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Processo n.º 1086/07
Plenário
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
Relatório
O Provedor de Justiça, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, d), da
Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), deduziu pedido de fiscalização
abstracta sucessiva, requerendo a declaração de inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, das normas constantes do artigo 11.º, n.º 1, alíneas f) e l),
do Decreto Regulamentar n.º 53/97, de 9 de Dezembro, por violação do artigo
30.º, n.º 4, da C.R.P., com os seguintes fundamentos:
“O Decreto Regulamentar n.º 53/97, de 9 de Dezembro, que define o regime do
recrutamento e selecção de pessoal para admissão dos candidatos à Polícia
Marítima, estabelece, no respectivo art.º 11º, um conjunto de requisitos
cumulativos de admissão a concurso para os candidatos a agentes estagiários.
No rol de requisitos cumulativos referido contam-se o de “não ter sido condenado
por qualquer crime doloso” e o de “não ter averbado quaisquer punições durante o
cumprimento do serviço militar”, respectivamente consagrados nas alíneas f) e l)
do preceito mencionado.
Quer um quer outro dos requisitos mencionados acarretam, de forma automática e
como efeito necessário, a impossibilidade de admissão a concurso para os
candidatos que tenham sofrido uma ou mais condenações por crime doloso, ou uma
ou mais punições, quaisquer que estas sejam, durante o cumprimento do serviço
militar.
No caso da alínea l), a punição, inibidora da admissão a concurso, pode ser
qualquer uma, incluindo a simples repreensão.
Está-se seguramente perante um efeito automático da punição, que inviabiliza a
candidatura e assim o eventual acesso a uma determinada profissão.
Na verdade, ao dispor o normativo legal em causa que o candidato não será
admitido a concurso se tiver sofrido condenação por crime doloso ou uma qualquer
punição durante o cumprimento do serviço militar, facilmente se conclui que não
se está perante uma apreciação e valoração autónoma do comportamento anterior do
candidato, mas perante uma decorrência automática e, por isso, ope legis, de
sanções anteriormente aplicadas.
Esta consequência automática, desligada de qualquer valoração da sua adequação e
proporcionalidade ao caso concreto, colide frontalmente com a norma contida no
art.º 30º, n.º 4, da Constituição, que determina que “nenhuma pena envolve como
efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou
políticos.”
…
A jurisprudência do Tribunal Constitucional é já vasta sobre a matéria, e vai no
sentido de que os efeitos das penas se traduzem materialmente numa verdadeira
pena, que não pode deixar de estar sujeita, na sua aplicação, às regras próprias
do Estado de direito democrático, designadamente as da reserva judicial, do
princípio da culpa e da proporcionalidade da pena.
Por exemplo, no Acórdão n.º 562/03 — através do qual foi declarada a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma do Estatuto dos
Militares da Guarda Nacional Republicana (GNR), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
265/93, de 31 de Julho, conjugada com uma outra norma do Regulamento de
Disciplina da GNR, aprovado pela Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, que
estabeleciam como condição especial para a promoção ao posto de cabo, por
diuturnidade, a de não ter o candidato sido punido na Guarda com o somatório de
penas superior a vinte dias de suspensão ou equivalente - elencam-se as vários
decisões do Tribunal sobre a matéria.
…
No mesmo Acórdão é ainda apreciada a questão, de resto já merecedora de decisões
no mesmo sentido em arestos anteriores também aí mencionados, da aplicabilidade
do disposto no artº 30.º, n.º 4, da Constituição a sanções de tipo disciplinar.
Esta orientação do Tribunal Constitucional torna-se relevante, na situação aqui
em análise, para o caso da alínea l) do nº 1 do artº 11.º do Decreto
Regulamentar n.º 53/97.
…”
Notificado para se pronunciar sobre este pedido, o Primeiro-Ministro ofereceu o
merecimento dos autos.
Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando a que se refere o artigo 63.º
da Lei do Tribunal Constitucional, e tendo este sido submetido a debate, nos
termos do n.º 2, do referido preceito, cumpre agora decidir de acordo com a
orientação que o tribunal fixou.
*
Fundamentação
1. As normas questionadas
O Decreto Regulamentar n.º 53/97, de 9 de Dezembro, estabelece os princípios
gerais em matéria de recrutamento e selecção de pessoal para admissão de
candidatos ao curso de formação de agentes para ingresso nos quadros da Polícia
Marítima, dando execução ao disposto no artigo 17.º, do Estatuto de Pessoal da
Polícia Marítima, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 248/95, de 21 de Setembro.
O seu artigo 11º, n.º 1, que indica os requisitos cumulativos de admissão ao
respectivo concurso, dispõe o seguinte:
“Só podem ser admitidos ao concurso os candidatos a agentes estagiários que
satisfaçam cumulativamente os seguintes requisitos:
…
f) Não ter sido condenado por qualquer crime doloso;
…
l) Não ter averbado quaisquer punições durante o cumprimento do serviço militar;
…”
O legislador ordinário entendeu que a natureza das funções exercidas pela
Polícia Marítima exigia dos seus agentes uma especial idoneidade cívica que
deveria ser garantida pela não admissão de qualquer candidato a
agente-estagiário que já tivesse sido condenado pela prática de crime doloso, ou
que tivesse averbado qualquer punição durante o cumprimento do serviço militar,
vedando-lhe, assim, o ingresso nesta carreira profissional.
É a constitucionalidade destes dois requisitos negativos que é questionada pelo
presente pedido de fiscalização abstracta sucessiva.
2. A proibição contida no artigo 30.º, nº 4, da C.R.P.
O artigo 30.º, n.º 4, da C.R.P., introduzido pela Revisão Constitucional de
1982, dispõe que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de
quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos” (esta disposição surgiu
originariamente no artigo 76.º do Projecto da Parte Geral do Código Penal de
1963 da autoria de Eduardo Correia).
A introdução no texto constitucional deste preceito (a história da sua aprovação
encontra-se pormenorizadamente narrada no acórdão deste Tribunal n.º 748/93,
pub. em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 26.º vol., pág. 31) correspondeu
à elevação a princípio jurídico-constitucional da ideia de que certos efeitos
jurídicos das penas, ou da condenação, não podem resultar destas duma forma
puramente mecanicista.
Proíbe-se que duma condenação penal possa resultar, como consequência
automática, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, sem
necessidade de se efectuar um juízo que pondere, na situação concreta, a
adequação e necessidade da produção desses efeitos.
Na verdade, ao estabelecer-se um nexo consequencial entre a aplicação duma pena
e a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, alguns dos princípios
que presidem à aplicação das penas devem também estar presentes na aplicação
daquelas medidas, nomeadamente os princípios da culpa, da necessidade e da
proporcionalidade, pelo que é imprescindível a mediação de um juízo que avalie
os factos praticados e pondere a adequação e a necessidade de sujeição do
condenado a essas medidas, não podendo as mesmas resultarem ope legis da simples
condenação penal (vide, neste sentido, DAMIÃO DA CUNHA, em “Constituição
Portuguêsa anotada”, dirigida por Jorge Miranda e Rui Medeiros, tomo I, pág.
337-338, da ed. de 2005, da Coimbra Editora).
Além disso, não se pode olvidar que tal proibição tem como seu principal
fundamento o combate ao efeito estigmatizante, dessocializador e criminógeno das
penas, prejudicial à integração social dos condenados (vide, neste sentido,
Eduardo Correia, em 'As grandes linhas da reforma penal', em “Jornadas de
Direito Criminal”, p. 29, FIGUEIREDO DIAS, em “Direito Penal Português. As
consequências jurídicas do crime”, pág. 53-54, 95-96, e 158-160, da ed. de 1993,
da Aequitas e Editorial Notícias, e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em
“Constituição da República Portuguesa anotada”, vol. I, pág. 504, da 4ª ed., da
Coimbra Editora), vector necessariamente integrante de qualquer programa
político-criminal de um Estado de direito, visando a realização de uma
democracia social (FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 159-160, e em “Os novos
rumos da política criminal e o direito penal português no futuro”, na R.O.A.,
Ano 43.º, vol. I, pág. 33). A determinação da perda de um direito civil,
profissional ou político, como efeito automático de uma condenação penal,
prejudicaria a ressocialização do condenado, sem qualquer possibilidade de
ponderação da necessidade e adequação da extensão do efeito estigmatizante da
pena.
3. A ofensa do artigo 30.º, n.º 4, da C.R.P., pelas normas questionadas
O disposto na alínea f), do nº 1, do artigo 11.º, do Decreto Regulamentar n.º
53/97, de 9 de Dezembro, não permite que uma pessoa condenada pela prática de
qualquer crime doloso se candidate a agente da Polícia Marítima, impedindo-a de
aceder a esta carreira profissional.
Com esta solução legislativa o facto de uma pessoa ter sofrido uma condenação
penal, pela prática de um crime doloso, impede-a, automaticamente, de aceder a
uma profissão – agente da Polícia Marítima – sem que se avalie a gravidade, a
antiguidade e a natureza dos factos ilícitos praticados, nem a existência de
circunstâncias, sem relação directa com o crime, mas que possam desvalorizar o
juízo negativo resultante da condenação, e sem que se efectue uma ponderação
casuística da relevância dessa condenação no concurso de acesso a esta
profissão.
Estamos, assim, perante uma interdição ao exercício do direito constitucional de
acesso a uma determinada profissão (artigo 47.º, n.º 1, da C.R.P.), como
consequência da existência de uma condenação penal anterior, sem qualquer
ponderação da adequação e da necessidade de aplicação de tal medida de
interdição, o que contraria a proibição contida no artigo 30.º, n.º 4, da
C.R.P..
A alínea l), do mesmo número, não permite que uma pessoa que sofreu uma punição
durante o cumprimento do serviço militar, abrangendo todas as sanções
disciplinares previstas no Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 142/77, de 9 de Abril, que vão desde a simples repreensão à
separação de serviço, passando pela prisão disciplinar (artigos 22.º e seg.), se
candidate a agente da Polícia Marítima, impedindo-a de aceder a esta carreira
profissional.
Verifica-se a interdição do exercício do mesmo direito fundamental, agora como
consequência automática da aplicação de uma sanção de cariz disciplinar militar.
Tal como sucede com algumas garantias constitucionais do processo penal que
também se aplicam a outros processos sancionatórios, como o processo disciplinar
(artigo 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, da C.R.P.), tem também o Tribunal
Constitucional entendido que a proibição estabelecida no artigo 30.º, n.º 4, da
C.R.P., por identidade de razões, se deve estender à perda automática de
direitos civis, profissionais ou políticos, resultante de anterior condenação em
sanção disciplinar (vide, neste sentido, os acórdãos n.º 282/86, em “Acórdãos do
Tribunal Constitucional”, 8.º vol., pág. 207, n.º 522/95, em “Acórdãos do
Tribunal Constitucional”, 32.º vol., pág. 345, e n.º 562/2003, em “Acórdãos do
Tribunal Constitucional”, 57.º vol., pág. 119).
Por estes motivos devem ser declaradas inconstitucionais, com força obrigatória
geral, as normas contidas nas referidas alíneas f) e l), do n.º 1, do artigo
11.º, do Decreto Regulamentar n.º 53/97, de 9 de Dezembro.
4. A limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade
Tendo em atenção que uma declaração de inconstitucionalidade produz efeitos ex
tunc (artigo 282.º, nº 1, da C.R.P.) devem ser ponderadas as eventuais
repercussões negativas da apontada inconstitucionalidade, relativamente às
situações jurídicas constituídas à sombra da aplicação do regime concursal onde
se inserem as normas questionadas.
Encontrando-se estas em vigor há mais de 10 anos, ocorreram durante todo esse
período temporal inúmeros ingressos de pessoas nos quadros da Polícia Marítima,
ao abrigo de concursos realizados com aplicação daquele regime, tendo-se
consolidado a situação jurídico-profissional das mesmas.
O princípio da segurança jurídica impõe que os concursos já findos não possam
ser reabertos por força do presente juízo, justificando-se lançar mão da
faculdade conferida pelo n.º 4, do artigo 282.º, da C.R.P., por forma a limitar
os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, de modo a não serem afectados
os resultados dos concursos findos não impugnados ou cuja impugnação já foi
definitivamente decidida.
*
Decisão
Pelo exposto:
a) Declara-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas
contidas nas alíneas f) e l), do n.º 1, do artigo 11.º, do Decreto Regulamentar
n.º 53/97, de 9 de Dezembro, por violação do disposto no artigo 30.º, n.º 4, da
Constituição da República Portuguesa;
b) Nos termos do artigo 282.º, n.º 4, da C.R.P., ressalvam-se, por motivos de
segurança jurídica, os efeitos produzidos até à publicação deste acórdão pelas
normas cuja declaração de inconstitucionalidade agora se opera, sem prejuízo dos
casos ainda susceptíveis de impugnação ou que dela se encontrem pendentes.
*
Lisboa, 22 de Abril de 2008
João Cura Mariano
Vítor Gomes
José Borges Soeiro
Ana Maria Guerra Martins
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira –vencido conf. decl.
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido quanto à alínea a) da decisão por entender que as normas em
análise não são desconformes com a Constituição, designadamente com o disposto
no n.º 4 do seu artigo 30º, pois visam – respeitando claramente o princípio da
proporcionalidade – estabelecer um mero requisito ao exercício desta profissão.
Para além disso, os requisitos negativos em análise não constituem obstáculos
perpétuos ao exercício da profissão, pois – embora no acórdão nada se pondere
sobre o assunto – as formas de reabilitação genericamente previstas no nosso
ordenamento jurídico permitem estabelecer um limite temporal à proibição em
causa.
Carlos Pamplona de Oliveira