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Processo nº 48/07
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é
recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do
acórdão daquele Tribunal de 22 de Novembro de 2006.
2. O Supremo Tribunal Administrativo acordou em conceder provimento aos recursos
interpostos (jurisdicional e contencioso), com os seguintes fundamentos:
«O Recorrente contencioso, à data da entrada em vigor do Dec. Lei n° 557/99, de
17 de Dezembro, detinha a categoria de Perito Tributário de 2.ª Classe, vencendo
em consequência pelo escalão 2, índice 590, do cargo de Adjunto de Chefe de
Finanças de nível I, em conformidade com o disposto no art° 4° do Dec. Lei n°
187/90, de 7/Jun, com a redacção dada pelo art° 2° do Dec. Lei n° 42/97, de
7/Fev..
Em aplicação daquele Dec. Lei n° 557/99, passou a ser remunerado pelo índice
610, correspondente ao escalão I, do cargo de Chefe de Finanças Adjunto, nível
I, nos termos do Anexo V daquele diploma.
O recorrente sustenta que deveria ter sido posicionado no escalão 2, índice 640,
do categoria de Chefe de Finanças Adjunto de nível I, por ser o escalão 2 aquele
em que estava posicionado como Perito Tributário de 2.ª Classe, apoiando a sua
pretensão no art. 45.º, n.° 1, daquele Decreto-Lei.
O acórdão recorrido não acolheu a sua pretensão, com base nas ponderações que
podem sintetizar-se do modo seguinte:
- I O DL n° 557/99, de 17-12, que aprova o estatuto de pessoal e regime de
carreiras dos funcionários da DGCI, apresenta duas espécies de formação: uma,
dos art°s 1° a 51°, que corresponde ao novo estatuto, propriamente dito; outra,
dos art°s 52° e ss, transitória, que regula a integração das situações
existentes naquele novo estatuto.
- Um perito tributário de 2ª classe, posicionado no escalão 2, índice 550, tendo
desempenhado desde Maio de 1999 funções de Chefe de Repartição de Finanças
Adjunto, nível I, passou a ser remunerado pelo índice 590, escalão 2, nos termos
do art° 4°, do DL n° 187/90, de 07-06, na redacção do DL n° 42/97, de 07-02.
- Encontrando-se no exercício dessas funções aquando da entrada em vigor do DL
n° 557/99, por força de norma especial de transição prevista no n° 1, do art°
58°, foi provido no lugar de Chefe de Finanças Adjunto nível I.
- Em consequência dessa transição, a sua integração escalonar obedeceria ao
disposto no art° 67°, «ex vi» art° 69°, do mesmo Diploma. Isto é, prima facie, a
sua integração salarial deveria ser feita para o escalão da nova categoria
correspondente ao índice que até então detivesse ou, caso não houvesse tal
correspondência, para o escalão que correspondesse ao índice imediatamente
superior.
- Deste modo, ao não haver correspondência de índices, segundo o anexo V, ao
diploma citado, a sua integração só poderia ser feita para o escalão 1, índice
610, o mais próximo e imediatamente superior ao que detinha antes da transição.
- À situação não é aplicável o art° 45°do DL n° 557/99, de 17-12- que prevê que
os funcionários que sejam nomeados para cargos de chefia tributária se integram
na escala indiciária própria dos referidos cargos, em escalão idêntico ao que
possuam na escala indiciária da categoria de origem - por se tratar de
disposição própria dos casos de nomeação que viessem a surgir no futuro.
Um tal entendimento era consonante com o que fora expresso por este STA,
relativamente ao mesmo grupo de pessoal, pelo menos, nos acórdãos de 02-12-2004
(Rec. n° 0449/04) e de 15-02-2005 (Rec. n° 0608/04), e reafirmado, pelo menos,
no acórdão de 14-03-2006 (Rec. n° 0854/05), todos com texto integral disponível
em www.dgsi.sta.pt.
No entanto, pelo acórdão do STA de 19-04-2005 (Rec. 0846/04), e quanto ao mesmo
grupo de pessoal, foi expendido entendimento discordante daquele, podendo ler-se
no respectivo Sumário (com texto integral disponível no mesmo local):
“O técnico de administração tributária em funções de chefia à data da entrada em
vigor do DL 557/99, de 17. 12, que continuou a exercer as mesmas funções, agora
como Adjunto de Chefe de Finanças, é integrado no escalão remuneratório nos
termos das disposições dos artigos 69.° e 67.°, mas nada obsta a que se lhe
aplique o artigo 45.° para efeitos de progressão na escala indiciária dos cargos
de chefia, por referência à progressão que teria na escala indiciária da
categoria de origem, quer por ser esse o sentido literal do n.° 2 do preceito,
quer porque os nomeados para cargos de chefia, mas sem o curso de chefia
previsto, por se considerarem habilitados nos termos do art.° 58.° n.° 9, não
poderiam passar a ganhar acima dos que estavam desde momento anterior a exercer
as mesmas funções com a mesma qualificação e progrediriam antes de escalão se
estivessem no lugar de origem”.
O Tribunal Constitucional (TC), através do seu acórdão n° 105/2006/Processo n.°
125/05 (publicado no DR.II.de 23.03.2006), foi chamado a pronunciar-se sobre a
interpretação contida no aludido aresto de 02-12-2004 (Rec. n° 0449/04), no
sentido de que os artigos 45°, 67° e 69° do DL n°557/99 não ofendiam as regras
dos arts. 13° e 59°, n°1, al.a), da CRP.
Em tal aresto do TC, enunciando que a questão que integrava o objecto do litígio
respeitava à integração, nas novas categorias e respectivos escalões salariais
do Grupo de pessoal da administração tributária (GAT), instituídos pelo
Decreto-Lei n.° 557/99, de 17 de Dezembro, dos adjuntos dos chefes de finanças,
que foram nomeados para o exercício destas funções, antes de 1 de Janeiro de
2000 (data da entrada em vigor do diploma – art. 77°), e depois de recordar o
doutrina que vem sendo firmada sobre o princípio da igualdade, expendeu-se:
“(…)
9 – À primeira vista, parece verificar-se, no caso em apreço, como, aliás,
ajuizou o acórdão recorrido, uma situação em que se afigura existir razão
material bastante para fundar uma discriminação dos adjuntos de chefe de
repartição de finanças resultante da sua integração em escalões diferentes desta
categoria, consoante tenham, nela, sido integrados por força do Decreto-Lei n.°
557/99, por mera conversão da nomeação para esse cargo de chefia, em comissão de
serviço, efectuada anteriormente à sua vigência, em nomeação para a categoria,
ou por virtude de nomeação efectuada segundo as regras de recrutamento
estabelecidas no seu art. 15°, n.° 1, alínea c).
Na verdade, segundo este preceito, a nomeação para a categoria de adjunto do
chefe de finanças passou a ficar dependente, a mais de outros requisitos
anteriormente exigidos, da obtenção de uma habilitação própria - a aptidão no
curso de chefia tributária, regulado no art. 38° do mesmo diploma - a partir da
entrada em vigor do diploma.
Tem-se por certo, tendo em conta o acima afirmado, que a exigência desta
habilitação especifica, enquanto encarnando, da perspectiva do legislador, uma
maior aptidão para o exercício das funções jurídicas e materiais próprias da
categoria em causa, constitui fundamento bastante para sustentar a atribuição de
um escalão de vencimento superior por parte de quem tem de a satisfazer em
relação a quem não está sujeito a ela.
Nesta perspectiva, a interpretação do conjunto dos referidos preceitos, segundo
a qual a regra de integração nas escalas salariais dos cargos de chefia,
prevista no referido art. 45°, abrange apenas os funcionários que sejam nomeados
após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 557/99, apresenta-se, prima facie,
isenta de censura constitucional
Acontece, porém, que o legislador, no art. 58°, n.° 9, do Decreto-Lei n.°
557/99, deu por satisfeita tal condição de recrutamento para a categoria em
causa em relação aos “funcionários abrangidos por este artigo [chefes de
repartição de finanças e adjuntos de chefe de repartição de finanças], bem como
os actuais peritos tributários e peritos de fiscalização tributária”,
considerando-os “como possuindo o curso de chefia tributária”.
Ora, o entendimento, segundo o qual a integração prevista no art. 45° do
Decreto-Lei n° 557/99 se aplica apenas aos funcionários que sejam nomeados para
o cargo depois da sua entrada em vigor, conjugado com o facto de o mesmo diploma
considerar, sem mais, como habilitados com o curso de chefia tributário os
funcionários a que alude o n.° 9 do art. 58°, conduz, já, todavia, a que peritos
tributários de 2ª classe, tidos, ao mesmo título (por mera atribuição legal)
como habilitados com o curso de chefia tributária, possam ser integrados, na
categoria de adjunto de chefe de repartição de finanças, em escalão inferior,
não obstante terem igual antiguidade na categoria de peritos tributários de 2ª
classe [que pelo diploma foi convertida na categoria de técnico de administração
tributário – art. 52°, n.° 1, alínea c)] e maior antiguidade na categoria de
adjunto de chefe de repartição de finanças, apenas porque foram nomeados para
este cargo antes da entrada em vigor e os outros depois da entrada em vigor do
mesmo diploma.
A possibilidade de verificação de um tal efeito normativo, que se mostra
concretizado no caso dos autos, não é, já, constitucionalmente tolerável,
ofendendo o disposto no art. 59°, n.° 1, alínea a) da Constituição, enquanto
corolário do princípio da igualdade, consagrado no seu artigo 13°, entendido nos
termos acima expostos”.
Em conformidade com tal doutrina julgou inconstitucionais, “por violação do
artigo 59°, n.° 1, alínea a), da Constituição, enquanto corolário do princípio
da igualdade consagrado no seu artigo 13°, as normas constantes dos artigos 69°,
67° e 45° do Decreto-Lei n.° 557/99, de 17 de Dezembro, na interpretação segundo
a qual os funcionários com a mesma antiguidade na mesma categoria de origem -
perito tributário de 2ª classe –, mas com maior antiguidade no cargo de chefia
tributário – adjunto de chefe de repartição de finanças de nível I –, auferem
remuneração inferior àqueles que têm menor antiguidade no cargo de chefia e que
foram nele investidos após a entrada em vigor do mesmo diploma”.
Neste STA, por acórdão desta Subsecção, de 16-05-2006 (Rec. n° 020/06),
procedendo-se à reapreciação da questão, no essencial, veio a ser acolhido tal
entendimento como se alcança do respectivo Sumário (podendo consultar-se o texto
integral no mesmo local) que se transcreve:
“I – Por força do disposto no art. 53.°, n.° 1, alínea c), do Decreto- Lei n.°
557/99, de 17 de Dezembro, os peritos de fiscalização tributária de 2.ª classe
transitaram para a categoria de Inspector Tributário de nível 1.
II – Concomitantemente com tal transição, os funcionários com aquela categoria
que exerciam o cargo de chefia de Adjunto de Chefe de Repartição de Finanças de
nível 1 consideraram-se providos no cargo de Chefe de Finanças Adjunto de nível
I (art. 58.°, n.° 1, daquele diploma).
III – De harmonia com o disposto no art. 67.°, n.° 1, deste Decreto- Lei, a
integração nos escalões do grupo do pessoal de administração tributário (GAT),
em que se inserem os inspectores tributários, faz-se para escalão da nova
categoria a que corresponda índice salarial igual ao que o funcionário detinha
na categoria de origem anterior ou para o índice imediatamente superior no caso
de não haver coincidência de índice.
IV – Esta regra é aplicável aos titulares de cargos de chefia, por força da
remissão feita pelo art. 69.° do mesmo diploma, e, da sua aplicação resulta que
os Peritos de Fiscalização Tributário de 2.ª classe que transitaram para a
categoria de Inspector Tributário e ficaram nesta posicionados no escalão 2,
ficam posicionados no escalão 1 no cargo de Chefe de Finanças Adjunto de nível
I.
V – Da aplicação do regime previsto no art. 45.°, n.° 1, deste Decreto-Lei,
resulta que os inspectores tributários que estejam posicionados no escalão 2 e
sejam nomeados Chefes de Finanças Adjuntos de nível 1 são posicionados no
escalão 2 deste cargo.
VI – É iníqua a situação de um funcionário que satisfaz os mesmos requisitas
profissionais e exerce funções idênticas a outro, inclusivamente no mesmo
serviço da Administração Tributária, ter remuneração inferior a este outro que
foi nomeado para o exercício do cargo posteriormente.
VII – Assim, são materialmente inconstitucionais os arts. 69.° e 67.°, n.° 1, do
Decreto-Lei n.° 557/99, ao aplicarem-se a situações em que o escalão do cargo de
chefia em que os funcionários são posicionados é um escalão inferior ao que eles
detêm na categoria de origem, pois dessa aplicação resulta uma violação do
princípio constitucional da igualdade, enunciado nos arts. 13.° e 59.°, n.° 1,
alínea a), da CRP, que impõe que aqueles funcionários fiquem posicionados em
escalão do cargo de chefia idêntico ao da categoria de origem, como está
previsto no n.° 1 do art. 45.° daquele diploma, para a generalidade dos
funcionários nomeados após a sua entrada em vigor para cargos de chefia”.
Reexaminando “pormenorizadamente as situações em que, na sequência da aplicação
do Decreto-Lei n.° 557/99 ficam o Recorrente contencioso e os seus colegas
peritos de fiscalização tributário de 2.ª classe que não exerciam funções de
chefia em 31-12-1999”, e em conformidade com tal doutrina, aquele aresto de
16-05-2006, com apelo ao que decorre do princípio da igualdade, concluiu que se
verificava uma situação de violação a tal princípio, sendo “materialmente
inconstitucionais os arts. 69.° e 67.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 557/99, ao
aplicarem-se a situações em que o escalão do cargo de chefia em que os
funcionários são posicionados é um escalão inferior ao que eles detêm na
categoria de origem, pois dessa aplicação resulta uma violação do princípio
constitucional da igualdade, enunciado nos arts. 13.° e 59.°, n.° 1, alínea a),
da CRP, que impõe que aqueles funcionários fiquem posicionados em escalão do
cargo de chefia idêntico àquele ao categoria de origem, como está previsto no
n.° 1 do art. 45.° daquele diploma, para a generalidade dos funcionários
nomeados após a sua entrada em vigor para cargos de chefia”.
Concordando com o essencial da doutrina vertida nos citados arestos [de
19-04-2005 e 16-05-2006 do STA e n° 105/2006/Processo n.° 125/05 do TC, que vem
sendo reafirmada em diversos outros arestos, citando-se por mais recentes os que
foram proferidos a 19-10-2006/proc. 0779/06 e a 26-10-2006-proc. 0715/06], e
transpondo-a para a situação dos autos, há que concluir que, o acto recorrido,
ao indeferir o requerimento em que o recorrente contencioso (perito tributário
de 2ª classe) pediu o processamento do seu vencimento pelo escalão 2, índice
640, do cargo de Chefe de Finanças Adjunto, nível 1, a partir de 1-1-2001,
enferma de vício de violação de lei, conducente à sua anulação (art. 135.° do
CPA)».
3. Desta decisão foi interposto o presente recurso para apreciação das “normas
dos artºs 69º, 67º e 45º do DL nº 557/99, de 17.12, na interpretação segundo a
qual funcionários com a mesma antiguidade, na mesma categoria de origem, mas com
maior antiguidade no cargo de chefia tributária, auferem remuneração inferior
àqueles que têm menor antiguidade no cargo de chefia e que foram nele investidos
após a entrada em vigor do mesmo diploma”.
4. Notificado para alegar, o Ministério Público, concluiu o seguinte:
«1º
São inconstitucionais, por violação do artigo 59°, n° 1, alínea a), da
Constituição, enquanto corolário do princípio da igualdade consagrada no artigo
13°, as normas constantes dos artigos 45°, 67° e 69° do Decreto Lei n° 557/99,
de 17/12, na interpretação segundo a qual os funcionários com a mesma
antiguidade na categoria de origem (perito tributário de 2ª classe), mas com
maior antiguidade no cargo de chefia tributária, auferem remuneração inferior
àqueles que têm menor antiguidade no cargo de chefia e que foram nele investidos
após a entrada em vigor do mesmo diploma.
2°
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado no
acórdão recorrido».
Notificado, o recorrido não contra-alegou.
5. Por despacho da relatora, o recorrente e o recorrido foram notificados para
se pronunciarem sobre a possibilidade de vir a ser proferida decisão de não
conhecimento do objecto do recurso, por ser configurável que a decisão recorrida
não recusou a aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade, tendo antes procedido à escolha de um dos sentidos
interpretativos possíveis dos artigos 45º, 67º e 69º do Decreto-Lei nº 557/99,
de 17 de Dezembro, afastando a interpretação que considerou colidir com a
Constituição.
Sobre isto pronunciou-se apenas o Ministério Público, nos seguintes termos:
«1°
Parece-nos manifesto que a “ratio decidendi” do acórdão recorrido assentou
decisivamente um juízo de inconstitucionalidade material acerca da interpretação
normativa que integra o objecto do presente recurso.
2°
A questão suscitada pelo douto despacho a que se reporta a presente peça
processual prende-se com a exacta delimitação das figuras da recusa de aplicação
de uma norma e da interpretação normativa em conformidade com a Constituição.
3º
Apesar de alguma “oscilação” da jurisprudência constitucional sobre o tema
(cf.v.g. os Acórdãos nos 170/85 e 425/89, por um lado, e os Acórdãos nos 172/96,
500/96, 1020/96, 524/97 e 319/00, por outro) afigura-se que deverão – segundo
esta linha orientadora – caber no âmbito da alínea a) do n° 1 do artigo 70° da
Lei do Tribunal Constitucional, como casos em que existe “verdadeira” recusa de
aplicação normativa, as situações em que, perante duas interpretações possíveis
ou plausíveis de certo preceito legal, o tribunal “a quo” afasta uma delas,
considerando-a lesiva de normas ou princípios constitucionais, aplicando a
segunda interpretação à dirimição do caso.
4º
Como sustenta, aliás, Rui Medeiros (A Decisão de Inconstitucionalidade, pg. 331)
basta, para ser admissível o recurso tipificado na alínea a) do n° 1 do artigo
70° da Lei n° 28/82, que o juízo de inaplicabilidade de certa interpretação
normativa se não funde, única ou primacialmente, no princípio da interpretação
conforme à Constituição, não desempenhando o apelo à Constituição, em sede
hermenêutica, uma função de apoio ou de confirmação de um sentido normativo já
sugerido pelos restantes elementos interpretativos da norma em causa.
5º
Ora, no caso dos autos, a longa transcrição dos fundamentos do juízo de
inconstitucionalidade, já formulado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n°
105/06, não poderá deixar de implicar que a decisão de “concordância” e
“transposição” para a situação dos autos de tal fundamentação significa
precisamente que o apelo aos princípios constitucionais desempenha uma função
“constitutiva” e decisiva na dirimição do caso – havendo, deste modo, uma
verdadeira “recusa de aplicação” do sentido normativo a que vem reportado o
presente recurso».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo
70º da LTC, segundo a qual cabe recurso para o Tribunal Constitucional das
decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento
na sua inconstitucionalidade.
Face ao teor da decisão recorrida, na parte em que afasta um sentido
interpretativo dos artigos 45º, 67º e 69º do Decreto-Lei nº 557/99, de 17 de
Dezembro, com fundamento na violação do artigo 59º, nº 1, alínea a), da
Constituição da República Portuguesa, põe-se a questão de saber se o acórdão do
Supremo Tribunal Administrativo recusou a aplicação de uma norma com fundamento
na sua inconstitucionalidade, abrindo a via do recurso previsto na alínea a) do
nº 1 do artigo 70º da LTC.
Sobre a questão aqui implicada, o Tribunal Constitucional tem vindo a entender
que há recusa (implícita) de aplicação de uma norma, admitindo-se o
correspondente recurso, nos casos de interpretação em conformidade com a
Constituição em que há afastamento de outra possibilidade interpretativa,
mormente da interpretação literal ou «natural», com fundamento na sua
inconstitucionalidade, desde que este afastamento constitua a ratio decidendi da
decisão recorrida e não um mero obiter dictum (cf. Cardoso da Costa, A
Jurisdição Constitucional em Portugal, Almedina, 2007, p. 73, nota 93, e, entre
outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 41/95, 172/96, 1020/96, 219/2002
e 8/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Seguindo este critério, é de concluir pelo conhecimento do objecto do recurso
interposto: para o decidido no acórdão recorrido foi decisivo o juízo que o
Supremo Tribunal Administrativo fez de que não é constitucionalmente tolerável,
ofendendo o disposto no artigo 59º, nº 1, alínea a), da Constituição, enquanto
corolário do princípio da igualdade consagrado no seu artigo 13º, o entendimento
[que se extrai do direito ordinário) segundo o qual a integração prevista no
art. 45° do Decreto-Lei n° 557/99 se aplica apenas aos funcionários que sejam
nomeados para o cargo depois da sua entrada em vigor por conduzir a que peritos
tributários de 2ª classe, tidos, ao mesmo título (por mera atribuição legal)
como habilitados com o curso de chefia tributária, possam ser integrados, na
categoria de adjunto de chefe de repartição de finanças, em escalão inferior,
não obstante terem igual antiguidade na categoria de peritos tributários de 2ª
classe e maior antiguidade na categoria de adjunto de chefe de repartição de
finanças, apenas porque foram nomeados para este cargo antes da entrada em vigor
e os outros depois da entrada em vigor do mesmo diploma.
2. A norma cuja aplicação foi recusada com fundamento em inconstitucionalidade e
que constitui o objecto do presente recurso extrai-se das seguintes disposições
do Decreto-Lei nº 557/99, de 17 de Dezembro:
“Artigo 45º
Integração nas escalas salariais dos cargos de chefia tributária
1 - Os funcionários que sejam nomeados para cargos de chefia tributária
integram-se na escala indiciária própria dos referidos cargos, em escalão
idêntico ao que possuem na escala indiciária da categoria de origem.
2 - Os funcionários providos em lugares correspondentes a cargos de chefia
tributária e que sejam promovidos no âmbito das carreiras do GAT são integrados
na nova categoria, no escalão que resultar da aplicação das regras previstas nos
nºs 1 e 2 do artigo anterior”;
“Artigo 67º
Integração nas categorias do GAT
1 - A integração nas novas categorias do GAT resultante das regras de transição
previstas no presente diploma faz-se para o escalão da nova categoria a que
corresponda o índice salarial igual ao que os funcionários detêm na categoria de
origem ou para o que corresponder ao índice imediatamente superior, no caso de
não haver coincidência de índice.
2 - Nos casos em que da aplicação da regra constante do número anterior resulte
um impulso salarial igual ou inferior a 10 pontos, conta para efeitos de
progressão o tempo de permanência no escalão de origem.
3 - Aos funcionários que em 2000 adquirissem por progressão na anterior escala
salarial o direito a remuneração superior à que lhes é atribuída pela transição
do presente diploma é garantida, a partir do momento em que se verificasse
aquela progressão, a remuneração correspondente ao índice para o qual
progrediriam naquela escala salarial.
4 - Os funcionários cuja primeira e segunda progressões após a transição para a
escala salarial correspondente à nova categoria se faça para índice inferior ao
que lhe teria sido atribuído na escala actualmente em vigor serão pagos pelo
índice que lhes caberia na escala anterior até perfazerem o tempo legalmente
previsto para a nova progressão.
5 - Das transições decorrentes do presente diploma não podem resultar durante o
período de um ano após a sua entrada em vigor impulsos salariais superiores a 20
pontos indiciários.
6 - Nos casos em que se verificam impulsos salariais superiores aos referidos no
número anterior, o direito à totalidade da remuneração só se adquire após ter
decorrido o período de um ano sobre aquela transição.
7 - O disposto nos números anteriores não impede a integração formal no escalão
que resultar das regras de transição.
8 - Os funcionários e agentes que se aposentem durante o ano da entrada em vigor
do presente diploma terão a sua pensão de aposentação calculada com base no
índice que couber ao escalão em que foram posicionados”;
“Artigo 69º
Integração dos chefes e adjuntos dos chefes de finanças
A integração dos chefes e adjuntos dos chefes de finanças nas respectivas
escalas salariais faz-se de acordo com a regra prevista no artigo 67º do
presente diploma.”
3. A questão de constitucionalidade que importa apreciar e decidir já foi
objecto de decisões anteriores do Tribunal Constitucional: no Acórdão nº
105/2006, a partiu do qual o Supremo Tribunal Administrativo inverteu o
entendimento maioritário que sobre a matéria se vinha firmando, e, recentemente,
no Acórdão nº 167/2008 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Pode ler-se nesta última decisão, que acolhe o julgamento feito no Acórdão nº
105/2006, o seguinte:
«5. No referido acórdão n.º 105/2006, em situação que só difere da presente por
se tratar de apreciar um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional, por
violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, enquanto corolário
do princípio da igualdade consagrado no seu artigo 13º, as normas constantes dos
artigos 69.º, 67.º e 45.º do Decreto-Lei n.º 557/99, de 17 de Dezembro, na
interpretação segundo a qual os funcionários com a mesma antiguidade na mesma
categoria de origem – perito tributário de 2ª classe –, mas com maior
antiguidade no cargo de chefia tributária – adjunto de chefe de repartição de
finanças de nível I –, auferem remuneração inferior àqueles que têm menor
antiguidade no cargo de chefia e que foram nele investidos após a entrada em
vigor do mesmo diploma.
Para tanto, ponderou-se o seguinte:
“9 – À primeira vista, parece verificar-se, no caso em apreço, como, aliás,
ajuizou o acórdão recorrido, uma situação em que se afigura existir razão
material bastante para fundar uma discriminação dos adjuntos de chefe de
repartição de finanças resultante da sua integração em escalões diferentes desta
categoria, consoante tenham, nela, sido integrados por força do Decreto-Lei n.º
557/99, por mera conversão da nomeação para esse cargo de chefia, em comissão de
serviço, efectuada anteriormente à sua vigência, em nomeação para a categoria,
ou por virtude de nomeação efectuada segundo as regras de recrutamento
estabelecidas no seu art. 15º, n.º 1, alínea c).
Na verdade, segundo este preceito, a nomeação para a categoria de adjunto do
chefe de finanças passou a ficar dependente, a mais de outros requisitos
anteriormente exigidos, da obtenção de uma habilitação própria – a aptidão no
curso de chefia tributária, regulado no art. 38º do mesmo diploma – a partir da
entrada em vigor do diploma.
Tem-se por certo, tendo em conta o acima afirmado, que a exigência desta
habilitação específica, enquanto encarnando, da perspectiva do legislador, uma
maior aptidão para o exercício das funções jurídicas e materiais próprias da
categoria em causa, constitui fundamento bastante para sustentar a atribuição de
um escalão de vencimento superior por parte de quem tem de a satisfazer em
relação a quem não está sujeito a ela.
Nesta perspectiva, a interpretação do conjunto dos referidos preceitos, segundo
a qual a regra de integração nas escalas salariais dos cargos de chefia,
prevista no referido art. 45º, abrange apenas os funcionários que sejam nomeados
após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 557/99, apresenta-se, prima facie,
isenta de censura constitucional.
Acontece, porém, que o legislador, no art. 58º, n.º 9, do Decreto-Lei n.º
557/99, deu por satisfeita tal condição de recrutamento para a categoria em
causa em relação aos “funcionários abrangidos por este artigo [chefes de
repartição de finanças e adjuntos de chefe de repartição de finanças], bem como
os actuais peritos tributários e peritos de fiscalização tributária”,
considerando-os “como possuindo o curso de chefia tributária”.
Ora, o entendimento, segundo o qual a integração prevista no art. 45º do
Decreto-Lei nº 557/99 se aplica apenas aos funcionários que sejam nomeados para
o cargo depois da sua entrada em vigor, conjugado com o facto de o mesmo diploma
considerar, sem mais, como habilitados com o curso de chefia tributária os
funcionários a que alude o n.º 9 do art. 58º, conduz, já, todavia, a que peritos
tributários de 2ª classe, tidos, ao mesmo título (por mera atribuição legal)
como habilitados com o curso de chefia tributária, possam ser integrados, na
categoria de adjunto de chefe de repartição de finanças, em escalão inferior,
não obstante terem igual antiguidade na categoria de peritos tributários de 2ª
classe [que pelo diploma foi convertida na categoria de técnico de administração
tributária – art. 52º, n.º 1, alínea c)] e maior antiguidade na categoria de
adjunto de chefe de repartição de finanças, apenas porque foram nomeados para
este cargo antes da entrada em vigor e os outros depois da entrada em vigor do
mesmo diploma.
A possibilidade de verificação de um tal efeito normativo, que se mostra
concretizado no caso dos autos, não é, já, constitucionalmente tolerável,
ofendendo o disposto no art. 59º, n.º 1, alínea a) da Constituição, enquanto
corolário do princípio da igualdade, consagrado no seu artigo 13º, entendido nos
termos acima expostos.”
6. Acompanha-se este entendimento, que corresponde a jurisprudência consolidada
do Tribunal na apreciação de normas do regime da função pública que conduzam a
que funcionários mais antigos numa dada categoria passem a auferir remuneração
inferior à de outros com menor antiguidade e idênticas habilitações, por virtude
de reestruturações de carreiras ou de alterações do sistema retributivo em que
interfiram factores anómalos, de circunstância puramente temporal, estranhos à
equidade interna e à dinâmica global do sistema retributivo e sem relação com a
natureza do trabalho ou com as qualificações, a experiência ou o desempenho dos
funcionários confrontados (cfr. acórdão n.º 323/2005, Diário da República, I
Série-A, de 14 de Outubro de 2005 e jurisprudência aí referida).
Com efeito, os funcionários que em 31 de Dezembro de 1999 não exercessem funções
de chefia e detivessem, como o recorrente, a categoria de peritos de
fiscalização tributária de 2.ª classe e fossem remunerados pelo escalão 2 dessa
categoria, transitariam para a categoria de técnicos de administração tributária
de nível I, nos termos do artigo 52.º, n.º 1, alínea c), daquele diploma, sendo
integrados no escalão 2 desta categoria. Face ao preceituado no n.º 9 do artigo
58.º, que os dispensa do curso de habilitação exigido pelo artigo 15.º, passaram
a poder ser imediatamente nomeados para cargos de chefia idênticos ao do
recorrido e a ser remunerados pelo escalão 2 do cargo respectivo, por força do
disposto no n.º 1 do artigo 45.º do Decreto-Lei n.º 557/99. Ele, sujeito às
regras específicas da transição do pessoal em exercício de cargos de chefia à
data da entrada em vigor da nova estrutura remuneratória (artigos 67.º e 69.º),
continuaria a ser remunerado pelo escalão 1, até perfazer o módulo de tempo e as
mais condições necessárias para a progressão.
E não estamos perante uma anomalia da concepção do regime de transição sem
efectiva concretização na situação remuneratória dos funcionários que
potencialmente se aplica. Segundo o acórdão de 16 de Maio de 2006, Proc. 20/06,
do Supremo Tribunal Administrativo (http://www.dgsi.pt/jsta), terão ocorrido
nomeações susceptíveis de produzir esta diferenciação remuneratória,
designadamente as constantes do Despacho publicado no Diário da República, II
Série, de 31 de Maio de 2001 (aviso 7514/2001). Trata-se, seguramente, de
funcionários a que não detinham o curso de chefia tributária, pois o respectivo
regulamento só veio a ser aprovado pelo Despacho do Secretário de Estado dos
Assuntos Fiscais n.º 26160/2005 (2.ª série), Diário da República, II Série, de
20‑12‑2005.
7. Poderia objectar-se que o interessado sempre teria a possibilidade de evitar
a percepção de remuneração inferior à de outros funcionários com a mesma
categoria de origem e com menor antiguidade em cargo de chefia concorrendo, como
eles, a lugares postos a concurso ao abrigo do novo regime, com o consequente
posicionamento na escala remuneratória ao abrigo do n.º 1 do artigo 45.º do
Decreto-Lei n.º 557/99.
Não parece, todavia, que esta possibilidade de eliminar a distorção afaste a
violação do princípio “a trabalho igual salário igual” que resulta do bloco
legal considerado, no seu funcionamento normal. Comporta um sacrifício
desproporcionado – basta pensar na álea do concurso ou, até, em não lhe
interessarem os novos lugares em que pudesse ser provido sem hiato temporal –,
exigir a um funcionário que renuncie ao cargo que ocupa e se candidate a novo
lugar de chefia como expediente para evitar ter remuneração inferior a outro,
sem melhores habilitações que venha a ser nomeado posteriormente para o
exercício de cargo idêntico».
É este entendimento que agora se reitera, negando, consequentemente, provimento
ao recurso interposto.
III. Decisão
Em face do exposto decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma que resulta dos artigos 69º, 67º e 45º do
Decreto-Lei n.º 557/99, de 17 de Dezembro, na interpretação segundo a qual
funcionários com a mesma ou superior antiguidade na categoria de origem e com a
mesma ou superior antiguidade no cargo de chefia tributária auferem remuneração
inferior àqueles que têm menor antiguidade no cargo de chefia e que foram nele
investidos após a entrada em vigor do mesmo diploma, por violação do artigo 59º,
nº 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que à questão
de constitucionalidade respeita.
Sem custas, face à isenção do recorrente.
Lisboa, 1 de Abril de 2008
Maria João Antunes
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido quanto ao conhecimento, conforme
Declaração
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Começo por esclarecer que acompanho as objecções levantadas ao conhecimento do
objecto do recurso que ficaram expressas nos votos apostos ao Acórdão n.º
105/2006, por entender que o Tribunal recorrido não aplicara, como ratio
decidendi, a formulação normativa então impugnada, tal como desenvolvidamente se
explica no Acórdão n.º 710/2005 deste Tribunal, que trata de um caso semelhante.
Além disso, entendo que essa determinação jurídica não apresenta sequer natureza
normativa, sendo mesmo um trecho pretensamente retirado da decisão então
recorrida, mas que essa decisão, na verdade, não adoptou.
Tais razões são também pertinentes no presente caso, em que – diversamente do
anterior – está em causa um recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1
do artigo 70º da LTC.
Na verdade, na essência do julgamento operado em contencioso administrativo por
via de recurso interposto de um acto de indeferimento tácito, o tribunal
limita-se a verificar se o acto administrativo recorrido enferma da invocada
violação de lei cuja ocorrência determinará a procedência do recurso e a
anulação desse acto.
Ora, a interferência de um raciocínio de desconformidade constitucional de
determinadas normas só mediatamente constitui a ratio decidendi da decisão
anulatória; esta resulta, na verdade, directamente da circunstância de o acto
que constitui o objecto do recurso contencioso estar contaminado na sua origem
por uma errada interpretação e aplicação de normas jurídicas.
Nestes termos, a adopção, na decisão aqui recorrida, de um raciocínio de
desconformidade constitucional de normas jurídicas constitui um argumento, mas
não o fundamento da decisão, situação que obrigatoriamente demandaria a adopção
de um processo de aplicação ao caso de normas repristinadas por efeito do vazio
normativo provocado pela desaplicação da norma inconstitucional, o que,
efectivamente, não ocorre.
Entendo, por isso, que não se verificou a desaplicação de norma que constitui o
pressuposto do recurso previsto na citada alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da
LTC.
Carlos Pamplona de Oliveira