Imprimir acórdão
Processo n.º 402/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, vem A., SA – Sucursal Portugal reclamar da decisão sumária
proferida no âmbito dos presentes autos, concluindo nos seguintes termos:
“1. Fundamenta-se a Decisão Sumária ora sob reclamação no facto de a matéria
objecto do recurso interposto para este Tribunal Constitucional já ter sido
anteriormente decidida e se entender que é de manter tal jurisprudência
anterior.
2. A Recorrente não desconhece tal jurisprudência anterior, tanto mais que a
mesma foi proferida no âmbito de um processo em que a Recorrente foi parte, mais
concretamente, no âmbito de um recurso interposto pelo Ministério Público de
Sentença proferida em 1.ª Instância que decidiu não aplicar as normas cuja
inconstitucionalidade se pretende ver novamente apreciada e, em consequência,
julgou procedente o recurso interposto pela aqui Recorrente da Decisão de
apreensão de bens da então IGAE.
3. Sucede que, com todo o respeito merecido, é firme convicção da Recorrente não
assistir razão à jurisprudência vertida no Acórdão n.° 358/2005 a Decisão
Sumária se reporta.
4. Com efeito, tanto a liberdade de iniciativa privada como o direito à
propriedade privada são direitos fundamentais análogos aos direitos, liberdades
e garantias e, sendo uma lei reguladora da concorrência quanto à utilização de
um evento público, condicionando a organização do mercado e a liberdade de
actuação das empresas, que vai mais além da simples defesa de patentes e
símbolos e denominações existentes, o Decreto-Lei n.° 86/2004 toca, no seu
âmbito de aplicação, naqueles dois direitos fundamentais.
5. O bem jurídico que o legislador do Decreto-Lei n.° 86/2004 pretendeu proteger
— as designações e símbolos do Campeonato Europeu de Futebol de 2004 — já se
encontra protegido por lei anterior àquele diploma, em concreto, no Código da
Propriedade Industrial, no Código dos Direitos de Autor e dos Direito Conexos e
no Código da Publicidade, como de resto resulta da interpretação do n.° 5 do
art. 5° do próprio Decreto-lei, que prevê a aplicação das normas daqueles
Códigos, o que permite desde logo imputar ao Decreto-Lei n.° 86/2004 um juízo de
violação do princípio da igualdade, vertido no art. 13° da C.R.P..
6. O Decreto-Lei n.° 86/2004 prevê uma regulamentação especial para a situação
bastante concreta da realização do evento do Campeonato Europeu de Futebol de
2004 e fá-lo de forma indubitavelmente mais restrita do que já resultaria da
aplicação das normas gerais acima indicadas, através da previsão, nos arts. 4° e
5°, n.° 1, de um ilícito contra-ordenacional susceptível de abarcar uma
infinidade de situações, atenta a sua formulação tão genérica e a utilização de
conceitos completamente indeterminados.
7. O mencionado Diploma efectua, por conseguinte, uma efectiva restrição do
direito fundamental à iniciativa económica privada e do direito fundamental de
propriedade, acolhidos, respectivamente, nos arts. 61°, n.° 1 e 62°, n.° 1,
análogos aos direitos, liberdades e garantias, nos termos e para os efeitos do
art. 17°, bem como do direito à protecção legal contra quaisquer formas de
discriminação e do direito à liberdade e segurança, consagrados nos arts. 26°,
n.° 1 e 29°, n.° 1 e aplicáveis nos termos do art. 12°, n.° 2, todos da C.R.P.,
sem que para tanto exista autorização constitucional.
8. Apesar da redacção do art. 2° do Decreto-Lei n.° 86/2004, o certo é que estão
manifestamente determinadas, por lei, as entidades que têm a seu cargo a
‘organização, a promoção, a realização ou a gestão de bens, equipamentos ou
estruturas necessários a este evento desportivo’— a sociedade B., S.A. e a UEFA
— e, por conseguinte, gozam da reserva das designações e símbolos do B. e da
protecção que o Decreto-Lei n.° 86/2004 lhes pretende conferir.
9. Ou seja, as normas restritivas de direitos, liberdades e garantias do
Decreto-Lei n.° 86/2004 que consagram um novo tipo de ilícito
contra-ordenacional não são gerais e abstractas como impõe o art. 18°, n.° 3 da
C.R.P., que, desta forma, foi violado.
10. O Decreto-Lei n.° 86/2004 não respeita, de todo, o princípio da proibição do
excesso que, estabelecido na parte final do art. 18°, n.° 2 da C.R,P., constitui
um limite constitucional à liberdade de conformação do legislador, antes
apresentando nos seus arts. 4° e 5°, n.° 1 verdadeiras normas penais em branco,
ao consagrar expressões como ‘utilização, directa ou indirecta, por qualquer
meio’; ‘sugira ou crie a falsa impressão’ ‘passível de criar um risco de
associação’ ‘utilização, directa ou indirecta’; ‘susceptível de criar a falsa
impressão’.
11. Efectivamente, as leis sancionatórias devem ser redigidas com a maior
clareza possível para que tanto o seu conteúdo como os seus limites se possam
deduzir, o mais exactamente possível, do texto legal, isto é, o tipo de
infracção deve estar suficientemente especificado, não sendo lícito o recurso à
analogia para definir infracções e deve estar determinado o tipo de sanção que
cabe a cada uma delas, razão pela qual viola também o Decreto-Lei n.° 86/2004 o
princípio da legalidade e da tipicidade protegido pelo art. 29° da C.R.P..
12. Em termos de ponderação de interesses, o Decreto-Lei n.° 86/2004, criando
uma clara desigualdade no mercado, é desproporcional e desadequado.
13. Há ainda que salientar que, conforme ficou provado, a campanha promocional
da A. ora em questão começou a ser delineada e foi lançada muito antes da
entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 86/2004, o que toma retroactiva a aplicação
das normas restritivas aí consagradas, em violação do art. 2° do RGCO e do n.° 1
do art. 29° da C.R.P..
14. Finalmente, o Decreto-Lei n.° 86/2004 não foi publicado no uso de qualquer
autorização legislativa, violando também o art. 165°, n.° 1, al. b) da C.R.P.,
pelo que enferma, além de inconstitucionalidade material, com os fundamentos
supra indicados, de inconstitucionalidade orgânica.
15. Ao não concluir pela inconstitucionalidade material e orgânica dos arts. 4°,
50 e 7° do Decreto- Lei n.° 86/2004, violaram o Acórdão do Tribunal da Relação
de Coimbra e a Decisão Sumária de que ora se reclama os arts. 165°, n.° 1, al.
b) e 13°, 18°, 26°, 29°, 32°, n.° 10, 61°, 62° e 268° da C.R.P.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“2. É de proferir decisão sumária ex vi artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal
Constitucional, por se tratar de matéria já anteriormente decidida por este
Tribunal e se entender que é de manter tal jurisprudência anterior.
Com efeito, no Acórdão n.º 358/2005, publicado no Diário da República, II Série,
de 20 de Outubro de 2005, não foram julgadas inconstitucionais, nas dimensões
que ora vêm impugnadas pela Recorrente, as normas dos artigos 4.º, e 5.º, do
Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17 de Abril.
Integrando o objecto do presente recurso as referidas normas, e, ainda, o artigo
7.º, do mesmo diploma, que determina a apreensão dos objectos em que se
manifeste a prática de uma contra-ordenação ali prevista, bem como os materiais
ou instrumentos que tenham sido predominantemente utilizados para essa prática,
o certo é que a questão de constitucionalidade ora em apreço coincide com a que
foi apreciada e decidida no aresto citado sendo, por conseguinte, tal
jurisprudência inteiramente transponível para os autos.
Concluiu então o Acórdão n.º 358/2005 pela não inconstitucionalidade das normas
dos artigos 4.º, e 5.º, do Decreto-Lei n.º 86/2004 pelos fundamentos que se
passam a transcrever:
‘Analisemos, antes de mais, a questão da eventual violação do disposto no artigo
165º, n.º 1, alínea b), da Constituição – a alínea d) deste preceito (como,
aliás, se refere na sentença recorrida) não está evidentemente em discussão,
atendendo a que o diploma em causa não respeita ao regime geral dos actos
ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
Ora, de acordo com aquela alínea b), ‘é da exclusiva competência da Assembleia
da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
[...] b) direitos, liberdades e garantias’.
As normas em apreciação constam de um diploma emitido pelo Governo sem
credencial parlamentar, pois que foi decretado nos termos da alínea a) do n.º 1
do artigo 198º da Constituição. Seria tal credencial exigível, por versarem as
normas em causa sobre direitos, liberdades e garantias?
Os únicos direitos fundamentais que poderiam estar em causa – e a que se faz
alusão na sentença recorrida – são o direito de iniciativa económica privada
(artigo 61º, n.º 1, da Constituição) e o direito de propriedade privada (artigo
62º da Constituição). O Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17 de Abril ‘estabelece o
regime de protecção jurídica a que ficam sujeitas as designações do Campeonato
Europeu de Futebol de 2004, abreviadamente designado por Euro 2004, e reforça os
mecanismos de combate a qualquer forma de aproveitamento ilícito dos benefícios
decorrentes daquele evento desportivo’ (artigo 1º). Ora, a aqui recorrida usou
tais designações precisamente no exercício de uma actividade económica privada.
7.1. Perspectivemos primeiro a questão à luz do direito de iniciativa
económica privada.
Como salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição portuguesa anotada,
Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 620-621), o direito de iniciativa económica
privada consiste, num primeiro momento, na liberdade de estabelecimento, que é
‘o direito de iniciar uma actividade económica; o direito de constituir uma
empresa; o direito, que pode ser individual e que pode ser institucional, de
organização de certos meios de produção para um determinado fim económico’ e,
num segundo momento, na liberdade de empresa, que é o ‘direito da empresa de
praticar os actos correspondentes aos meios e fins predispostos e de reger
livremente a organização em que tem de assentar’.
As normas em apreciação não estão, como é evidente, conexionadas com a liberdade
de estabelecimento, nos moldes que ficaram descritos. Podem porventura afectar
apenas a liberdade de empresa, pois que, ao proibirem o uso de sinais associados
ao Euro 2004, interferem simultaneamente no modo de comercialização de certos
produtos e, por esta via, conformam o ‘direito da empresa de praticar os actos
correspondentes aos meios e fins predispostos’.
Significará isto que as normas dos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei n.º 86/2004,
de 17 de Abril, na medida em que de algum modo se prendem com a liberdade de
empresa, versam sobre as matérias a que alude o artigo 165º, n.º 1, alínea b),
da Constituição?
A resposta deve ser negativa.
Na verdade, nem todas as matérias relacionadas com a liberdade de empresa se
inserem na competência legislativa reservada da Assembleia da República.
Seguramente não o são a matéria da publicidade nem a regulamentação global da
concorrência, diferentemente do que parece sustentar a sentença recorrida.
Assim, ainda que se aceite que as normas dos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei n.º
86/2004, de 17 de Abril, interferem com a publicidade e com a disciplina da
concorrência, tais normas não podem ser qualificadas como normas atinentes a
direitos, liberdades e garantias, no sentido em que esta trilogia aparece
protegida no artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
Com efeito, as normas em apreço no presente recurso não versam directamente
sobre a liberdade de iniciativa económica privada. E, de todo o modo, este
Tribunal tem entendido que a lei a que se refere o artigo 61º, n.º 1, da
Constituição só tem que ser uma lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada
no que se refere aos quadros gerais e aos aspectos garantísticos daquela
liberdade (veja-se o acórdão n.º 329/99, de 2 de Junho, publicado no Diário da
República, II Série, n.º 167, de 20 de Julho de 1999, p. 10576 ss).
7.2. Perspectivemos agora a questão à luz do direito de propriedade
privada (artigo 62º da Constituição). Dele decorre que ‘os particulares, sejam
pessoas singulares ou colectivas, gozam do direito de ter bens em propriedade e,
em geral, do direito de se tornar, por actos inter vivos ou mortis causa,
titulares de quaisquer direitos de valor pecuniário – direitos reais, direitos
de crédito, direitos materiais de autor, direitos sociais ou outros’ (Jorge
Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., p. 627).
Será que as normas dos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17 de
Abril – especialmente as do artigo 4º –, na medida em que vedam a utilização de
certos sinais distintivos do comércio, afectam o direito de propriedade privada
daquele que os pretende utilizar e, consequentemente, deviam ter sido emitidas
ao abrigo de autorização legislativa, nos termos do artigo 165º, n.º 1, alínea
b), da Constituição?
A resposta é negativa. Como o Tribunal Constitucional afirmou no já mencionado
acórdão n.º 329/99, embora o direito de propriedade possa ser qualificado como
direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, na reserva
parlamentar apenas se inclui o núcleo essencial do direito: e a esse núcleo
essencial não pertencem, por exemplo, os direitos de urbanizar, lotear e
edificar.
No caso das normas ora em apreciação, não só o núcleo essencial do direito de
propriedade não é atingido, como o próprio direito de propriedade não é
atingido.
Com efeito, a tutela constitucional do direito de propriedade não contempla a
possibilidade de usufruir, sem qualquer restrição, de um bem de natureza
patrimonial. E a tese que considera necessária a autorização parlamentar para a
regulação do uso de certos sinais associados ao Euro 2004 parte do pressuposto
de que qualquer pessoa é, por natureza, titular do direito de utilizar esses
sinais, representando a exigência de autorização uma regulação desse direito
preexistente. Ora a Constituição não tutela semelhante direito, quando protege a
propriedade. A autorização do uso de sinais distintivos do comércio não é
regulação de direito preexistente; a própria existência do direito decorre de
tal autorização.
Não pode, assim, considerar-se que as normas ora em apreciação violem o disposto
no artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
8. O que acabou de dizer-se significa também que – contrariamente ao
que se sustentou na decisão recorrida – as normas dos artigos 4º e 5º do
Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17 de Abril, não representam qualquer restrição do
direito de propriedade, susceptível de ofender o disposto no artigo 62º da
Constituição.
Desnecessário se torna, portanto, averiguar se as normas questionadas se
conformam com os parâmetros constitucionais a que devem obedecer as restrições
do direito de propriedade.
9. E representarão as normas em causa uma restrição
constitucionalmente inadmissível do direito à iniciativa económica privada
(artigos 18º e 61º da Constituição)?
9.1. A este respeito, é evidente que, na situação dos autos, o núcleo
essencial da iniciativa económica privada não foi afectado. Como assinala o
Ministério Público nas suas contra-alegações (supra, 3.; fls. 415-416), nada
impediu a recorrida de ‘exercer plena e livremente o objecto da sua actividade
comercial, colocando no mercado os géneros alimentícios que produzia: a única
restrição, decorrente das normas desaplicadas, incide sobre determinado limite
legal quanto ao conteúdo de certas e determinadas mensagens publicitárias ou
comerciais incluídas nos produtos transaccionados’.
Ainda que se admitisse que, no caso, se está perante verdadeiras restrições, o
limite previsto no artigo 18º, n.º 3, parte final, da Constituição
encontrar-se-ia, assim, manifestamente verificado.
Importa todavia assinalar, quanto a este ponto que, de acordo com o artigo 61º,
n.º 1, da Constituição, a iniciativa económica privada se exerce livremente nos
quadros definidos pela Constituição e pela lei.
Ora, sendo o direito de iniciativa económica privada balizado, por natureza, por
esses quadros, é evidente que as normas ora em apreciação, mesmo a admitir-se
que constituam restrições, sempre encontrariam cobertura no disposto no próprio
artigo 61º, n.º 1. Ou seja: a asserção, constante da sentença recorrida, de que
‘não se vislumbra qualquer autorização constitucional para essa restrição’ (fls.
375), do que decorreria a violação do disposto no artigo 18º, n.º 2, 1ª parte,
da Constituição, não pode aceitar-se, pois que a própria Constituição concebe a
liberdade de iniciativa económica privada como um direito que está sujeito, no
seu exercício, ao enquadramento legalmente definido (quanto a este ponto,
veja-se, por exemplo, o que o Tribunal Constitucional afirmou no acórdão n.º
474/89, publicado no Diário da República, II, n.º 25, de 30 de Janeiro de 1990,
p. 1025 ss).
9.2. Considera a sentença recorrida que não existe, no caso, ‘necessidade
de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos,
porquanto os direitos que se pretendem salvaguardar já se encontravam tutelados,
de modo geral e abstracto, em outros diplomas legais, designadamente [em
diversas disposições, que enumera, do Código do Direito de Autor e dos Direitos
Conexos, do Código da Propriedade Industrial, do Código da Publicidade]’ (fls.
375 da sentença), o que redundaria em violação do disposto no artigo 18º, n.º 2,
2ª parte, da Constituição.
Não pode igualmente aceitar-se este entendimento da decisão recorrida. As
condutas a que se referem as normas dos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei n.º
86/2004, de 17 de Abril, não se encontram forçosamente previstas no Código da
Publicidade (na verdade, o artigo 5º, n.º 1, prevê expressamente a possibilidade
de a utilização dos sinais ter fins publicitários, o que significa que pode não
os ter), nem no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos ou no Código
da Propriedade Industrial, pois que tais normas não exigem o uso de um sinal
cujo direito de uso esteja atribuído a um terceiro.
9.3. Invoca depois a sentença recorrida que o Decreto-Lei n.º 86/2004 não
se configura como uma lei de carácter geral ou abstracto, não apenas porque
exclui do seu âmbito de aplicação determinadas entidades, em violação do
princípio da igualdade expresso no art. 13º da C.R.P., mas também porque viola
os princípios da legalidade e da tipicidade das contra-ordenações, visando
aplicar-se a situações concretas, cujo conteúdo não descreve com precisão,
pretendendo solucionar uma situação definida.
No que diz respeito à violação do princípio da igualdade, é manifesta a
improcedência do argumento, já que a discriminação imputada às normas em causa,
a existir, não se apresenta como infundamentada ou carecida de suporte material
adequado: com efeito, a utilização de certas designações ou símbolos,
representativos do evento desportivo em causa, exclusivamente pelas respectivas
entidades organizadoras e patrocinadoras, surge como a contrapartida da sua
participação nos custos associados à organização, promoção e realização de tal
evento desportivo.
Também não procede o argumento que consiste em atribuir carácter retroactivo às
normas dos artigos 4° e 5° do Decreto-Lei n.° 86/2004, em violação do artigo 29°
da Constituição. Com efeito, a tipificação das proibições constantes do artigo
4° é obviamente desprovida de natureza retroactiva. Tal norma apenas é aplicável
aos actos de utilização que tenham ocorrido após a vigência do diploma em que se
insere (18 de Abril de 2004). No caso dos autos, o que está em causa é o facto –
imputado à aqui recorrida – de, em dado momento, posterior à data da entrada em
vigor do diploma (concretamente, em 18 de Maio de 2004), estarem a ser
comercializados determinados produtos, em que eram utilizadas, de modo
ilegítimo, certas denominações ou símbolos.
Não ocorre, pois, qualquer violação dos artigos 18º, n.º s 2 e 3, e 13º da
Constituição, nem dos artigos 29º e 32º, n.º 10, na parte em que estas
disposições constitucionais proíbem a retroactividade em matéria de
contra-ordenações.
9.4. Problema diferente do da retroactividade das normas ora em
apreciação (e, aliás, só lateralmente tratado na sentença recorrida: fls. 380,
in fine) seria o de saber se essas mesmas normas violam o princípio da
confiança. Na verdade, pode perguntar-se se a proibição delas constante frustrou
legítimas expectativas da recorrida, por lhe ter impedido, já após o lançamento
da campanha publicitária, o uso de certos símbolos e denominações.
A resposta deve ser, também aqui, negativa: como, em síntese, refere o
Ministério Público, ‘«a restrição» constante do Decreto-Lei n.º 86/2004, de 17
de Abril, já tinha [...] a sua origem básica e matriz essencial em diploma legal
anteriormente editado [o Decreto-Lei n.º 268/2001, de 4 de Outubro],
limitando-se o Decreto-Lei n.º 86/2004 a explicitar e concretizar a «reserva» de
utilização proclamada em 2001, pelo artigo 10º, n.º 3, do citado diploma legal”
(fls. 419-420).
10. Considera ainda a sentença recorrida que as normas ora em apreciação
violam o disposto no artigo 26º da Constituição, na parte em que a todos
reconhece o direito à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação
(cfr. conclusão da sentença e fls. 371).
Não se alcança, porém, a razão de ser de tal entendimento. De qualquer modo, se
ele se prende com a invocada violação do princípio da igualdade, valem aqui as
considerações anteriormente feitas a propósito de tal princípio.
11. Afirma-se na sentença recorrida que as normas ora em apreciação
violam o disposto no artigo 268º da Constituição (direitos e garantias dos
administrados).
A sentença recorrida não fundamenta tal asserção, nem, aliás, se vê como podem
estas normas contrariar o artigo 268º da Constituição.
12. Finalmente, lê-se na sentença recorrida que ‘o Decreto-Lei em apreço
é inconstitucional nos seus artigos 4º e 5º por definir ilícitos
contra-ordenacionais mediante a utilização de conceitos vagos e indeterminados,
o que está em clara violação do art. 29º da C.R.P., como também a interpretação
efectuada pelos Inspectores do IGAE, no sentido de que qualquer menção a futebol
em publicidade estava vedada por virtude da entrada em vigor do DL n.º 86/2004,
de 17 de Abril, é inconstitucional por violação do art. 18º da C.R.P.,
designadamente na sua vertente de proibição do excesso’ (cfr. fls. 387).
A mencionada interpretação dos Inspectores do IGAE – que, aliás, a sentença
recorrida não reporta a qualquer preceito legal em concreto – não constitui
objecto do presente recurso de constitucionalidade, definido no respectivo
requerimento de interposição (fls. 393, supra, 2.), e, desde logo por esse
motivo, dela não se tomará conhecimento.
Quanto à utilização de conceitos vagos e indeterminados nos referidos artigos 4º
e 5º, que a sentença recorrida censurou, é certo que o Tribunal Constitucional
vem considerando que ‘o princípio da tipicidade subentende a garantia
constitucional de uma especificação dos factos que integram o tipo legal de
crime, mostrando-se, nessa medida, avesso a definições vagas ou incertas que,
nomeadamente, permitam ou proporcionem a via analógica’.
A este propósito, ponderou-se no acórdão n.º 93/2001 (publicado no Diário da
República, II série, n.º 130, de 5 de Junho de 2001, p. 9479 ss):
‘[…]
[...] o princípio da tipicidade subentende a garantia constitucional de uma
suficiente especificação dos factos que integram o tipo legal de crime, sendo,
como tal, avesso a definições vagas ou incertas que proporcionem ou admitam a
via analógica.
Só que, se a norma deve ser formulada de modo ao seu conteúdo se poder impor
autónoma e suficientemente, permitindo um controlo objectivo na sua aplicação
individualizada e concreta (cfr. António Castanheira Neves, «O Princípio de
Legalidade Criminal. O seu problema jurídico e o seu critério dogmático», in
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, Coimbra, 1984, pág.
334), nem sempre é possível alcançar uma total determinação – nem será,
porventura, desejável –, bastando que o facto punível seja definido com
suficiente certeza: a própria natureza da linguagem impede uma determinação
integral, sendo certo que pode representar-se negativamente uma enumeração
demasiado casuística, a multiplicar a eventualidade das lacunas e a dificultar a
determinação do que é essencial em cada caso.
A este respeito, escreveu um autor nunca ser o caso concreto um puro facto, «mas
uma unidade de sentidos socialmente relevante, mais ou menos complexa e
normalmente integrados por elementos culturais difíceis de definir», de modo que
a descrição de previsão legal contém muitas vezes expressões que não se deixam
reduzir a conceitos precisos (cfr. José de Sousa e Brito, «A lei penal na
Constituição», in Estudos sobre a Constituição, vol. 2º, Lisboa, 1978, págs.
243/244).
A necessidade de, na definição de crimes, se usar uma linguagem precisa e
delimitadora, com repúdio de preceitos abertos ou vagos, tem vindo a ser
jurisprudencialmente reconhecida, nomeadamente na matriz
jurídico-constitucional.
Desde logo, a Comissão Constitucional reconheceu que o princípio do nullum
crimen sine lege seria inoperante se fosse dada ao legislador ordinário a
possibilidade de não determinar com um mínimo de rigor, através do tipo legal, o
facto voluntário a considerar punível, sem prejuízo de admitir a inviabilidade
de uma total determinação e a eventual contraprocedência de um demasiado
casuísmo (assim, o Parecer n.º 19/78, publicado in Pareceres da Comissão
Constitucional, 6º volume, Lisboa, 1979, pág. 89).
Em linha consonante, o parecer n.º 32/80 (in Pareceres citados, 14º volume,
1983, pág. 60), após se interrogar sobre o grau admissível de indeterminação ou
flexibilidade normativa para os efeitos em causa, reconhece que uma relativa
indeterminação dos tipos legais de crime pode mostrar-se justificada, sem que
isso signifique violação dos princípios da legalidade e da tipicidade.
De igual modo vem ponderando o Tribunal Constitucional, como são exemplo os
acórdãos n.ºs 147/99, 168/99 e 179/99, inédito o segundo, publicados os demais,
no Diário da República, II Série, de 5 e 9 de Julho de 1999, respectivamente.
Retira-se dos lugares jurisprudenciais citados que, não sendo possível a
determinação absoluta – o que a Doutrina igualmente corrobora – é
constitucionalmente compatível um certo grau de indeterminação.
No citado acórdão n.º 168/99 escreveu-se, a certo passo:
«Averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto
expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da
conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para
que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas,
prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se
revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objecto de
punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.».
Reconhece-se a impossibilidade de uma pré-determinação integral, dada a dimensão
pragmática da linguagem jurídica, a intenção normativa das prescrições
jurídicas, a índole problemático-concreta do decisório juízo jurisdicional (A.
Castanheira Neves, loc. cit., pág. 377), para, no entanto, se concluir por se
pedir à norma penal, em síntese, «que obedeça a um grau de determinação
suficiente para não pôr em causa os fundamentos do princípio da legalidade».
Assim, pode a modelação do tipo não dispensar o recurso a técnicas
exemplificativas que nem por isso, necessariamente, se pode considerar afrontada
a exigência constitucional da lege certa que o princípio da tipicidade implica.
Decerto, a valoração jurídico-criminal dos comportamentos há-de ser formulada de
maneira tanto quanto possível precisa, de modo a não restarem dúvidas quanto aos
valores protegidos e à clara definição dos elementos da infracção, como se
ponderou, por exemplo, nos citados acórdãos n.ºs 179/99 e 383/00, ainda inédito.
Ponto é que haja um «completamento normativo» (Maria Fernanda Palma, Direito
Penal – Parte Especial – Crimes contra as Pessoas, sumários policopiados,
Lisboa, 1983, pág. 49), de modo a que o critério decisivo para aferir do
respeito pelo princípio da legalidade «[...] residirá sempre em saber se, apesar
da indeterminação inevitável resultante da utilização desses elementos
(elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas e fórmulas gerais),
do conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área e um fim de
protecção claramente determinados», nas palavras de Jorge Figueiredo Dias
(Direito-Penal – Questões Fundamentais – A doutrina geral do crime, apontamentos
policopiados, 1996, pág. 173).
[…].’
As considerações expendidas neste acórdão são transponíveis para o presente
caso. Com efeito, nem sempre é possível – nem será mesmo desejável – uma
determinação do tipo de tal modo acabada que se possa libertar de conceitos
‘algo imprecisos’. Aliás, em certos casos, uma rigorosa enumeração casuística
poderia revelar-se contraproducente, dada a multiplicação de espaços lacunares
que inevitavelmente comportaria.
Ora, a verificação de ‘uma relativa indeterminação tipológica’ não significa
violação dos princípios da legalidade e da tipicidade, como o Tribunal
Constitucional sublinhou no acórdão n.º 338/2003 (publicado no Diário da
República, II série, n.º 245, de 22 de Outubro de 2003, p. 15922 ss).
De todo o modo, sempre terá de existir um mínimo de determinabilidade que
permita identificar os tipos de comportamentos descritos, na medida em que
integram noções correntes da vida social, aferidas pelos padrões em vigor.
Correspondem a essa exigência conceitos como ‘utilização, directa ou indirecta,
por qualquer meio’, ‘sugira ou crie a falsa impressão’, ‘passível de criar um
risco de associação’, ‘susceptível de criar a falsa impressão’, utilizados no
preceito em análise.
Acolhem-se, assim, as considerações que, a este propósito, constam das
contra-alegações do Ministério Público (cfr. fls. 417-418):
‘[…]
No caso dos autos, não vemos que a «indeterminação» subjacente aos conceitos
legais seja sequer superior à que – quer no direito penal, quer no domínio das
contraordenações – o legislador utiliza frequentemente (veja-se, por exemplo, em
matéria conexa com a situação controvertida no presente processo a tipificação
do ilícito criminal de contrafacção, imitação ou uso ilegal de marca, constante
do artigo 323° do Código da Propriedade Industrial).
Na realidade – e face ao bem jurídico tutelado – o elemento essencial do tipo
terá necessariamente a ver com a «confundibilidade» de certa marca ou sinal,
efectivamente utilizada pelo arguido, com determinado símbolo, representativo de
certa realidade ou evento, a valorar naturalmente em função da criação de uma
«falsa impressão» no destinatário da mensagem publicitária – pelo que não vemos
que a tipificação, apesar do seu carácter amplo e genérico, afecte a percepção,
pelos destinatários da norma, do núcleo essencial da conduta punível, do seu
conteúdo de desvalor a respeito da lesão ou colocação em perigo de bens
jurídicos.
Por outro lado, é irrelevante o facto, notado pela sentença recorrida, de que o
grau de indeterminação da norma pode possibilitar uma conduta errónea ou abusiva
da Administração: estando asseguradas as garantias de defesa e o direito ao
recurso, tem naturalmente o arguido a plena possibilidade de fazer sindicar – e
corrigir judicialmente o eventual erro ou abuso cometido, fazendo repercutir na
interpretação da norma a correcta ponderação do valor ou bem jurídico tutelado.
[…].’.
As normas em apreço não violam, pois, os princípios da tipicidade e da
legalidade consagrados no artigo 29º da Constituição.”
3. O Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento.
No caso em apreço, o Relator julgou ser de proferir decisão sumária por se
tratar de matéria já anteriormente decidida por este Tribunal.
A lei permite o proferimento de decisões sumárias, em questões de
constitucionalidade consideradas simples, nomeadamente por se tratar de matéria
já anteriormente decidida por este Tribunal (cfr. artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei
do Tribunal Constitucional).
Assim sendo, o Relator pode simplesmente remeter para a fundamentação de
decisões anteriores (neste sentido, o Acórdão n.º 257/2000, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
No caso dos autos, a Reclamante desvaloriza a existência desta jurisprudência,
reafirmando a sua discordância com as anteriores decisões.
Para além disso, e analisada a reclamação, não se detecta qualquer argumento
novo, em relação aos que foram considerados na decisão sumária reclamada. O que
se detecta é o inconformismo com a mesma decisão.
Assim,
III – Decisão
5. Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido de negar provimento ao recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 1 de Julho de 2008
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos