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Processo n.º 11/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
A., Lda. e B., arguidos em processo de inquérito que corre termos no Tribunal
Central de Instrução Criminal, recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa
do despacho do juiz de instrução que indeferiu o seu pedido de restituição dos
saldos bancários que haviam sido apreendidos à ordem do processo, ao abrigo do
disposto no artigo 181º do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, que a
manutenção da apreensão de bens para além do prazo máximo da duração do
inquérito sem que tenha sido deduzida acusação, é inconstitucional, por violação
do direito à propriedade consagrado no artigo 62º, dos princípios da
proporcionalidade e da adequação, a que se refere o artigo 18º, nº 2, e ainda
do princípio da presunção de inocência do arguido e do direito a um processo
célere, consignados no artigo 32º, nº 2, todos da Constituição da República.
O recurso foi julgado improcedente por acórdão de 23 de Outubro de 2007, com a
seguinte fundamentação:
Por despacho de 9 de Dezembro de 2004, proferido pelo Juiz de Instrução
Criminal, foi considerado indiciada a prática de crimes de actividade ilícita de
recepção de depósitos (art. 200º, do Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro -
Regime Geral das Instituições de Crédito), fraude fiscal qualificada (arts.
103º, nº1, alínea b), e 104º, nº1, alínea f), do RGIT), branqueamento de
capitais (art. 361º-A, nºs 1 e 2, do CP) e ordenada a colocação sob controlo de
determinadas contas bancárias, ao abrigo do disposto no art. 4, nºs 2 e 4, da
Lei nº 5/02, de 11 de Janeiro.
Esse controlo permitiu apurar que essas contas, em pouco mais de um mês,
registaram transferências para os Estados Unidas da América e para Hong Kong, no
valor de USD 5.110.606,00, o que justificou despacho de 28 de Janeiro de 2005,
determinando a apreensão do saldo das mesmas, ao abrigo do art. 181º, nº1, do
CPP.
Decorridos mais de dois anos sobre a notificação desse despacho, os arguidos
requereram o levantamento dessa apreensão, na sequência do que foi proferido o
despacho recorrido.
Alegam os recorrentes que, tendo decorrido o prazo máximo de inquérito sem
acusação, deixaram de existir as razões que estiveram na base da apreensão.
Contudo, como é sabido, a nossa lei não atribui qualquer significado ao decurso
daquele prazo sem dedução de acusação, não sendo legítimo daí concluir que
diminuíram ou deixaram de se verificar os indícios da prática de determinados
ilícitos. O excesso daquele prazo apenas pode originar responsabilidade
disciplinar ou justificar o recurso a incidente de aceleração processual.
É certo que uma apreensão, representa uma restrição ao direito de propriedade
privada (art. 62º da CRP).
Porém, essa restrição está justificada, no caso em apreço, pela necessidade de
satisfação de um interesse superior- a realização da justiça.
Essa restrição, relativa ao direito de propriedade, não é equiparável às
restrições de direitos pessoais, nomeadamente da liberdade, caso em que a
Constituição prevê a existência de prazos (art. 29º, nº4, da CRP), determinados
no art. 215º do CPP e cujo decurso, só por si, conduz à extinção da medida
restritiva da liberdade.
Embora o decurso dos prazos de inquérito não conduzam, automaticamente, ao
levantamento das apreensões ordenadas, terão de existir regras que permitam esse
levantamento, quando o interesse da realização da justiça deixe de justificar
tal restrição de direitos.
Alegam os recorrentes que, não tendo as quantias depositadas em contas bancárias
grande interesse para a prova, porque a prova a produzir é essencialmente
documental, tornam-se desnecessárias para o exercício da acção penal, devendo
ser restituídas nos termos do art. 186º, nº 1, do CPP.
Este preceito prescreve “logo que se tornar desnecessário manter a apreensão
para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de
direito”.
O apelo a este preceito não nos parece correcto, em relação à apreensão de
depósitos bancários, desde logo porque o termo “objecto” não se adequa a
direitos daquela natureza.
Na verdade, no depósito bancário o que está em causa são direitos, que não se
encontram na disponibilidade imediata do titular, mas de um terceiro que os
detém com base num contrato, razão por que, com o levantamento da apreensão, não
existe uma verdadeira “restituição”, mas tão só a cessação de uma limitação aos
direitos decorrentes de tal contrato.
A apreensão de depósito bancário tem preceito próprio, o art. 181º do CPP, que
prevê as razões que a poderão justificar, devendo o levantamento ocorrer quando
as mesmas cessam.
E, como decorre deste preceito, a apreensão de valores ou quantias em
estabelecimento bancário, deve ser ordenada quando o juiz tiver fundadas razões
para crer que estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse
para a descoberta da verdade ou para a prova.
Assim, ao contrário do previsto no art. 186º, citado pelos recorrentes, não será
de ponderar, apenas, a necessidade para efeitos de prova, mas também o interesse
para a descoberta da verdade.
Aliás, a aceitar-se a interpretação dos recorrentes, nunca se justificaria a
apreensão de quantias monetárias em estabelecimentos bancários, pois bastaria
que estes certificassem documentalmente o saldo existente e haveria prova
suficiente.
Contudo, outras razões poderão justificar a manutenção da apreensão, que não a
simples prova dos respectivos montantes.
Em relação ao caso em apreço, é preciso ter presente que estão em causa crimes
abrangidos pela Lei nº 5/02, de 11de Janeiro (estabelece medidas de combate à
criminalidade organizada e económico-financeira), diploma que alterou, não só as
regras processuais, como também algumas regras substantivas, relativas à perda
de bens a favor do Estado. O legislador, considerando que nem sempre se afigura
fácil a prova de que, os bens patrimoniais dos arguidos em certos crimes
organizados ou económico-financeiros, são vantagens provenientes da actividade
ilícita e, portanto, sujeitos a perda a favor do Estado, nos termos dos arts.
109º a 111º do CP, veio estabelecer algumas regras que impedem os agentes
criminosos de se refugiarem, quanto a esse aspecto, numa mera aparência de
legalidade, ou de pretenderem prevalecer-se da dúvida, consagrando no art. 7º
uma presunção sobre a origem das vantagens obtidas pelo agente.
Ora, existindo um regime especial que visa combater este tipo de criminalidade,
que em regra usa o sistema financeiro para a sua actividade, não faria sentido
levantar as apreensões de depósitos bancários, por existir outra forma de os
provar, o que na prática significaria deixar sem utilidade aquele regime
especial, na medida em que os agentes facilmente colocariam os meios financeiros
relacionados com a actividade ilícita fora do alcance de uma execução, com
prejuízo para a descoberta da verdade, ou seja, para a realização da justiça.
A manutenção da apreensão não é desproporcionada, atentos os meios que os
agentes deste tipo de crimes colocam ao serviço da sua actividade ilícita, nem
desadequada, antes se apresentando como a única susceptível de permitir alcançar
os fins pretendidos por legislação aprovada com intenção de combater esta
específica criminalidade.
Esta limitação ao direito de propriedade, em nada viola o princípio da presunção
de inocência, uma vez que não representa qualquer antecipação da pena e visa,
apenas, alcançar outras finalidades relacionadas com a boa administração da
justiça, recaindo sobre a acusação o ónus de provar em julgamento os elementos
típicos dos crimes que vierem a ser imputados aos arguidos.
Também não se justifica o apelo a violação do direito a um processo célere, pois
a manutenção da apreensão em nada prejudica tal celeridade.
Em conclusão, justificando o interesse na descoberta da verdade que se mantenha
a apreensão dos depósitos bancários oportunamente ordenada e tendo essa
manutenção apoio no art. 181º, nº 1, do CPP, deve ser confirmado o despacho
recorrido.
Inconformados com o assim decidido, os arguidos vieram interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70° da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da
constitucionalidade da norma contida no artigo 181°, n.° 1, do Código de
Processo Penal, quando aplicada e interpretada no sentido de que a apreensão de
quantias que se revelem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para
a prova, pode manter-se indefinidamente, ainda que se encontrem largamente
ultrapassados os prazos processuais, maxime o prazo de inquérito, sem que tenha
sido proferida acusação.
Nada tendo obstado ao prosseguimento do recurso, no Tribunal Constitucional, os
arguidos apresentaram as suas alegações, formulando as seguintes conclusões:
a) - No caso em apreço a apreensão dos bens teve por base salvaguardar os
elementos de prova, permitir que o Ministério Público investigasse e que
proferisse, caso fossem recolhidos indícios suficientes, uma acusação contra os
arguidos — vide artº 181º, nº 1, e artº 283, nºs 1 e 2, do CPP;
b) — Encontra-se largamente ultrapassado o prazo máximo de duração do inquérito
sem que tenha sido proferido qualquer despacho de acusação ou arquivamento pelo
Ministério Público — art. 276º do CPP;
c) — O Ministério Público não conseguiu obter indícios suficientes da
verificação de um crime, caso contrário teria acusado como é sua obrigação —
art. 279º, n.º 1, e 283º, n.º 2, do CPP;
d) — A apreensão de bens consubstancia uma restrição ao direito constitucional
de propriedade privada — cfr. art. 62º da CRP — e deve limitar-se ao necessário
para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados,
nomeadamente a realização da justiça — cfr. art. 18º, nº 2, da CRP;
e) - Decorrido o prazo máximo de inquérito sem que tenha sido proferida uma
acusação não se poderá manter a restrição ao direito de propriedade dos arguidos
nos termos do art. l81º, n.º 1, do CPP, porque deixou de existir o fundamento
para a restrição do direito constitucional à propriedade privada plena,
devendo-se, para o efeito, mandar restituir as quantias apreendidas;
f) O entendimento defendido no douto acórdão recorrido é inconstitucional porque
viola o direito de propriedade privada dos arguidos, o princípio da
proporcionalidade ou mais concretamente o princípio da adequação, porque a
restrição ao direito de propriedade, depois de excedido o prazo de inquérito,
não é adequada a prossecução dos fins visados na lei — violando o preceituado
nos artigos l8º e 62º da CRP;
g) A decisão recorrida é inconstitucional porque consubstancia uma violação do
princípio da presunção de inocência consagrado no art. 32º, nº 2. da CRP,
nomeadamente porque mantém por tempo indefinido a apreensão de bens o que
consubstancia uma pena a título de medida cautelar;
h) O atraso do inquérito não é, nem pode ser imputado ao arguido, pelo que a
manutenção da apreensão nos termos do douto acórdão recorrido consubstancia uma
violação do direito ao processo célere consagrado no n.º 2 do art. 32º da CRP,
nomeadamente porque os prazos de inquérito não foram observados pelo Ministério
Público;
i) O douto despacho recorrido ao admitir a manutenção da apreensão das quantias
depositadas nos termos do art. l8lº, nº 1, do CPP, depois de decorridos todos os
prazos de inquérito, viola os direitos constitucionais dos arguidos,
nomeadamente o direito a um processo célere e o direito à presunção de
inocência, porque, sobre a capa da manutenção da prova impõe uma verdadeira
pena;
j) É inconstitucional a interpretação de que ao abrigo do art. 181º, n.º 1, do
CPP se pode manter a apreensão dos depósitos bancários dos arguidos, por tempo
indeterminado, decorrido que estejam os prazos de inquérito consagrados no art.
276º do CPP, sem que o Ministério Público tenha deduzido acusação nos termos do
art. 283º do mesmo Código, por violação dos princípios da adequação,
proporcionalidade, do principio da presunção da inocência e do direito
constitucional da propriedade privada, tal como se encontram consagrados nos
artigos 18°, n.º 2, 32º, nº 2, e 62º da CRP.
O Exmo Magistrado do Ministério Público, na sua contra-alegação, chama a atenção
para o facto de o tribunal recorrido ter aplicado a norma do artigo 181º do CPP
em função de uma dada uma situação processual concreta (quando não tinham ainda
decorrido três anos sobre a data em que as apreensões se efectuaram),
considerando não ser lícito afirmar que esse preceito tenha sido interpretado no
sentido de que é constitucionalmente admissível a apreensão de bens por tempo
indeterminado ou até ao termo do prazo prescricional do procedimento criminal, e
conclui, neste contexto, que a norma do nº 1 do artigo 181º do CPP não é
inconstitucional, quando entendida no sentido de poder ser mantida a apreensão
de depósitos bancários, ainda que não tenha sido proferida acusação no prazo
estabelecido 276º do mesmo diploma.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Os recorrentes impugnaram perante o Tribunal da Relação o despacho do juiz de
instrução que indeferiu o seu pedido de restituição dos saldos bancários que
haviam sido apreendidos à ordem do processo, em aplicação do disposto no artigo
181º do Código de Processo Penal.
O recurso assentava essencialmente no entendimento de que é inconstitucional a
manutenção da apreensão de bens para além do prazo máximo da duração do
inquérito sem que tenha sido deduzida acusação.
O acórdão recorrido analisou a questão de constitucionalidade que lhe foi
colocada à luz da situação processual então existente e de acordo com a
delimitação feita pelos recorrentes na própria alegação de recurso e julgou este
improcedente por considerar que a apreensão constitui uma restrição ao direito
de propriedade justificada pelo superior interesse da realização da justiça, que
poderá manter-se enquanto subsistir o interesse para a descoberta da verdade ou
para a prova, e que não envolve qualquer violação do princípio da presunção da
inocência do arguido nem representa uma antecipação da pena. Em nenhum momento
tendo declarado que entendia como constitucionalmente válida uma interpretação
do citado preceito que permitisse que a apreensão de bens pudesse manter-se
indefinidamente.
Sendo estes os termos em que a questão se coloca, passemos à sua análise.
Conforme resulta dos elementos dos autos, o juiz de instrução criminal, por
despacho de 9 de Dezembro de 2004, ordenou a colocação sob controlo de
determinadas contas bancárias, ao abrigo do disposto no artigo 4º, nºs 2 e 4, da
Lei nº 5/02, de 11 de Janeiro, por considerar indiciada a prática de crimes de
actividade ilícita de recepção de depósitos, previsto e punido pelo artigo 200º
do Regime Geral das Instituições de Crédito, de fraude fiscal qualificada,
previsto e punido pelos artigos 103º, nº 1, alínea b), e 104º, nº 1, alínea f),
do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), e de branqueamento de
capitais, previsto e punido pelo artigo 368º-A, nºs 1 e 2, do Código Penal.
Por despacho de 28 de Janeiro de 2005, o mesmo magistrado, com invocação do
disposto no artigo 181º, nº 1, do Código de Processo Penal (CPP), determinou a
apreensão dos saldos bancários referentes às mesmas contas.
Por requerimento entrado em 11 de Junho de 2007, os arguidos, ora recorrentes,
vieram pedir a restituição das quantias apreendidas à ordem do processo,
alegando que se encontrava já ultrapassado o prazo máximo da duração do
inquérito sem que tenha sido deduzida acusação, o que seria revelador da
inexistência de índicios suficientes da prática de crime que pudesse justificar
a apreensão.
Por despacho de 18 de Junho seguinte, o juiz de intrução criminal indeferiu o
requerido, por considerar que, havendo indícios de que as importâncias
apreendidas resultaram da actividade ilícita de recepção de depósitos e dos
lucros auferidos com essa actividade, e de que tais importâncias poderiam
destinar-se a ser transferidas para o estrangeiro, a manutenção da apreensão
constitui um relevante elemento de prova da prática de crime, independentemente
do tempo de duração do inquérito, encontrando-se, por isso, preenchidos os
pressupostos a que se refere o artigo 181º do CPP.
Em sede de recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa, através da decisão ora
recorrrida, nos termos que há pouco se deixaram transcritos, confirmou o
despacho do juiz de instrução criminal, julgando improcedentes as já
identificadas questões de constitucionalidade, que cabe agora dilucidar.
O artigo 181º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «Apreensão em
estabelecimento bancário», na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto (vigente à data em que teve lugar a apreensão), determina o seguinte:
1 - O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de
documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em
cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão
relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta
da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam
depositados em seu nome.
2 - O juiz pode examinar a correspondência e qualquer documentação bancárias
para descoberta dos objectos a apreender nos termos do número anterior. O exame
é feito pessoalmente pelo juiz, coadjuvado, quando necessário, por órgãos de
polícia criminal e por técnicos qualificados, ficando ligados por dever de
segredo relativamente a tudo aquilo de que tiverem tomado conhecimento e não
tiver interesse para a prova.
É o subsequente artigo 186.º que, por sua vez, regula os termos em que se
efectua a restituição dos objectos apreendidos, dispondo do seguinte modo:
1 - Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os
objectos apreendidos são restituídos a quem de direito.
2 - Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são
restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor
do Estado.
3 - Ressalva-se do disposto nos números anteriores o caso em que a apreensão de
objectos pertencentes ao arguido ou ao responsável civil deva ser mantida a
título de arresto preventivo, nos termos do artigo 228.º
Estando em causa a investigação, entre outros, de um crime de branqueamento de
capitais, tem aplicação o disposto na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, que
estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra de segredo
profissional e perda de bens a favor do Estado relativo a esse tipo de ilícitos
(artigo 1º).
Tem especial relevo, a presunção - estabelecida no artigo 7º -, de que constitui
vantagem criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele
que seja congruente com o seu rendimento lícito, para efeito de perda de bens a
favor do Estado, em caso de condenação pela prática de qualquer dos crimes
mencionados no artigo 1º. Definindo o artigo 12º os termos em que se processa,
na sentença condenatória, a declaração de perda de valores a favor do Estado e o
seu montante.
Paralelamente, o artigo 10º da mesma Lei prevê o arresto dos bens do arguido
para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo
7º, sendo declarados perdidos a favor do Estado os bens arrestados quando não
tenha sido prestada caução económica ou não tenha sido efectuado o pagamento
voluntário pelo arguido do valor que se considere corresponder à vantagem
patrimonial decorrente da actividade ilícita.
Para além disso, também o Código Penal prevê a perda a favor do Estado de
instrumentos ou de produtos do crime, ainda que se trate de objectos
pertencentes a terceiros (quando estes tenham concorrido, de forma censurável,
para a sua utilização ou produção, ou tiverem retirado vantagem do facto
ilícito), bem como de direitos ou vantagens que, através do facto ilícito
típico, tiverem sido directamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos
agentes do crime ou representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie
(artigos 109º, 110º e 111º).
A apreensão de saldos bancários em aplicação do disposto no artigo 181º do CPP,
como logo de depreende da inserção sistemática dessa disposição na Título III do
Livro III desse diploma, é um meio de obtenção prova, mas que poderá
simultaneamente funcionar como meio de prova e como medida cautelar destinada a
assegurar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão
associados à prática do ilícito penal, como seja a perda desses valores a favor
do Estado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo,
1999, pág. 197) .
No sentido da sua caracterização como meio de prova aponta o facto de o artigo
181º, n.º 1, permitir a apreensão de valores depositados em estabelecimentos
bancários, não apenas quando se encontrem relacionados com o crime, mas também
cumulativamente quando se revelem de «grande interesse para a descoberta da
verdade ou para a prova», o que faz supor que as quantias apreendidas podem
apresentar um valor probatório específico que deva ser tido em consideração na
fase de julgamento.
Por outro lado, a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham
servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam
o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da
sentença penal, o que também justifica a conservação dos objectos apreendidos à
ordem do processo até à decisão final.
Assim se compreende que o artigo 186º, ao referir-se aos termos em que se
processa a restituição dos bens apreendidos, admita que essa restituição apenas
venha a ter lugar após o trânsito em julgado da sentença, mediante a entrega ao
seu legítimo proprietário ou a declaração de perda a favor do Estado, o que
pressupõe que, nessa circunstância, os bens ou valores apreendidos devam ter o
destino que for fixado na própria decisão final do processo (n.ºs 2 e 3).
A que acresce, no que especificamente se refere à investigação dos crimes de
catálogo mencionados no artigo 1º da Lei n.º 5/2002, que os bens do arguido,
incluindo os valores depositados em instituições bancárias, podem ser
arrestados, não com a finalidade de garantia patrimonial do pagamento de pena
pecuniária, de custas do processo ou de qualquer outra dívida relacionada com o
crime (como prevê o artigo 228º do CPP), mas como garantia do pagamento do valor
que se presuma constituir uma vantagem da actividade criminosa (cfr. artigo 10º
desse diploma).
Podendo manter-se o seu interesse quer para efeitos probatórios quer para
garantia do cumprimento de certas consequências jurídicas da prática do crime, a
manutenção da apreensão de bens ou valores não está, por isso, necessariamente
dependente da observância dos prazos de duração do inquérito, aparecendo antes
interligada com as finalidades do processo penal (referindo-se à natureza
híbrida da perda do produto do crime, que poderá revestir um carácter quase
penal ou a feição de uma medida de segurança, Simas Santos/Leal-Henriques,
Noções Elementares de Direito Penal, Vislis Editores, 1999, pág. 239).
O artigo 276.º do CPP determina, na verdade, a fixação de prazos de duração
máxima do inquérito, de acordo com a situação do arguido, o tipo legal de crime
e a complexidade da respectiva investigação, podendo o Procurador-Geral da
República determinar, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do
assistente, a aplicação do regime de aceleração processual, nos termos do artigo
109.º, quando tenham sido ultrapassados esses prazos. Todavia, a única
consequência que decorre do incumprimento desses prazos, ou daqueles que forem
fixados em aplicação do mecanismo previsto no artigo 109º, é a agora
estabelecida no artigo 89º, n.º 6, do CPP, na redacção da Lei n.º 47/2007, de 27
de Agosto (que se entende ser imediatamente aplicável), que se traduz na
possibilidade de levantamento do segredo de justiça, a requerimento do arguido,
do assistente ou do ofendido.
Nada permite, por outro lado, concluir que a ausência de libelo acusatório, no
termo do prazo máximo definido para a duração do inquérito, representa a
inexistência de índicios da prática de crime, já que esse prazo é meramente
ordenador e a sua ultrapassagem, para além da consequência processual há pouco
mencionada, não tem quaisquer efeitos preclusivos.
É certo que o n.º 1 do citado artigo 186º também admite que os objectos
apreendidos possam ser restituídos a quem de direito «logo que se tornar
desnecessário manter a apreensão para efeito de prova»; mas isso apenas
demonstra que não há lugar à restituição quando tenham terminado os prazos de
duração do inquérito, mas apenas quando deixem de se verificar os requisitos de
que a lei faz depender a utilização desse meio de obtenção de prova, e,
designadamente, quando não haja motivos para levar o processo a julgamento por
não haver indícios bastantes da prática de crime ou quando a apreensão deixe de
ter interesse para a prova ainda que o processo deva prosseguir.
Alegam, no entanto, os recorrentes que a norma do artigo 181º, n.º 1, do CPP é
inconstitucional, quando interpretada no sentido de que pode manter-se a
apreensão dos bens quando tenha já sido ultrapassado o prazo máximo de duração
do inquérito sem que tenha sido proferido qualquer despacho de acusação ou
arquivamento pelo Ministério Público, por considerarem que deixa então de haver
fundamento para a restrição ao direito de propriedade dos arguidos e são, além
disso, postos em causa o princípio da presunção de inocência do arguido e o
direito ao processo célere, consagrados no n.º 2 do art. 32º da CRP.
Conforme o Tribunal Constitucional tem sublinhado noutras ocasiões e constitui
entendimento doutrinário assente, o direito de propriedade, tal como previsto no
artigo 62º, n.º 1, da Constituição, não é garantido em termos absolutos, mas sim
dentro dos limites e com as restrições definidas noutros lugares do texto
constitucional ou na lei, quando a Constituição para ela remeter, ainda que
possa tratar-se de limitações constitucionalmente implícitas (Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol.,
4ª edição revista, Coimbra, pág. 801; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição
Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, Coimbra, pág. 628).
Referindo-se especialmente às apreensões em processo penal (estando então em
causa a norma do artigo 178º, n.º 3, do CPP de 1987, na sua redacção
originária), o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87 (publicado no Diário
da República n.º 33, I Série, de 9 de Fevereiro de 1987), afirmou que as
apreensões, quando autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária, nos
casos referidos nesse preceito, não podem deixar de considerar-se um limite
imanente ao direito de propriedade, daí se extraindo a sua completa
conformidade com a garantia constitucional. E, na mesma linha de orientação, o
acórdão n.º 340/87 (publicado no Diário da República n.º 220, II Série, de 24 de
Setembro de 1987) entendeu que o artigo 108º do Código Penal de 1982 (também na
sua redacção originária), quando prevê a perda a favor do Estado de objectos de
terceiro, não é inconstitucional, por violação do direito de propriedade, por
ser de considerar que esse direito constitucional pode ser sacrificado em
homenagem aos valores da segurança das pessoas, da moral ou da ordem pública
enquanto elementos constitutivos do Estado de Direito democrático.
No caso vertente, não se vê que a manutenção da aprensão de quantias para além
dos prazos legalmente fixados para o termo do inquérito, represente uma
restrição ilegítima do direito de propriedade por violação do princípio da
proporcionalidade, designadamente na sua dimensão de adequação aos fins visados
pela lei.
Vimos que a apreensão tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de
garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do
Estado (cfr. Damião da Cunha, Perda de bens a favor do Estado, Centro de Estudos
Judiciários, 2002, pág. 26), e, nesse sentido, tem pleno cabimento que enquanto
providência processual instrutória ela possa manter-se até à fase de julgamento
e venha apenas a ser declarada extinta com a sentença final (absolutória ou
condenatória), quando nela tenha sido entretanto fixado o destino a dar aos bens
apreendidos.
A apreensão de bens ou valores que constituam o produto do crime não está
relacionada, por isso, com quaisquer vicissitudes processuais, mas unicamente
com os próprios fins do processo penal, e é justificada à luz do interesse da
realização da justiça, nas suas componentes de interesse na descoberta da
verdade e de interesse na execução das consequências legais do ilícito penal.
E neste plano de compreensão tem relevo chamar a atenção para o facto de
estarmos perante formas de criminalidade económica-financeira organizada que é
de muito difícil prova e relativamente à qual o legislador sentiu necessidade,
através da mencionada Lei n.º 5/2002, de adoptar medidas especiais de controlo
e repressão, mediante a derrogação do segredo fiscal e bancário, para facilitar
a investigação criminal (artigos 2º a 5º), a permissão do registo de voz e de
imagem, como específico meio de produção de prova (artigo 6º), e a previsão de
um mecanismo especial de perda de bens a favor do Estado tomando por base a
presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através da actividade
criminosa (artigo 7º) – sobre estes aspectos, Damião da Cunha, ob. cit., págs.
7-10).
Num outro plano, os recorrentes invocam ainda a violação do princípio da
presunção da inocência do arguido e do direito ao processo célere, tal como
consagrados no artigo 32º, n.º 2, da Constituição.
Não existindo dúvidas, no âmbito do processo, quanto ao alcance do primeiro dos
princípios enunciados, e aceitando que este possa representar, no ponto em que
mais releva para o caso, a proibição de antecipação de uma pena, haverá de
convir-se que a manutenção da apreensão de valores, destinando-se a funcionar
como elemento de prova a ser considerado nas fases ulteriores do processo e
como garantia patrimonial de uma eventual medida de perda de bens a favor do
Estado, não põe em causa esse parâmetro constitucional. Desde logo, porque não
fica de nenhum modo excluído que, nos precisos termos do artigo 186º, se venha a
determinar a restituição dos bens apreendidos ao seu titular, quer porque se
reconheça, no decurso do processo, a desnecessidade da apreensão para efeitos
probatórios, quer porque, na decisão final, se considere não verificada a
prática dos factos ilícitos que eram imputados aos arguidos.
Não é, por conseguinte, a circunstância de a apreensão subsistir para além dos
prazos legalmente fixados para a conclusão do inquérito, como vem alegado, que
poderá implicar uma violação do princípio da presunção da inocência do arguido,
visto que nada fica decidido quanto ao destino a dar às quantias apreendidas e é
a própria natureza da medida processual (meio de obtenção de prova e medida
cautelar) que justifica que possa manter-se até ao termo do processo.
Por identidade de razão, não é o prolongamento da situação de apreensão de bens
que pode pôr em causa o direito ao processo célere, enquanto garantia de defesa
do arguido. Esta pode considerar-se afectada, de algum modo, pelo esgotamento
dos prazos de conclusão do inquérito – caso tenha efectivamente ocorrido -,
visto que, por si, essa eventualidade é determinante de um atraso na resolução
final do processo (ainda que possa discutir-se se é suficiente para que se
considere violado o princípio constitucional).
Não há, no entanto, uma directa correlação entre a manutenção da apreensão e a
possível violação do direito ao processo célere, porquanto não é a pretendida
restituição dos quantias apreendidas que poderá obstar a que processo prossiga e
impedir a consequência processual negativa que advenha da demora na ultimação
do processo do inquérito.
Nenhum motivo existe, por conseguinte, para que se considerem verificados os
invocados vícios de inconstitucionalidade.
III. Decisão
Termos em que se decide negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC para cada um
deles.
Lisboa, 29 de Maio de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão