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Processo nº 119/2008
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Em 11 de Março de 2008 foi proferida decisão sumária em que se decidiu não
tomar conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A.
A decisão de não conhecimento do objecto do recurso assentou nos seguintes
fundamentos:
3. O presente recurso foi admitido no tribunal a quo, em decisão que, como se
sabe, não vincula este Tribunal, nos termos do artigo 76.º, n.º 3, da Lei do
Tribunal Constitucional, e, analisados os autos, conclui-se que é de proferir
decisão sumária ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da referida Lei.
Com efeito, é pressuposto específico do recurso de constitucionalidade
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional, além da suscitação, de forma clara e perceptível, da
inconstitucionalidade da norma durante o processo e do esgotamento dos recursos
ordinários que no caso cabiam, que a norma (ou dimensão normativa) impugnada
tenha efectivamente sido aplicada pelo tribunal a quo, na decisão recorrida,
como verdadeira ratio decidendi.
Este último requisito não é mais do que expressão da necessária utilidade da
intervenção do Tribunal Constitucional, em via de recurso, pois, se o sentido
normativo impugnado não corresponder ao sentido com que as normas questionadas
foram aplicadas na decisão recorrida, a decisão do Tribunal Constitucional sobre
a sua constitucionalidade, qualquer que ela fosse, sempre será insusceptível de
alterar o sentido da decisão do tribunal recorrido. Nestas condições, o Tribunal
Constitucional não pode tomar conhecimento do objecto do recurso.
No nosso sistema de fiscalização concentrada e incidental da
constitucionalidade, não cabe ao Tribunal Constitucional nem controlar o modo
como a matéria de facto foi apurada pelos tribunais recorridos, nem sequer
controlar o mérito da decisão recorrida, em si mesma, ou, sequer, apurar se as
normas nela aplicadas correspondem ou não ao melhor direito. No recurso de
constitucionalidade tal como foi delineado pela Constituição da República
Portuguesa e pela Lei do Tribunal Constitucional, este é apenas um órgão de
fiscalização da constitucionalidade de normas, em si mesmas (isto é, numa
interpretação enunciativa) ou em determinada interpretação particular, aplicada
na decisão recorrida. Não pode, pois, ser apreciada a questão de
constitucionalidade da decisão – do acto de aplicação do direito –, mas, apenas,
da(s) norma(s) que nela haja(m) sido aplicada(s). Como se pode ler no Acórdão
n.º 604/93, publicado no Diário da República, II série, de 29 de Abril de 1994:
[...] Importa referir que o legislador constituinte referencia como elemento
definidor do objecto típico da actividade do Tribunal em matéria de fiscalização
de constitucionalidade – designadamente, de fiscalização concreta – o conceito
de ‘norma jurídica’. Assim, apenas as normas podem ser objecto de controlo
constitucional e não as decisões judiciais enquanto tais.
A este respeito, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Fundamentos da
Constituição, 1991, p. 258): «pode-se atacar uma decisão judicial – recorrendo
dela para o TC – se ela aplicou uma norma arguida de inconstitucionalidade ou se
deixou de aplicar uma norma por motivo de inconstitucionalidade. Mas não se pode
impugnar junto do TC uma decisão judicial, por ela mesma ofender por qualquer
motivo a Constituição.» (Cfr. também, e mais recentemente, os Acórdãos n.ºs
595/97, 338/98, 520/99 e 232/2002, todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
4. Ora, o Supremo Tribunal de Justiça não se baseou, como ratio decidendi,
expressa ou implicitamente, na interpretação do artigo 358.º, n.º 1, do Código
de Processo Penal, com referência ao artigo 359.º e ao artigo 1.º, n.º 1, alínea
f), do mesmo diploma legal, que o recorrente impugna perante este Tribunal: “no
sentido de que é lícito ao Tribunal do julgamento alterar uma acusação do
Ministério Público, que não passa de um conjunto de imputações vagas, genéricas,
imprecisas e meramente conclusivas, já que dela não consta a narração de
qualquer acto concretizado de tráfico de estupefacientes, nos termos do art.º
283.º, n.º 3, alínea b), do CPP.” É o que decorre, como o Supremo Tribunal de
Justiça deixou claro, do que se pode ler na decisão pretendida recorrer a fl.
1410 dos autos:
É manifesto que está em causa uma actividade concreta e determinada devidamente
balizada em termos de autoria, tempo e modo e em relação à qual o facto aditado
nos termos do artigo 358.º do CPP representa uma concretização subordinada ao
denominador comum de uma actividade progressiva do tráfico de estupefaciente
efectuada pelo recorrente e que se inscreve nas relações existentes entre o
mesmo e o Ângelo Esteves. O seu comportamento tem subjacente uma pluralidade de
actos voluntários que surgem dominados pela mesma resolução criminosa de tráfico
de estupefacientes. Não está em causa um outro crime, mas sim uma actividade que
se inscreve num percurso delitivo, sem qualquer virtualidade para alterar a
qualificação jurídica determinada pela factualidade impressa na acusação e
considerada provada.
Conclui-se, pois, que a norma que se pretende submeter à apreciação do Tribunal
Constitucional, na dimensão tentada impugnar pelo recorrente, não foi aplicada,
expressa ou implicitamente, pelo Supremo Tribunal de Justiça, que, resolvendo o
problema de “saber se, perante a alteração introduzida, estamos perante um mesmo
facto ou perante um facto diverso e, consequentemente, se existiu alteração do
objecto do processo” (fl. 3406), concluiu que “nenhum reparo oferece a decisão
recorrida quando decide que não pode colher a invocação do recorrente de
ilegítima ampliação do objecto do processo e violação do art.º 359.º do CPP, não
se colocando por outro lado, por conforme à letra do preceito a interpretação
que dele foi feita, a questão da sua inconstitucionalidade por assim
interpretado.” (Fl. 3411).
Assim, por falta de verificação dos pressupostos indispensáveis para tanto,
sendo que, como é sabido, no recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade vigora o princípio do pedido (artigo 79.º-C da Lei do
Tribunal Constitucional), não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento
do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificado desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, nos termos e
com os fundamentos seguintes:
1. Como fundamento expresso da referida decisão sumária é invocado o facto de,
segundo na mesma se alega, o Supremo Tribunal de Justiça não ter aplicado,
“expressa ou implicitamente”, a norma que o recorrente pretende submeter à
apresentação do Tribunal Constitucional, qual seja o art. 358°, n° 1, do Código
de Processo Penal, na interpretação que, no entendimento do recorrente, foi
feita pelas instâncias e, ao fim ao resto, também pelo S.T.J., uma vez que o
douto Acórdão deste Supremo Tribunal mais não fez que confirmar as decisões das
instâncias e, portanto, não alterou os fundamentos das anteriores decisões.
2. Ora, salvo o muito devido respeito, a prova de que o S.T.J. interpretou o
art. 358°, n° 1, do do Código de Processo Penal no sentido que o recorrente
considera gravemente ofensivo dos direitos do arguido consagrados na
Constituição da República e que, portanto, “validou” a aplicação que do mesmo
preceito foi feita pelas Instâncias, encontra-se nos próprios excertos que a
Exma Conselheira Relatora fez do referido Acórdão do S.T.J. Com efeito, a fls.
1410 dos autos (parte transcrita no final da página 4 da douta decisão ora
reclamada), consta o seguinte: “é manifesto que está em causa uma actividade
concreta e determinada devidamente balizada em termos de autoria, tempo e modo e
em relação à qual o facto aditado nos termos do artigo 358° do CPP representa
uma concretização subordinada ao denominador comum de uma actividade progressiva
do tráfico de estupefaciente efectuada pelo recorrente e que se inscreve nas
relações existentes entre o mesmo e o Angelo Esteves.”
3. E também se afigura que o excerto do douto Acórdão do S.T.J., na parte que a
ora reclamada decisão sumária transcreveu de fls. 3406 e 3411 dos autos, não
permite a conclusão de que aquele Supremo Tribunal não aplicou a norma do art.
358°, n° 1, do C.P.P., “na dimensão tentada impugnar pelo recorrente” (negrito
nosso) uma vez que, cotejando o teor dos Acórdãos da 1ª Instância e da 2ª
Instância com o que, a respeito da alteração da matéria constante da acusação do
M.P., é referido no Acórdão do S.T.J., forçoso será concluir que, ao dizer-se
que “nenhum reparo oferece a decisão recorrida quando decide que não pode colher
a invocação do recorrente de ilegítima ampliação do objecto do processo e
violação do art. 359° do CPP” apenas se pretende significar que não é este
último preceito o aplicável aos factos em causa, mas sim o art. 358° daquele
diploma legal.
4. Ou seja, no douto entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa e no do
Supremo Tribunal de Justiça, a ampliação dos factos imputados ao arguido não foi
ilegítima, já que a mesma não é subsumível ao conceito de alteração substancial
dos factos prevista no art. 359º C.P.P., o qual, como é sabido e dele
expressamente consta, impõe uma tramitação garantística dos direitos de defesa
do arguido que não é assegurada pelo art. 358° do mesmo C.P.P., mas, isso sim, o
S.T.J considera que a ampliação da matéria da acusação feita na 1ª Instância e
confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa se enquadra no espírito e na letra
do art. 358° do C.P.P. Ora, é precisamente esta interpretação legitimadora da
aplicação do art. 358°, n° 1, do C.P.P., ao caso do aditamento, por parte do
tribunal do julgamento, de um facto concreto e muito grave à acusação do M.P.
que o recorrente considera inconstitucional.
5. Mas ainda sobre a questão de saber se o S.T.J. aplicou ou, melhor, julgou bem
aplicada a norma do art. 358° do C.P.P., na interpretação que o recorrente julga
inadmissível e violadora da Constituição da República Portuguesa, cumpre
referir, ainda que muito sinteticamente, outras passagens do douto Acórdão do
S.T.J..
ASSIM:
Na página 33 do Acórdão do S.T.J, é expressamente utilizada a expressão “facto
aditado nos termos do artigo 358° do CPP” (negrito nosso), aludindo à alteração,
por parte do tribunal de julgamento, da acusação do M.P., que é manifestamente
vaga e repleta de indefinições, em termos de, já depois das alegações orais do
seu defensor, acusar o arguido, ora recorrente, de, entre a primeira semana e o
dia 28 de Janeiro de 2004, ter recebido da testemunha de acusação Ângelo Esteves
o total de 40 Kgs. de haxixe, o que, neste caso concreto e perante o carácter
vago da acusação do M.P., implicou que o Tribunal Colectivo tenha passado do
papel de julgador ao de acusador, o que lhe está vedado pelo art. 32°, n°s 1 e
5, da C.R.P., conforme se argumentou na conclusão 13ª das alegações do
recorrente para o S.T.J..
6. Por outro lado, tanto a 1ª Instância, como a Segunda, referem, “ex professo”,
que o aditamento do referido “novo” facto à acusação do M.P. foi feita nos
termos do art. 358° do C.P.P., conforme, por exemplo, relativamente ao douto
Acórdão da Relação de Lisboa, o patenteiam os seguintes excertos:
“... o que foi julgado e provado e como tal consignado sob item 14 constitui
efectivamente, como bem se decidiu, uma concretização da imputação naqueles
contida, que, enquanto especificação/delimitação de conduta já imputada, não
determinam imputação de crime diverso (crime diferente ou mais um crime) do
imputado na acusação, nem agravação da moldura penal, designadamente dos limites
máximos da sanção aplicável, assim consubstanciando a sua consideração tão só
uma alteração não substancial dos factos admissível nos termos previstos no art.
358°, n° 1, do CPP”. E logo a seguir: “Em tal conformidade, e porque
oportunamente foi observado, em vista da possibilidade de acolhimento de tais
factos que viria de facto depois a concretizar-se, o formalismo prescrito em tal
processo, não pode colher a invocação do recorrente de ilegítima ampliação do
objecto do processo e violação do art. 359° do CPP, não se colocando por outro
lado, por patentemente conforme desde logo à letra do preceito a interpretação
que dele foi feita, a questão da inconstitucionalidade do assim interpretado.
7. Ora, conforme já se frisou supra, foi contra esta interpretação do art. 358°,
n° 1, do C.P.P., que o recorrente se insurgiu logo na primeira instância e,
subsequentemente, nas alegações apresentadas no Tribunal da Relação de Lisboa e
no Supremo Tribunal de Justiça, por entender que o supracitado preceito legal,
se for interpretado como, no caso concreto “sub judicibus”, o fizeram os três
referidos tribunais, viola o art. 32°, n°s 1 e 5 da Constituição da República,
dado que a impugnada alteração da matéria da acusação do M.P. consistiu na
correcção das reconhecidas “indefinições” desta acusação (cfr. texto do Acórdão
da 1ª Instância), a qual, atenta a sua amplitude e efeito notório na agravação
da pena aplicada ao recorrente, “buliu” com a própria essência da acusação, cujo
titular normal é o M.P., e, desse modo, postergou as mais elementares garantias
de defesa do recorrente, como, por exemplo, o direito de, oportunamente,
requerer a abertura de instrução, o que tudo se traduz numa flagrante violação
do princípio da “vinculação temática”, do princípio do “acusatório” e também, em
certa medida, do princípio do contraditório (cfr., por exemplo, as conclusões
12ª, 13ª, 14ª e 18ª das alegações apresentadas no S.T.J., que aqui se dão por
integralmente reproduzidas).
8. Julga-se, pois, como óbvio que o recorrente só reputa de ferido de
inconstitucionalidade material o art. 358°, n° 1, do C.P.P., se (e só se) este
preceito for interpretado com o sentido e alcance com que o foi pelos Exm°s
Juízes das Instâncias e do S.T.J., já que se afigura como lógica a ilação de
que, a adoptar-se a questionada interpretação do art. 358°, n° 1, do C.P.P.,
estará aberta a porta a todas as arbitrariedades no processo criminal português,
porquanto, v. g., poderá dar-se o caso de determinado arguido não requerer a
abertura da instrução quando considere que a acusação não lhe imputa a prática
um só facto concreto criminalmente punível e, portanto, o desfecho provável do
“caso” será a sua absolvição, e, depois..., durante o julgamento ou, como no
caso concreto em apreço, já depois de encerrada a produção da prova testemunhal,
vê-se confrontado com a acusação, pelo próprio tribunal do julgamento e não pelo
M.P., de um facto concreto criminalmente muito grave que, por si só, lhe
acarreta uma pesada pena de prisão efectiva. Ora, salvo o devido respeito, este
“abuso” do art. 358° do C.P.P. viola as mais elementares garantias de defesa do
arguido consagradas na Constituição da República Portuguesa, designadamente no
supracitado art. 32°, n°s 1 e 5.
Em face de todo o exposto, o recorrente, porque lhe repugna aceitar a tese de
que art. 358°, n° 1, do C.P.P., não obstante a letra deste preceito, não enferma
de inconstitucionalidade material se for interpretado com o sentido, a
abrangência e os efeitos nefastos nas possibilidades de defesa do arguido como o
foram pela 7ª Vara Criminal de Lisboa, o Tribunal da Relação de Lisboa e o
Supremo Tribunal de Justiça, vem apelar para Vossas Excelências no sentido de
que seja revogada a decisão sumária de que ora se reclama e se ordene o
conhecimento do recurso, com o consequente normal prosseguimentos dos autos, nos
termos dos n°s 4 e 5 do citado art. 78°-A da LTC, e segundo o que se afigura ser
da mais elementar
JUSTIÇA!
O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional
respondeu à reclamação nos seguintes termos:
1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Efectivamente, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do
recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
3. Adiante-se desde já que a presente reclamação não pode obter provimento, por
não abalar os fundamentos em que se baseou a decisão reclamada, como salienta o
Magistrado do Ministério Público em funções neste Tribunal.
Como foi já dito na decisão reclamada, para se poder conhecer de um recurso
intentado ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos
ordinários, que a inconstitucionalidade das normas impugnadas – no caso, a norma
referida ao artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, com referência ao
artigo 359.º e ao artigo 1.º, n.º 1, alínea f), do mesmo diploma legal,
interpretados “no sentido de que é lícito ao Tribunal do julgamento alterar uma
acusação do Ministério Público, que não passa de um conjunto de imputações
vagas, genéricas, imprecisas e meramente conclusivas, já que dela não consta a
narração de qualquer acto concretizado de tráfico de estupefacientes, nos termos
do art.º 283.º, n.º 3, alínea b), do C.P.P., por forma a que, corrigindo aquelas
deficiências e «indefinições», acabou por ser o julgador, e não o Ministério
Público, quem, na realidade, acusou o arguido da prática de um facto concreto
muito grave, qual seja ele o de que ele «havia recebido anteriormente, entre a
primeira semana e o dia 28 de Janeiro de 2004, do mesmo Ângelo Esteves, duas
entregas de haxixe, perfazendo o total de 40 (quarenta) quilogramas, produto que
vendeu a terceiros, de identidade não apurada»”- tenha sido suscitada durante o
processo e que estas normas, no sentido interpretativo impugnado, tenham sido
aplicadas como ratio decidendi pelo tribunal recorrido.
Ora, no presente caso – como já se afirmou e agora se reitera – este último
requisito não se verifica.
4. O reclamante insurge-se contra a decisão reclamada afirmando, entre o mais,
que “o S.T.J. considera que a ampliação da matéria da acusação feita na 1.ª
Instância e confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa se enquadra no
espírito e na letra do art.º 358.º do C.P.P. Ora, é precisamente esta
interpretação legitimadora da aplicação do art.º 358.º, n.º 1, do C.P.P., ao
caso do aditamento, por parte do tribunal do julgamento, de um facto concreto e
muito grave à acusação do M.P. que o recorrente considera inconstitucional.” “Na
página 33 do Acórdão do S.T.J.”, continua, “é expressamente utilizada a
expressão «facto aditado nos termos do artigo 358.º do CPP» (negrito nosso),
aludindo à alteração, por parte do tribunal de julgamento, da acusação do M.P.,
que é manifestamente vaga e repleta de indefinições, em termos de, já depois das
alegações orais do seu defensor, acusar o arguido, ora recorrente, de entre a
primeira semana e o dia 28 de Janeiro de 2004, ter recebido da testemunha de
acusação Ângelo Esteves o total de 40 Kgs. de haxixe, o que, neste caso concreto
e perante o carácter vago da acusação do M.P., implicou que o Tribunal Colectivo
tenha passado do papel de julgador ao de acusador, o que lhe está vedado pelo
art.º 32.º, n.ºs 1 e 5, da C.R.P., conforme se argumentou na conclusão 13.ª das
alegações do recorrente para o S.T.J.” “Ora, conforme já se frisou supra”,
conclui mais à frente, “foi contra esta interpretação do art. 358°, n° 1, do
C.P.P., que o recorrente se insurgiu logo na primeira instância e,
subsequentemente, nas alegações apresentadas no Tribunal da Relação de Lisboa e
no Supremo Tribunal de Justiça, por entender que o supracitado preceito legal,
se for interpretado como, no caso concreto «sub judicibus», o fizeram os três
referidos tribunais, viola o art. 32°, n°s 1 e 5 da Constituição da República,
dado que a impugnada alteração da matéria da acusação do M.P. consistiu na
correcção das reconhecidas «indefinições» desta acusação (cfr. texto do Acórdão
da 1ª Instância), a qual, atenta a sua amplitude e efeito notório na agravação
da pena aplicada ao recorrente, «buliu» com a própria essência da acusação, cujo
titular normal é o M.P., e, desse modo, postergou as mais elementares garantias
de defesa do recorrente, como, por exemplo, o direito de, oportunamente,
requerer a abertura de instrução, o que tudo se traduz numa flagrante violação
do princípio da «vinculação temática», do princípio do «acusatório» e também, em
certa medida, do princípio do contraditório (cfr., por exemplo, as conclusões
12ª, 13ª, 14ª e 18ª das alegações apresentadas no S.T.J., que aqui se dão por
integralmente reproduzidas)”.
Ora, admite-se que o reclamante discorde da recondução da ratio decidendi, no
acórdão recorrido, à conclusão de que
É manifesto que está em causa uma actividade concreta e determinada devidamente
balizada em termos de autoria, tempo e modo e em relação à qual o facto aditado
nos termos do artigo 358.º do CPP representa uma concretização subordinada ao
denominador comum de uma actividade progressiva do tráfico de estupefaciente
efectuada pelo recorrente e que se inscreve nas relações existentes entre o
mesmo e o Ângelo Esteves. O seu comportamento tem subjacente uma pluralidade de
actos voluntários que surgem dominados pela mesma resolução criminosa de tráfico
de estupefacientes. Não está em causa um outro crime, mas sim uma actividade que
se inscreve num percurso delitivo, sem qualquer virtualidade para alterar a
qualificação jurídica determinada pela factualidade impressa na acusação e
considerada provada.
Mas tal discordância, ou censura em relação à correcção na aplicação do Direito
pelo tribunal recorrido, não é algo que compita ao Tribunal Constitucional
apreciar. Como se tem salientado em abundante jurisprudência, ao Tribunal
Constitucional a norma que foi, bem ou mal, aplicada pelo tribunal recorrido
como ratio decidendi chega já como um dado, cuja escolha e interpretação,
independentemente de questões de constitucionalidade normativa, não compete a
este Tribunal controlar.
Independentemente da correcção da decisão recorrida, que, repete-se, não cumpre
ao Tribunal Constitucional controlar, o que é certo é que, portanto, a decisão
recorrida não fez aplicação, expressa ou implícita, da norma do artigo 358.º,
n.º 1, do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 359.º e ao artigo
1.º, n.º 1, alínea f), do mesmo diploma legal, na interpretação impugnada no
requerimento de interposição do recurso, segundo a qual “é lícito ao Tribunal do
julgamento alterar uma acusação do Ministério Público, que não passa de um
conjunto de imputações vagas, genéricas, imprecisas e meramente conclusivas, já
que dela não consta a narração de qualquer acto concretizado de tráfico de
estupefacientes, nos termos do art.º 283.º, n.º 3, alínea b), do C.P.P., por
forma a que, corrigindo aquelas deficiências e «indefinições», acabou por ser o
julgador, e não o Ministério Público, quem, na realidade, acusou o arguido da
prática de um facto concreto muito grave, qual seja ele o de que ele «havia
recebido anteriormente, entre a primeira semana e o dia 28 de Janeiro de 2004,
do mesmo Ângelo Esteves, duas entregas de haxixe, perfazendo o total de 40
(quarenta) quilogramas, produto que vendeu a terceiros, de identidade não
apurada».”
E por aqui se vê que, independentemente da eventual falta de carácter normativo
da dimensão interpretativa atrás invocada, qualquer que fosse a decisão sobre a
questão de constitucionalidade do preceito impugnado na intervenção processual
que fixa o objecto do recurso, ela em nada poderia alterar o sentido da decisão
recorrida.
5. Verdadeiramente, o que se pretendeu trazer à apreciação deste Tribunal não
foi a conformidade constitucional de uma norma, mas antes uma alegada violação
da Constituição por uma actuação judicial concreta, sendo ilustrativo que o
reclamante se continue a reportar à natureza “muito grave” do facto aditado nos
termos do artigo 358.º do Código de Processo Penal e ao “carácter vago da
acusação do M.P.”, elementos que não integram o sentido com que foi proferida a
decisão recorrida, que é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de
Dezembro de 2007.
O recurso não foi, pois, admitido por não se verificar um seu pressuposto
indispensável: a aplicação, pela decisão recorrida, da norma enunciada pelo
recorrente no respectivo requerimento de interposição. E a presente reclamação
tem de ser desatendida, confirmando-se a decisão sumária reclamada.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
presente reclamação, confirmando a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 21 de Abril de 2008
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão