Imprimir acórdão
Processo nº 104/2008
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Em 11 de Março de 2008 foi proferida decisão sumária em que se decidiu não
tomar conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A..
A decisão de não conhecimento do recurso assentou nos seguintes fundamentos:
2. Analisados os autos, conclui-se que é de proferir decisão sumária ao abrigo
do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, por não
poder este Tribunal tomar conhecimento do objecto do recurso.
Com efeito, o que a recorrente verdadeiramente questiona é o processo
interpretativo seguido pela decisão recorrida na fixação do sentido dos
conceitos utilizados pelo legislador no tipo penal integrador da norma
incriminadora; no entender da recorrente, tal processo interpretativo efectuado
pelas instâncias, por não ter respeitado os limites de interpretação da lei
penal decorrentes do princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29.º,
n.º 1, da Lei Fundamental, tem como consequência a inconstitucionalidade da
própria norma incriminadora, objecto de uma tal interpretação, por violação do
referido princípio constitucional.
Ora, uma tal questão não se reconduz a uma verdadeira questão normativa de
constitucionalidade, isto é, a uma questão que o Tribunal Constitucional deva
conhecer, no âmbito de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, que se destina a sindicar normas
aplicadas na decisão recorrida como razão de decidir, mas não permite que se
avalie tal decisão em si mesmo considerada, designadamente quanto à escolha dos
elementos típicos da norma incriminadora que conduzem à verificação, pelo
tribunal a quo, do tipo penal em causa.
É esta a jurisprudência que decorre, entre outros, do Acórdão nº 674/99
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), jurisprudência essa que o
Tribunal só tem contrariado – vide, por último, o Acórdão nº 110/2207, também
disponível no mesmo sítio acima referido – naqueles casos em que o tribunal a
quo excedeu visivelmente os limites que são constitucionalmente impostos à sua
“liberdade judicial de aplicar o Direito”, por a decisão recorrida ter
interpretado a lei “de modo a ultrapassar o sentido possível das palavras da lei
penal” (Acórdão nº 674/99, Diário da República, II série, nº 47, de 25 de
Fevereiro de 2000, p. 3874‑5).
Como, in casu, tal não sucede, deve manter‑se nele a orientação jurisprudencial
em primeiro lugar citada. Com efeito, não se vislumbra minimamente, na decisão
recorrida, qualquer apelo a um critério interpretativo geral do tipo penal em
causa, configurável como “inovatório” ou “criativo” em relação ao sentido
possível, consentido pelo elemento literal, de que não decorre uma delimitação
temporal do tipo penal integrador da norma incriminadora, sublinhando‑se nessa
mesma decisão (fls. 1428 e 1429):
(…) Não sendo, pois, aceitável o raciocínio ínvio de limitar a aplicação do
princípio da imparcialidade e neutralidade ao período de campanha eleitoral tal
como definido no art.º 47.º da Lei n.º 1/01, de 14.08, pois que nesse caso se
esvaziaria de sentido o disposto no art.º 38.º da mesma lei (…)
(…) teria alguma lógica que em período eleitoral mas anterior aos referidos 12
dias não estivessem os titulares de cargos políticos obrigados ao respeito
escrupuloso de regras de imparcialidade, neutralidade na propaganda eleitoral,
podendo então usar os meios públicos para promoverem a muito provável
recandidatura só não o podendo fazer nos 12 dias anteriores? Não se nos afigura
tal tese consentânea com o fundamento da obrigação de respeito pelo dever de
imparcialidade e neutralidade, fundamento esse que se prende com o
estabelecimento de condições de igualdade e de oportunidades de tratamento das
diversas candidaturas. Aliás, a lei entendida nessa perspectiva não reflectiria
a realidade, pois que é sabido que logo que é designada a data da realização de
eleições os partidos começam em força as suas campanhas.
Tudo isto conduz efectivamente a que não possa conhecer-se do objecto do recurso
interposto, por nele não vir colocada uma verdadeira questão normativa de
constitucionalidade que este Tribunal deva conhecer.
2. Notificada desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, dizendo o
seguinte:
A Recorrente interpôs o presente recurso nos termos da alínea b) do artigo 70°
n° 1 do supra citado diploma, requerendo ao Tribunal Constitucional a apreciação
da inconstitucionalidade do complexo normativo constituído pelos arts. 172°, 41°
e 38° da LEOAL (Lei n.° 1/200 1, de 14 de Agosto), na interpretação segundo a
qual são também criminalizadas as condutas desrespeitadores do art. 41° que
sejam praticadas no período de pré‑campanha eleitoral – e não apenas as
praticadas no período de campanha eleitoral -, por violação do artigo 29° n.° 3
da Constituição da República Portuguesa
A questão que se pretendia submeter à apreciação do Tribunal Constitucional era
a de saber se é constitucionalmente admissível, à luz do art. 29° nº 3 da CRP,
para o efeito da aplicação do tipo penal previsto no art. 172° da LEOAL,
conjugar-se tal tipo penal não só com o art. 41° da LEOAL, mas também ainda com
o art. 38° da mesma Lei, de tal modo que se considerem subsumíveis naquele tipo
incriminador não só os actos praticados na campanha eleitoral, mas, além desses,
também os praticados na chamada pré-campanha.
Na douta decisão sumária de que ora se reclama, o Tribunal decidiu que, tendo a
Recorrente questionado “o processo interpretativo seguido pela decisão recorrida
na fixação do sentido dos conceitos utilizado pelo legislador no tipo penal
integrador da norma incriminadora”, o Tribunal Constitucional não pode conhecer
de tal questão, por a mesma não se reconduzir “a uma verdadeira questão
normativa de constitucionalidade”.
Concluiu o Tribunal Constitucional, na douta decisão de que ora se reclama, que
não se pode conhecer “do objecto do recurso interposto, por nele não vir
colocada uma verdadeira questão normativa de constitucionalidade que este
Tribunal deva conhecer”.
Salvo o devido respeito, o Recorrente considera que a douta decisão de que ora
se reclama, ancorada no douto Acórdão n.° 674/99, faz uma interpretação
conceptualista e formal do preceituado no art. 280°, n.° 1, al. b) da
Constituição da República Portuguesa e no art. 70°, n.° 1, al. b) da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
Interpretação essa já rejeitada pelo próprio Tribunal Constitucional, nos seus
doutos Acórdãos n.°s 205/99, 285/99, 122/00, 412/03 e 110/07 (os quais podem ser
consultados em www.tribunalconstitucional.pt).
Em todos os Acórdãos referidos, entendeu o Tribunal Constitucional que:
“(...) o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões
normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultante de uma
aplicação analógica, em casos que estejam constitucionalmente vedados certos
modos de interpretação ou a analogia.” – Cfr. Acórdão n.° 205/99;
“E nem se diga que no caso em apreciação nos situamos perante situação que,
verdadeiramente, não traduz uma questão inconstitucionalidade normativa, mas sim
uma questão de inconstitucionalidade da própria decisão sob censura, tendo por
parâmetro o principio da legalidade penal, ou seja, que está antes em causa a
subsunção jurídica da norma em apreço ao caso concreto e em que não há nenhum
sentido possível dessa norma confrontadamente com a Lei Fundamental (...).
(...) também aqui se entende que a matéria em análise consubstancia uma
verdadeira questão de constitucionalidade normativa passível de cognição por
este órgão de administração de justiça, dado que, como ali se afirmou, não só os
recorrentes submeteram à consideração deste Tribunal a interpretação normativa
ora em apreço, como também o processo normativo que presidiu à decisão ora
impugnada foi, ele mesmo, como resulta da transcrição supra efectuada, tomado de
modo abstracto, não resultando desta sorte, de uma mera aplicação tão só visando
o caso concreto que o tribunal a quo tinha, então, de decidir.” – Cfr. Acórdão
n.° 122/00;
“Antes de se referenciarem as anteriores pronúncias do Tribunal Constitucional,
cumpre salientar que, embora com alguns votos dissidentes, tem-se entendido que
neste tipo de situações, se mostra delineada uma questão de
inconstitucionalidade normativa, cognoscível em recurso de constitucionalidade,
já que o processo interpretativo, extensivo ou de cariz analógico, seguido pelos
tribunais decorre, não de uma pura operação subsuntiva no tipo, mas da adopção
de um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser
invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas” –
Cfr. Acórdão n.° 4 12/03;
“Que se trata de uma questão que cabe dentro dos poderes de cognição deste
Tribunal, quando vier enunciada uma dimensão normativa, aplicada como critério
de decisão, que se pretende confrontar com aqueles princípios – e não quando
estiver em causa apenas a qualificação ou a sua subsunção sob uma ou mais normas
-, é o que resulta já do que se disse também no Acórdão n.° 412/2003. (...)
Tal como então, ‘a adopção de um critério normativo, dotado de elevada
abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma
pluralidade de situações concretas, foi explicitamente invocada na decisão
recorrida’ ”. – Cfr. Acórdão n.° 110/07.
Diga-se, aliás, que a tese defendida no douto Acórdão n.° 674/99 (cuja
jurisprudência é expressamente invocada na douta decisão sumária de que ora se
reclama) foi, nesse mesmo Acórdão, colocada em crise pelo Senhor Conselheiro
José de Sousa e Brito, que na sua declaração de voto referiu:
“A peregrina tese que o Acórdão sustenta, seguindo Rui Medeiros, de que nos
casos em que o próprio legislador pode estabelecer por via legislativa solução
idêntica àquela que resultava de interpretação ou integração constitucional da
lei realizada pelo tribunal a quo, o Tribunal Constitucional não pode conhecer
do recurso, recusa a protecção da justiça constitucional à generalidade dos
casos de violação das garantias dos artigos 29°, n°s 1 e 3 e 102° da
Constituição.”
Sem prejuízo da interpretação crítica dos citados Acórdãos, o Prof. Rui Medeiros
veio recentemente reconhecer que a sua própria tese não pode ser levada longe
demais, afirmando, em A Força Expansiva do Conceito de Norma no Sistema
Português de Fiscalização Concentrada da Constitucionalidade, Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Armando Marques Guedes, 2004, Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, Coimbra Editores, págs, 183 e segs. que “estando em
causa o resultado de uma interpretação contrário à Constituição e potencialmente
aplicável a uma pluralidade de casos concretos, a eventual rejeição da
competência do Tribunal Constitucional equivaleria, na prática, ao esvaziamento
das funções de fiscalização atribuídas àquele legislador negativo. Merece, pois,
concordância a posição de principio adoptada pelo Tribunal Constitucional
português, que recusa, bem, a tese simplista que nega a sua competência quando a
alegada inconstitucionalidade radica, não na disposição, mas no resultado da
interpretação que dela se faz. (...)
(...) forçoso é concluir pela admissibilidade da interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional, nos termos da al. b) do n. ° 1 do artigo 280° da
Constituição, das decisões dos tribunais que, na perspectiva do recorrente,
atribuem à lei um sentido inconstitucional.”
E debruçando-se expressamente sobre a tese que fez vencimento no já citado
Acórdão n.° 674/99 (no qual a douta decisão sumária de que ora se reclama se
baseia), o Prof. Rui Medeiros refere, op. cit., “E provável, ainda assim, que a
posição que se impôs na jurisprudência deva ser repensada. Pode, com efeito,
questionar-se se o entendimento hoje dominante não se revela, afinal,
excessivamente conceptualista, assente numa separação rígida entre duas
realidades em larga medida aproximáveis.”
Como já se referiu supra, a douta decisão sumária de que ora se reclama procede
a uma interpretação conceptualista do disposto no art. 280º, n.° 1, al. b) da
Constituição da República Portuguesa e no art. 70°, n.° 1, al. b) da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, ao entender
que o processo interpretativo efectuado pelas instâncias não se reconduz a uma
questão normativa de constitucionalidade.
Ora, precisamente, a questão em apreço no presente recurso é a da apreciação da
constitucionalidade, por violação do princípio da legalidade, consagrado no art.
29°, n° 3 da CRP, do complexo normativo, constituído pelos arts. 172°, 41º e 38°
da LEOAL, quando interpretado no sentido de que são criminalizadas as condutas
desrespeitadoras do art. 41° que sejam praticadas em período de pré-campanha
eleitoral.
E esta interpretação, propugnada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, consiste na
adopção de um critério normativo, dotado de abstracção e susceptível de ser
invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas, e,
por isso, cognoscível pelo Tribunal Constitucional.
Diga-se aliás que não se vê como, com base na doutrina estrita que subjaz à
douta decisão sumária de que ora se reclama, se poderia conhecer da
inconstitucionalidade, por violação do art. 29°, n.° 3, da Constituição, de
qualquer questão de aplicação analógica da lei penal, sob o falso brocardo de
inspiração latina, usado nos Tribunais nazis durante o III Reich (designadamente
para punirem a circuncisão dos judeus como aborto analógico), nulium crimen sine
poena (assim se corrompendo e desvirtuando o principio autêntico, nullum crimen
sine lege).
Com tal doutrina estrita, o Tribunal Constitucional português estaria pois
pronto a sindicar a inconstitucionalidade de claras normas de meras portarias
com conteúdo contrário a normas constitucionais, ainda que insusceptíveis de
violar direitos fundamentais, mas já não seria capaz de intervir em casos de
construções jurídicas maximamente restritivas de tais direitos fundamentais,
exactamente por se tratar de construções jurídicas e não de normas propriamente
ditas.
Com tal doutrina estrita, o Tribunal Constitucional português tornar-se-ia
campeão do normativismo formalista e deixaria passar por entre os dedos
construções jurídicas abstractas que podem até legitimar crimes contra a
humanidade.
Temos pois a esperança que o Tribunal Constitucional português não se negue a si
mesmo e não perca a sua autoridade moral de defensor último do Estado de
Direito.
Pelo exposto deve ser revogada a douta decisão sumária de que ora se reclama,
substituindo-a por outra que admita o recurso interposto, notificando-se a ora
Reclamante para apresentar as suas alegações de recurso.
Atendendo à relevância que esta questão tem no domínio dos princípios e em
grande número de arestos do Tribunal Constitucional, em sentidos divergentes,
mais se requer que esta reclamação seja apreciada em plenário.
O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional
respondeu à reclamação nos termos seguintes:
1º
Face à orientação deduzida pelo Plenário do Tribunal Constitucional, a presente
reclamação é de julgar improcedente.
2°
Na verdade – e não se questionando a complexidade e delicadeza da matéria
atinente à definição do conceito da “norma”, nos casos em que está em causa a
realização de uma invocada interpretação extensiva ou analógica, em áreas
sujeitas ao princípio da tipicidade – o Tribunal Constitucional tem entendido
que lhe não compete proceder a uma prévia interpretação “autêntica” do tipo
legal, de modo a verificar se, em certo caso concreto, os tribunais das outras
ordens jurisdicionais terão, porventura, procedido a interpretação violadora dos
princípios da legalidade e tipicidade.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
3. Como se disse na decisão sumária reclamada, o Tribunal Constitucional tem
maioritariamente considerado que não constitui questão de constitucionalidade
normativa, susceptível de ser apreciada em recurso de fiscalização concreta, a
análise de uma possível inconstitucionalidade do processo concreto de
conhecimento judicial dos elementos definidores de um determinado tipo legal, em
domínios em que vigoram os princípios da legalidade e da tipicidade.
Recentemente, disse o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 183/08 (publicado
no Diário da República, I Série, de 22 de Abril de 2008), onde se fez uma
análise da jurisprudência anterior sobre a matéria:
(…)
Poderá, porém, questionar-se se tal problema relativo ao âmbito do princípio da
legalidade criminal se insere no domínio da actividade do Tribunal
Constitucional.
Esta questão não tem sido objecto de jurisprudência uniforme e tem suscitado
dois tipos de resposta de que são paradigmáticos os Acórdãos 110/07 e 524/07, os
dois contrários um ao outro e ambos com votos de vencido.
Assim, no Acórdão n.º 110/07 a segunda secção do Tribunal Constitucional
decidiu:
Julgar inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da
Constituição da República, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo
119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a
prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.
Pelo contrário, no Acórdão n.º 524/07, a primeira secção do Tribunal
Constitucional entendeu que não podia tomar conhecimento do recurso, isto é, que
não podia apreciar a questão de constitucionalidade que se suscitara nas
instâncias:
Nestes termos, acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, em não tomar
conhecimento do objecto do recurso.
Havendo pelo menos duas decisões sumárias favoráveis a uma das duas posições
(vejam-se, nomeadamente, as decisões sumárias nºs 379/07 e 576/07), estão
reunidas as condições para que a questão se possa decidir em sede de
fiscalização abstracta, nos termos do artigo 281.º, n.º 3 da Constituição da
República Portuguesa e do artigo 82º da Lei do Tribunal Constitucional.
Vejamos pois os termos em que o problema se coloca.
Sabe-se que a Constituição não acolheu um sistema de recurso de amparo ou de
queixa constitucional mas sim um sistema de fiscalização normativa da
constitucionalidade, que impede que o Tribunal conheça de actos (não normativos)
dos poderes públicos que sejam directamente lesivos de direitos fundamentais,
constitucionalmente tutelados. Nessa medida, não pode também o Tribunal conhecer
da eventual inconstitucionalidade de decisões judiciais em si mesmas tomadas.
Mantém-se exemplar, a este propósito, a explicação do Acórdão n.º 674/99
(publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000) que foi
recentemente transcrito no já citado Acórdão n.º 524/07 e que aqui se repete:
[…] mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer
das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a
uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma operação
equivalente, designadamente a uma interpretação ‘baseada em raciocínios
analógicos’, o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional
possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos
tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.[…]
[…] Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar,
em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já
que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia
ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal).
E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal
Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade
de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se
dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das
respectivas ordens –, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma
legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu ‘sentido natural’ (e
qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da
separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição
com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação
atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia
da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de
ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento – alargando de tal forma o âmbito de competência do
Tribunal Constitucional – deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema
de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei
Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos
recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de
inconstitucionalidade normativa.
Tudo isto é verdade e terá de se manter como boa jurisprudência.
De facto, como se disse, não vigora entre nós um sistema de recurso de amparo ou
de queixa constitucional, existindo, sim, um sistema de fiscalização normativa
da constitucionalidade que não permite que o Tribunal conheça do mérito
constitucional do acto casuístico de subsunção de um pormenorizado conjunto de
factos concretos na previsão abstracta de uma certa norma legal.
Contudo, o problema que agora se coloca − que é o de saber se não haverá
porventura uma violação do princípio da legalidade criminal quando se considera
que a declaração de contumácia constituía uma causa de suspensão da prescrição à
luz do artigo 119.º n.º 1 do Código Penal de 1982 e do artigo 336.º, n.º 1 do
Código de Processo Penal de 1987 − tem uma especificidade que não poderá ser
negligenciada.
Esta especificidade do problema poderá ser explicada partindo de uma distinção
metodológica relativa ao referente da norma legal.
As normas podem referir-se (i) a factos concretos cujo circunstancialismo
envolvente será sempre inabarcável, podem também referir-se (ii) a realidades
típicas não configuradas pelo legislador e podem, ainda, referir-se (iii) a
meras categorias normativas fixadas por lei (sobre o “referente” da linguagem
jurídica como realidade autonomamente constituída no domínio do direito e que
não se identifica necessariamente com a realidade em si mesma, Castanheira
Neves, O actual problema metodológico da interpretação jurídica, Coimbra 2003,
p. 251-268).
Esta diferença é processualmente relevante.
Se no primeiro caso é líquido que a determinação do referente da norma (factos
concretos) está fora do domínio de actividade do Tribunal Constitucional, já o
mesmo não se poderá dizer, com igual certeza, no segundo caso em que o referente
são factos típicos com um elevado grau de abstracção e, menos ainda, no terceira
hipótese em que o referente sejam categorias legais.
O sistema português de fiscalização da constitucionalidade inclui a
possibilidade de apreciar a validade daquilo que geralmente se designam como
interpretações normativas, admitindo o artigo 80º, nº 3, da Lei do Tribunal
Constitucional a possibilidade de “o juízo de constitucionalidade sobre a norma
que a decisão tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em
determinada interpretação dessa mesma norma”.
O controlo de constitucionalidade das “interpretações normativas”, assim
admitido, não atribui, porém, ao Tribunal a competência que ele não pode ter,
desde logo face ao disposto no artigo 221º da Constituição. Um “tribunal ao qual
compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza
jurídico‑constitucional” não pode, evidentemente, transformar‑se em instância
revisora do modo como os demais tribunais interpretam e aplicam o direito
infra‑constitucional, substituindo‑se‑lhes na tarefa (que exclusivamente lhes
pertence) de subsunção de certos factos a certo tipo de determinação legal. Tal
em caso algum poderá ocorrer; tal não ocorre seguramente no caso agora sub
judice.
Com efeito, e ao invés do que sucede quando se pergunta se determinado conjunto
de factos concretos é ou não susceptível de subsunção num determinado tipo
legal, quando se pergunta se a declaração de contumácia é ou não susceptível de
integrar o universo das causas legais de suspensão da prescrição, não se está a
determinar se uma expressão legal é ou não susceptível de ter como referente um
determinado conjunto de factos concretos, mas sim um acto processual legalmente
definido de forma geral e abstracta. O referente é pois, em primeira linha, o
conteúdo geral e abstracto de uma norma legal e não um conjunto de factos
concretos ou típicos.
Não se pergunta se um determina facto concreto com todo o seu circunstancialismo
se pode incluir no âmbito da norma. A esta pergunta não pode o Tribunal
Constitucional responder.
Não se coloca aqui, sequer, a questão de saber se um determinado facto típico
dotado já de um grau médio de abstracção está abrangido pelo âmbito de uma norma
− que era o que sucederia, por exemplo, se se perguntasse se a “energia
eléctrica” se pode considerar uma “coisa móvel” ou se o “ácido” se poderá
considerar uma “arma” para efeitos de um determinado tipo de crime (veja-se
Figueiredo Dias, Direito penal. Parte geral, Tomo I: Questões Fundamentais. A
Doutrina Geral do Crime, 2ª ed. Coimbra 2007, p. 188 s.).
Pergunta-se, sim, se um acto processual normativamente inventariado em termos
gerais e abstractos pela lei – a “declaração de contumácia” – é, ou não,
passível de ser assimilado pelos conceitos utilizados pelo texto do artigo 119.º
na versão originária de 1982 e, em especial, se ela se poderá configurar como um
“caso de suspensão da prescrição especialmente previsto na lei” ou como uma
hipótese de “falta de autorização legal para continuar o procedimento”.
Trata-se apenas de saber se − em abstracto − será possível incluir o conteúdo
normativo constante de uma norma – o artigo 336.º do Código de Processo Penal –
no conteúdo normativo constante de outra norma – o artigo 119.º, n.º 1, do
Código Penal, na versão originária de 1982.
Assim, os argumentos fundamentais invocados para não conhecer das eventuais
violações do princípio da legalidade não valem para este caso em que o possível
referente da norma é uma outra norma geral e abstractamente fixada por lei.
Note-se que, a este respeito, é indiferente entender (como fez o Supremo
Tribunal de Justiça no Assento n.º 10/2000) que se trata de uma interpretação da
norma legal do artigo 119.º do Código Penal ou pelo contrário de uma norma
implícita (conjecturada porventura segundo o método previsto no artigo 10.º, n.º
3, do Código Civil) como parece decorrer do já referido acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 110/07.
De facto, mantém-se válido o que se explicou no Acórdão n.º 205/99, a respeito
da questão de saber se violava ou não o princípio da legalidade considerar a
declaração de contumácia como uma causa de interrupção da prescrição para
efeitos do artigo 120.º, n.º 1, alínea a) do CP:
Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o
artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída
pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos
termos do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil. Note‑se, porém, que em ambos
os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à Constituição é
sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira hipótese,
concluir‑se‑á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade
interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão
normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda
hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de
afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese (a
circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo
29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição feri‑la‑á de inconstitucionalidade material).
Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em
que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição
a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo
120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. E, independentemente de estar em causa
uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se
pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou
não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex
certa que lhe é ínsita.”
Nos acórdãos n.os 412/2003 e 110/2007, o Tribunal Constitucional entendeu que,
para que houvesse um objecto apto à apreciação da constitucionalidade, bastaria
que se estivesse perante
um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser
invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas.
Seria pois necessário que a questão se colocasse com um grau suficiente de
generalidade e abstracção, de tal modo que se pudesse dizer que se trataria de
uma interpretação normativa que não dependeria do circunstancialismo concreto
dos factos.
Se admitimos que este critério possa gerar dúvidas no que respeita a realidades
típicas sem previsão legal, já o mesmo não se poderá dizer quando está em causa
uma figura processual abstracta normativamente prevista como é o caso da
declaração de contumácia.
Nestes termos, está o Tribunal Constitucional habilitado a tomar conhecimento da
questão da constitucionalidade que aqui se coloca quer o objecto do processo
seja entendido como uma interpretação normativa do artigo 119.º do Código Penal
de 1982, quer seja entendido como norma extraída das disposições conjugadas do
artigo 119.º, nº 1, do Código Penal e do artigo 336.º, nº 1, do Código de
Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a
prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia
(sobre o problema das “normas implícitas” como objecto idóneo de fiscalização da
constitucionalidade, Rui Medeiros, “A Força expansiva do conceito de norma no
sistema português de fiscalização concentrada da constitucionalidade”, in
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando Marques Guedes, Lisboa, 2004, p.
187 ss., esp., p. 193 s., onde se “recoloca” o problema da fiscalização do
cumprimento do princípio da legalidade criminal por parte do Tribunal
Constitucional).
Dentro (ainda) da perspectiva adoptada maioritariamente por este Tribunal, que
acaba de ser referida, a qual, todavia, foi afastada por estar diferentemente
“em causa uma figura processual abstracta normativamente prevista como é o caso
da declaração de contumácia”, o teor da presente reclamação vem confirmar que
não se pretende censurar uma deficiência estrutural dos enunciados normativos
dos artigos 172.º, 41.º e 38.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto (Lei
que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais), para
cumprir as exigências constitucionais dos princípios da legalidade e da
tipicidade, antes está a ser impugnado o percurso judicativo-hermenêutico que
conduziu à aplicação ao caso concreto dos preceitos em causa, isto é, está a ser
impugnada a operação de subsunção, e, consequentemente, a própria decisão
judicial que condenou a ora reclamante pela prática do crime previsto e punível
por aquelas normas.
Na verdade, a reclamante repete que “a questão em apreço no presente recurso é a
apreciação da constitucionalidade, por violação do princípio da legalidade,
consagrado no artigo 29.º, n.º 3, da CRP, do complexo normativo constituído
pelos artigos 172.º, 41.º e 38.º da LEOAL (Lei n.º 1/2001, de 14 de Agosto),
quando interpretado no sentido de que são também criminalizadas as condutas
desrespeitadoras do art.º 41.º que sejam praticadas no período de pré-campanha
eleitoral.” (Fl.1467).
Ora, o artigo 172.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto, estabelece como
se segue:
Artigo 172.º
Violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade
Quem, no exercício das suas funções, infringir os deveres de neutralidade ou
imparcialidade a que esteja legal mente obrigado é punido com pena de prisão até
2 anos ou pena de multa até 240 dias.
O teor do artigo 41.º da mesma Lei é, por sua vez, o seguinte:
Artigo 41.º
Neutralidade e imparcialidade das entidades públicas
1 — Os órgãos do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, das
demais pessoas colectivas de direito público, das sociedades de capitais
públicos ou de economia mista e das sociedades concessionárias de serviços
públicos, de bens do domínio público ou de obras públicas, bem como, nessa
qualidade, os respectivos titulares, não podem intervir directa ou
indirectamente na campanha eleitoral nem praticar actos que de algum modo
favoreçam ou prejudiquem uma candidatura ou uma entidade proponente em
detrimento ou vantagem de outra, devendo assegurar a igualdade de tratamento e a
imparcialidade em qualquer intervenção nos procedimentos eleitorais.
2 — Os funcionários e agentes das entidades previstas no número anterior
observam, no exercício das suas funções, rigorosa neutralidade perante as
diversas candidaturas e respectivas entidades proponentes.
3 — É vedada a exibição de símbolos, siglas, autocolantes ou outros elementos de
propaganda por titulares dos órgãos, funcionários e agentes das entidades
referidas no n.º 1 durante o exercício das suas funções.
Já o artigo 38.º da referida Lei determina:
Artigo 38.º
Aplicação dos princípios gerais
Os princípios gerais enunciados no presente capítulo são aplicáveis desde a
publicação do decreto que marque a data das eleições gerais ou da decisão
judicial definitiva ou deliberação dos órgãos autárquicos de que resulte a
realização de eleições intercalares.
Resulta, por si só, dos enunciados normativos transcritos que os acórdãos
invocados pela reclamante não constituem “lugares paralelos” na jurisprudência
deste Tribunal, por não estar no presente recurso em questão a realização de uma
interpretação inovadora ou criativa, em áreas sujeitas aos princípios da
legalidade e da tipicidade ou, nas palavras da reclamante, um dos “casos de
construções jurídicas maximamente restritivas de (tais) direitos fundamentais”
(fl. 1468). [Parênteses aditado].
O que se apresentou como decisivo para considerar que se não estava perante uma
questão de constitucionalidade normativa foi a circunstância – bem sublinhada na
decisão sumária reclamada – de a actividade judicativo-hermenêutica que conduziu
à aplicação dos preceitos em causa ao caso dos autos não ultrapassar o campo
semântico dos conceitos que o legislador penal utilizou, antes resultar de uma
mera aplicação dos mesmos preceitos ao caso concreto que o tribunal a quo tinha
que decidir.
A reclamação da recorrente não faz infirmar este raciocínio, pelo que se impõe
reiterar o que já se afirmou na decisão sumária reclamada.
III Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
presente reclamação, confirmando a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 13 de Maio de 2008
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão