
para efeitos de dedução de oposição a acção executiva instaurada contra o
recorrido (fls. 2), enquanto avalista de um empréstimo concedido a cooperativa
de marcenaria da qual o recorrido era cooperante e legal representante (cfr.
artigos 1º a 3º da oposição à execução, a fls. 74 e 75);
ii) A dívida do recorrido decorre da sua actividade
comercial enquanto ex-cooperante e legal representante da C., Crl;
iii) O recorrido é casado, segundo o regime de comunhão de
adquiridos com D., conforme decorre do requerimento de apoio judiciário (fls.
4);
iv) No âmbito da acção executiva instaurada contra o
recorrido, foi expressamente requerida a penhora de bens móveis (entre os quais,
“móveis antigos e modernos, aparelhagens sonoras e de vídeo, televisores,
frigoríficos, quadros, tapetes, cadeiras, mesas, estantes, livros, diversos
objectos decorativos e de adorno e outros bens móveis de difícil discriminação
que compõem o recheio da residência” sita na Rua Lino Paupério, n.º 125,
4440-672 Valongo (fls. 71);
v) De acordo com a informação expressamente facultada
pelo próprio recorrido, mediante preenchimento do requerimento de apoio
judiciário, a casa de morada-de-família deste e de D. corresponde ao imóvel sito
na Rua …, n.º …, ….-… Valongo (fls. 4).
Ora, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 1691º do Código Civil, “são
dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges: (…) as dívidas contraídas por
qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram
contraídas em proveito comum do casal, ou se vigorar o regime de separação de
bens”. Daqui decorre que, uma vez casados em regime de comunhão de adquiridos –
e salvo prova da inexistência de proveito comum do casal – quer o recorrido quer
o cônjuge-mulher são patrimonialmente responsáveis por aquelas dívidas,
respondendo por estas quer os bens comuns do casal, quer, na sua falta, os bens
próprios de qualquer um dos cônjuges, conforme resulta do n.º 1 do artigo 1695º
do Código Civil.
A circunstância de o cônjuge-mulher não constar do título executivo seria,
aliás, irrelevante, para efeitos de acção executiva, caso o exequente houvesse
alegado a comunicabilidade da dívida, nos termos do n.º 2 do artigo 825º do CPC
– o que, apesar de teoricamente admissível não ocorreu nos autos, conforme
decorre do requerimento executivo (fls. 68 a 73). Mas, ainda que assim não seja,
o património pertencente a D., cônjuge do recorrido, permanecerá susceptível de
penhora no âmbito da acção executiva, enquanto esta não cessar com trânsito em
julgado, visto que, por força do n.º1 do artigo 1695º do Código Civil e do n.º 1
do artigo 825º do CPC, os bens comuns do casal podem sempre ser alvo de penhora
e consequente venda executiva, enquanto aquela não requerer a separação judicial
de bens.
9. Este excurso pelo Direito infra-constitucional aplicável aos
autos de acção executiva, na qual foi deduzido pedido de apoio judiciário,
afiguram-se essenciais para aferir do proveito que a eventual procedência do
incidente de oposição à execução, deduzido exclusivamente pelo recorrido, poderá
reverter para o referido cônjuge, cujos rendimentos auferidos foram imputados ao
recorrido, por pertencerem ao mesmo agregado familiar.
É que, através do Acórdão n.º 654/2006, este Tribunal apenas julgou
inconstitucional as normas extraídas do “Anexo à Lei nº 34/2004, de 29 de Julho,
conjugado com os artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/04, de 31 de Agosto, na
parte em que impõe que o rendimento relevante para efeitos de concessão do
benefício do apoio judiciário seja necessariamente determinado a partir do
rendimento do agregado familiar, independentemente de o requerente de protecção
jurídica fruir tal rendimento”, ou seja, naquele caso concreto “na parte em que
impõe que seja considerado para efeitos do cálculo do rendimento relevante do
requerente de benefício do apoio judiciário, maior, estudante, a quem são
prestados alimentos pela avó, o rendimento desta.
Ora, nos presentes autos, a imputação ao recorrido dos rendimentos
do cônjuge-mulher, D., decorre expressamente do regime de bens ao qual está
sujeito o respectivo casamento, visto que nos termos da alínea b) o subsídio de
desemprego que é auferido pelo cônjuge-mulher é considerado como bem integrado
na comunhão matrimonial.
Acresce ainda, que por força do n.º 1 do artigo 1675º do Código Civil, o
cônjuge-mulher do recorrido está vinculado ao cumprimento do dever de
assistência, que compreende não só o mero dever de prestação de alimentos, como
o de “contribuir para os encargos da vida familiar”. Frise-se, aliás, que aquele
preceito legal nem sequer adopta a noção, mais restritiva, de “encargos normais
da vida familiar” (com sublinhado nosso) – como sucede, por exemplo, no caso da
alínea b) do n.º 1 do artigo 1691º do Código Civil. Na medida em que o
intérprete deve presumir que o legislador se expressou correctamente,
pretendendo distinguir meros “encargos” de “encargos normais” sempre se
concluirá que, ainda que as custas judiciais possam não ser consideradas como
“encargos normais”, sempre serão qualificáveis como “encargos («tout court»)” da
vida familiar, na medida em que foram contraídas na sequência de dívida comum a
ambos os cônjuges.
Deste modo, ao contrário do que sucedia nos autos que deram lugar ao
Acórdão n.º 654/2006, existem deveres legais, directamente decorrentes da
celebração e vigência de casamento sob o regime de comunhão de adquiridos, que
determinam a existência de proveito, por parte do recorrido, dos rendimentos
auferidos por parte do seu cônjuge-mulher. Tal circunstância, só por si, já
imporia solução distinta à adoptada anteriormente adoptada por este Tribunal, a
propósito de situação distinta, que serviu de fundamento à decisão ora
recorrida.
10. Do supra exposto, resulta que não procede igualmente o argumento explanado,
a propósito do Acórdão n.º 654/2006, quanto à potencial verificação de conflito
entre os interesses dos membros do agregado familiar. Perante o caso concreto
ora em apreço, constata-se que o recorrido mantém o mesmo interesse processual
que o cônjuge-mulher, visto que, sendo a dívida comum, os bens comuns do casal
podem vir a ser alvo de penhora – tendo estes, aliás, já sido nomeados à penhora
pelo exequente. Deste modo, não se verifica qualquer constrangimento a que o
cônjuge-mulher, casada sob o regime de comunhão de adquiridos, fique vinculada a
suportar os custos do litígio.
11. Improcede igualmente o argumento relativo à não abrangência das custas
judiciais e dos honorários de mandatário forense por parte do dever de alimentos
previsto nos artigos 2003º e 2005º do Código Civil, visto que, ao contrário do
que sucedia no caso em julgamento no Acórdão n.º 654/2006, não se discute agora
o âmbito do dever de alimentos entre ascendentes/descendentes, mas antes o dever
de assistência (mais amplo do que o mero dever de alimentos) entre
cônjuge-marido e cônjuge-mulher.
12. Por fim, quanto ao argumento segundo o qual o n.º 1 do artigo 116º do Código
das Custas Judiciais não determina que respondam pela dívida os bens de pessoas
que vivem em economia comum com o devedor, nos termos da Lei n.º 6/2001, de 11
de Maio, o mesmo não procede nos presentes autos, na medida em que, conforme já
supra demonstrado, o recorrido e D. encontram-se casados, sob o regime da
comunhão de adquiridos. Ora, sucede que o conceito de “bens penhoráveis”
constante do n.º 1 do artigo 116º do Código das Custas Judiciais abrange,
necessariamente, pelo menos, os bens comuns do casal que respondem, quer pelas
dívidas comuns (cfr. n.º 1 do artigo 1695º do Código Civil), quer mesmo pelas
dívidas da responsabilidade exclusiva do recorrente, desde que restringida à
respectiva meação (cfr. n.º 1 do artigo 1696º do Código Civil).
Daqui decorre que, mesmo no caso de o recorrido não poder liquidar
eventual dívida de custas judiciais, aferida a final do processo, os bens do seu
cônjuge-mulher respondem igualmente nos limites anteriormente fixados.
13. Em suma, este Tribunal não pode deixar de notar que, caso a
situação fosse idêntica aos autos que lhe deram lugar, reiteraria integralmente
o sentido da jurisprudência vertida no Acórdão n.º 654/06, ou seja, que não é
compatível com o direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva permitir a
imputação do rendimento de outros membros do agregado familiar ao requerente de
apoio judiciário quando este não frua de tal rendimento.
Sucede, porém, que os factos concretos que configuram a questão ora
submetida a este Tribunal não permitem julgar inconstitucional as normas
constantes da alínea c) do n.º 1 e do n.º 3 do § I do Anexo, bem como das normas
constantes dos artigos 6º, n.º 1, 7º, n.ºs 1 e 2, 8º, n.ºs 1, 2 e 3 e 9º da
Portaria n.º 1085-A/2004, quando interpretadas no sentido de permitirem a
consideração de rendimentos pertencentes ao agregado familiar de um requerente
de apoio judiciário, para efeitos de determinação da insuficiência económica
deste, quando auferidos por cônjuge-mulher, na constância de casamento sujeito
ao regime de comunhão de adquiridos, quando o pedido de apoio judiciário vise
dedução de oposição à execução movida contra um dos cônjuges, no âmbito da qual
possam vir a ser penhorados bens comuns do casal.
O direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva (cfr. n.º 1 do
artigo 20º da CRP) não fica prejudicado pela circunstância de serem imputados ao
requerente de apoio judiciário rendimentos pertencentes ao seu cônjuge-mulher,
quando vigore qualquer um dos regimes de comunhão de bens legalmente previstos,
na medida em que, necessariamente, nesses casos, o requerente – como sucede com
o recorrente nos autos – pode deles fruir livremente. O direito de acesso aos
tribunais e ao Direito, como qualquer outro direito fundamental, não constitui
um direito absoluto, exigindo apenas a Lei Fundamental que tal acesso não seja
denegado em função da insuficiência económica do indivíduo carenciado de
protecção jurídica. A medida da insuficiência económica não encontra
densificação específica no enunciado constitucional, antes ficando dependente de
um juízo de proporcionalidade (cfr. n.º 2 do artigo 18º da CRP). A livre margem
de determinação pelo legislador do valor do rendimento que se afigura indiciador
da insuficiência económica apenas permitiria a este Tribunal julgar
inconstitucionais as normas ora em apreço, caso ocorresse uma manifesta violação
do princípio da proporcionalidade.
Ora, no caso em apreço, através do preenchimento do pedido de apoio
judiciário, o recorrido reconheceu que o seu agregado familiar auferiu 11.505,73
€, no ano fiscal anterior ao pedido, e que não suportam quaisquer despesas com
habitação própria (cfr. fls. 4-verso). A aplicação das fórmulas de cálculo
constantes dos artigos 6º a 9º da Portaria n.º 1085-A/2004, no caso concreto ora
em apreço, não se traduz numa restrição desproporcionada ao direito de acesso
aos tribunais, até porque determina a aplicação da medida concretamente menos
lesiva para o recorrente, ou seja, a mera sujeição ao pagamento faseado das
custas judicias, nos termos da alínea c) do n.º 1 do § I do Anexo à Lei n.º
34/2004.
Atentas as particularidades do caso em apreço, entende-se assim não
subsistirem fundamentos razoáveis para concluir pela inconstitucionalidade das
normas alvo de desaplicação por parte da decisão recorrida.
III – DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes da
alínea c) do n.º 1 e do n.º 3 do § I do Anexo à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho,
bem como as normas constantes dos artigos 6º, n.º 1, 7º, n.ºs 1 e 2, 8º, n.ºs 1,
2 e 3 e 9º da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, quando interpretadas no
sentido de permitirem a consideração de rendimentos pertencentes ao agregado
familiar de um requerente de apoio judiciário, para efeitos de determinação da
insuficiência económica deste, quando auferidos por cônjuge, na constância de
casamento sujeito ao regime de comunhão de adquiridos, quando o pedido de apoio
judiciário vise dedução de oposição à execução movida contra um dos cônjuges, no
âmbito da qual possam vir a ser penhorados bens comuns do casal.
b) Conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma
da decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento sobre a questão
da inconstitucionalidade.
Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 13 de Maio de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão