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Processo n.º 245/08
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é
recorrente A. e recorrido o Ministério Público, a Relatora proferiu a seguinte
decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público,
foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b) da CRP e do
artigo 70º, n.º 1, alínea b) da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação do Porto,
proferido em 13 de Junho de 2007 (fls. 791 a 826) e complementado pela recusa de
aclaração de 12 de Setembro de 2007 (fls. 835 e 836), para que fosse apreciada a
constitucionalidade “dos artigos 97º, nº 4 e 187º, nº 1, als. a) e e) do CPP,
interpretados no sentido com que o foram na decisão recorrida, isto é, que
apesar de no despacho de fls. 28 não terem sido especificamente convocados nem
factos nem tipos de crime subsumíveis às duas alíneas aduzidas deste último
artigo, são legais as escutas efectuadas” (fls.850).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr.
fls. 851), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não
vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito
legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os
pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº
2, da LTC.
Se o Relator constatar que não foram preenchidos os pressupostos de interposição
de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta
do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC. Ora, por força do artigo 79º-C da LTC, este
Tribunal apenas pode conhecer dos recursos que tenham por objecto normas ou
interpretações normativas que tenham sido efectivamente aplicadas pelas decisões
recorridas.
Quando define a interpretação normativa que pretende ver apreciada pelo Tribunal
Constitucional, o recorrente considera que a decisão recorrida aplicou a norma
resultante da conjugação entre os artigos 97º, n.º 4 e 187º, n.º 1, alíneas a) e
e), ambos do CPP, no sentido de que, mesmo que o despacho do juiz de instrução
que autoriza a gravação das chamadas telefónicos não refira expressamente os
factos que preencham os elementos típicos dos crimes referidos naquelas alíneas,
seria admissível a utilização daquela prova processual em sede de uma
determinada acção penal.
Contudo, da análise da decisão recorrida, desde logo resulta que aquela não
considerou preenchida a alínea a) do n.º 1 do artigo 187º do CPP, e, como tal,
não a aplicou efectivamente. Conforme expressamente reconhecido pela decisão
recorrida, “a moldura penal nele prevista impossibilitaria, todavia, a conclusão
extraída desta primeira premissa, ou seja, de que a escuta iria ser realizada ao
abrigo do disposto no artigo 187.º, alínea a) do CPP” (fls. 825). Daqui decorre
que a decisão recorrida não aplicou efectivamente a alínea a) do n.º 1 do artigo
187º do CPP, pelo que, ao abrigo do artigo 79º-C da LTC, não pode este Tribunal
conhecer dessa parte do recurso.
Por outro lado, quanto à alínea e) do n.º 1 do artigo 187º do CPP, também não é
verdade que a decisão recorrida tenha interpretado este preceito legal como
permitindo, de modo liminar, que fosse possível autorizar escutas telefónicas
mesmo que do despacho de autorização não constassem factos que preenchessem os
elementos dos tipos de crime extraídos daquela alínea. Esta visão excessivamente
simplista – que encontra sede no modo como o recorrente configurou o objecto do
recurso – é prontamente desmentida pela decisão recorrida.
Nota-se, aliás, que este Tribunal não goza dos poderes necessários à sindicância
dos juízos interpretativos formulados pelos tribunais comuns, quando estes sejam
estritamente dirigidos à aplicação do Direito infra-constitucional. Significa
isto que o Tribunal Constitucional não curará sequer de apreciar se a
interpretação adoptada pelo tribunal “a quo” se adequa às normas e princípios
que enformam o Direito Processual Penal. Ciente dos poderes que lhe foram
expressamente conferidos pela Constituição da República Portuguesa, este
Tribunal limitar-se-á a ponderar se aquela interpretação normativa corresponde
àquela que foi arguida de inconstitucional pelo ora recorrente.
Ora, sucede que se afigura evidente que a decisão recorrida entendeu – ao
contrário daquilo que alega o recorrente – que a alínea e) do n.º 1 do artigo
187º do CPP se encontra preenchida, por estar em causa um crime de violação de
domicílio, previsto e punido no artigo 190º do CP, e por aquele mesmo crime
constar – ainda que apenas implicitamente – do despacho que autorizou as escutas
telefónicas. Assim, veja-se:
“Pelas razões de princípio escalpelizadas nas citações supra enunciadas, também
é legalmente possível invocar a final a alínea e) da mesma norma. (…) a verdade
é que não é de excluir daquela alínea e) a implícita referência ao artigo 190.º
do CP.
Assim, consideramos plenamente correcto o entendimento e conclusões perfilhados
na motivação do M.º P.º.” (fls. 825)
Este sentido interpretativo já havia sido, aliás, propugnado pelo Ministério
Público, junto do tribunal “a quo”, que considerara que:
“- mesmo que existisse alguma falta ao não colocar expressamente o art.º 190.º
do CPP, o que resulta de resto da alínea invocada e demais fundamentação no
despacho, nunca o vício seria o da nulidade, não afectando o valor do acto
probatório.” (fls. 822)
Torna-se assim forçoso reconhecer que a norma em causa – que resulta da
conjugação entre o n.º 4 do artigo 97º e a alínea e) do n.º 1 do artigo 187º,
ambos do CPP – não foi efectivamente aplicada como entende o recorrente, mas
antes como sendo bastante que pudesse ser extraído, ainda que implicitamente, do
despacho que ordena as escutas telefónicas a referência a um crime previsto na
referida alínea e).
3. Por outro lado, afigura-se ainda que o recorrente não deu cumprimento ao
disposto no n.º 2 do artigo 72º da LTC, pois não suscitou de modo
processualmente adequado a questão de inconstitucionalidade que agora pretende
ver apreciada. Isto porque, apenas em sede de aclaração da decisão recorrida
(fls. 832), o recorrente colocou o tribunal “a quo” perante um incidente de
inconstitucionalidade.
E nem se argumente que a decisão recorrida constituiu uma decisão-surpresa, pelo
que só então pôde o recorrente suscitar a inconstitucionalidade em causa.
Conforme este Tribunal tem notado, sem oscilações, o recorrente apenas poderia
ter sido dispensado do dever processual de prévia invocação da
inconstitucionalidade da norma extraída da conjugação dos artigos 97º, n.º 4 e
187º, n.º 1, alínea e), ambos do CPP, caso não pudesse contar – de modo
objectivo – com a decisão alvo de recurso nos presentes autos.
Este Tribunal tem entendido que:
i) “A razão pela qual o Tribunal Constitucional tem
dispensado este ónus em casos excepcionais ou anómalos, como se refere na
decisão reclamada, é a de considerar não exigível antecipar um sentido
objectivamente inesperado, sobre o qual o recorrente não teve a oportunidade de
se pronunciar antes de proferida a decisão recorrida” (cfr. Acórdão n.º
394/2005)”;
ii) “O Tribunal tem considerado até que cabe às partes
considerar antecipadamente as várias hipóteses de interpretação razoáveis das
normas em questão e suscitar antecipadamente as inconstitucionalidades daí
decorrentes antes de ser proferida a decisão” (cfr. Acórdão n.º 489/94);
iii) “(…) não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o
ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que
se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas
processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma
estratégia processual adequada). E isso – acrescentar-se-á – também logo mostra
como a simples «surpresa» com a interpretação dada judicialmente a certa norma
não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas
situações excepcionais (…) em que seria justificado dispensar os interessados da
exigência da invocação «prévia» da inconstitucionalidade perante o tribunal «a
quo».
Mas – e agora em segundo lugar – se alguma vez tal for de admitir, então haverá
de sê-lo apenas numa hipótese em que a interpretação judicial seja tão insólita
e imprevisível, que seria de todo o ponto desrazoável a parte contar (também)
com ela” (cfr. Acórdão n.º 479/89).
Ora, sucede que a interpretação adoptada pela decisão recorrida corresponde
integralmente à defendida pelo (então) recorrente Ministério Público, na sua
motivação de recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto. Teria sido
então, em sede de resposta à motivação do recurso, que o recorrente deveria ter
suscitado a questão de inconstitucionalidade normativa que resultaria de uma
eventual adesão do tribunal “a quo” à tese do (então) recorrente e agora
recorrido. Não o tendo feito nesse momento processual, o recorrente não suscitou
de modo processualmente adequado a questão de inconstitucionalidade ora em
apreço, por força do n.º 2 do artigo 72º da LTC.
Em suma, quer por a interpretação normativa que o recorrente reputa de
inconstitucional não ter sido efectivamente aplicada, quer por não ter suscitado
oportunamente a questão de inconstitucionalidade normativa que pretende ver
apreciada nos presentes autos, impõe-se o não conhecimento do objecto do
presente recurso, ao abrigo do n.º 2 do artigo 72º e do artigo 79º-C, ambos da
LTC.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98,
de 26 de Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7
UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de
Outubro.»
2. Inconformado com esta decisão, vem o recorrente reclamar, para a conferência,
contra a não admissão do recurso, nestes precisos termos:
«Segundo a decisão reclamada, a decisão recorrida não aplicou a alínea a) do nº
1 do art. 187° do CPP, não interpretou a alínea e) do n°1 do mesmo artigo nos
termos aduzidos no recurso e o recorrente não suscitou de modo processualmente
adequado a questão da inconstitucionalidade que pretende ver apreciada. Tê-lo-ia
feito serodiamente.
Salvo melhor opinião, a decisão reclamada só tem razão na parte em que fala da
alínea a) do n°1 do art. 187º do CPP. Na verdade,
Quer quando levantou a questão da inconstitucionalidade, quer quando interpôs
recurso, o reclamante fê-lo no sentido de ver ponderada a inconstitucionalidade
dos artigos 97° nº 4 e 187° n°1, alíneas a) e e) do CPP no sentido com que
considerou que foram interpretados na decisão recorrida, isto é, no sentido de
que apesar de no despacho de fls. 28 não terem sido especificadamente convocados
nem factos nem tipos de crime subsumíveis às duas alíneas aduzidas deste último
artigo são legais as escutas efectuadas.
É efectivamente verdade que a decisão recorrida afasta a aludida alínea a) da
questão ao concluir que o tipo de crime invocado impossibilitaria, pela moldura
penal, a escuta. Só que o acórdão não se fica por aí. Efectivamente, de seguida,
conforme alegado, para sustentar a legalidade do despacho, não indicando
quaisquer factos, encontra no despacho uma referência implícita ao artigo 190°
do CP pela simples razão de ter sido invocada a aludida alínea e). Inexiste
qualquer relação entre os factos e o direito que foram invocados na decisão de
1ª instância e a aludida alínea.
No aludido despacho não foram invocados quaisquer factos passíveis de
subsumir-se à previsão do artigo 190° do CP, crime que, inclusive, exige um dolo
específico.
Mas a lei ordinária impõe que os actos decisórios sejam fundamentados, devendo
ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Temos, pois, que a decisão recorrida defende que, apesar de objectivamente não
terem sido especificadamente convocados nem factos nem tipos de crime
integráveis na alínea e) do n°1 do art. 187° do CPP, uma vez que a mesma foi
referida, não se sabendo sequer porquê no despacho, é possível não excluir dela
uma implícita referência ao art. 190º do CP. Mas o art. 190° do CP nunca foi
referido no despacho.
É aqui que vem à demanda o art. 97° n°4 do CPP. A lei exige que sejam
especificados, isto é, individualizados, expressos de forma precisa,
concretizados, quer os factos, quer as normas. O despacho não aduz nem uns, nem
outros. A decisão recorrida consegue, independentemente disso, isto é, sem
factos, encontrar uma referência implícita a norma não invocada. É a
ultrapassagem de todas as regras e limites.
Temos, pois, considerando a realidade objectiva dos autos, que a decisão
recorrida interpretou os artigos invocados - 97° n°4 e 187°, nº 1, alínea e) do
CPP - da forma invocada pelo recorrente. A decisão recorrida mandou às malvas a
necessidade e a obrigatoriedade de fundamentação.
Ao contrário do que diz a decisão reclamada, face à posição do M° P°, em 1ª
instância, era humanamente impossível alcançar que a decisão recorrida
conseguiria, sem invocar quaisquer factos, encontrar uma referência implícita a
normativo nunca invocado, O M° P° não tinha ousado tanto.
Estamos, pois, no âmbito do caso excepcional em que o interessado não tinha
hipóteses de prever saída de índole semelhante, saída que se permitiu decidir
sem ser com base em factos e normas previamente invocados.
Fundamentos pelos quais se deve conhecer do objecto do recurso, excluída a
referência à alínea a) do art. 187° do CPP.» (fls. 863 e 864)
3. Notificado da reclamação, o Representante do Ministério Público junto deste
Tribunal pronunciou-se no seguinte sentido:
«1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão
reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do recurso.»
(fls. 871)
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. O reclamante insiste em apontar à decisão recorrida a violação do dever de
fundamentação prescrito pelo artigo 97º, n.º 4 do CPP. Contudo, este Tribunal
não dispõe dos poderes de cognição necessários para reformar, em sede de
recurso, os juízos proferidos pelos tribunais comuns, relativamente a questões
estritamente relacionadas com a aplicação do Direito infra-constitucional.
Quanto aos demais argumentos, o reclamante não logrou contrariar a constatação
de que o tribunal “a quo” não aplicou efectivamente a norma extraída da alínea
e) do n.º 1 do artigo 187º do CPP, sendo evidente que a decisão recorrida não
interpretou aquela mesma norma no sentido de que seriam legais as escutas
telefónicas, mesmo que não tivessem sido especificados os factos ou os tipos de
crime subsumíveis àquela alínea, mas antes interpretou aquela norma no sentido
de que essa especificação do tipo de crime pode ocorrer de modo implícito. Por
não ter configurado o objecto do presente recurso nos mesmos termos aplicados
pela decisão recorrida, não pode a presente reclamação proceder.
Por fim, quanto à alegada natureza surpreendente da interpretação normativa
aplicada pela decisão recorrida – o que, segundo o ora reclamante, justificaria
a dispensa de prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade – reitera-se
o já demonstrado pela decisão reclamada, ou seja, que a interpretação normativa
efectivamente aplicada já havia sido propugnada pelo Ministério Público, em sede
de motivação de recurso para o Tribunal da Relação do Porto. Deste modo, a
aplicação daquela interpretação não pode configurar-se como insólita,
imprevisível ou inaudita, visto que, desde o momento em que foi notificado da
motivação de recurso, o ora reclamante poderia ter suscitado a questão de
inconstitucionalidade, de modo a que o tribunal recorrido dela pudesse conhecer.
Deste modo, a presente reclamação é totalmente improcedente.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 15 de Maio de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão