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Processo nº 396/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Em 18 de Abril de 2006, a Subdelegação Regional da Figueira da Foz da
Inspecção Geral do Trabalho instaurou processo de contra-ordenação contra Banco
A., S. A., o qual culminou na aplicação à arguida de uma coima no valor de
623,00 € (seiscentos e vinte e três euros) pela prática da infracção que
“consistiu na falta de afixação, por forma visível da cópia do mapa do quadro de
pessoal de 2005”, e na não disponibilização “d[a] consulta informática do mesmo
no local de trabalho, a partir da data de envio às entidades competentes e
durante um período de 30 dias.”
Inconformada, a arguida recorreu para o Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz,
invocando nas suas alegações, em conclusão e inter alia:
(…)
5. O acto administrativo de aplicação da coima viola o conteúdo essencial do
direito fundamental de reserva da vida privada, o que ocasiona, segundo o
disposto na alínea d) do n.° 2 do artigo 133.° e no n.° 1 do artigo 134.° do
Código de Procedimento Administrativo, a sua nulidade, com a consequente não
produção de efeitos jurídicos.
(…)
Por sentença datada de 5 de Janeiro de 2007, o Tribunal do Trabalho da Figueira
da Foz decidiu revogar as decisões da entidade administrativa recorrida, delas
absolvendo a recorrente, fundamentando-se para tal na seguinte ordem de
considerações:
A nosso ver, as decisões da autoridade recorrida não podem subsistir.
É sabido que as entidades empregadoras estão sujeitas a determinadas obrigações
em matéria de apresentação anual dos mapas dos respectivos quadros de pessoal:
por um lado, devem remeter esses mapas às entidades previstas no art. 455°/5 do
RCT; por outro lado, devem afixar esses mapas nos termos do art. 456° do RCT ou
disponibilizar a sua consulta, no caso dos mesmos terem sido objecto de
apresentação informática.
Os modelos dos mapas do quadro de pessoal encontram-se aprovados pela Portaria
conjunta dos Ministérios das Finanças e do Trabalho e da Solidariedade n°
785/2000, de 19/09.
Dos mesmos consta, para além da identificação da “Empresa” e do respectivo
“Estabelecimento”, com indicação do volume de negócios, vária informação
nominativa respeitante aos respectivos trabalhadores, como sejam o nome, a
categoria profissional, a profissão, a situação na profissão, as habilitações, o
número da segurança social, as datas de nascimento, de admissão na empresa e da
última promoção, as remunerações pagas, designadamente a remuneração base,
diuturnidades, prestações regulares e irregulares e horas extraordinárias.
A elaboração de tais mapas pelas entidades empregadoras, contendo as informações
acabadas de referir, pode ser levada a cabo através de um processo de
preenchimento manual ou através de um preenchimento informático – art. 455°/l
RCT.
A afixação daqueles mapas ou a disponibilização da sua consulta, no caso de
apresentação informática, tem por finalidade possibilitar a reclamação escrita
pelos trabalhadores interessados, directamente ou através do seu sindicato,
relativamente a eventuais irregularidades detectadas nos mesmos – art. 456°/1
RCT.
Ora, a nosso ver, a obrigação de afixação do aludido mapa do quadro de pessoal
contendo todas aquelas informações relativa a aspectos pessoais dos
trabalhadores, ainda por cima de forma visível no local de trabalho, ou a
obrigação de disponibilização da sua consulta – em caso de apresentação
informática – por todo e qualquer trabalhador, com a mesma extensão informativa
e mesmo relativamente às informações que directamente não dizem respeito ao
trabalhador que está a proceder à consulta, respeitando elas aos demais
trabalhadores da mesma entidade patronal, colide, desde logo, com o direito à
reserva da vida privada dos trabalhadores que, assim, assistem passivamente à
exposição, mais ou menos pública, de diversos e variados aspectos da sua vida
pessoal, dependendo a extensão da exposição da forma pela qual a entidade
patronal decide dar cumprimento ao dito art. 456°/l.
Com efeito, o art. 26°/1 da Constituição da República Portuguesa (CRP)
estabelece, de entre o elenco dos direitos, liberdades e garantias pessoais, o
direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
Está em causa um direito directamente ao serviço da protecção da esfera nuclear
das pessoas e da sua vida, abarcando fundamentalmente aquilo que a literatura
juscivilística designa por direitos de personalidade.
Trata-se, assim, de um direito estreitamente ligado à própria personalidade,
devendo o seu exercício moldar‑se e consolidar-se pela observância do princípio
da dignidade da pessoa humana. a ponto de o respeito por ele e a garantia da sua
efectivação o colocar ao abrigo dos limites materiais da revisão constitucional
– cfr. os artigos 1° e 2° e a alínea d) do artigo 288º CRP.
(…)
Ora, a afixação pública, em local bem visível, ou a disponibilização
indiscriminada de consulta do respectivo conteúdo informático a todo e qualquer
trabalhador de uma empresa, daqueles mapas de pessoal, onde estão contidas as
aludidas informações sobre os trabalhadores, a categoria profissional deles, a
profissão dos mesmos, a sua situação na profissão, as respectivas habilitações,
o número da segurança social que lhes corresponde, as datas das respectivas
admissões na empresa, a última promoção e as remunerações pagas, implica, a
nosso ver, a indiscriminada divulgação, mais ou menos pública, de aspectos
relativos à vida privada de cada um dos trabalhadores, com a consequente
violação do direito à reserva da vida privada deles.
Por outro lado, sendo a finalidade legalmente prevista para a afixação daqueles
mapas ou para a disponibilização da sua consulta a de permitir que os
trabalhadores interessados possam reclamar quanto às irregularidades detectadas,
é claramente desproporcionada a publicitação daquelas informações relativas à
vida privada de todos os trabalhadores nos termos em que o impõe a letra do
citado art. 456° RCT, já que ela permite o acesso à informação pessoal de cada
trabalhador por parte de terceiros, sejam outros trabalhadores da empresa que
decidam consultar o registo informático na parte em que ele respeite a outros
trabalhadores, sejam mesmo outras pessoas estranhas à empresa que visitem as
suas instalações e que resolvam consultar o mapa de pessoal aí afixado.
Consequentemente, a norma do citado art. 456° RCT é inconstitucional, por
violação directa do art. 26°/1 CRP, assim como inconstitucional é, pela mesma
razão, a norma punitiva do art. 490°/1 e do mesmo RCT.
Por outro lado, essas mesmas normas também são inconstitucionais por violação do
estatuído no art. 35°/4 da CRP.
(…)
Como assim, as normas dos arts. 456° e 490°/1/e do RCT também violam o n° 4 do
art. 35° da CRP, sendo, também por isso, inconstitucionais, com a consequente
impossibilidade da sua aplicação (art. 204° CRP).
2. Notificado desta decisão, o Magistrado do Ministério Público junto do
Tribunal do Trabalho da Figueira da Foz veio interpor o presente recurso para o
Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º,
n.º 3, da Lei de Organização e Funcionamento do Tribunal Constitucional, “da sem
embargo douta sentença que no processo em epígrafe recusou a aplicação do art.º
456.º do Regulamento do Código do Trabalho (RCT), aprovado pela Lei n.º 35/2004,
de 29/7, com fundamento em violação dos art.ºs 26.º, n.º 1, e 35.º, n.º 4, da
CRP, quando interpretado no sentido de o Mapa do Quadro de Pessoal ali
mencionado dever conter os dados mencionados na portaria 785/2000 e 19/09.”
Nas alegações produzidas neste Tribunal, concluiu assim o Magistrado do
Ministério Público em funções no Tribunal Constitucional:
1°
A norma constante do artigo 456° do Regulamento do Código do Trabalho, provado
pela Lei n° 35/04, interpretada no sentido de o mapa do quadro de pessoal, ali
mencionado, dever conter os dados referidos na Portaria n° 785/2000, (DR – I
Série B, n° 217, de 19 de Setembro), não afronta o disposto nos artigos 26°, n°
1, e 35°, n° 4, da Constituição da República Portuguesa.
2°
Na verdade, a afixação e divulgação, no âmbito da empresa, do referido mapa –
que apenas contém elementos atinentes à identificação civil dos trabalhadores e
ao respectivo estatuto profissional – não atinge o direito à reserva da
intimidade da vida privada, revelando-se adequado e necessário à “transparência”
na vida laboral da empresa, permitindo aos trabalhadores interessados sindicar e
comparar claramente as respectivas situações ou estatutos sócio-profissionais,
de modo a facultar-lhes reacção adequada contra quaisquer irregularidades.
3°
Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Por sua vez, a recorrida concluiu do seguinte modo as suas contra-alegações:
1. Dos mapas de quadro de pessoal consta, para além da identificação da
“Empresa” e do seu respectivo “Estabelecimento” (com indicação do volume de
negócios), diversa informação nominativa respeitante aos trabalhadores, como
sejam o nome, a categoria profissional, profissão, situação na profissão,
habilitações, o número da segurança social, as datas de admissão na empresa e da
última promoção, e as remunerações pagas, designadamente a remuneração base,
diuturnidades, prestações regulares e irregulares e horas extraordinárias.
2. O conjunto de dados constantes do mapa de quadro de pessoal constitui um
agrupamento significativo, senão mesmo essencial, patrimonial e não patrimonial,
sobre a vida privada do trabalhador e que, como tal, se encontra abrangido pela
noção constitucional de vida privada.
3. A informação constante dos mapas de quadro de pessoal integra o conceito de
dados pessoais constante do artigo 35.° da Constituição da República Portuguesa
e da a) do artigo 3.° da Lei n.° 67/98, pelo que o respectivo tratamento só pode
ser efectuado se o mesmo for necessário e proporcional para a prossecução de
interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os
dados sejam comunicados.
4. A teleologia da norma constante do n.° 1 do art. 456.° da Lei n.° 35/2004 não
é o confronto e a comparação entre os dados dos vários trabalhadores mas única e
exclusivamente permitir que os trabalhadores interessados possam reclamar quanto
às irregularidades detectadas nos seus próprios dados.
5. O objectivo pretendido sempre poderia ser alcançado através da
disponibilização dos elementos constantes do mapa de quadro de pessoal, para
consulta individual, única e exclusivamente relativamente aos dados de cada
trabalhador que procedesse a essa consulta, em terminal informático, pelo que é
de todo injustificada e desproporcionada a publicitação permitida pela afixação
dos mapas ou pela consulta por todos os trabalhadores de todos os dados
constantes do mapa de quadro de pessoal, já que a mesma permite o acesso a um
significativo acervo de informação pessoal por quem quer que seja, inclusive (no
caso de afixação) por uma qualquer pessoa estranha à empresa que visite as suas
instalações.
6. Há, inequivocamente, formas não atentatórias aos direitos fundamentais,
previstos nos artigos 26.° e 35.° da CRP, de assegurar a consulta do conteúdo
dos mapas de quadro de pessoal pelo trabalhador interessado, sendo, pelo que a
norma que impõe a afixação do mapa de quadro pessoal é claramente
desproporcional e, por conseguinte, inconstitucional.
7. A decisão de não aplicação por inconstitucionalidade pelo Tribunal a quo da
norma constante do n.° 1 do artigo 456.° da Lei n.° 35/2004 deve ser confirmada,
uma vez que essa norma configura restrição e violação aos direitos constantes
dos artigos 26.° e 35.° da Constituição da República Portuguesa não conforme ao
princípio da proporcionalidade ínsito n.° 2 do artigo 18.° da Lei Fundamental.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
3. No presente recurso de constitucionalidade é colocada ao Tribunal a seguinte
questão: lesa a norma contida no artigo 456º (e a contida no artigo 490º) do
Regulamento do Código de Trabalho o direito à reserva da intimidade da vida
privada, consagrado no artigo 26º da Constituição, e a vertente especial do
direito à autodeterminação informativa que decorre do nº 4 do artigo 35º da CRP?
De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 456º do Regulamento do Código de
Trabalho, deve o empregador afixar, de forma visível, o mapa de quadro de
pessoal da empresa [a que se refere por seu turno o artigo 454º], ou, no caso de
apresentação por meio informático, disponibilizar a sua consulta durante um
período de 30 dias, «a fim de que o trabalhador interessado possa reclamar, por
escrito, directamente ou através do respectivo sindicato, das irregularidades
detectadas». Por seu turno, decorre do artigo 490º, nº 1, alínea f) do mesmo
Regulamente que o incumprimento de semelhante dever constitui contra-ordenação
leve.
A sentença de que interpôs recurso o Ministério Público recusou a aplicação
destas(s) normas(s), por entender que, sendo os dados constantes do quadro de
pessoal os identificados pela Portaria nº 785/2000, de 19 de Setembro – ou seja,
aqueles relativos ao nome, categoria profissional, profissão, habilitações,
número de segurança social, remunerações pagas, diuturnidades, prestações
regulares e irregulares e horas extraordinárias –, integravam eles informações
sobre as pessoas dos trabalhadores que deveriam ser, por imposição
constitucional, tidas como informações de acesso reservado (ou seja, controladas
pela pessoa a que dissessem respeito), pelo que a Constituição proibiria aqui a
sua divulgação ‘pública’. De acordo ainda com este entendimento, à publicidade
conduziria inevitavelmente o dever de exposição dos dados, decorrente, para o
empregador, do artigo 456º do Regulamento.
Num caso semelhante, relatado no Acórdão nº 555/2007, decidiu o Tribunal
Constitucional que assim não era, por se considerar que não ocorria, in casu,
qualquer lesão, quer do direito à reserva da intimidade da vida privada quer da
vertente especial do direito à autodeterminação informativa consagrada no nº 4
do artigo 35º da CRP.
Deve desde já dizer-se que é este o juízo que aqui se reitera, pelos fundamentos
que seguem:
4. Do que seja o conteúdo do direito à reserva da intimidade da vida privada se
tem ocupado suficientemente a jurisprudência do Tribunal (vejam‑se,
entre outros, os Acórdãos nºs 306/2003 e 368/2002, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt, bem como o Acórdão nº 355/97, em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 37º vol., p. 7 e ss.). Tem‑se dito – em consonância,
aliás, com doutrina conhecida sobre o tema – que tal direito inclui, como
diferentes manifestações, o direito à solidão, o direito ao anonimato e o
direito à autodeterminação informativa, entendido este último como direito de
subtrair ao conhecimento do público factos e comportamentos reveladores do modo
de ser do sujeito na condução da sua vida privada.
Embora estas três «manifestações» em que se fracciona o direito estejam entre si
estreitamente interrelacionadas – e só nessa interrelação possam ser, todas e
cada uma delas, integralmente compreendidas –, a verdade é que, in casu, é a
última que particularmente interessa. O bem jurídico protegido pelo direito à
reserva da intimidade da vida privada é, em larga medida (e nisso se
distinguindo ele do bem protegido pelos demais direitos pessoais consagrados no
artigo 26º), algo que diz respeito à informação em sentido lato (Paulo Mota
Pinto, «O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada», em Boletim da
Faculdade de Direito, 69, 1993, p. 525»), pelo que a prossecução de tal bem se
realiza através do direito, que cada um tem, de evitar ou controlar a tomada de
conhecimento, por parte de terceiros, de informações relativas à sua própria
‘privacidade’. E é justamente essa a dimensão da ‘reserva’ que, no presente
caso, é relevante.
No entanto, e como bem se sabe, não é fácil determinar qual o âmbito de
protecção que possa vir a ter tal ‘reserva’, nesta dimensão de faculdade de
controlo da informação sobre si próprio: a indeterminação do conceito de
‘privacidade’, ou de ‘vida privada’, está na raiz de todas as dificuldades
relativas ao âmbito de protecção do direito.
Sustenta o representante do Ministério Público no Tribunal, nas suas alegações,
que, no caso, os elementos da informação a divulgar, nos termos das disposições
conjugadas da norma legal em juízo e da portaria que a regulamenta, estariam
todos eles fora do âmbito de protecção do direito – ou, rectius, fora do âmbito
de protecção da norma constitucional que consagra o direito – por não ser nenhum
desses elementos atinente à esfera ‘íntima’ da pessoa-trabalhador. O número da
Segurança Social e a data de nascimento – diz-se – seriam por natureza dados
‘públicos’, ou pelo menos ‘não privados’, por dizerem respeito a modos de ser da
relação que se estabelece entre a pessoa e o Estado; e os restantes, como os
relativos à profissão, às habilitações ou às promoções na carreira, por dizerem
respeito à relação jurídico-laboral da pessoa, inscrever-se-iam «num tempo e num
espaço privado, com repercussão e projecção pública e social, mas não íntimo»,
pelo que, conclui-se, nenhum destes dados integraria a ‘reserva de intimidade’
(fls. 128).
É esta, contudo, uma leitura restritiva do conceito de privacidade – segundo a
qual, e para efeitos de determinação do âmbito de protecção da norma contida no
artigo 26º da CRP, ‘privacidade’ equivaleria finalmente a ‘intimidade’ – que o
Tribunal não pode aceitar. Ainda que se admita (de acordo com as alegações do
Ministério Público) que as informações relativas à Segurança Social e à data de
nascimento dos trabalhadores estariam, pela sua natureza, fora do âmbito de
protecção do direito consagrado no artigo 26º da CRP, o mesmo se não pode
concluir quanto aos restantes dados: é que a fórmula ‘reserva de intimidade da
vida privada’ não pode ser interpretada restritivamente, de modo a circunscrever
a protecção constitucional à vida íntima, pois que tal implicaria deixar de
cobrir todas as outras esferas da vida que devem igualmente ser resguardadas do
público, como condição de salvaguarda da integridade e dignidade das pessoas.
Assim sendo, nenhuma razão há para que se conclua, como concluiu o Ministério
Público nas suas alegações, que a imposição legal de divulgação, no âmbito da
empresa, de informações relativas aos trabalhadores não lesaria o direito
consagrado no artigo 26º da CRP por se situarem tais informações fora do âmbito
protegido da ‘reserva’ que aí se tutela. Nada permite concluir que assim seja.
Dito isto, a verdade é que também nada permite concluir – como o fez a sentença
recorrida – que, por assim não ser, a norma sob juízo lesa ipso facto a
Constituição.
Com efeito, o ‘facto’ de se recusar a equivalência entre ‘privacidade’ e
‘intimidade’ não impede que se não estabeleçam graduações entre diferentes
esferas da vida privada, «consoante a sua maior ou menor ligação aos atributos
constitutivos da personalidade» (Acórdão nº 442/2007 – DR, Iª série, nº 175, de
11 de Setembro de 2007, p. 6459). Haverá assim, no âmbito de protecção do
direito, núcleos mais e menos ‘fortes’ de reserva de privacidade, sendo que uma
tal variação de força não poderá deixar de ser tida em conta sempre que se se
quiser proceder a juízos de ponderação de bens.
Algum bem ou interesse terá o legislador querido prosseguir, quando determinou,
no artigo 456º do Regulamento, que se afixasse de «forma visível» cópia do mapa
de pessoal apresentado – e contendo todos os elementos de informação pessoal que
atrás ficaram identificados.
Fiel a uma certa literalidade do preceito, que diz dever proceder-se a tal
afixação «a fim de que o trabalhador interessado possa reclamar, por escrito ou
directamente ou através do respectivo sindicato, das irregularidades
detectadas», entendeu a sentença recorrida que o tal bem ou interesse
prosseguido pelo legislador se circunscreveria aos limites da relação
estabelecida entre cada trabalhador, individualmente considerado – e ao qual
diriam respeito os dados de informação divulgados –, e a sua entidade
empregadora. É com fundamento em semelhante leitura dos fins da lei que se
conclui pela desnecessidade e pelo excesso da imposição de afixação dos mapas,
e, logo, pela sua inconstitucionalidade, por violação das disposições conjugadas
do artigo 26º e 18º, nº 2 in fine da CRP. Compreende-se no entanto mal tal
leitura, nos seus muito estreitos limites.
Com efeito, só seria admissível partir desse princípio – segundo o qual a medida
legislativa só serviria no domínio da relação estreita entabulada entre cada
trabalhador, individualmente considerado, e o empregador – se se não concebesse
o espaço da empresa como um espaço de convivência comum, e se se não
considerasse que todos os trabalhadores que integram tal espaço poderiam vir a
ser destinatários [potencialmente] interessados no conhecimento da informação
divulgada, a fim de poderem proceder (como o assinala, nas suas alegações, o
representante do Ministério Público no Tribunal) a um «confronto/comparação
entre os dados dos vários trabalhadores». Mas é justamente este um entendimento
que razoavelmente se não pode excluir.
A ser assim entendida, como cremos que deve ser, a ratio da imposição
legislativa, diverso terá que ser (ou pelo menos diverso do que aquele que foi
feito pela sentença recorrida) o juízo relativo à sua constitucionalidade.
Permitir que, num certo espaço jus-laboral, se possam confrontar e comparar os
dados respeitantes a todos os trabalhadores que o integram, significa criar
instrumentos que contribuirão para garantir que, nesse mesmo espaço, melhor se
venham a cumprir os direitos que são consagrados no nº 1 do artigo 59º da CRP.
A restrição à ‘reserva da intimidade da vida privada’ que a exposição ‘pública’
de tais dados porventura implica, surgirá assim como algo justificado pela
necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos, como manda a parte final do artigo 18º da CRP. A adequação entre uma
coisa e outra – entre a natureza da restrição e o fim que a legitima – não
parece oferecer dúvidas, como parece não oferecer dúvidas a proporcionalidade da
sua medida. Afinal de contas, a ‘publicidade’ de que aqui se fala não é senão a
relativa ao espaço ‘público’ da empresa; e a ‘privacidade’ de que aqui se trata
não é senão a relativa àqueles aspectos da vida de cada um que, não sendo
íntimos, directamente se interligam com a condição juslaboral do trabalhador.
Por estas razões, a norma contida no artigo 456º do Regulamento do Código de
Trabalho não lesa o direito à reserva da intimidade da vida privada, consagrado
no artigo 26º da CRP.
5. Sustenta a sentença recorrida que, in casu, é ainda violado o nº 4 do artigo
35º da Constituição.
Por tudo quanto antes se disse, facilmente se poderá concluir que assim
não é.
A proibição de acesso a dados pessoais de terceiros, que a Constituição aqui
consagra, não é mais do que uma certa expressão do direito à autodeterminação
informativa, que, como vimos, está já consagrado no artigo 26º da CRP. Não
interessa agora indagar como, e em que medida, se relacionam um e outro
preceitos constitucionais: saber, por exemplo, se a proibição contida no nº 4 do
artigo 35º valerá apenas – como parece indicar a epígrafe do preceito – para os
casos de utilização de informática, alargando-se assim o tatbestand do direito
que já vinha consagrado no artigo 26º, é questão de resolução por agora inútil.
Certo é – e só essa certeza releva para o caso concreto – que aí onde não houver
lesão do direito-matriz, que é afinal o direito à autodeterminação informativa,
também não haverá lesão dessa sua expressão particularizada que é aquela que
decorre do nº 4 do artigo 35º.
Como vimos, a norma sob juízo não lesa a reserva da intimidade da vida privada,
justamente na sua dimensão de direito à autodeterminação informativa. Assim
sendo, só se pode concluir que a mesma norma em nada contradiz o disposto no
artigo 35º, nº 4, da CRP.
III
Decisão
Por estes fundamentos, decide-se conceder provimento ao recurso, reformando-se a
decisão recorrida de acordo com o presente juízo sobre a questão de
constitucionalidade.
Lisboa, 21 de Abril de 2008
Maria Lúcia Amaral (com declaração)
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins (com declaração)
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Entendi que as minhas divergências quanto ao sentir maioritário da Secção não
eram, neste caso, de molde a justificar o meu ‘vencimento’ quanto à
fundamentação adoptada. Só por isso aceitei relatar a decisão.
Tenho porém sérias reticências quanto à opção, que nela se faz, de excluir
a priori do âmbito de protecção da norma constitucional certos dados, apenas
porque eles são tidos – também aprioristicamente – como ‘públicos’ e não
‘privados’.
Creio que semelhante orientação não corresponde ao melhor método que o Tribunal
deverá adoptar, na sua tarefa de interpretação das normas constitucionais
relativas a direitos fundamentais.
Com efeito, sempre que haja dúvidas ou incertezas quanto ao âmbito de protecção
de uma norma como esta, deve (penso) adoptar‑se como hipótese de trabalho o
princípio do âmbito mais alargado possível, para, a partir dele – e sem
exclusões apriorísticas e, portanto, não fundamentadas, de certos dados –, se
proceder aos necessários juízos de ponderação com outros bens ou interesses
constitucionalmente protegidos.
Este método de determinação do conteúdo certo e definitivo de um direito
fundamental é, a meu ver, um método bem mais seguro e exigente do que qualquer
outro (que parta de concepções restritivas do âmbito de protecção), dado
implicar ele uma fundamentação mais densa, que não deixa de abranger todos os
juízos de ponderação.
Maria Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão, nos termos da fundamentação do acórdão nº 555/07, de 13 de
Novembro, desta Secção, tirado por unanimidade.
Lisboa, 21 de Abril de 2008
Ana Maria Guerra Martins