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Processo n.º 259/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. requereu perante os serviços de segurança social de Coimbra a concessão de
apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos
com o processo em vista à propositura de uma acção de reivindicacão precedida de
providência cautelar.
Tomando por base o rendimento anual líquido do requerente e de sua mãe, com quem
vive em comunhão de mesa e de habitação, resultante de pensões de reforma que
cada um deles aufere nos montantes mensais de € 273,11 e € 292,14,
respectivamente, a que se considerou corresponder um rendimento relevante, para
efeitos de protecção jurídica, superior a metade e menor do que duas vezes o
valor do salário mínimo nacional, os serviços de segurança social notificaram o
requerente, em sede de audiência do interessado, de uma proposta de decisão no
sentido de lhe ser deferido o pedido de apoio judiciário na modalidade pagamento
faseado.
Tendo o requerente manifestado a sua discordância, no uso da faculdade prevista
no artigo 100º do Código de Procedimento Administrativo, o pedido veio a ser
indeferido por decisão de 23 de Outubro de 2007.
O requerente impugnou essa decisão perante o 5ª juízo cível de Coimbra, que
decidiu conceder ao impugnante o apoio judiciário na requerida modalidade de
dispensa total de pagamento de custas e demais encargos do processo,
considerando, para tanto, inconstitucionais as normas constantes do Anexo à Lei
nº 34/2004, de 29 de Julho, em conjugação com os artigos 6º a 10º da Portaria nº
1085-A/2004, de 31 de Agosto, por violação do direito de acesso à justiça
consagrado no artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
A decisão encontra-se fundamentada, na parte que mais interessa considerar, nos
seguintes termos:
De acordo com o disposto no artigo 20°, n° 1, da Constituição da República
Portuguesa, e em concretização do princípio da igualdade consagrado no artigo
13º da CRP, a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa
dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser
denegada por insuficiência de meios económicos (neste sentido, cfr. Ac. do STJ
de 21/10/1993, CJSTJ 1993, Tomo III, pág. 76).
A legislação ordinária que concretiza e regulamenta o acesso ao direito e à
tutela jurisdicional, constitucionalmente consagrado, aplicável no caso,
consubstancia-se actualmente, na Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, cujos
objectivos constam do seu artigo 1°, n° 1, que estabelece que “O sistema de
acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja
dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por
insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos
seus direitos.
Com vista à concretização de tais objectivos, foram desenvolvidos no aludido
diploma acções e mecanismos sistematizados de informação jurídica e de protecção
jurídica.
A protecção jurídica reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio
judiciário, sendo certo que têm direito a tal protecção os cidadãos nacionais e
da União Europeia que demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para
suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da
prestação dos seus serviços, e para custear, total ou parcialmente, os encargos
normais de uma causa judicial (artigos 6° e 7° da aludida Lei).
Na definição apresentada pelo legislador, no seu art. 8º, «Encontra-se em
situação de insuficiência económica aquele que, tendo em conta factores de
natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem condições
objectivas para suportar pontualmente os custos de um processo» (nº 1); «A prova
e a apreciação da insuficiência económica devem ser feitas de acordo com os
critérios estabelecidos e publicados em anexo à presente lei» (n°5).
O novo diploma (Lei n.° 34/2004, de 29 de Julho) eliminou as presunções de
insuficiência económica estabelecidas em anteriores regimes, procedendo a
alterações profundas no regime de acesso ao direito e aos tribunais com o fito
de introduzir um maior rigor na concessão da protecção jurídica.
A concessão do benefício passou agora a depender da apreciação da situação de
insuficiência económica do requerente, efectuada de acordo com critérios
objectivos previstos no referido diploma. Procurou-se restringir a disparidade
de resultados na avaliação dos requerimentos e garantir que o benefício seja
concedido a todos os que dele carecem, mas só aos que realmente precisam e na
medida da sua necessidade.
Em anexo a este diploma, e sob a epígrafe «apreciação de insuficiência
económica», estatui o legislador:
a) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica igual ou menor do que um quinto do salário mínimo nacional
não tem condições objectivas para suportar qualquer quantia relacionada com os
custos de um processo;
b) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica superior a um quinto e igual ou menor do que metade do
valor do salário mínimo nacional considera-se que tem condições objectivas para
suportar os custos da consulta jurídica e por conseguinte não deve beneficiar de
consulta jurídica gratuita, devendo, todavia, usufruir do benefício de apoio
judiciário
c) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica superior a metade e igual ou menor do que duas vezes o
valor do salário mínimo nacional tem condições objectivas para suportar os
custos da consulta jurídica, mas não tem condições objectivas para suportar
pontualmente os custos de um processo e, por esse motivo, deve beneficiar do
apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado, previsto na alínea d) do
n.° 1 do artigo 16.° da presente lei;
d) Não se encontra em situação de insuficiência económica o requerente cujo
agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica
superior a duas vezes o valor do salário mínimo nacional.
2-…
3 - Para os efeitos desta lei, considera-se que pertencem ao mesmo agregado
familiar as pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção
jurídica.
A portaria nº 1085-A/2004, de 31 de Agosto, com as alterações resultantes de
declaração de rectificação n° 91/2004 e da portaria n° 288/2005 de 21 de Março,
procedeu à concretização dos critérios de prova e de apreciação da insuficiência
económica, enumerando, por um lado, os documentos que devem acompanhar o
requerimento de protecção jurídica e concretizando a fórmula de cálculo do valor
do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica a que se refere o
critério de avaliação da insuficiência económica do requerente previsto na lei.
Prevê tal portaria a possibilidade de ser concretamente apreciada a situação
económica dos requerentes de protecção jurídica, nos termos previstos no n.° 2
do artigo 20.º da Lei n.° 34/2004, de 29 de Julho - hipótese em que os serviços
de segurança social enviam para uma comissão especial a decisão do caso.
Por outro lado, estabelece rígidas fórmulas matemáticas para decisão da
atendibilidade da pretensão.
Considerando que o regime jurídico do apoio judiciário se funda no
princípio-base de aplicação a pessoas que não tenham possibilidades económicas
para suportar os custos de um processo judicial e/ou os honorários e despesas de
um advogado, suportando o Estado tais custos, cabe ao requerente demonstrar a
ausência de disponibilidades económicas.
No que diz respeito às provas em geral, a sua função consiste na demonstração da
realidade dos factos, sendo que, regra geral, àquele que invocar um direito cabe
fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, competindo a prova
dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado àquele
contra quem a invocação é feita (cfr. artigos 341º e 342° do CC).
Entrando no caso em apreço, a questão suscitada subsume-se ao seguinte:
a) - a atendibilidade do rendimento auferido pela mãe do interdito requerente,
em cujo agregado vive em comunhão de mesa e habitação.
O mérito da impugnação deve ser aferido pelos factos relativos à situação
económico-financeira. E aos encargos prováveis da demanda, se for caso disso,
tendo em conta o disposto no art. 8° da lei e seu anexo bem como o disposto na
portaria n° 1085-A/2004, de 31 de Agosto, na redacção da portaria n° 288/2005.
Tendo em conta as fórmulas legais de determinação da insuficiência económica,
fica à partida reduzida a margem de apreciação dos órgãos decisores, incluindo o
tribunal de recurso.
Compulsados os autos, e nomeadamente a prova documental deles constante, temos
por demonstrados, apenas, os seguintes factos:
- O requerente nasceu em 21-12-1958, sendo filho de B. (já falecido) e de C..
- O mesmo encontra-se reformado por invalidez, tendo sido por sentença de
30-10-1995 declarado interdito nos autos n° 168/94 do Tribunal de Soure e aí
considerado que padece de “oligofrenia (atraso mental) de grau moderado a grave
(causa adquirida) que o impede de executar os cuidados pessoais e de higiene
diária”
- O requerente aufere € 273,111 mensais de reforma.
- Vive em comunhão de habitação e mesa com a mãe, com setenta e sete anos, esta
já reformada, auferindo € 292,14.
Com fundamento nos factos acima exarados, teremos de concluir que os critérios e
fórmulas decorrentes dos diplomas enunciados produzem resultados potencialmente
miserabilistas, considerando os valores de referência, sendo certo que mais uma
vez, se penaliza quem tem a sua situação fiscal contributiva, laboral ou
assistencial regularizada, não sendo o concreto juízo de (in)suficiência
efectivamente consentâneo com o actual custo de vida, em geral e bem assim o
valor das custas judiciais e honorários praticados.
Mas mais. O Tribunal Constitucional, no acórdão 654/2006 de 28-11-2006,
sublinhou-se em situação análoga: (...) a norma que constituía o art.° 7°, n° 1,
da Lei n.°30-E/20 de Dezembro e que era preenchida em face do caso concreto,
passou a ser uma norma preenchida legislativamente. O que era antes uma norma
aberta à ponderação do caso concreto passou a ser uma norma fechada, ponderando
estritos aspectos económico-financeiros, como resulta clara da adopção de uma
fórmula matemática. Sendo pressuposta da concessão do beneficio do apoio
judiciário uma situação de insuficiência económica, ao tabelarem-se os critérios
de apreciação dessa situação, inclusive com recurso a uma fórmula matemática
como resulta dos artigos 6° a 10º da Portaria n.° 1085-A/2004, de 31 de Agosto,
é manifesto que se procedeu a uma delimitação do direito de acesso ao Direito e
aos tribunais. Tal delimitação não foi feita na norma que consagra o direito;
foi feita ao nível da sua concretização. O conceito de economia comum pressupõe
uma comunhão de vida, com base num lar em sentido familiar, moral, e social, uma
convivência conjunta com especial “affectio” ou ligação entre as pessoas
coenvolvidas, com sujeição a uma economia doméstica comum, contribuindo todos ou
só alguns para os gastos comuns. A questão é que a aplicação do anexo à Lei n.°
34/2004 que remete a apreciação da insuficiência económica para o rendimento
relevante do agregado familiar e da fórmula matemática previstas nos artigos 6º
a 10° da Portaria n.° 1085-A/04, conduzem, no caso concreto, a um resultado que
não se mostra conforme o direito fundamental de acesso ao Direito e aos
tribunais, quer por que implica uma restrição intolerável de tal direito —
violação da princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa
que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa ‘justa
medida’ impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas, desproporcionadas,
excessivas, em relação aos fins tidos em vista — quer por que se traduz numa
violação do princípio da igualdade — que obriga à diferenciação, como forma de
compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos
poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica ou
cultural (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, 3 edição, pág. 127).
No caso concreto, e à semelhança do referido caso, o único rendimento relevante
que deve ser considerado é o de € 273,11 que o requerente obtém de uma pensão de
incapacidade. Dificilmente se concebe que o requerente usufrua da magra e
miserável pensão de reforma auferida por sua mãe, pessoa de idade avançada, ela
própria com a inerente e provável despesa medico-medicamentosa.
Considerando a alínea a) do Anexo que dispõe que o requerente cujo rendimento
relevante para efeitos de protecção jurídica seja igual ou menor do que um
quinto do salário mínimo nacional, não tem condições objectivas para suportar
qualquer quantia relacionada com os custos de um processo e considerando que
único rendimento que deve ser considerado relevante é o da pensão, considerando
o seu valor, impõe-se conceder provimento ao recurso e em consequência conceder
ao requerente o beneficio do apoio judiciário nas modalidades peticionadas:
dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com processo.
No mesmo aresto do Tribunal Constitucional concluiu-se ser inconstitucional, por
violação do n° 1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, o Anexo
à Lei n°34/2004, de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6° a 10° da Portaria
no 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impõe que o rendimento relevante
para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário seja necessariamente
determinado a partir do rendimento do agregado familiar, independentemente de o
requerente de protecção jurídica fruir tal rendimento.
Perfilhamos inteiramente tal declaração: o resultado da aplicação de tais normas
choca claramente a referida norma constitucional, pelo que do mesmo modo se
declara que o Anexo à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, conjugado com os artigos
6° a 10° da Portaria n° 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impõe que o
rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário
seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado familiar,
independentemente de o requerente de protecção jurídica fruir tal rendimento é
violador da referida regra constitucional.
Desta decisão, interpôs o Ministério Público recurso para Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do
Tribunal Constitucional, vindo a apresentar, no seguimento do processo, as
seguintes alegações:
1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida nos Juízos Cíveis de Coimbra, nos autos de impugnação da
decisão negatória de concessão do apoio judiciário peticionado por A..
A situação dos autos é inteiramente coincidente com os casos que originaram a
firme e reiterada jurisprudência, firmada na sequência da prolação por este
Tribunal Constitucional do Acórdão nº 654/06: na verdade, na hipótese dos autos,
a rejeição do pedido de apoio judiciário, na modalidade pretendida, radicou no
facto de a Segurança Social ter tomado em consideração, na valoração da situação
económica do requerente, não apenas a pensão de incapacidade por este auferida
(no valor de € 273,11), mas também a da reforma de sua mãe, no valor de €
294,12, sem que se demonstrasse que esta era interessada pessoalmente no litígio
que originava a necessidade de propor a acção para que se pedia o apoio
judiciário.
Vale, deste modo, por inteiro a fundamentação constante de tal aresto, para que
inteiramente se remete.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1ª Pelos fundamentos expressos no Acórdão nº 654/06, é inconstitucional, por
violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma
extraída do Anexo à Lei nº 34/04, de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6º a
10º da Portaria nº 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impõe que o
rendimento relevante para efeitos de concessão de beneficio do apoio judiciário
seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado familiar,
independentemente de o requerente de protecção jurídica fruir tal rendimento.
2ª Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida.
Não houve contra-alegações
Cabe apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Através da decisão ora recorrida, o 5º juízo cível do tribunal judicial de
Coimbra, no âmbito de uma impugnação judicial da decisão dos serviços de
segurança social que indeferiu ao requerente o pedido de apoio judiciário,
recusou a aplicação das normas constantes do Anexo à Lei nº 34/2004, de 29 de
Julho, em conjugação com os artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/2004, de 31
de Agosto, por violação do disposto no artigo 20º, nº 1, da Constituição da
República Portuguesa.
De acordo com a factualidade dada como assente, o requerente do apoio judiciário
nasceu em 21 de Dezembro de 1958, encontra-se reformado por invalidez e foi
declarado interdito por sentença de 30 de Outubro de 1995 do Tribunal Judicial
de Soure, por sofrer de anomalia psíquica que o torna incapaz de satisfazer por
si os cuidados pessoais e de higiene diária. Aufere € 273,111 mensais de reforma
e vive em comunhão de habitação e mesa com a mãe, de setenta e sete anos de
idade, que está também reformada com uma pensão mensal de € 292,14.
Os serviços de segurança social, tomando em linha de conta os proventos
globalmente auferidos pelo requerente e a sua ascendente, com quem vive em
economia comum, considerou como verificado, relativamente ao agregado familiar,
um rendimento relevante, para efeitos de protecção jurídica, superior a metade e
igual ou menor do que duas vezes o salário mínimo nacional, e entendeu assim
como aplicável ao caso a situação prevista na alínea c) do n.º 1 do Anexo à Lei
n.º 34/2004, de 29 de Julho, que permite atribuir o benefício de apoio
judiciário mas apenas na modalidade de pagamento faseado.
A impugnação judicial do acto administrativo de indeferimento do pedido de apoio
judiciário na modalidade que fora requerida culminou com a decisão judicial de
recusa de aplicação de normas, que está agora sob apreço.
Em recurso obrigatório, o Exmo Magistrado do Ministério Público, nas suas
alegações, considerou transponível para o caso a doutrina do acórdão do Tribunal
Constitucional nº 654/06, tendo em linha de conta que para o cálculo do
rendimento relevante, para o efeito de concessão do benefício do apoio
judiciário, se atendeu ao rendimento global do agregado familiar, incluindo o
que era auferido pela mãe do requerente, independentemente de saber se este
poderia fruir ou dispor de tal rendimento.
3. Nos termos do artigo 6º, n.º 1, da Portaria n.º 1085-A/2004, o rendimento
relevante para efeitos de protecção jurídica, é o montante que resulta da
diferença entre o valor do rendimento líquido completo do agregado familiar e o
valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica. Conforme
explicita o artigo 7º, o valor do rendimento líquido completo do agregado
familiar resulta da soma do valor da receita líquida do agregado familiar com o
montante da renda financeira implícita calculada com base nos activos
patrimoniais do agregado familiar (n.º 1), entendendo-se por receita líquida o
rendimento depois da dedução do imposto sobre o rendimento, das contribuições
obrigatórias dos empregados para regimes de segurança social e das contribuições
dos empregadores para a segurança social (n.º 2). Por sua vez, o valor da
dedução relevante para efeitos de protecção jurídica resulta da soma do valor da
dedução de encargos com necessidades básicas do agregado familiar com o montante
da dedução de encargos com a habitação do agregado familiar, e é calculado de
acordo com o estabelecido no artigo 8º. E, finalmente, o cálculo do valor do
rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica, à luz de todas as
especificações constantes dos artigos precedentes, é efectuada através da
fórmula descrita no artigo 9º
É ainda por referência ao rendimento relevante (em que como se viu intervém o
rendimento das pessoas que compõem o agregado familiar) que se aprecia a
insuficiência económica do requerente de apoio judiciário, para efeitos da
concessão de protecção jurídica, atendendo-se aos parâmetros definidos no Anexo
à Lei n.º 34/2004. Sendo ainda certo, conforme resulta do n.º 3 desse Anexo, que
para efeitos dessa Lei «considera-se que pertencem ao mesmo agregado familiar as
pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção jurídica».
Tem-se, por conseguinte, como certo, face ao estipulado na lei, que, para efeito
de averiguar a situação de insuficiência económica determinante da concessão de
apoio judiciário, em qualquer das suas modalidades, haverá que ter em conta os
rendimentos das pessoas que integram o agregado familiar, entendendo-se como tal
as pessoas que vivam em economia comum, independentemente de serem igualmente
interessadas no litígio jurisdicional para que o requerente pretende o apoio
judiciário.
O que o acórdão do Tribunal Constitucional nº 654/06 teve presente, num caso em
que o requerente do apoio judiciário vivia com um ascendente do segundo grau que
lhe prestava alimentos, é que o mencionado regime legal, deixando de efectuar,
em regra, qualquer ponderação em concreto da situação de insuficiência
económica, e passando a considerar, para esse efeito, o rendimento do agregado
familiar com base na aplicação de uma mera fórmula matemática, poderá
representar a denegação do direito de acesso aos tribunais quando se verifique
que o requerente poderá não dispor dos rendimentos de terceiros que compõem o
agregado familiar e que estes poderão não estar sequer obrigados a contribuir
para as despesas judiciais que o requerente pretenda realizar.
Por isso mesmo, o citado aresto decidiu «julgar inconstitucional, por violação
do n.º 1 do artigo 20º da Constituição da República, o Anexo à Lei nº 34/04,
conjugado com os artigos 6º a 10º da Portaria n.º 1085-A/2004, na parte em que
impõe que o rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício de apoio
judiciário seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado
familiar, independentemente de o requerente de protecção jurídica fruir tal
rendimento».
O mesmo juízo foi reiterado nas decisões sumárias n.ºs 206/2007, 530/2007,
603/2007, 625/2007 e 1/2008 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt)
Entretanto, em situação similar, também o recente acórdão n.º 273/08, tirado na
3ª secção, decidiu julgar inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 20º
da CRP, o mesmo conjunto normativo, na parte em que impõe que o rendimento
relevante para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário seja
necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado familiar,
incluindo os rendimentos auferidos por uma sua filha maior, independentemente de
o requerente de protecção jurídica fruir tal rendimento.
E não se vê motivo para deixar de aplicar a mesma doutrina no caso dos autos.
Nos termos das mencionadas normas do Anexo e dos artigos 6º a 10º da Portaria
n.º 1085-A/2004, a insuficiência económica para efeito de concessão de apoio
judiciário, é apreciada por referência ao rendimento do agregado familiar,
entendendo-se como pertencendo ao mesmo agregado familiar as pessoas que vivam
em economia comum com o requerente da protecção jurídica.
O conceito de economia comum tem um sentido amplo que permite abranger quer os
que se encontrem vinculados pelo matrimónio, quer os unidos de facto, quer
quaisquer pessoas ligadas ou não por parentesco ou relação afectiva, desde que
vivam em comunhão de interesses e de meios e contribuam com os seus proventos, o
seu trabalho ou a cooperação mútua para a manutenção da habitação comum e o
sustento dos residentes (veja-se a definição constante da Lei n.º 6/2001, de 11
de Maio, que visou instituir medidas de protecção das pessoas que vivam em
economia comum).
Todavia, só em relação a pessoas casadas entre si, por se encontrarem sujeitas
ao cumprimento dos deveres conjugais, e, designadamente, ao dever de assistência
a que se refere o artigo 1675.º do Código Civil, é que é possível sustentar a
existência de uma obrigação de comparticipar na satisfação de despesas judiciais
a que o outro interessado se encontre obrigado para intervir na defesa dos seus
direitos ou interesses legítimos (neste sentido, o acórdão n.º 272/2008, que
decidiu não julgar inconstitucionais as mencionadas normas da Lei n.º 34/2004 e
da Portaria n.º 1085-A/2004, quando interpretadas no sentido de permitirem a
consideração de rendimentos pertencentes ao agregado familiar de um requerente
de apoio judiciário, quando auferidos por cônjuge, na constância de casamento
sujeito ao regime de comunhão de adquiridos, quando o pedido de apoio judiciário
vise dedução de oposição à execução movida contra um dos cônjuges, no âmbito da
qual possam vir a ser penhorados bens comuns do casal).
Quaisquer outras pessoas que vivam em economia comum, ainda que se encontrem
numa situação factual de entreajuda e partilha de recursos, não estão
juridicamente adstritas ao dever de comparticipar com os seus próprios
rendimentos na satisfação de encargos judiciais relativos a um processo judicial
que apenas a um outro interessa. Para além de poder haver interesses
conflituantes entre os membros da economia comum, designadamente quanto ao
objecto do processo, e de o requerente de protecção jurídica poder querer
exercer o direito de reserva sobre a defesa dos seus direitos e interesses
legalmente protegidos.
E - como se ponderou no acórdão n.º 654/06 - mesmo quando haja um dever de
prestar alimentos por qualquer das pessoas a que se refere o artigo 2009º do
Código Civil, ele não compreende a obrigação de pagamento de despesas relativas
a taxa de justiça e honorários forenses a que o beneficiário possa encontrar-se
sujeito.
Afigura-se claro, nestes termos, que a aplicação conjugada do Anexo à lei n.º
34/204 e dos artigos 6º a 10º da Portaria n.º 1085-A/2004, não garante o acesso
ao direito e aos tribunais, consentindo a possibilidade de ser denegado este
acesso por insuficiência de meios económicos, na medida em que o rendimento
relevante para efeitos de concessão de apoio judiciário é determinado a partir
do rendimento do agregado familiar, independentemente de o requerente fruir o
rendimento do terceiro que integra a economia comum.
No case vertente, o requerente do apoio judiciário encontra-se sujeito a um
regime de interdição, tendo como único rendimento uma reduzida pensão de
reforma; e embora viva em economia comum com a sua mãe, nada permite concluir
que possa dispor do rendimento que a esta pertence, que já de si é de montante
inferior ao salário mínimo nacional e que é suposto ser aplicado na satisfação
das suas próprias necessidades essenciais.
Tendo sido considerado para o cálculo do rendimento relevante o rendimento
global do agregado familiar, incluindo o auferido por quem com o requerente vive
em economia comum, independentemente de este poder dispor de tal rendimento, é
de entender que a aplicação, no caso, das normas do Anexo à Lei nº 34/04 e dos
artigos 6º a 10º da Portaria n.º 1085-A/2004, é susceptível de pôr em causa o
direito de acesso à justiça, tal como se concluiu na decisão sob recurso.
III. Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 20º da Constituição
da República Portuguesa, o Anexo à Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, conjugado com
os artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que
impõe que o rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício do apoio
judiciário seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado
familiar, independentemente de o requerente poder fruir tal rendimento;
b) Confirmar o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida
Lisboa, 2 de Julho de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão