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Processo n.º 855/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. requereu perante os serviços de segurança social de Coimbra a concessão de
apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos
com o processo para assim poder intervir num processo de execução fiscal que lhe
fora instaurado.
Tomando por base o rendimento anual líquido do requerente e da pessoa que com
ele vive em situação análoga à dos cônjuges, a que se considerou corresponder o
rendimento relevante, para efeitos de protecção jurídica, superior a metade e
menor do que duas vezes o valor do salário mínimo nacional, os serviços de
segurança social notificaram o requerente, em sede de audiência do interessado,
de uma proposta de decisão no sentido de lhe ser deferido o pedido de apoio
judiciário na modalidade pagamento faseado.
Tendo o requerente manifestado a sua discordância, no uso da faculdade prevista
no artigo 100º do Código de Procedimento Administrativo, o pedido veio a ser
indeferido por decisão de 6 de Março de 2007.
O requerente impugnou essa decisão perante o Tribunal Administrativo e Fiscal de
Lisboa, que decidiu conceder ao impugnante o apoio judiciário na requerida
modalidade de dispensa total de pagamento de custas e demais encargos do
processo, desaplicando, no caso concreto, as normas constantes do Anexo que
integra a Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, em conjugação com aos artigos 6º a 10º
da Portaria nº 1085-A/2004, de 31 de Agosto, por violação dos artigos 1º, 59º,
nº 2, alínea a), e 63, nºs 1 e 3, e 20º, nº 1, da Constituição da República
Portuguesa.
A decisão encontra-se fundamentada, na parte que mais interessa considerar, nos
seguintes termos:
Na sequência deste diploma [referindo-se à Lei nº 34/2004, de 29 de Julho], a
concessão de protecção jurídica a quem, tendo em conta factores de natureza
económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem condições objectivas
para suportar pontualmente os custos de um processo (cf. artigo 8, nº 1, da Lei
nº 34/2004) passou a depender do valor do rendimento relevante para efeitos de
protecção jurídica (artigos 8°, nº 5, e 20°, n° 1, e ponto 1. do Anexo da Lei n°
34/2004), determinado a partir do rendimento do agregado familiar — ou seja,
também a partir do rendimento das pessoas que vivam em economia comum com o
requerente de protecção jurídica (n°s 1 e 3 do ponto 1. deste Anexo) — e das
fórmulas previstas nos artigos 6º a 10° da Portaria n° 1085-A/2004, de 31 de
Agosto.
A apreciação em concreto da situação de insuficiência económica do requerente de
protecção jurídica passou a ter lugar a título excepcional (cf. artigos 20º, nº
2, da Lei de 2004 e 2 da referida Portaria), diferentemente do que sucedia no
direito anterior (cf. artigos 7º, n 1, 20º, nºs 1 e 2, e 23º, nº 2, do
Decreto-Lei nº 387-B/87, artigos 7º, nº 1, e 20º, nºs 1 e 2, da Lei nº 30-
E/2000 e modelo de requerimento de apoio judiciário para pessoas singulares
aprovado pela Portaria nº 1223-A/2000, de 29 de Dezembro), relativamente ao qual
é de salientar, a título exemplificativo, que o afastamento da presunção de
insuficiência económica, legalmente estabelecida, dependia da circunstância de o
requerente fruir outros rendimentos, próprios ou de terceiros.
A norma que constituía o artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de
Dezembro, e que era preenchida em face do caso concreto, passou a ser uma norma
preenchida legislativamente. Quer dizer, o que era antes uma norma aberta ao
preenchimento do caso concreto passou a ser uma norma fechada, interpretada “ope
legis” por critérios económicos e financeiros aplicados através de uma fórmula
matemática.
No caso concreto, nega-se o apoio judiciário na modalidade de dispensa total do
pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo a um peticionante
com um agregado composto por três pessoas e com um rendimento global de € 167,86
porque, segundo os critérios definidos no Anexo à lei do apoio judiciário,
calculados segundo as fórmulas estabelecidas em portaria, apenas tem direito ao
pagamento faseado.
A situação só por si apresenta contornos inaceitáveis se tivermos em atenção,
como devemos ter, o custo de vida, nomeadamente, os custos com as necessidades
básicas hodiernas, como a habitação, a educação, a saúde e a exigência de
assegurar um nível mínimo de rendimentos para que possa concretizar-se o
princípio máximo e supremo da dignidade da pessoa humana.
Mas o caso é mais premente porque, como se sabe, o apoio judiciário é concedido
para questões ou causas judiciais concretas ou susceptíveis de concretização
(artigo 6º, n.º 2, da LAJ). Deve ser requerido antes da primeira intervenção
processual, salvo se a situação da insuficiência económica for superveniente ou
se, em virtude do decurso do processo ocorrer algum encargo excepcional,
mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre o mérito da
causa e é extensivo a todos os processos que sigam por apenso àquele em que em
que essa concessão ocorrer (artigo 18º, nº 2, da LAJ).
Significa tal que este instituto só se justifica relativamente a questões
judiciais em que o interessado queira exercer ou defender os seus direitos o que
implica a pendência de uma lide ou a possibilidade dessa pendência.
Na situação em análise evidencia-se que o impugnante pretende defender-se em
relação a diversas dívidas fiscais objecto de várias execuções fiscais (sendo
certo que a apensação das execuções não é automática — artigo 179º do CPPT).
Embora o cálculo do montante de prestação mensal não seja em função do montante
das custas do processo, mas antes em função de vectores como o rendimento
relevante de protecção jurídica e do salário mínimo nacional (ponto II do Anexo)
e haja um limite temporal para estas prestações, não sendo exigíveis as que se
vençam após o decurso de quatro anos desde o trânsito em julgado da decisão
final sobre a causa (nº 2 do artigo 16º da Lei nº 34/2004), o certo é que a
justificação do pagamento faseado em situações como a dos autos em que o
requerente necessita de instaurar vários processos, desvirtua-se completamente.
A injustiça flagrante é o limite mínimo da validade do direito, devendo o
intérprete desaplicar a lei quando ela se revele intoleravelmente injusta. A
irrazoabilidade, a desproporcionalidade, a irracionalidade são indicadores dessa
injustiça flagrante e, na medida em que impedem a aceitação da lei por parte dos
seus destinatários, retiram-lhe a validade.
Analisada a situação em concreto do requerente - o seu agregado familiar, os
seus rendimentos, as suas despesas e todas os demais elementos relevantes -,
verifica-se que o mesmo reúne as condições objectivas para que lhe seja
concedido o apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento total da
taxa de justiça e demais encargos com o processo (artigo 8º da LAJ).
Assim, é de concluir pela desaplicação das normas constantes do Anexo que
integra a Lei nº 34/2004, em conjugação com aos artigos 6º a l0º da Portaria nº
1085-A/2004, as quais não garantem, na situação em referência, a concessão do
apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento total da taxa de justiça
e demais encargos com o processo, por violação dos artigos 1º, 59º, nº 2, alínea
a), e 63º, nºs 1 e 3, e 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Desta decisão, interpôs o Ministério Público recurso para Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do
Tribunal Constitucional, vindo a apresentar, no seguimento do processo, as
seguintes alegações:
1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, que recusou
aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, as normas constantes do anexo
à Lei nº 34/04, em conjugação com os artigos 6º a 10º da Portaria 1085-A/2004,
enquanto conduziram a denegar ao requerente A. o apoio judiciário, na modalidade
de dispensa total da taxa de justiça e demais encargos do processo.
Na verdade, na óptica da decisão recorrida, o sistema normativo emergente das
disposições legais questionadas – conduzindo a uma avaliação da situação
económica do requerente assente exclusivamente na aplicação das fórmulas
rigidamente estatuídas, inviabilizando a ponderação casuística, substituída por
uma “norma fechada, interpretada “ope legis” por critérios económicos e
financeiros aplicados através de uma fórmula matemática”, viola o direito de
acesso à justiça pelos economicamente carenciados.
Analisando a especificidade do caso concreto, verifica-se que:
- foi tido em consideração, na avaliação da invocada insuficiência económica do
requerente, não apenas o rendimento por ele auferido mensalmente (€ 735,86), mas
também o recebido pela pessoa que com ele vive em situação análoga à dos
cônjuges;
- a rigidez do sistema normativo vigente implicou que não pudesse ser
considerada a especificidade do caso, decorrente de o impugnante pretender
defender-se “em relação a diversas dívidas fiscais objecto de várias execuções
fiscais” - desvirtuando-se, neste caso, completamente a justificação do
pagamento faseado que lhe havia sido autorizado pela Segurança Social.
Note-se que a primeira circunstância, atrás salientada, é suficiente para
conduzir à aplicação do juízo de inconstitucionalidade formulado no acórdão nº
654/06: na verdade, no cálculo do rendimento relevante para o efeito de
concessão do benefício do apoio judiciário, na modalidade peticionada pelo
requerente, foi tido em consideração o rendimento global do agregado familiar,
incluindo o auferido por quem com ele convivia em união de facto,
independentemente de este poder fruir ou dispor de tal rendimento – não sendo
perceptível a existência de interesse relevante do “cônjuge de facto” nas acções
para que se pretendia obter a protecção jurídica, nem de qualquer obrigação
deste em custear as despesas judiciais do interessado directo.
E tal juízo de inconstitucionalidade implica naturalmente – só por si – a
reapreciação do rendimento disponível relevante do requerente – o que nos
dispensa, por ora, de abordar a questão numa outra perspectiva: a do carácter
eventualmente inibitório da defesa em juízo dos direitos, assente nos critérios
económicos-financeiros tabelados, excessivamente restritivos, decorrentes das
normas desaplicadas; é que, em certas circunstâncias, a imposição do dever de
pagamento faseado a quem se encontre num nível de rendimento pouco superior ao
limiar da sobrevivência condigna (inferido do valor salário mínimo) poderá
efectivamente funcionar como factor de inibição da defesa judicial dos direitos,
obrigando tais pagamentos – embora “faseados” – , a que o interessado tenha de
deixar de satisfazer necessidades básicas e fundamentais para os assumir.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º - As normas constantes do anexo à Lei nº 34/04, conjugado com os artigos 6º a
10º da Portaria 1085-A/2004, enquanto impõem que o rendimento relevante para
efeitos de concessão do beneficio de apoio judiciário seja determinado a partir
do rendimento do agregado familiar (incluindo quem convive com o requerente de
protecção jurídica em união de facto), independentemente de este fruir tal
rendimento ou de existir uma obrigação do titular do rendimento em custear as
despesas dos pleitos em que o requerente está envolvido, viola o direito de
acesso à justiça e aos tribunais.
2º - Termos em que deverá, nesta medida, confirmar-se o juízo de
inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida.
Em idêntico sentido se pronunciou o recorrido, concluindo as suas alegações do
seguinte modo:
1ª As normas constantes do Anexo que integra a Lei n° 34/2094, em conjugação com
os artigos 6° a 10º da Portaria n° l085-A/2004, de 31 de Agosto, conduzem a que
não seja concedido o apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento
total da taxa de justiça e demais encargos com o processo uma vez que impõem que
o rendimento relevante para efeitos dessa concessão, seja determinado a partir
do rendimento integral do agregado familiar, no qual se inclui o rendimento da
companheira do recorrido, com quem vive em situação análoga à dos cônjuges,
independentemente do mesmo fruir tal rendimento ou se o titular deste tem algum
interesse, ou obrigação em custear as despesas da demanda, de forma a que esta
conjugação de normas, viola o direito de acesso à justiça e aos tribunais.
2ª O acesso ao direito e aos tribunais no que à capacidade dos litigantes
reporta comporta, pelo menos, três regras:
a) A primeira regra é que tal acesso só não é gratuito, porque tal se revelaria
impossível de concretizar. Do que extraímos a regra da menor onerosidade
possível;
b) A segunda regra refere-se aos concretos litigantes e impõe que o acesso a
juízo não deva constituir um grande sacrifício. Ou seja, o homem médio, colocado
nas circunstâncias do litigante concreto, deve poder desenvolver a sua vida
quotidiana, sem que a presença em juízo (muitas vezes, não voluntária) constitua
um encargo de tal monta que o impeça de fizer a sua vida normal;
c) A terceira regra cruza o acesso aos tribunais com os princípios da
necessidade e da adequação, ponderados em concreto.
3ª Os artigos 6º a 10° da Portaria n.º 1085-A/2004, em si ou interpretados no
sentido das despesas a suportar por um agregado não deverem ser integralmente
consideradas na determinação da decisão de conceder ou não apoio judiciário na
modalidade de dispensa total ou parcial de taxa de justiça e demais encargos com
o processo, modalidade essa prevista no artigo 16°, n.º 1, da Lei n.º 34/2004,
são inconstitucionais por violação dos princípios do respeito pela dignidade
humana, do livre acesso aos Tribunais e da tutela jurisdicional efectiva, tal
como os mesmos resultam do disposto nos artigos 1º, 59º, nº 2, alínea a), 63º,
nºs 1 e 3, e 20º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa
Deve, pois, confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão
recorrida.
Determinou-se, em substituição dos vistos, a entrega aos Exmos Juízes adjuntos
das peças processuais relevantes.
Cabe apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Através da decisão ora recorrida, o Tribunal Administrativo e Fiscal de
Lisboa, no âmbito de uma impugnação judicial da decisão dos serviços de
segurança social que indeferiu ao requerente o pedido de apoio judiciário,
recusou a aplicação das normas constantes do Anexo à Lei nº 34/2004, de 29 de
Julho, em conjugação com os artigos 6º a 10º da Portaria n 1085-A/2004, de 31 de
Agosto, por violação dos artigos 1º, 59º, nº 2, alínea a), e 63º, nºs 1 e 3, e
20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
De acordo com a factualidade dada como assente, o impugnante, no requerimento de
protecção jurídica, indicou como constituindo o agregado familiar, a
companheira, com quem vive em situação análoga à dos cônjuges, e um filho menor,
correspondendo-lhe o rendimento anual líquido € 15751,64.
Requereu o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de
justiça e demais encargos com o processo, para poder intervir em execução
fiscal que lhe fora instaurada por dívidas de uma sociedade de que foi sócio
gerente.
Os serviços de segurança social, tomando em consideração um rendimento anual
líquido de €16.350,11, calculado com base na média dos últimos seis meses de
vencimento próprio (€ 735,86) e da pessoa com quem vive em união de facto (€
432,00), a que corresponde um rendimento relevante para efeitos de protecção
jurídica expresso em múltiplos de salário mínimo actual de 1,41, determinado nos
termos dos artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/04, de 31 de Agosto, entendeu
que o requerente se encontrava na situação prevista na alínea c) do n.º 1 do
Anexo à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, e, nesses termos, «não reun[ia] as
condições de apoio judiciário na modalidade requerida, mas apenas ter[ia]
direito ao pagamento faseado, se opta[sse] por esta modalidade».
Tendo sido notificado para se pronunciar, em audiência de interessado, quanto a
essa proposta de decisão, o requerente, em resposta, manifestou a sua oposição,
pugnando pela concessão do apoio judiciário na requerida modalidade de dispensa
de taxa de justiça e demais encargos do processo, pelo que, na sequência, o
pedido veio a ser integralmente indeferido.
A impugnação judicial do acto administrativo de indeferimento culminou com a
decisão judicial de recusa de aplicação de normas, que está agora sob apreço.
Em recurso obrigatório, o Exmo Magistrado do Ministério Público considerou
transponível para o caso a doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional nº
654/06, tendo em linha de conta que para o cálculo do rendimento relevante, para
o efeito de concessão do benefício do apoio judiciário, se atendeu ao rendimento
global do agregado familiar, incluindo o que era auferido pela pessoa que
convivia com o requerente em união de facto, independentemente de saber se este
poderia fruir ou dispor de tal rendimento.
3. Com efeito, nos termos do artigo 6º, n.º 1, da Portaria n.º 1085-A/2004, o
rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica, é o montante que
resulta da diferença entre o valor do rendimento líquido completo do agregado
familiar e o valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica.
Conforme explicita o artigo 7º, o valor do rendimento líquido completo do
agregado familiar resulta da soma do valor da receita líquida do agregado
familiar com o montante da renda financeira implícita calculada com base nos
activos patrimoniais do agregado familiar (n.º 1), entendendo-se por receita
líquida o rendimento depois da dedução do imposto sobre o rendimento, das
contribuições obrigatórias dos empregados para regimes de segurança social e das
contribuições dos empregadores para a segurança social (n.º 2). Por sua vez, o
valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica resulta da soma do
valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado familiar com o
montante da dedução de encargos com a habitação do agregado familiar, e é
calculado de acordo com o estabelecido no artigo 8º. E, finalmente, o cálculo do
valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica, à luz de todas
as especificações constantes dos artigos precedentes, é efectuada através da
fórmula descrita no artigo 9º
É ainda por referência ao rendimento relevante (em que como se viu intervém o
rendimento das pessoas que compõem o agregado familiar) que se aprecia a
insuficiência económica do requerente de apoio judiciário, para efeitos da
concessão de protecção jurídica, atendendo-se aos parâmetros definidos no Anexo
à Lei n.º 34/2004. Sendo ainda certo, conforme resulta do n.º 3 desse Anexo, que
para efeitos dessa Lei «considera-se que pertencem ao mesmo agregado familiar as
pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção jurídica».
Tem-se, por conseguinte, como certo, face ao estipulado na lei, que, para efeito
de averiguar a situação de insuficiência económica determinante da concessão de
apoio judiciário, em qualquer das suas modalidades, haverá que ter em conta os
rendimentos das pessoas que integram o agregado familiar, entendendo-se como tal
as pessoas que vivam em economia comum, independentemente de serem igualmente
interessadas no litígio jurisdicional para que o requerente pretende o apoio
judiciário.
O que o acórdão do Tribunal Constitucional nº 654/06 teve presente, num caso em
que o requerente do apoio judiciário vivia com um ascendente do segundo grau que
lhe prestava alimentos, é que o mencionado regime legal, deixando de efectuar,
em regra, qualquer ponderação em concreto da situação de insuficiência
económica, e passando a considerar, para esse efeito, o rendimento do agregado
familiar com base na aplicação de uma mera fórmula matemática, poderá
representar a denegação do direito de acesso aos tribunais quando se verifique
que o requerente poderá não dispor dos rendimentos de terceiros que compõem o
agregado familiar e que estes poderão não estão sequer obrigados a contribuir
para as despesas judiciais que o requerente pretenda realizar.
Por isso mesmo, o citado aresto decidiu «julgar inconstitucional, por violação
do n.º 1 do artigo 20º da Constituição da República, as normas constantes do
Anexo à Lei nº 34/04, conjugado com os artigos 6º a 10º da Portaria n.º
1085-A/2004, na parte em que impõe que o rendimento relevante para efeitos de
concessão do benefício de apoio judiciário seja necessariamente determinado a
partir do rendimento do agregado familiar, independentemente de o requerente de
protecção jurídica fruir tal rendimento».
Embora essa solução jurídica não seja directamente transponível para o caso dos
autos, em que o agregado familiar, tal como foi declarado para efeitos de
atribuição do benefício de apoio judiciário, é composto por pessoas que vivem em
união de facto, não poderá deixar de reconhecer-se que existe alguma similitude
entre essas situações.
4. Foi a Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, que, pela primeira vez, no ordenamento
jurídico português, veio regular, em termos sistemáticos, a situação de duas
pessoas que vivam em união de facto. Esse diploma foi depois revogado pela Lei
n.º 7/2001, de 11 de Maio, que, com idêntico objectivo, adoptou medidas de
protecção das uniões de facto, em termos similares aos previstos para os
cônjuges, e, designadamente, para efeito de atribuição da casa de morada de
família, de aplicação do regime jurídico de férias, faltas, licenças e
preferência na colocação, de aplicação do regime do imposto de rendimento das
pessoas singulares nas mesmas condições dos sujeitos passivos casados e não
separados judicialmente de pessoas e bens, de protecção na eventualidade de
morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social ou do
regime de acidente de trabalho.
A mesma Lei, mediante a alteração da redacção do artigo 85º, n.º 1, alínea c),
do Regime de Arrendamento Urbano (entretanto revogado) igualmente permite a
favor do unido de facto a transmissão do arrendamento para habitação por morte
do primitivo arrendatário (artigo 5º), tal como reconhece o direito de adopção
em condições análogas às previstas no artigo 1979º do Código Civil, sem prejuízo
das disposições legais respeitantes à adopção por pessoas não casadas (artigo
7º).
Não obstante a instituição de um regime unificado em relação a cada um desses
efeitos jurídicos, a Lei não excluiu a aplicação às uniões de facto de quaisquer
outras disposições legais ou regulamentares que especialmente prevejam a
protecção jurídica de uniões de facto ou de situações de economia comum (artigo
1º, n.º 2), e algumas dessas disposições estão previstas não só em legislação
avulsa como também no Código Civil, na sequência da reforma instituída pelo
Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro. É esse o caso da admissão de
presunção de paternidade quando, durante o período legal da concepção, tenha
existido comunhão duradoura de vida em condições análogas às dos cônjuges, da
atribuição do exercício do poder paternal aos progenitores que conviverem
maritalmente, e, bem assim, da possibilidade do exercício do direito a alimentos
contra a herança do falecido, por parte daquele que com ele vivia, no momento da
morte, em união de facto (artigos 1871º, n.º 1, alínea c), 1911º, n.º 3, e
2020º, do Código Civil).
A extensão dos direitos dos cônjuges às pessoas que se encontram em situação de
união de facto tem também ocorrido por via jurisprudencial, e designadamente,
através da jurisprudência do Tribunal Constitucional; mas, nesse caso, não tanto
por efeito do reconhecimento de um princípio de plena equiparação dos
respectivos estatutos jurídicos, mas antes como uma decorrência da necessidade
de evitar discriminações indevidas. Assim, no acórdão n.º 359/91 declarou-se a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do Assento do Supremo
Tribunal de Justiça, de 23 de Abril de 1987 (publicado no Diário da República, I
Série, de 28 de Maio de 1987), no ponto em que considerou não aplicáveis às
uniões de facto as normas dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 1110º do Código Civil,
referentes à transmissão do direito de arrendamento ao cônjuge do arrendatário,
por se entender, desse modo, violado o princípio da não discriminação dos
filhos, contido no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição. E, nos mesmos termos, o
acórdão n.º 1221/96 julgou inconstitucional, por violação do mesmo preceito, a
norma do artigo 1793º, n.º 1, do Código Civil, na interpretação segundo a qual o
regime nele previsto de atribuição da casa de morada de família em arrendamento
a um dos cônjuges, em caso de divórcio, não é aplicável às situações de
cessação de união de facto. Por fim, o acórdão n.º 286/99, ainda com invocação
do artigo 36.º, n.º 4, da Constituição, julgou inconstitucional as normas dos
artigos 42º, n.º 1, e 46º do Decreto-Lei n.º 18/88, de 21 de Janeiro, na medida
em que excluem da colocação por preferência conjugal neles estabelecida os
professores que, sendo pais de filhos menores, mas não casados, convivam em
condições idênticas às dos cônjuges e coabitem com os filhos.
Em qualquer destes casos, o Tribunal Constitucional formulou um juízo de
inconstitucionalidade em ordem ao princípio da não discriminação dos filhos
nascidos fora do casamento, tal como estabelecido no artigo 36º, n.º 4, da
Constituição, por forma a assegurar um tratamento idêntico para os filhos
nascidos na constância do matrimónio e os havidos em resultado de situações de
união de facto.
Esta jurisprudência não pretende, no entanto, esbater a diferente natureza entre
o casamento e a união de facto, mas antes dar relevo, no plano do interesse dos
filhos, à projecção ao princípio constitucional da igualdade de tratamento dos
filhos nascidos fora do matrimónio, assegurando assim uma forma de tutela
indirecta da união de facto.
Fora disso, o Tribunal Constitucional tem aceite o entendimento de que a pontual
concessão de efeitos jurídicos às situações decorrentes de uniões de facto não
permite afirmar o reconhecimento pelo legislador da integral equiparação dos
estatutos familiares, consoante provenham de um vínculo legal pré-definido ou de
uma mera relação de facto (acórdão n.º 1221/96 citado). E tem antes admitido uma
liberdade de conformação legislativa na regulação dos efeitos jurídicos
resultantes da existência de uma situação de facto que não possa qualificar-se
como uma relação matrimonial legalmente constituída.
Como se afirmou no acórdão n.º 134/07, o legislador ordinário não se encontra
constitucionalmente obrigado, designadamente por incidência do princípio da
igualdade, a excluir do universo dos critérios utilizáveis na modelação do
sistema infraconstitucional a atendibilidade do vínculo matrimonial; de tal modo
que a diferenciação entre unidos de facto e casados, sendo em si mesma possível,
apenas deverá ter em consideração a exigência da proporcionalidade, a qual será
respeitada se o elemento diferencial questionado se mantiver dentro da medida da
diferença que se verifique existir entre as duas situações relacionais; o
agravamento da posição daqueles que se encontram em união de facto pode, por
isso, justificar-se como o mero reflexo da inexistência entre eles de um vínculo
jurídico.
Nesse sentido, o Tribunal, na linha de anterior jurisprudência, decidiu não
julgar inconstitucional a norma dos artigos 40°, n.° 1, e 41.°, n.° 2, do
Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de
31 de Março, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 191-B/79, de 25
de Junho, na interpretação segundo a qual aí se faz depender a titularidade do
direito à pensão de sobrevivência, em caso de união de facto, da prova pelo
companheiro sobrevivo da impossibilidade de obtenção de alimentos da herança do
companheiro falecido, em função do que dispõe o artigo 2020º do Código Civil (no
mesmo sentido, entre outros, os acórdãos n.ºs 159/05, 644/05, 705/05, 523/06,
26/07 e 220/07).
Em situação similar, também os acórdãos n.ºs 195/03, 233/05 e 517/06 não
julgaram inconstitucional a norma do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18
de Outubro, na parte em que faz depender a atribuição da pensão de
sobrevivência, por morte do beneficiário do regime de segurança social, a quem
com ele vivia em união de facto, da verificação dos requisitos previstos no n.º
1 do artigo 2020º do Código Civil; e, por idêntica razão, o acórdão n.º 640/05
não julgou inconstitucional a norma do artigo 6º da Lei n.º 135/99, de 28 de
Agosto (entretanto substituído pelo artigo 6º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio),
interpretada no sentido de que a concessão de prestações sociais por morte de
beneficiário da Caixa Nacional de Pensões a pessoa que com ele vivesse em união
de facto depende da prova de não obtenção de direito a alimentos através da
herança do falecido.
Seguindo um idêntico ponto de vista, o acórdão n.º 57/95 considerou
constitucionalmente admissível ao legislador fiscal interpretar a incumbência
inserta na actual alínea f) do n.º 2 do artigo 67º da Constituição (regular os
impostos de harmonia com os encargos familiares), bem como a directiva do actual
n.º 1 do artigo 104º (o imposto sobre o rendimento pessoal deve ter em conta as
necessidades e rendimentos do agregado familiar), como dirigidas unicamente às
pessoas unidas pelo matrimónio, com exclusão das uniões de facto, entendendo
como não arbitrária (e, como tal, não violadora do princípio da igualdade) a
distinção efectuada nas normas de incidência do IRS em relação a esses dois
tipos de situações.
Pode assentar-se, por conseguinte, na ideia de que existe uma caracterização
legislativa da situação de união de facto, quando esta se revista de suficiente
estabilidade, para permitir às pessoas que se encontrem nessas condições o
reconhecimento de certos efeitos jurídicos – embora em medida mais limitada do
que é correspondentemente aplicável ao cônjuges -, e que é ainda exigível, no
plano do direito, - como tem sido sublinhado pela jurisprudência constitucional
-, que o diverso tratamento jurídico entre as duas situações não possa ir além
do que se mostra justificável segundo o princípio da justa medida.
Subsiste, em todo o caso, uma diferença significativa entre o casamento e a
união de facto, que resulta da circunstância de, num caso, a comunhão de
interesses se desenvolver a partir de um vínculo juridicamente assumido que
envolve um conjunto de direitos e deveres recíprocos dos cônjuges, e, noutro
caso, ela se situar no mero plano dos factos, sem qualquer carácter de
imperatividade, e por isso também com uma maior liberdade de conformação
individual.
Assim se compreende que os parceiros de uma união de facto, mesmo quando vivam
em situação análoga à dos cônjuges, não se encontrem sujeitos aos deveres
conjugais e, especialmente, aos deveres de coabitação, de cooperação ou de
assistência a que se referem os artigos 1672º, 1674º e 1675º do Código Civil,
assim como se não encontram abrangidos pelos efeitos sucessórios ou pelo regime
de bens aplicável nas relações existentes entre pessoas ligadas por vínculo
matrimonial (sublinhando este aspecto, a declaração de voto do Conselheiro Luis
Nunes de Almeida anexa ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1221/96).
Embora possa sustentar-se que determinadas situações geradas pela união de facto
devam merecer a tutela do direito, como sucede com a questão da propriedade dos
bens adquiridos ou da responsabilidade pelas dívidas contraídas na sua
constância, o certo é que a união de facto não produz quaisquer efeitos
patrimoniais que sejam directamente decorrente da lei, nem implica (por não ser
aplicável o disposto no artigo 1691º do Código Civil) a comunicabilidade das
dívidas contraídas por qualquer um dos parceiros, ainda que possa provar-se que
se destinaram a ocorrer a encargos normais da vida familiar, ou que redundaram
em proveito comum do casal, ou, tendo resultado de actos de comércio, se não
prove que não foram contraídas em proveito comum (cfr. França Pitão, Uniões de
facto e economia comum, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra, págs. 173 e
seguintes e, em especial, págs. 177 e 183).
Nessa linha de orientação, os tribunais têm reconhecido que a união de facto,
correspondendo a uma opção das partes, não importa, diferentemente do que sucede
com o casamento, um dever de solidariedade patrimonial entre os seus membros, o
que justifica que o legislador seja, nesse caso, mais exigente na definição das
condições de atribuição de certos efeitos jurídicos do que em relação aos
cônjuges (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Setembro de 2007,
Processo n.º 1619/07, referindo-se à atribuição de pensão de sobrevivência, a
que aludem os artigos 3º, alínea e), e 6º, n.º 1, da Lei n.º 7/2001, de 11 de
Maio). Assim como tem sido afirmado que essa relação não envolve uma qualquer
vinculação a deveres de assistência e cooperação, senão com base num mero
princípio de livre vontade entre os seus membros, nenhum deles beneficiando do
direito de exigir do outro assistência ou estando onerado com a obrigação civil
de prestá-la (acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de Março de 2008,
Processo n.º 4890/2006, e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de Julho de
2007, Processo n.º 830815, reportando-se ao direito a alimentos a que se referem
os artigos 2009º e 2016º do Código Civil).
Neste sentido, ainda, um autor refere que «uma união de facto não implica
forçosamente solidariedade patrimonial, logo não basta a prova dessa relação
para se considerar verificada a diminuição da capacidade económica que é
pressuposto da atribuição da pensão», ao contrário do que sucede no casamento em
que essa diminuição é pressuposta (Rita Xavier, Uniões de Facto e pensão de
Sobrevivência, in «Jurisprudência Constitucional», n.º 3, Julho-Setembro 2004,
pág. 17 e segs).
4. Revertendo ao caso dos autos, cabe de novo chamar a atenção para o facto de a
insuficiência económica para efeito de concessão de apoio judiciário, dever ser
apreciada, nos termos das mencionadas normas do Anexo à Lei nº 34/04 e dos
artigos 6º a 10º da Portaria n.º 1085-A/2004, por referência ao rendimento do
agregado familiar, entendendo-se como pertencendo ao mesmo agregado familiar as
pessoas que vivam em economia comum com o requerente da protecção jurídica.
O conceito de economia comum não é desconhecido no ordenamento jurídico
português e tem sido utilizado, ainda que, por vezes, com diferentes
pressupostos, para a atribuição de diversos efeitos de direito. O artigo 1109º
do Código Civil, por exemplo, para efeito de determinar o conjunto de pessoas
que podem residir no prédio no caso de arrendamento para habitação, definia a
economia comum como sendo a situação em que existia uma «obrigação de
convivência ou de alimentos», conceito que foi ainda mantido na norma do artigo
76º, n.º 2, do Regime de Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei n.º
321-B/90, de 15 de Outubro, e, por remissão, no subsequente artigo 90º, n.º 1,
alínea a), para efeito do reconhecimento do direito a um novo arrendamento em
caso de caducidade do contrato por morte do primitivo arrendatário. Esses mesmos
princípios mantêm-se no Novo Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei
n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que, no entanto, especifica que se consideram
como vivendo com o arrendatário em economia comum, para além das pessoas
relativamente às quais haja obrigação de convivência e alimentos, «a pessoa que
com ele viva em união de facto» (artigos 1093º, n.º 2, e 1106º, n.º 1, alínea
b)).
É, no entanto, a Lei n.º 6/2001, de 11 de Maio, que, em vista à instituição de
medidas de protecção das pessoas que vivam em economia comum, adopta uma
formulação mais precisa, entendendo como tal «a situação de pessoas que vivam em
comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma
vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos». Desde logo se pode
concluir que a situação de economia comum abrange uma realidade mais ampla do
que a figura da união de facto; tanto assim que a própria Lei esclarece que as
medidas de protecção aí previstas não prejudicam a aplicação de quaisquer outras
disposições que se destinem a regular a situação de união de facto (como é o
caso das que constam da Lei n.º 6/2001, da mesma data), nem constitui facto
impeditivo de aplicação da Lei a coabitação em união de facto (cfr. artigo 1º,
n.ºs 2 e 3).
A situação de economia comum abrange, pois, quer os que se encontrem vinculados
pelo matrimónio, quer os unidos de facto, quer quaisquer pessoas ligadas ou não
por parentesco ou relação afectiva - salvo quando se trate de qualquer das
categorias de pessoas que estão excepcionadas pelo artigo 3º da mesma Lei -,
desde que vivam em comunhão de interesses e de meios e contribuam com os seus
proventos, o seu trabalho ou a cooperação mútua para a manutenção da habitação
comum e o sustento dos residentes, assim se compreendendo a exigência de uma
«vivência de entrajuda e partilha de recursos» (sobre estes aspectos, França
Pitão, ob. cit., págs. 343 e 349-350).
Sendo essa uma definição fornecida pelo legislador para os fins previstos na Lei
n.º 7/2001, com um âmbito de aplicação muito específico – a atribuição de certo
tipo de direitos em equiparação com os cônjuges -, ela não deixa de ter um
significativo valor heurístico no preenchimento do conceito homólogo a que faz
apelo o n.º 3 do Anexo à Lei n.º 34/2004, neste caso, para permitir definir o
que se entende por «agregado familiar».
A conclusão de que o requerente do apoio judiciário e a pessoa com quem ele vive
em união de facto integram um agregado familiar (por aplicação da ideia de que
vivem em economia comum) não elimina, no entanto, a dificuldade que foi
suscitada, no plano da constitucionalidade, pelo acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 654/06, e que se traduz em saber se o interessado pode fruir
de rendimentos que lhe não pertencem para efeito de fazer face a despesas
judiciais relativas a um litígio em que se encontre envolvido.
Em relação a um conjunto de pessoas que vive em economia comum, pode suceder que
qualquer delas não se encontre vinculada, em função do seu estatuto jurídico, a
comparticipar com os seus próprios réditos na satisfação de encargos judiciais
relativos a um processo judicial que apenas a um outro interessa, ainda que
tenha justificado a apresentação de um pedido de apoio judiciário.
É essa a situação vertida na espécie jurisprudencial analisada, em que um
familiar que recebe alimentos de um ascendente de segundo grau, não pode dispor
dos rendimentos que a este pertencem, apesar de o titular integrar o agregado
familiar e viver em economia comum.
É essa, também, manifestamente, a situação dos autos.
A união de facto é apenas um das situações através da qual se exprime a vida em
economia comum. No entanto, como se deixou exposto, o unido de facto, pela
propria natureza meramente factual da sua relação, não responde pelas dívidas
contraídas pelo requerente do apoio judiciário, que devem considerar-se como
dívidas próprias deste, do mesmo modo, que não se encontra juridicamente
vinculado a contribuir para os encargos correntes da vida em comum, por se não
encontrar sujeito ao estrito cumprimento dos deveres conjugais, e,
designadamente, ao dever de assistência a que se refere o artigo 1675º do Código
Civil; não tem, por isso, qualquer obrigação de comparticipar na satisfação de
despesas judiciais a que o outro interessado se encontra obrigado para intervir
na defesa dos seus direitos ou legítimos interesses.
As normas do Anexo à Lei nº 34/04 e dos artigos 6º a 10º da Portaria n.º
1085-A/2004, ao tomarem em consideração o rendimento de todos os membros do
agregado familiar - incluindo o daquele que vive com o requerente em situação
de união de facto -, para efeito do cálculo do rendimento relevante para
concessão de apoio judiciário, não tem em devida linha de conta que o unido de
facto, e ainda que deva considerar-se como vivendo em economia comum, não pode
dispor, no plano estritamente jurídico, dos proventos que pertencem ao outro
membro do casal, nem exigir que este contribua para a realização de despesas que
são próprias.
Isto é: embora a união de facto possa corresponder a uma situação análoga à do
casamento, a que a lei atribui pontualmente certos efeitos jurídicos, não pode
daí extrair-se a ilação de que essa situação é equiparável à relação familiar
matrimonial legalmente constituída, designadamente para os efeitos pessoais e
patrimoniais que lhe estão juridicamente associados.
5. O instituto do apoio judiciário visa obstar a que, por insuficiência
económica, seja denegada justiça aos cidadãos que pretendam fazer valer os seus
direitos nos tribunais, constituindo uma concretização do direito de acesso ao
direito e aos tribunais consagrado no artigo 20º, nº 1, da Constituição.
Pressupondo que o sistema judiciário não é gratuito, a Constituição pretende aí
garantir que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios
económicos, impondo que, dentro da margem de livre conformação do legislador,
sejam asseguradas às pessoas economicamente carenciadas formas de apoio que
viabilizem a tutela dos seus direitos e interesses legítimos (acórdão do
Tribunal Constitucional nº 467/91, Diário da República, II Série, de 2 de Abril
de 1992; assim, também, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa
Anotada, Tomo I, Coimbra, pág. 180).
A Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, na redacção anterior à Lei n.º 47/2007, de 28
de Agosto, aqui aplicável face ao regime transitório do artigo 6º deste último
diploma, considera que se encontra em situação de insuficiência económica
«aquele que, tendo em conta factores de natureza económica e a respectiva
capacidade contributiva, não tem condições objectivas para suportar pontualmente
os custos de um processo» (artigo 8º, nº 1). No entanto, como já se anotou, a
insuficiência económica é avaliada segundo o valor do rendimento relevante para
efeitos de protecção jurídica, determinado a partir do rendimento do agregado
familiar, de acordo das fórmulas previstas nos artigos 6º a 10º da Portaria nº
1085-A/2004, só excepcionalmente se admitindo uma apreciação em concreto da
situação económica do requerente de protecção jurídica (artigo 20º, nº 2, da Lei
n.º 30/2004 e seu Anexo, e artigo 2º da Portaria nº 1085-A/2004).
No caso, foi tido em consideração, na avaliação da insuficiência económica do
requerente, não apenas o rendimento por ele auferido mensalmente (€ 735,86), mas
também o recebido pela pessoa que com ele vive em situação de união de facto (€
432,00), concluindo-se que o requerente se encontrava em condições de suportar o
pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos do processo, segundo a
modalidade de apoio judiciário prevista no artigo 16º, n.º 1, alínea d), da Lei
n.º 34/2004, vindo o pedido a ser indeferido a final apenas porque o requerente,
no legítimo uso do direito de audição, manifestou discordância relativamente à
proposta de decisão.
Tendo sido considerado para o cálculo do rendimento relevante o rendimento
global do agregado familiar, incluindo o auferido por quem com o requerente vive
em união de facto, independentemente de este poder fruir ou dispor de tal
rendimento, é de entender que a aplicação, no caso, das normas do Anexo à Lei nº
34/04 e dos artigos 6º a 10º da Portaria n.º 1085-A/2004, é susceptível de pôr
em causa o direito de acesso à justiça, tal como se conclui na decisão sob
recurso.
III. Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 20º da Constituição
da República Portuguesa, o Anexo à Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, conjugado com
os artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que
impõe que o rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício do apoio
judiciário seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado
familiar, incluindo o da pessoa que vive com o requerente em situação de união
de facto, independentemente de este poder fruir tal rendimento;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando o juízo de inconstitucionalidade
formulado na decisão recorrida
Sem custas
Lisboa, 13 de Maio de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão (Votei a decisão, no essencial, por entender que é inteiramente
transponível para o presente caso a jurisprudência constante do acórdão N.º
654/2006,com a qual concordo).