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Processo n.º 785/2007
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
(Conselheira Maria Lúcia Amaral)
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. A caixa geral de aposentações interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei nº 28/82 (Lei do Tribunal Constitucional), do acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte de 14 de Junho de 2007, que, recusando a aplicação das
normas contidas no n.º 6 do artigo 1.º e no artigo 2.º da Lei nº 1/2004, revogou
o acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga datado de 5 de Maio de
2006 (fls. 241 dos autos).
No requerimento do recurso de constitucionalidade, diz a Caixa Geral de
Aposentações pretender que sejam apreciadas pelo Tribunal Constitucional as
normas acima mencionadas [por lapso, indicam-se as constantes dos nºs 6 e 8 do
artigo 1.º da Lei nº 1/2004], «na interpretação que delas foi feita no douto
Acórdão [do Tribunal Central Administrativo Norte] que recusou a sua aplicação
com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação do disposto no s
artigos 2.º e 266.º da Constituição da República Portuguesa.» (fls. 248 dos
autos).
2. Nas suas alegações de recurso, a recorrente concluiu do seguinte modo:
“1ª O Decreto-Lei n.° 116/85, de 19/04, previa um regime especial e excepcional
de aposentação antecipada face ao regime-regra previsto no artigo 37.° do
Estatuto da Aposentação e constituía, antes de tudo o mais, uma medida
conjuntural “de descongestionamento da Administração Pública” dependente de não
haver “prejuízo para o serviço”, e não o reconhecimento incondicional de um
direito dos funcionários à aposentação antecipada, sendo expectável a sua
alteração quando se modificassem as circunstâncias da adopção da medida
legislativa.
2ª A tramitação administrativa triangular — bem conhecida do legislador —,
prevista no artigo 3.° do Decreto‑Lei n.° 116/85, de 19 de Abril, esteve na base
da eleição do critério da data do envio do processo para a CGA a que se refere o
artigo 1.º, n.° 6, da Lei n.° 1/2004, de 15 de Janeiro, não tendo sido
propositadamente dada qualquer relevância à data em que o subscritor efectuou o
pedido junto do serviço.
3ª Tal critério é claro e objectivo, não violando qualquer princípio ou norma
constitucional.
4ª Acresce que a revogação do Decreto-Lei n.° 116/85, de 19 de Abril, não
atingiu o conteúdo essencial do direito à aposentação dos subscritores da CGA,
seja nos termos gerais (artigo 37.°, n.° 1 e 2 do Estatuto da Aposentação – EA),
seja na nova modalidade de aposentação antecipada (prevista no art.° 37.°-A do
EA) e, como tal, não implica «uma alteração inadmissível, intolerável,
arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente».
5ª A publicação tardia do Acórdão n.° 360/2003 do Tribunal Constitucional que
considerou a revogação do Decreto-Lei n.° 116/85, de 19 de Abril, pelo artigo
9.° da Lei n.° 32-B/2002, de 30 de Dezembro, inconstitucional por razões de mera
forma, bem como o excessivo formalismo exigido, via interpretativa, para a
aprovação dos diplomas legais, implicou o atraso no procedimento legislativo
tendente à publicação da Lei n.° 1/2004 – que culminou na sua retroactividade
“quinzenal” –, mas igualmente permitiu o perfeito (re)conhecimento daquele
diploma antes da sua publicação final (pois as normas constantes desta Lei são
exactamente as mesmas que foram declaradas inconstitucionais no âmbito da Lei
n.° 32‑B/2002, de 30 de Dezembro) quer pelos Sindicatos, que as contestaram viva
e publicamente, quer pelos subscritores da CGA, para além do eco que as reformas
introduzidas no regime jurídico de aposentação tiveram nos media, bem como as
vicissitudes a ela ligadas.
6ª A revogação do Decreto-Lei n.° 116/85, de 19 de Abril, era uma alteração com
a qual os cidadãos e a comunidade já há muito podiam contar, expectantes que
estavam, razoável e fundadamente, na alteração do ordenamento jurídico que regia
a constituição daquelas relações jurídicas de aposentação, já que, como se
demonstrou era público e notório que estava em marcha o processo legislativo
tendente à aprovação de tal medida, nos mesmos moldes que já haviam sido
adoptados um ano antes pela Lei n.° 32‑B/2002, de 30 de Dezembro, o mais
rapidamente possível, para entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2004, como, aliás
é norma neste tipo de diplomas.
7ª O atraso na publicação, que criou a situação de retroactividade ou de
retrospectividade em meros 15 dias, e cuja aprovação, sublinha-se, foi
amplamente noticiada na comunicação social e vivamente contestada pelos
Sindicatos, não invalida de modo algum os seus efeitos, já que a sua vigência
não depende do seu conhecimento efectivo, embora a sua eficácia dependa da sua
publicação.
8ª Em conclusão, os artigos 1.º, n.° 6, e 2.°, da Lei n.° 1/2004, de 15 de
Janeiro, por conterem normas de efeitos retroactivos, não são inconstitucionais,
já que não atingem, de forma inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado
onerosa e inconsistente as legítimas expectativas daqueles que podiam requerer a
pensão de aposentação, de características excepcionais, prevista no regime
instituído pelo Decreto-Lei n.° 116/85, de 14 de Abril.”
3. O recorrido apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes
conclusões:
“(…) o douto Acórdão recorrido, no que respeita à questão da
constitucionalidade, apenas versa sobre o regime transitório das normas vertidas
no n° 6, do art. 1° e art. 2° da Lei n° 1/2004, de 15 de Janeiro “quando
entendidas no sentido de que não é aplicável o regime do Dec. Lei n° 116/85, de
19/4, aos processos que se iniciaram antes de 31/12/2003, pelo simples facto de
não terem dado entrada na C. G.A. até à data da entrada em vigor daquela Lei,
por violação conjugada do disposto nos art.s 2° e 266° da C.R.P. – princípios da
protecção da confiança e da segurança jurídicas inerentes ao princípio do Estado
de Direito”, pelo que “será de atender ao regime decorrente do Dec. Lei
n°116/85”.
Assim, o que padece de ilegalidade é esse regime transitório quando define como
relevante a data do envio do processo de aposentação (pelos respectivos serviços
ou entidades) à C.G.D. abstraindo da data em que o requerente formula o pedido.
O ora recorrido formulou o seu pedido em 28/11/2003, ao abrigo do disposto no
Dec. Lei n° 116/85, então em vigor, mas por razões que lhe não são imputáveis, a
DREN só informou e enviou o seu processo de aposentação à C.G.D. em 18/02/04.
E, nesta vertente – e não de qualquer pretensa irretroactividade – é que o douto
Acórdão recorrido entendeu que o referido regime transitório violou os referidos
princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica estruturantes dum
Estado de Direito Democrático.
Na verdade, sabendo-se que entre a data do requerimento e a resolução final pode
decorrer um período mais ou menos longo, o que releva são os pressupostos
factuais existentes na data do pedido, de acordo com a lei vigente nessa ocasião
e não de harmonia com unia lei entrada posteriormente em vigor.
Assim, e como dispõe o douto Acórdão recorrido, o interessado não pode ser
responsabilizado ou prejudicado pela demora na actuação dos serviços da
Administração, não sendo legítimo que o mesmo, confiando no regular e normal
andamento dos processos e no respeito escrupuloso dos prazos, venha a ser
confrontado com o incumprimento daqueles prazos e penalizado na sua esfera
jurídica por motivos aos quais é alheio e que apenas são assacáveis a omissão da
Administração.
Não é justificável ou considerada adequada e respeitadora da Lei Fundamental uma
solução legal transitória que permite que dois interessados que hajam formulado
a mesma pretensão – aposentação antecipada ao abrigo do Dec. Lei n° 115/85, num
mesmo dia, possam ver a Administração decidir em sentidos diametralmente opostos
pelo simples facto de quanto a um dos indivíduos o processo se haver
desenvolvido com respeito dos prazos e o processo ter dado entrada na CGA antes
de 31/12/2003 e quanto ao outro, por omissão da Administração, o processo só ter
dado entrada após aquela data.
Deste modo, para o caso dos autos, a retroactividade desse regime transitório –
reportado a 1/01/04, cfr. art. 2º da Lei n° 1/2004 — não é relevante, pois não
altera a solução jurídica do caso sub judice – conforme se entendesse que a lei
entrou em vigor com a sua publicação (15/01/04) ou se se deve atender à data
(retroactiva) de 1/01/04.
Em qualquer caso, o processo do ora recorrido foi enviado pela DREN à C.G.A.
posteriormente a tais datas, pelo que a afirmação da recorrente de que “a
eficácia retroactiva ou a retroactividade inautêntica da Lei n° 1/2004, de
15/01, não é inconstitucional por não se traduzir na violação de qualquer
princípio ou disposição constitucional autónoma”, nada tem a ver com a situação
dos autos.
Também não está em causa a constitucionalidade da revogação do D.L. n° 116/85,
pelo que não se coloca sequer a questão de saber se tal revogação implica “uma
alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e
inconsistente”.
Em tudo o mais dá-se aqui por integralmente reproduzido o douto Acórdão
recorrido.”
I -Fundamentos
A) A questão de constitucionalidade
4. São submetidas à apreciação do Tribunal Constitucional, através do presente
recurso de constitucionalidade, as normas constantes do n.º 6 do artigo 1.º e do
artigo 2.º da Lei nº 1/2204. É o seguinte, o teor dos referidos preceitos:
Artigo 1º
Caixa Geral de Aposentações
(….)
6 – O disposto nos números anteriores não se aplica aos subscritores da Caixa
Geral de Aposentações cujos processos de aposentação sejam enviados a essa
Caixa, pelos respectivos serviços ou entidades, até à data de entrada em vigor
deste diploma, desde que os interessados reúnam, nessa data, as condições
legalmente exigidas para a concessão de aposentação, incluindo aqueles cuja
aposentação depende da incapacidade dos interessados e esta venha a ser
declarada pela competente junta médica após aquela data.
Artigo 2º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004.
A Lei nº 1/2004, na qual se incluem as normas questionadas, veio a estabelecer a
décima sétima alteração ao Estatuto da Aposentação. No elenco das mudanças
introduzidas conta-se – com particular relevo para o caso sob juízo – a
revogação, feita no n.º 3 do seu artigo 1.º, do Decreto-Lei nº 116/85, que
fixara o regime especial de aposentação antecipada. Tal regime conferira, v.g.,
aos funcionários e agentes da administração central, regional e local a
possibilidade de, independentemente da idade que tivessem e qualquer que fosse a
carreira ou categoria em que se integrassem, obter a aposentação com direito a
pensão completa, desde que se não verificasse prejuízo para o serviço e tivessem
sido cumpridos 36 anos de actividade.
É este regime, definido em 1985 com intuitos de ‘descongestionamento’ e
‘rejuvenescimento’ da Administração Pública, que a Lei nº 1/2004 veio a revogar,
substituindo-o por um outro – seguramente menos favorável para os administrados
– constante do artigo 37-A do Estatuto da Aposentação (aditado a esse mesmo
Estatuto por força do n.º 2 do artigo 1º da Lei nº 1/2004).
Ao proceder a semelhante ‘substituição’ de regimes, porém, o legislador de 2004
não deixou de fazer a seguinte ‘ressalva’: desde que os interessados reunissem,
nessa altura, as condições legalmente exigidas para a concessão da aposentação,
o novo – e menos favorável – regime não se lhes aplicaria, contanto que os
processos de aposentação fossem enviados à Caixa Geral de Aposentações, pelos
respectivos serviços ou entidades, até à data da entrada em vigor da Lei nº
1/2004. (n.º 6 do artigo 1.º da referida Lei). De acordo com o artigo 2.º, a Lei
entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2004 (vindo no entanto a ser publicada no
Diário da República apenas a 15 de Janeiro).
É sobre estas duas normas (a contida no n.º 6 do artigo 1.º da Lei nº 1/2004, e
aquela outra que lhe é complementar, pois que referente à entrada em vigor do
diploma) que incide a presente questão de constitucionalidade.
Com efeito, a sentença de que a Caixa Geral de Aposentações interpôs recurso
recusou a aplicação destas normas, por concluir «pela inconstitucionalidade
material [das normas contidas no n.º 6 do artigo 1.º e no artigo 2.º] quando
entendidas no sentido, como faz agora a CGA nos presente autos, de que não é
aplicável o regime do DL 116/85 aos processos que se iniciaram antes de
31/12/2003 pelo simples facto de não terem dado entrada na CGA até à data em
vigor daquela lei (…) Em função disso, será de atender ao regime decorrente do
DL nº 116/85». (fls. 238 dos autos)
O sentido desta recusa de aplicação de normas só pode no entanto vir a ser
integralmente compreendido se se recordar em parte a factualidade do caso. O que
ocorreu – e determinou a teor da sentença recorrida – foi basicamente o
seguinte: A. (recorrido nos presentes autos) requerera a sua aposentação
antecipada (ainda ao abrigo, portanto, do regime velho, mais favorável) em
Novembro de 2003. Por razões que lhe foram naturalmente alheias, a Caixa Geral
de Aposentações só veio a receber tal pedido em Fevereiro de 2004. Aplicando ela
a literalidade do preceituado no nº 6 do artigo 1º da Lei nº 1/2004, entretanto
entrada em vigor, devolveu o mesmo pedido em Abril seguinte com fundamento na
sua extemporaneidade. Assim sendo, o que se pergunta ao Tribunal – por
intermédio de recurso interposto de sentença que recusou, por
inconstitucionalidade, a aplicação das referidas normas – é, afinal, o seguinte:
é contrária à Constituição a dita literalidade do n.º 6 do artigo 1.º da Lei nº
1/2004 [em conjugação com a norma referente à data da sua entrada em vigor]?
5. A norma que no presente recurso está sob escrutínio foi já analisada pelo
Tribunal designadamente nos acórdãos n.º 615/2007, n.º 158/2008 e n.º 211/2008,
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, tendo sido julgada
inconstitucional em todos os casos, embora com alguma divergência de
fundamentação.
Disse-se no acórdão n.º 615/2007:
“6. A título prévio – e em benefício da boa decisão da causa – impõe-se
confrontar a jurisprudência deste Tribunal, em sede de apreciação da
constitucionalidade de mutações do regime jurídico de aposentação de
funcionários e agentes da administração pública, com as particularidades
próprias do caso ora em apreço.
Com efeito, este Tribunal tem vindo a afirmar – jurisprudência que ora se
reitera e acompanha – que as sucessivas alterações àquele regime jurídico de
aposentação, ainda que desfavoráveis aos respectivos interessados, não violam o
princípio da segurança jurídica, salvo quando manifestamente desrazoáveis,
desproporcionadas e inesperadas:
‘«Como se escreveu no Acórdão n.º 287/90 (publicado no Diário da República, I
Série, de 20 de Fevereiro de 1991):
“Nesta matéria, a jurisprudência constante deste Tribunal tem-se pronunciado no
sentido de que ‘apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma
inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos
cidadãos, viola o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado
de direito democrático (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 11/83, de
12 de Outubro de 1982, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., pp. 11 e
segs.; no mesmo sentido se havia já pronunciado a Comissão Constitucional, no
Acórdão n.º 463, de 13 de Janeiro de 1983, publicado no Apêndice ao Diário da
República de 23 de Agosto de 1983, p. 133 e no Boletim do Ministério da Justiça,
n. 314, p. 141, e se continuou a pronunciar o Tribunal Constitucional,
designadamente através dos Acórdãos nºs. 17/84 e 86/84, publicados nos 2º e 4º
vols. dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, a pp. 375 e segs. e 81 e segs.,
respectivamente).”
E no mesmo Acórdão n.º 287/90, transcrito depois no Acórdão n.º 285/92,
publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Agosto de 1992,
salientou-se que, depois de se apurar se foram afectadas expectativas
legitimamente fundadas, resta averiguar se essa afectação é inadmissível,
arbitrária ou demasiadamente onerosa. A “ideia geral de inadmissibilidade”
deverá ser aferida pelo recurso a dois critérios:
“a) Afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível,
quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os
destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes (deve
recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado,
a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18º da
Constituição desde a 1ª revisão).
Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente
onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se
excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.”
[…]. Ora, no caso sub iudice, compreende-se que a introdução pelo legislador de
um limite máximo da remuneração relevante para o cálculo da pensão de
aposentação afecte expectativas dos destinatários da prescrição legal. É facto
que não havia razão específica para os destinatários anteciparem aquela mutação
da ordem jurídica (a imposição daquele limite naquele momento).
Resta, porém, saber se tais expectativas eram legítimas, no sentido de merecerem
a tutela do Direito, ou se o legislador acautelou a possibilidade de formação de
tais expectativas, advertindo os destinatários da impossibilidade de se fixar um
dado regime da aposentação antes de certo momento.
Na verdade, a impossibilidade de previsão de uma mudança só frustraria
expectativas legítimas dos destinatários da norma em causa se estes não devessem
razoavelmente contar com a possibilidade da mudança, designadamente, por o
legislador os ter advertido do momento em que se fixa o regime da aposentação.
Ora, o artigo 43º do Estatuto da Aposentação incorpora, neste sentido, uma
previsão genérica de possibilidade de mudança de regimes, ao determinar que o
regime da aposentação se fixa com base na lei em vigor e na situação existente à
data em que se verifiquem os pressupostos que dão origem à aposentação (…). E,
por outro lado, este regime foi sendo, ao longo dos anos, sucessivamente
alterado (umas vezes em sentido favorável, outras em sentido desfavorável ao
interesse do recorrente), ao ponto de os destinatários de tais normas deverem
ter por assente que, até à constituição da sua posição de pensionistas, mudanças
poderiam sobrevir, ainda que imprevisíveis no seu sentido ou momento da
aplicação.
Não parece, assim, desde logo, que se possa dizer que a alteração em causa
afectou expectativas legítimas dos destinatários da norma, sendo seguro que,
ainda que assim não fosse, não se poderia dizer que a alteração legislativa em
causa constituísse uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os
destinatários das normas não pudessem contar – justamente, por, como o
legislador esclareceu já no artigo 43º do Estatuto da Aposentação, deverem
contar com mutações do regime da aposentação (em sentido favorável ou
desfavorável, embora, evidentemente, sem poderem adivinhar o sentido preciso
dessas mutações) até à data em que se verifiquem os pressupostos que dão origem
à aposentação.
Aliás, deve reconhecer-se que não existe uma relação directa entre os descontos
a efectuar para a Caixa Geral de Aposentações e a pensão de aposentação a
receber. E compreende-se que assim seja, tanto podendo, desde logo, o
interessado ser prejudicado como beneficiado com a falta desta relação directa
(assim se a pensão for globalmente de montante inferior àqueles pagamentos ou de
montante superior).
Como já decorre do que se disse, a argumentação baseada no facto de o recorrente
ter efectuado pagamentos obrigatórios à Caixa Geral de Aposentações incidentes
sobre a sua remuneração mensal global, quando ainda não vigorava o limite das
remunerações mensais relevantes para cálculo da pensão de aposentação,
introduzido em 1993 com o n.º 5 do artigo 47º do Estatuto da Aposentação, não
pode proceder (limite, esse, que, aliás, se refere à remuneração relevante para
efeito do cálculo da pensão e que apenas por virtude do artigo 48º do Estatuto
da Aposentação contende com a que é considerada para efeitos de contribuições
para a Caixa Geral de Aposentações). É que, como se disse, o regime da
aposentação não se fixa no momento em que as contribuições são efectuadas, mas,
nos termos do referido artigo 43º, quando se verificam os pressupostos que dão
origem à aposentação (sendo, aliás, também por esta aposentação que o
interessado adquire direito à pensão mensal vitalícia).
Não se pode, portanto, sequer afirmar que a alteração legislativa introduzida
pela Lei n.º 75/93 tenha eficácia retroactiva, uma vez que, nos termos do artigo
43º do Estatuto da Aposentação, o regime da aposentação não se encontrava à data
da entrada em vigor dessa alteração ainda fixado (e também não sendo viável
sustentar que a norma do artigo 43º do citado Estatuto, sobre o momento da
fixação do regime da aposentação – cuja constitucionalidade, aliás, não foi
impugnada –, permita uma retroactividade inadmissível, arbitrária ou
demasiadamente onerosa das alterações legislativas do regime da aposentação).
[...]. Saliente-se ainda que, como já se referiu - na sequência da
jurisprudência anterior deste Tribunal -, mesmo a eficácia retroactiva da lei só
será inadmissível quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se
prevalentes, devendo recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade,
explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no
n.º 2 do artigo 18º da Constituição desde a 1ª revisão.
E deve dizer-se, quanto à motivação da mutação legislativa de 1993, que,
objectivamente, ela não deve desligar-se da situação da evolução de receitas e
despesas da segurança social. Como é notório, o prolongamento da esperança de
vida, a alteração da relação entre pensionistas e contribuintes para o regime e
a fixação de pensões de aposentação bastante elevadas ameaçam de ruptura o
regime de segurança social, sendo compreensíveis a introdução de reformas que
limitem os gastos e aumentem as receitas. Por outro lado, sabe-se que a medida
em causa foi igualmente ditada por razões de proporcionalidade e de harmonização
das retribuições pagas pelo Estado, afectando também todos os seus trabalhadores
no activo, incluindo titulares de órgãos de soberania.
[…]. Conclui-se, assim, que nem as expectativas legítimas do recorrente podem
ter sido afectadas de forma inadmissível ou arbitrária pela norma em apreço, nem
essa afectação nem a evolução legislativa deixou de se fundar na necessidade de
salvaguardar direitos e interesses constitucionalmente protegidos e prevalentes.
Como concluía o Acórdão n.º 287/90 (e o Acórdão n.º 285/92 repetiu):
“Não há, com efeito, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à
manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a
factos complexos já parcialmente realizados. Ao legislador não está vedado
alterar o regime de casamento, de arrendamento, do funcionalismo público ou das
pensões, por exemplo, ou a lei por que se regem processos pendentes.” (itálico
aditado)».” (Acórdão n.º 99/99, de 10 de Fevereiro de 1999, publicado in «Diário
da República», IIª Série, n.º 76, de 31 de Março).
Em sentido idêntico, voltou a pronunciar-se este Tribunal, através de decisão do
Plenário, em 09 de Maio de 2006:
“De qualquer modo, na maior extensão desse efeito desfavorável ao subscritor
pressuposta pela argumentação do requerente ou neste outro de mais reduzida
expressão quantitativa, considera-se que não existem razões para que o Tribunal
se afaste da jurisprudência firmada no Acórdão nº 99/99 (cit.), em que estava em
causa uma questão em tudo semelhante à colocada no presente processo: a de saber
se a introdução de uma diferente e menos favorável fórmula de cálculo da pensão
de aposentação afecta expectativas – e, mais precisamente, expectativas
legítimas – dos subscritores da Caixa Geral de Aposentações.
Para alcançar a conclusão de que não existe, neste domínio, uma expectativa
legítima dos subscritores da Caixa Geral de Aposentações, o citado Acórdão nº
99/99 teve presente, desde logo, a norma do artigo 43.º do Estatuto da
Aposentação, que dispõe:
«1 – O regime da aposentação fixa-se com base na lei em vigor e na situação
existente à data em que:
a) Se profira despacho a reconhecer o direito a aposentação voluntária que não
dependa de verificação de incapacidade;
b) Seja declarada a incapacidade pela competente junta médica, ou homologado o
parecer desta, quando a lei especial o exija;
c) O interessado atinja o limite de idade;
d) Se profira decisão que imponha pena expulsiva ou se profira condenação penal
definitiva da qual resulte a demissão ou que coloque o interessado em situação
equivalente.
2 – O disposto no nº 1 não prejudica os efeitos que a lei atribua, em matéria de
aposentação, a situações anteriores.
3 – …».
Como se vê, o n.º 1 do artigo 43.º é claro na determinação de que é no momento
da aposentação – ou, mais rigorosamente, no momento em que se verifique qualquer
das situações previstas nas alíneas a) a d) daquele n.º 1 – que se fixa, com
base na lei em vigor nesse momento, o respectivo regime.
Significa isto, como sublinhou o Acórdão n.º 99/99, que não possuem os
subscritores da Caixa Geral de Aposentações no activo qualquer expectativa
legítima na imutabilidade ou fixidez do statu quo vigente, antes não podendo
deixar de contar, por força do que está expressamente preceituado no artigo 43.º
do Estatuto da Aposentação, com eventuais alterações do regime jurídico da
aposentação. Em bom rigor, só no momento em que se aposentar – di-lo claramente
aquela norma – será possível ao subscritor conhecer, nos seus precisos contornos
e em toda a sua complexidade, as regras que lhe irão ser aplicáveis. E, como se
afirmou no Acórdão nº 99/99, «(…) a impossibilidade de previsão de uma mudança
só frustraria expectativas legítimas dos destinatários da norma em causa se
estes não devessem razoavelmente contar com a possibilidade da mudança,
designadamente, por o legislador os ter advertido do momento em que se fixa o
regime da aposentação». Ora - prossegue o Acórdão nº 99/99 -, «o artigo 43.º do
Estatuto da Aposentação incorpora, neste sentido, uma previsão genérica de
possibilidade de mudança de regimes, ao determinar que o regime da aposentação
se fixa com base na lei em vigor e na situação existente à data em que se
verifiquem os pressupostos que dão origem à aposentação (…). E, por outro lado,
este regime foi sendo, ao longo dos anos, sucessivamente alterado (umas vezes em
sentido favorável, outras em sentido desfavorável ao interesse do recorrente),
ao ponto de os destinatários de tais normas deverem ter por assente que, até à
constituição da sua posição de pensionistas, mudanças poderiam sobrevir, ainda
que imprevisíveis no seu sentido ou momento da aplicação. Não parece, assim,
desde logo, que se possa dizer que a alteração em causa afectou expectativas
legítimas dos destinatários da norma, sendo seguro que, ainda que assim não
fosse, não se poderia dizer que a alteração legislativa em causa constituísse
uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das
normas não pudessem contar – justamente por, como o legislador esclareceu já no
artigo 43º do Estatuto da Aposentação, deverem contar com mutações do regime da
aposentação (em sentido favorável ou desfavorável, embora, evidentemente, sem
poderem adivinhar o sentido preciso dessas mutações) até à data em que se
verifiquem os pressupostos que dão origem à aposentação».
Afigura-se manifesto que não existe qualquer expectativa dos subscritores digna
de tutela pelo Direito que tenha sido intoleravelmente atingida por ter passado
a ser relevante para o cálculo da pensão a média das remunerações do último
triénio em vez do quantitativo correspondente ao vencimento do cargo pelo qual
se verifica a aposentação acrescido da média das demais retribuições do último
biénio. Na verdade a pretensa «expectativa» dos subscritores não se baseia em
qualquer contribuição que hajam feito, mas tão-só numa noção difusa de
manutenção ou cristalização do statu quo do regime da aposentação em todas as
suas vertentes – ideia que, no limite, inviabilizaria toda e qualquer
intervenção reformadora do legislador neste domínio.
Decisivamente, não pode afirmar-se, sem mais, que os trabalhadores possuam uma
expectativa a que o cálculo da pensão de aposentação seja efectuado sempre da
mesma maneira ao longo da sua carreira contributiva. Ponto é que as alterações
que venham a ser introduzidas não importem, à luz de critérios de
proporcionalidade e de razoabilidade, uma lesão de tal forma grave ou profunda
na «confiança no sistema» que os trabalhadores depositaram durante a sua
carreira contributiva.
A convocação de critérios de razoabilidade e de proporcionalidade para averiguar
de eventuais violações do princípio da confiança já foi efectuada por este
Tribunal, como se viu, podendo referir-se os já citados Acórdãos n.º 287/90 e
n.º 580/99 ou, mais remotamente, o Acórdão nº 141/85 (in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 6.º vol., pp. 39 ss.). Ora, o abandono do critério da
retribuição base do cargo pelo qual se verifica a aposentação como factor de
referência e o alargamento de dois para três anos do período relevante para a
determinação da média, atenta a sua reduzida dimensão temporal, a ampla
liberdade de conformação reconhecida ao legislador e, mais decisivamente, a
circunstância de os trabalhadores não beneficiarem, no quadro da Constituição,
de um qualquer direito à «imutabilidade do sistema» são factores que militam no
sentido de se poder concluir que a alteração introduzida não afectou, de forma
absolutamente intolerável ou desproporcionada, quaisquer expectativas dignas de
tutela jurídica dos trabalhadores e, portanto, o princípio da confiança, ínsito
no princípio do Estado de direito democrático.” (Acórdão n.º 302/2006, de 09 de
Maio de 2006, publicado in «Diário da República», IIª Série, n.º 113, de 12 de
Junho).
7. Esclarecido este aspecto, impõe-se, contudo, aferir da similitude entre
aquelas situações controvertidas que deram lugar à jurisprudência supra
reproduzida e a situação concreta em apreço nos presentes autos.
Deve notar-se, em primeiro lugar, que este Tribunal, nos acórdãos supra
referidos, afrontou um problema geral – o de saber se a introdução de uma
diferente e menos favorável fórmula de cálculo da pensão de aposentação afecta
expectativas legítimas dos subscritores da Caixa Geral de Aposentações. E a esse
problema optou por responder negativamente, isto porque os princípios da
segurança jurídica e da tutela da confiança não fundamentam o reconhecimento de
expectativas legítimas à manutenção de um regime de aposentação mais favorável
que haja vigorado ao longo da carreira contributiva do candidato a aposentado.
Além disso, é de sublinhar que a jurisprudência deste Tribunal quando invoca o
artigo 43º do Estatuto da Aposentação o faz, apenas, enquanto elemento da
previsibilidade genérica de mudança do regime de aposentação ao longo da
carreira contributiva do subscritor e não no âmbito do problema específico da
alteração dos pressupostos da constituição da situação do aposentado ocorrida no
decurso de processos de aposentação pendentes.
O problema que se coloca no caso em apreço nos presentes autos é, portanto,
diferente.
Sublinhe-se que, neste caso, foi o próprio legislador que pretendeu assegurar um
grau mais intenso de protecção da segurança jurídica e da legítima confiança de
alguns subscritores da Caixa Geral de Aposentações, garantindo que a extinção,
por revogação, do regime especial previsto no Decreto-Lei n.º 116/85, de 19 de
Abril, “não se aplica aos subscritores da Caixa Geral de Aposentações cujos
processos de aposentação sejam enviados a essa Caixa, pelos respectivos serviços
ou entidades, até à data de entrada em vigor deste diploma”. Significa isto que,
ciente das consequências jurídicas do artigo 43º do Estatuto da Aposentação –
que permitiria a aplicação imediata do novo regime a partir da sua entrada em
vigor –, o legislador quis adoptar – e adoptou – uma norma transitória que
permitia que os subscritores da Caixa Geral de Aposentações continuassem a
beneficiar do regime anterior de aposentação, desde que os pedidos fossem
enviados – e não recebidos, note-se – até à entrada em vigor da Lei n.º 1/2004,
de 15 de Janeiro.
Daqui decorre que o regime da aposentação destes subscritores – nos quais se
insere o filiado do recorrido – não seria fixado com base na lei em vigor à data
em que “se profira despacho a reconhecer o direito a aposentação voluntária que
não dependa de verificação de incapacidade”, conforme determinado pela alínea a)
do n.º 1 do artigo 43º do Estatuto da Aposentação, mas com base na lei vigente à
data em que os “processos de aposentação sejam enviados a essa Caixa, desde que
os interessados reúnam, nessa data, as condições legalmente exigidas para a
concessão da aposentação”, nos termos do n.º 6 do artigo 1º da Lei n.º 1/2004.
Consequentemente, por força da adopção pelo legislador desta norma transitória,
o regime jurídico da aposentação do filiado do recorrido passa a depender do
acaso de o seu processo ser, ou não, enviado pelos serviços antes da entrada em
vigor do novo regime jurídico da aposentação.
Mas a verdade é que a partir do momento em que o serviço em causa reconhece que
a aposentação do filiado do recorrido poderia ocorrer “sem prejuízo para o
serviço”, este criou legitimamente expectativas que o legislador considerou
merecedoras de tutela, uma vez que introduziu um desvio ao regime geral.
8. Afigura-se, contudo, que o critério utilizado pelo legislador para a
aplicação de um ou outro regime jurídico conduz ele próprio ao arbítrio, pelo
que atinge o destinatário de forma inadmissível, intolerável, opressiva e
demasiado onerosa.
Senão vejamos:
a) A aplicação de um ou de outro regime jurídico baseia-se na álea
administrativa de os serviços enviarem o processo de aposentação para a Caixa
Geral de Aposentações, mais cedo ou mais tarde, ficando assim dependente do
acaso e não de qualquer critério objectivo, o que viola o princípio do Estado de
Direito (artigo 2º CRP);
b) A álea associada ao regime jurídico em análise agrava-se ainda mais se
pensarmos que esta lei entrou em vigor em 01 de Janeiro de 2004 (n.º 7 do artigo
1º), mas só foi publicada em “Diário da República”, em 15 de Janeiro de 2004,
pelo que se aplica aos pedidos enviados pelos serviços entre 1 e 15 de Janeiro
de 2004, como é o caso do filiado do recorrido;
c) Acresce ainda que o critério utilizado pela lei conduz ao tratamento
desigual de situações idênticas, em função de o processo ser ou não enviado à
Caixa Geral de Aposentações, o que não pode deixar de violar o princípio da
igualdade enquanto manifestação do princípio do Estado de Direito.
9. Assim, ao fixar uma norma transitória que determina que, ao contrário do
previsto pela alínea a) do n.º 1 do artigo 43º do Estatuto da Aposentação, quem
vir os respectivos processos de aposentação enviados à recorrente até à entrada
em vigor da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro verá aplicada à sua situação o
regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 116/85, o n.º 6 do artigo 1º daquela lei
determina que todos os factos necessários à produção dos efeitos jurídicos devem
ocorrer antes da entrada em vigor da norma. Ora, conforme provado nos autos
recorridos, as condições atributivas da aplicação excepcional do regime de
aposentação anterior já estavam preenchidas em 14 de Janeiro de 2004, ou seja,
um dia antes da publicação da Lei n.º 1/2004.
Ao determinar a sua entrada em vigor em 01 de Janeiro de 2004, e apesar de só
ter sido publicada em 15 de Janeiro de 2004, o artigo 2º da Lei n.º 1/2004
acarreta consigo o efeito perverso de permitir a aplicação do novo regime a
factos ocorridos anteriormente à sua publicação.
Como tal, quando o associado da recorrida, em 11 de Novembro de 2003, requereu
ao Presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz que enviasse o seu pedido
de aposentação à ora recorrente, ou seja, antes de o decreto que viria a dar
lugar à Lei n.º 1/2004 ter sequer sido discutido e votado na generalidade em
Assembleia da República, não seria exigível que aquele contasse – de modo seguro
– que o seu pedido de aposentação não poderia beneficiar do regime até então
instituído pelo Decreto-Lei n.º 116/85.
10. Por último, e apesar de a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a
propósito da sucessão de regimes de aposentação, ter vindo a afirmar
reiteradamente a liberdade conformativa do legislador para alterar os quadros
normativos vigentes em determinados períodos, concluindo pela ausência de
qualquer violação do princípio da igualdade (ver, por exemplo, o Acórdão n.º
580/99, de 20/10/99), o caso dos presentes autos apresenta particularidades que
conduzem a uma diferente ponderação.
Como já se viu, não está aqui em causa a liberdade conformadora do legislador,
mas antes o resultado a que conduz o critério por ele eleito para tutelar,
através de uma norma de direito transitório, a situação daqueles subscritores
que reuniam os pressupostos de aposentação e tinham pedidos de aposentação
formulados ao abrigo do regime especial agora revogado. Recapitulando, ao
adoptar, como factor determinante do regime aplicável aos processos pendentes, a
data do envio do processo à Caixa Geral de Aposentações pelos respectivos
serviços ou entidades, o legislador socorreu-se de um elemento sem relação com
os pressupostos materiais da situação e que, pelo seu carácter aleatório, está
inteiramente dependente da actuação administrativa, não apresentando nenhuma
ligação com nenhum momento procedimental constitutivo, introduzindo deste modo
um critério arbitrário e gerador de desigualdades entre requerentes da
aposentação ao abrigo do DL nº 116/85 em idêntica situação.
Nos presentes autos não se cura, portanto, da constitucionalidade de uma norma
que imponha um tratamento desigual entre indivíduos sujeitos a um novo regime de
aposentação e aqueles que ainda beneficiaram de um regime anterior mais
favorável. A questão relevante repousa na determinação da admissibilidade
constitucional de uma norma que trata de modo diferente membros da categoria dos
indivíduos que, potencialmente, poderão ver-lhes aplicável o antigo regime
especial de aposentação.
Tal decorre da circunstância de o legislador ter determinado que o novo regime
“não se aplica aos subscritores da Caixa Geral de Aposentações cujos processos
de aposentação sejam enviados a essa Caixa, pelos respectivos serviços ou
entidades, até à data da entrada em vigor deste diploma” (com sublinhado nosso).
Significa isto que um mesmo grupo de sujeitos jurídicos – os funcionários e
agentes da administração pública que reunissem as condições previstas no n.º 1
do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 116/85 até à data em vigor do novo regime de
aposentação – veriam ser-lhes aplicado um regime jurídico distinto, em exclusiva
função da celeridade (ou da demora) de cada um dos serviços que integram a
administração central, regional e local, institutos públicos que revistam a
natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos e organismos de
coordenação económica.
Daqui resulta que a norma constante do n.º 6 do artigo 1º da Lei n.º 1/2004, ao
fazer depender a aplicação de um regime jurídico do envio por parte dos serviços
dos quais dependem os candidatos a aposentados, trata de modo arbitrário e
casuístico os destinatários daquela norma, sem que haja fundamento
constitucional para tal desigualdade de tratamento. A circunstância de dois
indivíduos colocados na mesma situação de preenchimento das condições exigidas
para a aposentação, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 116/85, poderem ver aplicados
regimes jurídicos distintos, em exclusiva função da celeridade ou da demora com
que os respectivos serviços enviam os processos de aposentação à recorrente,
atenta – de modo manifesto – contra o princípio da proibição de tratamento
desigual injustificado, consagrado pelo artigo 13º da Lei Fundamental.
Aliás, quanto ao caso em apreço nos autos, deu-se como provado que o associado
do recorrido entregou o competente pedido de aposentação, em 11 de Novembro de
2003, e que o Município da Figueira da Foz, do qual aquele dependia, apenas o
remeteu à Caixa Geral de Aposentação, em 12 de Janeiro de 2004, apesar de o n.º
2 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 116/85, impor aos serviços competentes um
“prazo de 30 dias a contar da data da entrada”. Como tal, torna-se evidente que
o associado do recorrido nem tão pouco pode ser alvo de um juízo de
censurabilidade por não ter contribuído para que o processo de aposentação fosse
efectivamente enviado à Caixa Geral de Aposentações. Impõe-se mesmo frisar que,
caso a Câmara Municipal da Figueira da Foz tivesse enviado o referido processo
de aposentação no prazo legal fixado, aquele teria sido enviado à recorrente,
pelo menos, em 11 de Dezembro de 2003, ou seja, em momento anterior a 01 de
Janeiro de 2004.
Em conclusão, consideram-se inconstitucionais o n.º 6 do artigo 1º e do artigo
2º da Lei n.º 1/2004, quando interpretados no sentido de que o regime de
aposentação fixado pelo Decreto-Lei n.º 116/85 não é aplicável aos contribuintes
que hajam reunido os pressupostos para a sua aplicação antes de 31 de Dezembro
de 2003, ainda que os respectivos pedidos tenham sido enviados à Caixa Geral de
Aposentações até à data de publicação da Lei n.º 1/2004, ou seja, até 15 de
Janeiro de 2004, dado que depende da álea administrativa que é o grau de
celeridade com que os serviços de que dependem os subscritores enviem o processo
de aposentação à Caixa Geral de Aposentações, por violação dos princípios do
Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP) e da igualdade (artigo 13º da
CRP)”.
É este entendimento que se perfilha, pelo que, com estes fundamentos, se
confirma a decisão recorrida quanto ao juízo de inconstitucionalidade da norma
em causa e, consequentemente, se nega provimento ao recurso.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucionais, por violação dos artigos 2.º e 13.º, n.º 1 da
Constituição da República Portuguesa, as normas constantes dos artigos 1.º, n.º
6, e 2.º da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, quando interpretados no sentido de
que aos subscritores da Caixa Geral de Aposentações que, antes de 31 de Dezembro
de 2003, hajam reunido os pressupostos para a aplicação do regime fixado pelo
Decreto‑Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, e hajam requerido essa aplicação, deixa
de ser reconhecido o direito a esse regime de aposentação pela circunstância de
o respectivo processo ter sido enviado à Caixa, pelo serviço onde o interessado
exercia funções, após a data da entrada em vigor da Lei n.º 1/2004;
b) Consequentemente, confirmar a decisão recorrida, na parte
impugnada.
Lisboa, 22 de Abril de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral (vencida quanto à fundamentação, nos
termos da declaração de voto junta)
Carlos Fernandes Cadilha (com declaração idêntica à da Exma.
Conselheira Maria Lúcia Amaral, para
que remeto)
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti, neste caso, da fundamentação que a maioria acolheu. Já o tinha feito
em caso semelhante, decidido pelo Acórdão nº 615/2007 que aqui se segue e
transcreve. Nessa altura apenas enunciei, sem desenvolver, as razões do meu
desacordo. Desenvolvo-as agora: o facto de ter sido, neste processo, a relatora
vencida do projecto inicial a tanto me induz.
Decidiu o Tribunal que as normas constantes dos artigos 1º, nº 6 e 2º da Lei nº
1/2004 eram inconstitucionais por violação do artigo 2º (princípio do Estado de
direito democrático) e do artigo 13º (princípio da igualdade) da Constituição.
O princípio do Estado de direito democrático integra em si mesmo o núcleo
essencial de todo o sistema constitucional: o seu conteúdo é, assim, tão vasto e
diversificado quanto intensa é a sua ‘carga’ ou ‘densidade’ axiológica.
Recomenda-se por isso que só em último caso profira o Tribunal decisões de
inconstitucionalidade que sejam directamente fundadas na sua violação: uma
invocação do princípio como parâmetro directo e imediato de controlo dos actos
do legislador que não seja severamente escrutinada (isto é, que não apareça como
ultima ratio face à impossibilidade de convocação de outros parâmetros, mais
precisos e de menor densidade axiológica) corre o risco da imprecisão e da
banalização, num domínio em que nem uma nem outra são aconselháveis.
O princípio da protecção da confiança decorre do princípio do Estado de direito
(não, note-se, do princípio democrático) mas – como é evidente – com ele se não
confunde. É apenas uma das suas dimensões não escritas, impostas pela ideia de
segurança; e da precisão do seu conteúdo se tem encarregado suficientemente a
jurisprudência do Tribunal. Não pude entender por que não foi ele, in casu, o
fundamento do juízo de inconstitucionalidade. Na verdade, todos os elementos que
permitem a convocação do princípio como parâmetro de controlo estão aqui
presentes. As normas sob juízo são normas de direito transitório, que elegem um
certo critério para a solução de conflitos de aplicação, no tempo, de diferentes
regimes. O critério que a lei elegeu tem no entanto consequências tais que
implicam a afectação, de forma ‘demasiado onerosa’, ‘intolerável’ ou
‘arbitrária’, das legítimas expectativas dos particulares quanto ao Direito que
lhes viria a ser aplicável. O que aqui está em causa, portanto, é a tutela
constitucional do ‘direito’ dos cidadãos a saber com o que contam, em situações
de substituição de lei velha por lei nova, menos favorável. Ao Tribunal cabia,
pois, dizer se existia ou não, no caso, um tal ‘direito’, através de um juízo de
ponderação entre o peso do eventual interesse público na criação da lei nova – e
na fixação por ela de um regime transitório com o conteúdo daquele que foi
escolhido – e o peso das expectativas dos particulares quanto à continuação da
aplicação, nas suas circunstâncias, da lei velha. Em vez disso, porém, escolheu
a maioria invocar uma violação genérica do princípio do Estado de direito
democrático. Não a pude acompanhar.
Além disso, invocou-se também a violação do princípio da igualdade.
Não há dúvida que ambos os princípios – o da protecção da confiança e o da
igualdade – apresentam, quando concretizados, certas contiguidades de conteúdo,
sustentadas sobretudo numa comum referência à proibição constitucional do
‘arbítrio legislativo’. Mas enquanto a ‘proibição do arbítrio’, na protecção da
confiança, está inscrita no problema da sucessão no tempo de diferentes regimes
legais – e, sobretudo, nos limites que a Constituição não pode deixar de impor
ao legislador sempre que este cria leis novas, menos favoráveis –, a ‘proibição
do arbítrio’ que decorre do nº 1 do artigo 13º tem um diferente campo de
inscrição: o que com ela se pretende impedir é que, perante diferentes regimes
que sejam entre si contemporâneos, se não encontre – face a um denominador comum
que sirva como parâmetro de comparabilidade – um qualquer sentido justificativo
das diferenças instituídas. Por isso, são bem distintas as raízes fundas em que
se ancoram tradicionalmente os dois juízos: a segurança para a protecção da
confiança; a justiça para o princípio da igualdade.
Ao ‘diluir’ o juízo de segurança no juízo de igualdade, a fundamentação de que
dissenti acaba por pôr em causa a autonomia do princípio da protecção da
confiança. Em última análise, e se se levar às últimas consequências a
argumentação nela adoptada, todos os fenómenos de sucessão de leis no tempo que
implicarem para as pessoas uma retrospectividade [ou uma retroactividade]
demasiado onerosa (com a qual, portanto, ninguém poderia razoavelmente contar),
serão inconstitucionais porque desiguais. Não vejo que ganhos poderão advir
deste esbatimento de fronteiras entre dois princípios com conteúdos tão
claramente distintos.
Maria Lúcia Amaral