Imprimir acórdão
Processo n.º 675/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é
recorrente A. e recorrido o Ministério Público, a Relatora proferiu a seguinte
decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é
recorrente A. e recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO, o primeiro interpôs recurso para
este Tribunal, em 24 de Maio de 2007 (fls. 1092 a 1107), de acórdão daquele
Tribunal que julgou improcedente o recurso de sentença do Tribunal da Comarca da
Sertã que condenou o recorrente, “pela prática do crime de falsificação de
documento na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos
artigos 256º, nº 1, al. c), 255º, al. a) e 22º, n.º 1, al. b), todos do Código
Penal, na pena de multa de 80 dias de multa, à taxa diária de 30,00 €, o que
perfaz o montante global de € 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros)” (fls.
1011 e 1012).
Com o recurso agora interposto, ao abrigo das alíneas b) e g) do art. 70º da
LTC, pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a
inconstitucionalidade das normas constantes dos seguintes preceitos legais:
i) Artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal [CPP];
ii) Artigo 127º do CPP
iii) Artigo 358º, do CPP;
iv) Artigo 359º, do CPP;
v) Artigo 374º, n.º 2 do CPP;
vi) Artigo 410º, n.º 2 do CPP;
vii) Artigo 412º, n.º 3, alínea b), do CPP;
viii) Artigo 412º, n.º 4, do CPP;
ix) Artigo 23º, n.º 3, do Código Penal (ainda que, por manifesto
lapso de escrito, identificado como artigo 22º, n.º 3, a fls. 1105 e 1106);
x) Artigo 256º, n.º 2, por referência ao artigo 255º do Código
penal [CP];
3. Perante a falta de identificação suficiente dos acórdãos sobre os quais se
fundava o recurso ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, em 19 de
Julho de 2007, a Relatora proferiu despacho de convite a aperfeiçoamento, de
modo a que o recorrente esclarecesse quais as decisões jurisdicionais a que se
referia no requerimento de recurso (fls. 1149 a 1150), tendo o mesmo
correspondido ao mesmo através de resposta entregue em 05 de Setembro de 2007
(fls. 1152 a 1154).
II – DA INADMISSIBILIDADE PARCIAL DO RECURSO
4. Apesar de o n.º 1 do artigo 76º da LTC conferir ao tribunal recorrido – “in
casu”, o Tribunal da Relação de Coimbra – o poder de apreciar a admissão de
recurso, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do
n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que, antes de mais, cumpre apreciar se estão
preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos
artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
5. Na medida em que o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1
do artigo 70º da LTC, apenas pode apreciar a constitucionalidade de normas
jurídicas, em sede de recurso de decisões anteriormente proferidas pelos
tribunais comuns, impõe-se como “conditio sine qua non” de conhecimento do
pedido que o recorrente “haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da
ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (artigo
72º, n.º 2 da LTC).
Com efeito, o recorrente procura dar cumprimento à exigência legal fixada pelo
n.º 2 do artigo 75º-A da LTC, afirmando que “invocou todas e cada uma das
inconstitucionalidades aqui mencionadas nas alegações e conclusões de recurso
para o Tribunal da Relação de Lisboa”, sendo que “a inconstitucionalidade sobre
a recusa do Tribunal da Relação de Coimbra em conhecer do recurso sobre a
matéria de facto, só pôde ser arguida (…)” perante o próprio Tribunal
Constitucional (cfr. fls. 1107). Porém, compulsadas exaustivamente a motivação e
as conclusões do recurso interposto para o Tribunal “a quo”, comprova-se, ao
invés, que, em regra, o recorrente limitou-se a invocar – em tom genérico e
avulso – a violação de alguns preceitos e princípios constitucionais pela
própria decisão recorrida, tendo apenas colocado uma questão de
inconstitucionalidade normativa do n.º 2 do artigo 256º, quando conjugado com o
n.º 3 do artigo 23º e a alínea a) do artigo 255º, todos do CP.
Aprecie-se então.
A) Artigos 1º, alínea f), 358º e 359º do CPP
6. Apesar de o recorrente afirmar, no requerimento de recurso (cfr. § 3.1., a
fls. 1107), que suscitou, nas suas alegações de recurso para o Tribunal da
Relação de Coimbra, a questão da inconstitucionalidade das normas constantes dos
artigos 1º, alínea f), 358º e 359º, verifica-se da sua leitura que aquele nunca
colocou em crise a constitucionalidade da interpretação normativa relativa à
alínea f) do artigo 1º do CPP. Deste modo, por força do n.º 2 do artigo 72º da
LTC, o recorrente não pode agora recorrer quanto àquela norma, por não ter
suscitado de modo processualmente adequado a sua inconstitucionalidade, de forma
que o tribunal “a quo” dela pudesse conhecer.
7. Quanto aos artigos 358º e 359º do CPP, o recorrente nunca suscitou, de modo
expresso, claro e preciso, perante o tribunal recorrido qualquer questão de
inconstitucionalidade daquelas normas – ou sequer de interpretação que o
tribunal pudesse vir a formular sobre elas –, limitando-se a reputar de
inconstitucional a própria sentença de primeira instância. Ora, por força do n.º
1 do artigo 277º da CRP, o Tribunal Constitucional não dispõe de poderes para
fiscalizar a constitucionalidade de “decisões jurisdicionais”, mas apenas de
“normas jurídicas”.
Exemplificando, reproduzem-se os seguintes excertos do requerimento de recurso
apresentado perante o Tribunal da Relação de Coimbra:
“A sentença é ainda inconstitucional, o que desde já se invoca para todos os
efeitos legais, porquanto ao condenar os arguidos por factos novos que deles não
eram conhecidos e sem que lhes fosse providenciado o prazo indispensável à
preparação da sua defesa, o aresto recorrido ofendeu irremediavelmente as
garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório
assegurados no artigo 32º nº 1 e 5º da Constituição da República Portuguesa.”
(cfr., com realce e sublinhado nosso, p. 10 do requerimento de recurso, a fls.
823);
“6 – Não tendo sido dado cumprimento ao disposto no Artigo 358º e/ou 359º do
CPP, condenando-se os arguidos por factos novos não constantes da pronunciam
[sic], a sentença recorrida é nula, nos termos do Artigo 379º nº 1 alínea b) e
inconstitucional por ter condenado os arguidos por factos novos que deles não
eram conhecidos e sem que lhes fosse providenciado o prazo indispensável à
preparação da sua defesa, ofendendo irremediavelmente as garantias de defesa do
arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório assegurados no artigo
32º nº 1 e 5º da Constituição da República Portuguesa.” (cfr., com realce e
sublinhado nosso, § 6 das conclusões de recurso, a fls. 899).
Assim, em sede de alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, o
recorrente adoptou uma estratégia processual que visou qualificar a sentença de
primeira instância como nula, por violação dos artigos 358º e 359º do CPP. Daqui
decorre que a principal linha de força das alegações de recurso então proferidas
repousava na impugnação de um juízo interpretativo sobre Direito
infra-constitucional e não sobre Direito Constitucional, pelo que este Tribunal
não pode dele conhecer. Acresce que, reportando-se aos artigos 358º e 359º do
CPP, o recorrente afirmou apenas que “a sentença é ainda inconstitucional, o que
desde já se invoca para todos os efeitos legais, porquanto ao condenar os
arguidos por factos novos que deles não eram conhecidos e sem que lhes fosse
providenciado o prazo indispensável à preparação da sua defesa, o aresto
recorrido ofendeu irremediavelmente as garantias de defesa do arguido e dos
princípios do acusatório e do contraditório assegurados no artigo 32º nº 1 e 5
da Constituição da República Portuguesa” (fls. 823, com sublinhado nosso). Ora,
na medida em que, por força do n.º 1 do artigo 277º da CRP, os tribunais
portugueses apenas podem fiscalizar a constitucionalidade de “normas” e não de
“sentenças”, mais se reforça a desadequada suscitação processual do incidente de
inconstitucionalidade.
8. Mas, ainda que assim não fosse, afigura-se igualmente evidente que a
interpretação normativa reputada de inconstitucional pelo recorrente não
corresponde àquela que efectivamente foi aplicada pelo tribunal “a quo”. Senão,
veja-se.
Independentemente da adequação constitucional da mesma, que este Tribunal só
apreciaria se estivessem preenchidos os requisitos necessários para a apreciação
do presente recurso –, a decisão recorrida adopta a seguinte tese:
“É verdade que se dão como assentes não constantes do despacho de pronúncia (os
referidos nos pontos 14º, 19º, 20º, 21º, 23º, 26º e 27º). No entanto, tais
factos foram trazidos ao conhecimento do Tribunal pelos próprios arguidos,
através das declarações prestadas em audiência de julgamento e, tais factos
traduzem-se em meros factos concretizantes da actividade criminosa dos arguidos
sem repercussões agravativas e sem pôr em causa a defesa dos arguidos.
(…)
De qualquer forma e porque a alteração de facto, operada em julgamento
relativamente à pronúncia, derivou de «factos alegados pela defesa», não há, ao
contrário do sustentado pelos recorrentes, que comunicar a alteração dos factos
e que, conceder o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
Na verdade, a alteração não substancial dos factos só se verifica quando tenha
relevo para a decisão e quando o Tribunal verifique que o arguido tem,
necessariamente que apresentar nova defesa.” (fls. 1058, com sublinhado nosso).
Ora, no seu requerimento de recurso, o recorrente invoca uma interpretação
normativa dos artigos 358º e 359º do CPP diametralmente distinta da que
constituiu a “ratio decidendi” da decisão recorrida, pois:
i) Por um lado, entende que a interpretação normativa da decisão recorrida
implica que “não integra o conceito material de alteração substancial, a
condenação dos arguidos por factos novos (…) e sem os quais, o arguido, jamais
poderia ser condenado por falta de factos constitutivos do tipo de crime” (cfr.
§ A, a fls. 1093, com sublinhado nosso), enquanto que o tribunal “a quo”
considerou expressamente – juízo esse que este Tribunal não pode nem deve
sindicar nesta sede – tais factos novos não comportam “repercussões
agravativas”, nem prejudicam o direito de defesa dos arguidos, que – ainda
segundo a decisão recorrida – os invocaram;
ii) Por outro lado, o recorrente entende que a interpretação normativa ferida de
inconstitucionalidade versa sobre factos novos “que não se encontravam
enunciados, referenciados nem discriminados na Pronúncia, nem constam da defesa
escrita dos arguidos” (cfr. § B, 1º excerto interpretativo, a fls. 1093, com
sublinhado do próprio recorrente), enquanto que, por sua vez, a decisão
recorrida é peremptória ao afirmar que tais factos novos resultam dessa mesma
defesa – juízo esse que não pode ser sindicado pelo Tribunal Constitucional,
pois não funciona como órgão último de recurso de questões
infra-constitucionais;
iii) Por fim, mesmo quando se refere a uma interpretação normativa que
pressuponha que os factos novos “sejam trazidos ao conhecimento do Tribunal
através das declarações prestadas pelo próprio arguido” – o que se aproxima mais
daquela interpretação aplicada pelo tribunal “a quo” –, o requerente acaba por
aludir a uma interpretação distinta daquela efectivamente aplicada, ao
reportar-se a “factos agravantes da situação dos arguidos no processo” (cfr. §
B, 2º excerto normativo, a fls. 1093 e 1094), enquanto que a decisão recorrida
afasta a natureza agravante dos factos novos.
Em suma, as interpretações normativas, relativas aos artigos 358º e 359º do CPP,
que o recorrente apelida de inconstitucionais não correspondem efectivamente às
aplicadas pela decisão recorrida, pelo que este Tribunal – que apenas dispõe de
poderes para sindicar, em sede de recurso, os juízos de constitucionalidade
formulados pelos tribunais comuns – não pode conhecer do pedido formulado ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC quanto àquelas normas.
9. Por outro lado, importa analisar a alegada contradição entre a decisão
recorrida e anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, conforme
pretendido pelo recorrente, ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da
LTC. Após convidado pela Relatora (fls. 1149 e 1150), o recorrente veio
esclarecer que entende haver contradição de julgados entre a decisão recorrida e
o sentido decisório do Acórdão n.º 674/99, de 15 de Dezembro de 1999. Com
efeito, no caso de precedente jurisprudencial que haja julgado inconstitucional
determinada norma, os recorrentes ficam dispensados da prévia suscitação da
questão da inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, pelo que há que
determinar se a decisão recorrida aplicou efectivamente “norma já anteriormente
julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”.
Em resumo, o Acórdão n.º 674/99 decidiu nos seguintes termos:
“(…)
II - Em conclusão da delimitação do âmbito dos recursos, restam, as
questões de inconstitucionalidade relacionadas com a eventual alteração, na
decisão condenatória, de factos constantes da pronúncia (e da acusação), sendo
que um recorrente localiza a questão de inconstitucionalidade no artigo 358.º do
Código de Processo Penal, enquanto o outro recorrente, por seu turno, a reporta
ao conjunto normativo formado pelos artigos 1.º, n.º 1, alínea f), 359.º e 379.º
do mesmo diploma.
III - Ou seja, apesar de todas as questões levantadas pelos
recorrentes, a única questão de constitucionalidade que o Tribunal
Constitucional é verdadeiramente chamado a resolver consiste em saber se as
normas contidas nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, quando
interpretadas no sentido de se não entender como alteração dos factos -
substancial ou não substancial - a consideração, na sentença condenatória, de
factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou
decorrentes dos meios de prova junto aos autos, não se encontravam
especificadamente enunciados, descritos ou discriminados no texto da pronúncia
(e da acusação), a qual todavia expressamente remetia para esses mesmos meios de
prova, serão conformes com as garantias de defesa em processo penal e com os
princípios do acusatório e do contraditório, de acordo com o que se preceitua no
artigo 32.º da Constituição da República.
IV - No presente recurso não importa apurar em que medida é
constitucionalmente possível proceder a alteração das qualificações jurídicas,
mas antes em que casos se está perante uma verdadeira alteração de factos e em
que medida é lícito efectuar tais alterações de factos sem que se mostrem
violados os princípios do acusatório e do contraditório ou as garantias de
defesa do arguido.
V - Uma tal averiguação exige, portanto, no presente recurso, que
venha a dar-se resposta a duas questões distintas que, no caso dos autos, se
encontram ocasionalmente associadas. Por um lado, saber se já deve ser tida como
uma efectiva alteração dos factos - tendo em conta o princípio do acusatório e
as garantias de defesa do arguido - a consideração, na sentença condenatória, de
factos que, não se encontrando descritos na pronúncia, se podem contudo extrair
de documentos anexos para os quais aquela mesma pronúncia remetia. E, por outro
lado, determinar se a consideração, na sentença condenatória, de um outro modus
operandi, distinto do descrito na pronúncia, constitui uma alteração da base
factual a justificar, em aplicação das garantias de defesa do arguido e dos
princípios do acusatório e do contraditório, que lhe seja dada oportunidade de
se pronunciar sobre a mesma.
VI - Ora, efectuar meras remissões para documentos juntos aos autos,
sem referência expressa ao seu conteúdo - e, principalmente, sem referir
explicitamente o seu significado, porque se não esclarece com precisão qual a
conduta criminosa que deles se pretende extrair e que através deles se pretende
comprovar -, afrontará irremessível e irremediavelmente as garantias de defesa
do arguido e o princípio do acusatório, assegurados no artigo 32.º da
Constituição.
VII - Assim sendo, não se pode deixar de concluir que a consideração
na sentença condenatória de factos relevantes para a decisão da causa, quando
eles apenas constavam indirecta e implicitamente da pronúncia, através da
remissão para documentos juntos aos autos (maxime, para relatórios periciais),
há-de ter-se necessariamente por uma alteração dos factos, para o efeito do
disposto nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal (…).” (cfr.
Acórdão n.º 674/99, de 15 de Dezembro de 1999, publicado in «Diário da
República», n.º 47, de 25 de Fevereiro de 2000, pp. 559 e segs., com sublinhado
nosso)
Significa isto que a dimensão normativa cuja inconstitucionalidade se repudiou
no Acórdão n.º 674/99 é inequivocamente distinta da dimensão normativa que o
recorrente pretendia fazer sindicar nos presentes autos. Se no Acórdão n.º
674/99, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucionais os artigos 358º e
359º do CPP por terem sido interpretados no sentido de permitirem a inclusão de
factos novos e relevantes na sentença condenatória, quando aqueles apenas
constavam de documentos para os quais o despacho de pronúncia remetia, nos
presentes autos discute-se se um tribunal criminal pode ter em conta “meros
factos concretizantes da actividade criminosa dos arguidos sem repercussões
agravativas e sem pôr em causa a defesa dos arguidos”, quando aqueles tenham
sido revelados em julgamento pelos próprios arguidos. Como tal, ainda que tanto
o Acórdão n.º 674/99 como os autos recorridos versem sobre os mesmos preceitos
legais, é notória a inexistência de identidade entre o sentido normativo
extraído no âmbito daquele processo e o sentido normativo que a decisão
recorrida nos presentes autos conferiu aos artigos 358º e 359º do CPP.
Já quanto à decisão que o recorrente apelidou de “Acórdão n.º 373/96”,
conclui-se – por força da aceitação tácita daquela parcela do despacho de
convite ao aperfeiçoamento (fls. 1149) – que o recorrente, por lapso manifesto,
pretendia antes referir o Acórdão n.º 130/98, relativo ao Processo n.º 373/96,
de 05 de Fevereiro de 2002 (cfr. in “Diário da República”, 2ª Série, n.º 105, 07
de Maio de 1998, pp. 6179 e segs.). Contudo, o referido Acórdão n.º 130/98 não
contraria – em nada – o sentido da decisão recorrida, na medida em que se
reporta a um caso em que o tribunal recorrido considerou estar perante factos
novos que apenas implicavam uma alteração substancial de factos, mas notificou
os arguidos/recorrentes para que viessem aos autos exercer o contraditório
quanto aos mesmos. Aliás, neste sentido, o Acórdão n.º 130/98 não viria a julgar
inconstitucional a referida norma quando interpretada no sentido em que o foi.
Situação bem distinta ocorre nos presentes autos, em que a decisão de primeira
instância, posteriormente recorrida, não julgou sequer legalmente exigida a
notificação para efeitos de resposta a uma (eventual) alteração – substancial ou
não – de factos constantes da acusação.
Como tal, para além de – conforme já anteriormente demonstrado – o recorrente
não ter suscitado de modo processualmente adequado a inconstitucionalidade das
normas contidas nos artigos 1º, alínea f), 358º e 359º do CPP, não é igualmente
possível conhecer do objecto do recurso quanto a estas normas, ao abrigo da
alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
B) Artigos 412º, n.º 3, alínea b) e n.º 4 do CPP
10. Impõe-se começar por referir que, quando se refere à norma do “Artigo 412º
nº 2 alínea b) do CPP” (cfr. § E, a fls. 1097), o recorrente não pode deixar de
estar a referir-se à alínea b) do n.º 3 do artigo 412º do CPP. Aliás, tal
imprecisão nem sequer lhe pode ser imputável, visto que, por manifesto lapso de
escrita, a decisão recorrida refere-se ao dever processual de especificação das
“provas que impõem decisão diversa”, através de remissão para o n.º 2 daquele
artigo, quando era forçoso que pretendesse fazê-lo para o respectivo n.º 3 (cfr.
fls. 1078).
Quanto às normas contidas no artigo 412º, n.º 3, alínea b) e n.º 4 do CPP, o
recorrente não colocou – por uma vez que fosse – qualquer questão de
inconstitucionalidade de normas aplicadas pelo tribunal “a quo”. Ao invés,
limitou-se a impugnar a matéria de facto dada como provada pelo tribunal de
primeira instância (fls. 837 a 879), sem suscitar qualquer questão de
constitucionalidade daquelas normas. E nem se diga que a referência a fls. 881
configura uma suscitação, de modo processualmente adequada, daquela
inconstitucionalidade, visto que o recorrente se limita a qualificar a sentença
como inconstitucional:
“O aresto em crise é um caso gritante, melhor, preocupante, de violação dos
direitos mais elementares da nossa ordem jurídica, dos direitos
constitucionalmente protegidos no artigo 32º nº 2 e 5 da Constituição da
República Portuguesa, de que a sentença faz absoluta tábua rasa.” (cfr., com
realce e sublinhado nosso, p. 68 do requerimento de recurso, a fls. 881);
“19 – O aresto em crise viola os direitos mais elementares da nossa ordem
jurídica, constitucionalmente protegidos no artigo 32º nº 2 e 5 da Constituição
da República Portuguesa de que a sentença faz absoluta tábua rasa.” (cfr., com
realce e sublinhado nosso, § 19 das conclusões de recurso, a fls. 901)
Vem agora o recorrente emendar a mão e afirmar que:
i) “É inconstitucional a norma do Artigo 412º nº 2
[corrigindo-se: 3] alínea b) do CPP aplicada pelo Acórdão recorrido, segundo o
qual, a impugnação da decisão da matéria de facto feita pelo arguido, por
referência a cada ponto e com a indicação e análise dos elementos de prova
mencionados no texto da decisão, com fundamento na insuficiência inequívoca de
toda a prova produzida no processo para a decisão da matéria de facto, obsta ao
conhecimento de recurso sobre a matéria de facto por falta de indicação de
outras provas que impusessem decisão diversa” (fls. 1098);
ii) “São inconstitucionais as normas contidas no artigo 412º nº
4 do CPP, na interpretação do Tribunal da Relação de Coimbra segundo a qual o
Arguido não cumpre com a exigência ali consagrada quando não faz referência,
quer nas suas alegações quer nas suas conclusões de recurso, aos suportes
técnicos de gravação com a mesma indicação de cassete, lado e localização de
depoimentos daquela que vem referenciada nas Actas de Audiência de Julgamento e
que foi providenciado ao recorrente pela própria Secretaria Judicial do Tribunal
de Primeira Instância, tendo ainda o arguido, por razões de clareza, procedido à
transcrição da parte dos depoimentos a que aludia no seu recurso” (fls. 1096).
Sucede, porém, que o tribunal recorrido nunca foi confrontado, pelo recorrente,
com estas precisas questões de inconstitucionalidade normativa, de modo a que
delas estivesse obrigado a conhecer. Como tal, por não ter suscitado a questão
da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado, o recorrente não pode
agora interpor recurso de tipo positivo para este Tribunal, por força do n.º 2
do artigo 72º da LTC.
11. Acresce ainda que, para além de não terem sido adequadamente suscitadas, as
questões de inconstitucionalidade mencionadas pelo recorrente no requerimento de
recurso não correspondem à interpretação normativa efectivamente aplicada pela
decisão recorrida.
Quanto à interpretação normativa da alínea b) do n.º 3 do artigo 412º do CPP, o
tribunal “a quo” não considerou – como pretendido no requerimento de recurso
para este Tribunal – que o recorrente tivesse impugnado a matéria de facto “por
referência a cada ponto e com a indicação e análise dos elementos de prova
mencionados no texto da decisão” (fls. 1098), tendo antes entendido que “os
recorrentes não indicam quaisquer provas que imponham decisão diversa” e que “o
que afinal os recorrentes fazem é impugnar a convicção adquirida pelo tribunal
«a quo» sobre determinados factos em contraposição com a que sobre os mesmos
eles adquiriram em julgamento, esquecendo a regra da livre apreciação da prova
inserta no art 127º” (fls. 1078). Ora, o recorrente pode discordar da
fundamentação jurídica da decisão recorrida. O que não pode é afirmar que aquela
disse aquilo que (efectivamente) não disse. O Tribunal Constitucional só está
autorizado pelo legislador constituinte a apreciar a constitucionalidade de
interpretações normativas efectivamente aplicadas pelos tribunais comuns e não
aquelas que os recorrentes entendem ter sido aplicadas.
Por sua vez, quanto à interpretação normativa do n.º 4 do artigo 412º do CPP,
diga-se igualmente que o sentido interpretativo que o recorrente atribui à
decisão recorrida não corresponde ao efectivamente aplicado pela mesma. A
decisão recorrida interpretou a norma constante do n.º 4 do artigo 412º do CPP
no sentido de que “indicar como fazem os recorrentes - «Cassete nº 1, lado A» -
não é fazer referência aos suportes técnicos” e não – como pretende o recorrente
– no sentido de que aquele dever não se bastaria com a menção “aos suportes
técnicos de gravação com a mesma indicação de cassete, lado e localização de
depoimentos daquela que vem referenciada nas Actas de Audiência de Julgamento”
(fls. 1096, com sublinhado). Ora, como resulta evidente, a decisão recorrida
apenas se refere à cassete e lado da gravação, não fazendo menção à localização
de depoimento. Por outras palavras, significa isto que a decisão recorrida não
considerou suficiente a indicação da cassete e lado da gravação, como feito pelo
recorrente (cfr., a título de exemplo, fls. 845 a 852), exigindo – por maioria
de razão – outros elementos (v.g., a localização concreta, por referência ao
tempo de gravação) que permitissem identificar as passagens relevantes da prova
gravada.
Em suma, e mais uma vez, a decisão recorrida não interpretou efectivamente as
normas constantes do artigo 412º, n.º 3, alínea b) e n.º 4 do CPC no sentido
reputado de inconstitucional pelo recorrente, o que obsta ao conhecimento do
recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, quanto
àquelas mesmas normas.
C) Artigos 374º, n.º 2 e 410º, n.º 2, alínea b) e do CPP
12. “Ad latere”, sistematicamente em capítulo dedicado à alegada
inconstitucionalidade do artigo 412º, n.º 3, alínea b) do CPP, o recorrente
reputa de inconstitucional uma interpretação normativa do n.º 2 do artigo 410º
do CPP, alegadamente aplicada pelo tribunal “a quo”, no sentido que “os vícios a
que alude o referido preceito carecem ainda que indirectamente, de ser alegados
ou invocado[s] pelo arguido, para ser[em] conhecidos pelo Tribunal” (fls. 1098).
Sucede, porém, que a decisão recorrida nunca aplicou tal interpretação
normativa, limitando-se a reproduzir um excerto de uma outra decisão
jurisdicional (v.g., Recurso n.º 3054/2003), que mais não faz do que reproduzir
o texto legal constante do n.º 2 do artigo 410º do CPP, estipulando quais os
fundamentos de recurso de decisões penais. Aliás, a referência ao n.º 2 do
artigo 410º do CPP é meramente instrumental, não constituindo a “ratio
decidendi” da decisão recorrida. Assim, por não ter sido efectivamente aplicada
como critério fundamentador da decisão, fica prejudicado o conhecimento da
alegada inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do artigo 410º do CPP.
13. Quanto à norma contida no artigo 374º, n.º 2 do CPP, o recorrente limitou-se
a invocar a nulidade da sentença de primeira instância, por alegada violação do
dever de fundamentação previsto no n.º 2 do artigo 374º do CPP, voltando a
apelidar a referida sentença de inconstitucional, mas não colocando qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa:
“A sentença é igualmente nula, nos termos do Artigo 379º alínea a) do CPP, face
à omissão de um dos requisitos essenciais da sentença – o dever de fundamentar a
decisão (…)” (cfr., com realce e sublinhado nosso, p. 12 do requerimento de
recurso, a fls. 825);
“A sentença recorrida é nula nos termos do artigo 379º nº 1 alínea a) do CPP e
inconstitucional, por violar as garantias de defesa do Arguido previstas no
Artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa” (cfr., com realce e
sublinhado nosso, p. 24 do requerimento de recurso, a fls. 837);
“7 - É ainda nula a sentença, nos termos do artigo 379º nº 1 alínea a) do CPP e
inconstitucional, face à preterição das garantias de defesa do Arguido previstas
no Artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, por não ter
fundamentado os critérios de valoração das provas que serviram de base à
verificação dos factos provados; por não indicar os meios de prova terão formado
a convicção do Tribunal e por não apresentar o conteúdo probatório retirado
desses meios de prova em ordem a sustentar os resultados da decisão” (cfr., com
realce e sublinhado nosso, § 7 das conclusões de recurso, a fls. 899).
14. Mas, para além da ausência de suscitação processualmente adequada da
inconstitucionalidade, afigura-se evidente que a interpretação normativa
efectivamente aplicada pelo tribunal “a quo” não corresponde àquela que o
recorrente reputa de inconstitucional, ou seja, “na interpretação segundo a
qual, a exigência de indicação e exame crítico das provas que serviram para
formar a convicção do tribunal, se basta, com a indicação e análise dos
depoimentos e declarações que não serviram para formar a convicção do Tribunal,
podendo verificar-se a total ausência, na sentença, da indicação e exame crítico
das provas que constituíram a fonte de convicção do Tribunal” (fls. 1100, com
sublinhado do próprio recorrente).
E nem sequer a interpretação normativa do n.º 2 do artigo 374º do CPP, levada a
cabo pelo tribunal “a quo”, corresponde a uma interpretação “segundo a qual a
fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração
dos meios de prova produzidos na 1ª instância, a indicação e relato do seu
conteúdo, não se exigindo a explicitação concreta, ainda que sintética, do
processo de formação da convicção do tribunal desde e a partir daqueles
elementos de prova até ao juízo de veracidade sobre os factos da pronúncia”
(fls. 1102).
Em colisão insanável com o sentido interpretativo que o recorrente lhe procura
imputar, a decisão recorrida apenas considera preenchido o dever de
fundamentação resultante do n.º 2 do artigo 374º do CPP quando esse exame
crítico indique “no mínimo e não tem que ser de forma exaustiva, as razões de
ciência e demais elementos que tenham na perspectiva do tribunal sido
relevantes, para assim se poder conhecer o processo. Ora, se analisarmos a
sentença recorrida vemos que esta está bem elaborada e da mesma constam de forma
clara e explícita os factos provados e não provados e, encontra-se, ainda,
fundamentada” (fls. 1060). Aliás, após transcrever excertos da fundamentação da
decisão de primeira instância, durante 17 longas páginas (fls. 1060 a 1076), o
tribunal “a quo” conclui que:
“Perante esta motivação temos de concluir que de forma exaustiva o Sr Juiz fez
uma análise crítica dos depoimentos prestados pelos arguidos, pelas testemunhas,
que de acordo com os restantes elementos de prova impõe a decisão proferida
quanto à matéria de facto.
Na verdade, tendo o Sr. Juiz enumerado as provas que teve ao seu dispor,
indicando o essencial do seu conteúdo e, portanto, o modo como formou o juízo da
sua veracidade, cumpriu com o dever de fundamentação contido no art. 374 nº 2 do
CPP” (fls. 1076).
Apesar do invocado pelo recorrente, não corresponde à verdade que a decisão
recorrida haja interpretado a norma constante do n.º 2 do artigo 374º do CPP em
qualquer dos sentidos reputados de inconstitucionais no requerimento de recurso
[cfr. § E), fls. 1100 e § H), fls. 1102] que deu causa aos presentes autos. Na
medida em que o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização sucessiva
concreta, apenas actua enquanto órgão de recurso relativamente a normas (e
interpretações normativas) efectivamente aplicadas, não é possível tomar
conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º
da LTC, quanto à norma constante do n.º 2 do artigo 374º do CPP.
15. Alegou ainda o recorrente, no requerimento de interposição de recurso, que a
decisão recorrida aplicou norma julgada inconstitucional por diversos acórdãos
identificados a fls. 1100. Após exame pela Relatora, constatou-se que tais
acórdãos não correspondiam a decisões tomadas pelo Tribunal Constitucional, mas
– conforme esclarecido pelo recorrente após convite para o efeito (fls. 1152) –
a acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça. Em sede de resposta ao
convite (fls. 1153), mais indicou o recorrente que entendia ainda que a decisão
do Tribunal Constitucional que julgou inconstitucional norma aplicada pela
decisão recorrida – “in casu”, a constante do n.º 2 do artigo 374º do CPP –
correspondia à proferida através do Acórdão n.º 636/99, de 23 de Novembro de
1999, pelo que havia fundamento para recurso ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do
artigo 70º da LTC. Para além desse aditamento, o recorrente já havia invocado a
contradição entre a interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida e o
Acórdão n.º 680/98, de 02 de Dezembro de 1998.
Da mera leitura do referido Acórdão n.º 636/99 (que faz sua e reproduz a
jurisprudência do Acórdão n.º 680/98), resulta inequívoco que – nessa
oportunidade – este Tribunal não se pronunciou sobre a actual redacção do n.º 3
do artigo 374º do CPP, que passou a acolher o dever de “exame crítico das provas
que serviram para formar a convicção do tribunal”. Assim, ver:
“Embora o recorrente o não explicite, está apenas em causa uma certa
interpretação dessa norma à luz da redacção do Código de Processo Penal de 1987
anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto. Efectivamente, apesar de a decisão
recorrida ser posterior à data de entrada em vigor desta Lei – 1 de Janeiro de
1999 –, ao Supremo Tribunal de Justiça não competia fundamentar a decisão sobre
a matéria de facto nos termos previstos naquele n.º 2 do artigo 374º do Código
de Processo Penal, mas apenas sindicar o cumprimento, pelo Tribunal da Relação
(que, no presente caso, julgou em 1ª instância), daquele mesmo preceito legal.
Ora, ao tempo em que o Tribunal da Relação se pronunciou (4 de Fevereiro de
1998) não estava ainda em vigor a alteração introduzida no n.º 2 do artigo 374º
por aquela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.
(…)
10.1. No acórdão n.º 680/98, de 2 de Dezembro de 1998, proferido no proc. n.º
456/95 (Diário da República, II Série, n.º 54, de 5 de Março de 1999, p. 3315
ss) – invocado pelo recorrente nas suas alegações –, depois de explicitar o
sentido e alcance da exigência constitucional de fundamentação das decisões
judiciais, em geral, o Tribunal Constitucional afirmou que:
“[...] a fundamentação das sentenças penais – especialmente das sentenças
condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades
e garantias das pessoas – deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram
a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o
princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação
pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à
decisão concretamente proferida. Afigura-se ser este o núcleo central da
exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais [...]”
Relativamente à interpretação atribuída à norma do n.º 2 do artigo 374º do
Código de Processo Penal de 1987 na decisão sob recurso no caso então em
apreciação – coincidente com a que foi feita no presente processo e que aliás
corresponde à que o próprio Supremo Tribunal de Justiça afirma ser a sua
jurisprudência constante (cfr. fls. 1170 v. dos presentes autos) –, o Tribunal
Constitucional ponderou:
“Vistas as coisas a esta luz, parece impossível compatibilizar o nº 2 do artigo
374º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação adoptada pelo
tribunal recorrido quanto à fundamentação da decisão da matéria de facto, com as
exigências constitucionais de fundamentação decorrentes da Constituição.
Na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou e aplicou a referida
disposição do Código de Processo Penal no sentido de a fundamentação das
decisões em matéria de facto se bastar com a «simples enumeração dos meios de
prova utilizados em 1ª instância», acrescentando, com citação de decisões do
mesmo Tribunal, que «só a ausência total, na sentença, da referência às provas
que constituíram a fonte da convicção do tribunal constitui violação do artigo
374º, nº 2, do CPP, o que acarreta a nulidade da decisão por força do artigo
379º do mesmo Código». Tal interpretação é coerente com o entendimento, também
adoptado no acórdão recorrido, de que a função da fundamentação neste âmbito
reside tão-só em possibilitar «o controlo da legalidade dos meios de prova
produzidos em audiência», mas contradiz as bases em que assenta teleologicamente
o dever constitucional de fundamentar.”
O Tribunal decidiu então “julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo
374º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação segundo a qual a
fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração
dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do
processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de
fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do artigo 205º da
Constituição [...]”.
10.2. No mesmo acórdão nº 680/98, depois de recordar a jurisprudência do
Tribunal Constitucional sobre a questão da conformidade constitucional da norma
do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal e desta norma em conjugação
com a do artigo 433º do referido Código – citando, designadamente, o recente
acórdão nº 573/98 (Diário da República, II Série, de 13 de Novembro de 1998), em
que, por maioria, o Plenário se pronunciou no sentido da não
inconstitucionalidade de tal solução normativa –, o Tribunal reconheceu,
todavia:
“[...] num sistema que circunscreve [...] os poderes de apreciação da matéria de
facto pelo Supremo Tribunal de Justiça, o aspecto central do qual depende a
possibilidade efectiva – embora limitada – de reapreciação da matéria de facto é
a imposição de um dever de fundamentação da decisão em matéria de facto com
intensidade suficiente [...]”.
O Tribunal Constitucional, considerando que a interpretação do nº 2 do artigo
374º adoptada na decisão então recorrida inviabilizava na prática o direito ao
recurso ou a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto,
consagrados no nº 1 do artigo 32º da Constituição, decidiu “julgar
inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, na
interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se
basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância,
não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal
[...], quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º
do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do
artigo 32º, também da Constituição”.
11. É essa jurisprudência que aqui se reitera. Pelos fundamentos mais
amplos constantes do acórdão nº 680/98 – para os quais se remete –, reafirma-se
que é inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 374º do Código de
Processo Penal de 1987, na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto,
na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto
se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância,
não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal,
por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no
n.º 1 do artigo 205º da Constituição, bem como, quando conjugada com a norma das
alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º do mesmo Código, por violação do direito
ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32º, também da Constituição. ” (cfr.
Acórdão n.º 636/99, de 23 de Novembro de 1999, disponível in
www.tribunalconstitucional.pt)
Como é bom de ver, tal jurisprudência não é transponível para o caso em apreço
nestes autos, visto que, para além de o n.º 2 do artigo 374º do CPP ter passado
a exigir expressamente “o exame crítico das provas que serviram para formar a
convicção do tribunal”, a decisão ora recorrida jamais nega a necessidade de
proceder a tal exame crítico – ainda que o recorrente possa discordar da
intensidade desse exame. Como tal, a dimensão normativa do n.º 2 do artigo 374º
do CPP julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.º 636/99 e n.º 680/98 não
corresponde à dimensão normativa efectivamente aplicada pela decisão ora
recorrida, razão pela qual este Tribunal se encontra impedido de tomar
conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º
da LTC.
D) Artigos 127º do CPP e 32º, n.ºs 1, 2 e 5 da CRP
16. Sem prejuízo da controvérsia doutrinária sobre a admissibilidade de um juízo
de desconformidade entre normas formalmente constitucionais e outras normas e
princípios constitucionais [ver, por todos, OTTO BACHOF, “Normas Constitucionais
Inconstitucionais?” (traduzido por José Manuel Cardoso da Costa), 1994,
Coimbra], afigura-se evidente que o recorrente só reputa de inconstitucionais as
normas vertidas nos n.ºs 1, 2 e 5 do artigo 32º da Lei Fundamental, por evidente
lapso, pelo que este Tribunal decide não conhecer sobre tal objecto do presente
recurso.
17. Já quanto à norma constante do artigo 127º do CPP, quando interpretada “no
sentido d[e] o Tribunal poder dar como provados os factos constantes da
pronúncia não sendo necessário indicar nem condenar com base em prova positiva
que contrarie a presunção de inocência” (fls. 1103) não se consegue vislumbrar
em que parte da decisão recorrida é que o recorrente estriba tal conclusão. Em
parte alguma da decisão recorrida se afirma tal raciocínio. E muito se
estranharia se tal pudesse ocorrer num Estado de Direito Democrático como o
nosso.
Pelo contrário, denotando uma preocupação em densificar o princípio da livre
apreciação da prova, mediante o recurso a reputada doutrina (cfr. citações de
Cavaleiro Ferreira e Figueiredo Dias, a fls. 1074), o tribunal “a quo”
interpretou sempre o artigo 127º do CPP no sentido de que tal norma impediria
formulações de juízos que não tivessem em conta os factos alvo de instrução
probatória, aferidos de acordo com as regras da experiência comum:
“No caso vertente, o tribunal adquiriu a sua convicção, quanto à forma como os
factos ocorreram, com base nos depoimentos dos arguidos e testemunhas ouvidas,
bem como, dos documentos juntos aos autos. A convicção do tribunal está
devidamente fundamentada, desenvolvendo-se a análise e exame crítico da prova.
O Sr Juiz na fundamentação da matéria de facto justificou de forma precisa e
concreta as razões por que deu pouca credibilidade a determinados depoimentos e
desprezou outros.
(…)
Ora, salvo o devido respeito pela opinião dos recorrentes, os juízos formulados
na apreciação da prova, constantes da fundamentação da matéria de facto, não vão
contra as regras da experiência comum, nem revelam uma apreciação manifestamente
incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo
insustentáveis” (fls. 1079 e 1080, com sublinhado nosso).
Em suma, o sentido interpretativo adoptado pela decisão recorrida não
corresponde àquele que o recorrente lhe imputa, o que obsta ao conhecimento por
parte deste Tribunal do objecto do recurso relativo à norma constante do artigo
127º do CPP, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
[…]
III. DECISÃO
Nestes termos, e ao abrigo do disposto no do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de
26 de Fevereiro, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
i) Não conhecer do recurso, interposto ao abrigo da alínea b)
do n.º 1 do artigo 70º da LTC, quanto à alegada inconstitucionalidade das normas
contidas nos artigos 1º, alínea f), 127º, 358º, 359º, 374º, n.º 2, 410º, n.º 2,
412º, n.º 3, alínea b), e n.º 4, todos do CPP;
ii) Não conhecer do recurso, interposto ao abrigo da alínea g)
do n.º 1 do artigo 70º da LTC, quanto à inconstitucionalidade das normas
constantes dos artigos 358º e 359º do CPP, por não se verificar identidade entre
a dimensão normativa julgada inconstitucional no Acórdão n.º 674/99 e a
interpretação normativa efectivamente aplicada pela decisão alvo de recurso nos
presentes autos;
iii) Não conhecer do recurso, interposto ao abrigo da alínea g)
do n.º 1 do artigo 70º da LTC, quanto à inconstitucionalidade da norma constante
do n.º 2 do artigo 374º do CPP, por não se verificar identidade entre a dimensão
normativa julgada inconstitucional nos Acórdãos n.º 680/98 e n.º 636/99 e a
interpretação normativa efectivamente aplicada pela decisão alvo de recurso nos
presentes autos;
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos
termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.»
2. Inconformado com esta decisão, vem o recorrente reclamar, para a conferência,
contra a não admissão do recurso, através de extenso requerimento que, apesar de
interposto exclusivamente ao abrigo do n.º 3 do artigo 78º-A da LTC, extravasa
em muito a função que lhe é legalmente conferida. Entre outros raciocínios, o
reclamante insiste numa análise crítica da decisão recorrida (e da decisão de
primeira instância), aludindo a questões relativas a matéria probatória, bem
como a decisões interpretativas relativas à aplicação do Direito
infra-constitucional das quais este Tribunal não pode conhecer, muito menos em
sede de reclamação de decisão sumária. Com interesse para a questão ora em
apreço, seleccionaram-se os seguintes fundamentos que de ora em diante se
sintetizam:
«- Do artigo 412º n 4º do CPP
(…)
Entende o recorrente que era impossível para o próprio, suscitar a questão da
inconstitucionalidade das normas jurídicas contidas nos artigos 412º nº 3 alínea
b) e nº 4 do CPP na interpretação que o recorrente alega que lhes foi dada pelo
Tribunal da Relação de Coimbra, antes de ser proferida essa mesma decisão, ou
seja, durante o processo.
Já no seu requerimento de interposição de Recurso para o Tribunal
Constitucional, no cumprimento do artigo 75-A da lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, o recorrente tinha
esclarecido que a inconstitucionalidade invocada sobre a recusa do Tribunal da
Relação de Coimbra em conhecer parte do seu recurso sobre a matéria de facto, só
pôde ser arguida aquando da interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional.
Antes desse momento, não existia no processo qualquer decisão sobre a
interpretação do artigo 412º nº3 alínea b) e do nº 4 do CPP, que importasse,
para o recorrente, a obrigação de suscitar a sua inconstitucionalidade.
Em relação a este ponto, o recorrente entende que devia ser dispensado do
cumprimento do ónus consagrado no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional e que por vezes o próprio Tribunal tem reconhecido dada a
circunstância da questão de inconstitucionalidade só surgir no processo depois
de proferida a decisão recorrida.
Relativamente ao segundo fundamento da não admissão do recurso, e com todo o
respeito que lhe merece a decisão da Venerando Juiz Relator, entende o
recorrente que a decisão recorrida interpretou o nº4 do artigo 412º no sentido
reputado de inconstitucional pelo recorrente, ainda que a forma de exposição e
de expressão utilizado por este ultimo possa não ter sido a mais feliz.
(…)
O Tribunal da Relação ainda invoca em fundamento da sua decisão, o Acórdão do
Tribunal Constitucional nº 140/2004. Contudo este acórdão não tem aplicação ao
caso em apreço por se tratarem de situações concretas distintas.
Tendo sido contra o entendimento sufragado pelo Tribunal da Relação de Coimbra
de que indicar “cassete nº1 lado A” não é fazer referência aos suportes técnicos
para efeitos do artigo 412º nº4 do CPC, e em consequência do que, rejeitava
liminarmente o recurso interposto pelo arguido da matéria de facto, que o
arguido requereu a declaração de inconstitucionalidade daquela interpretação.
Até porque o arguido não tinha outras especificações que pudesse transmitir. Não
sabia as rotações da gravação, que varia de gravador para gravador, nem sabe a
que especificações o Tribunal da Relação se refere.
O Acórdão da Relação também não especifica, para esclarecimento do próprio
arguido e fundamentação da sua decisão, que especificações mais ou acrescidas
seriam necessárias para que ele conhecesse do recurso interposto pelo arguido.
Diz que não conhece porque entende não serem suficientes…então pergunta-se o que
é suficiente ou melhor, porque é que aquelas referências – cassete 1 lado A -
não são suficientes.
(…)
Noutros recursos que a ora mandatária já apresentou junto de outros Tribunais da
Relação, como sejam de Lisboa ou de Évora, a indicação do número de cassete e do
lado da cassete é suficiente para efeitos de cumprimento do artigo 412º nº4 do
CPP, tanto mais quando essa especificação corresponde exactamente a que foi
utilizada pelo tribunal de primeira instância e vem acompanhada da sua
transcrição. Mas neste caso concreto decidiu-se que essa especificação não era
suficiente, com a consequência agravante de surpreender o arguido com uma
decisão que lhe coarcta o direito de recorrer sobre a matéria de facto.
O exercício desse direito não pode depender de uma decisão de um juízo
conformação casuístico feita por cada Tribunal da Relação, designadamente, se em
cada momento e dependendo do Tribunal, as referências aos suportes técnicos
efectuadas pelos arguidos cumprem ou não o ónus de especificação. Porque uma
coisa é o arguido não ter feito qualquer especificação. Outra bem diferente, é o
arguido ter feito essa especificação mas o Tribunal da Relação, por alguma razão
que também não esclareceu, o considerar insuficiente.
Como referiu o arguido no seu requerimento de recurso para o TC: “Apesar do
arguido ter indicado no seu recurso, quer nas alegações quer nas conclusões, a
referência aos suportes técnicos, com a indicação da cassete e lado onde se
encontravam localizados os depoimentos, exactamente como constava nas Actas de
Julgamento e como lhe foi providenciada pelo Tribunal de Primeira Instância, e
ainda transcrito no seu recurso, a parte a que queria referir de cada um dos
depoimentos, o Tribunal da Relação decidiu não julgar a decisão da matéria de
facto, impugnada pelo recorrente, alegando que para efeitos do artigo 412º nº4
do CPP é insuficiente a mera referência técnica utilizada pelo recorrente de
cassete 1 lado A”
É esta interpretação do artigo 412º nº4 do CPP que o Tribunal da Relação faz e
com fundamento no qual não conhece do recurso da matéria de facto do arguido,
que este último reputa de inconstitucional. Tal interpretação implica que o
Tribunal da Relação de Coimbra exige do arguido um ónus de especificação, que
não está concretizado na Lei, maior e mais exigente do que aquele que ele
demonstrou ter nas suas alegações de recurso (e que é o mesmo que lhe foi
providenciada pelas Actas do Julgamento do Tribunal de Primeira Instância) sob
pena de, não o cumprindo, o seu recurso sobre a matéria de facto não ser
admitido.
(…)
II- Relativamente ao artigo 412º nº3 alínea b) do CPP:
(…)
Nestes termos, considerando que arguido recorreu de facto com fundamento: na
insuficiência e inexistência notória dos meios de prova considerados pelo
Tribunal – apenas os documentos de fls. 212 e 213 – para se darem como provados
todos os factos da acusação, circunstância que resulta do próprio texto da
decisão recorrida, o Acórdão da Relação ao ter decidido rejeitar liminarmente
esta parte do recurso do arguido sobre a matéria de facto, com fundamento de que
o arguido não deu cumprimento ao artigo 374º nº3 alínea b) ou seja que o
recorrente não indicou provas que imporiam decisão diversa, QUANDO ESSA
INDICAÇÃO, NESTE CASO, NÃO É POSSÍVEL NEM NECESSÁRIA porque pressupõe uma
avaliação da suficiência dos meios de provas considerados pelo Juiz
relativamente à decisão sobre a matéria de facto, o Acórdão está a fazer uma
interpretação e aplicação normativa incorrecta e inconstitucional do artigo 374º
nº3 alínea b) do CPP, porquanto, o resultado e consequência práticas daquela
interpretação e aplicação normativa ao caso dos Autos é bem a de inviabilizar o
direito ao recurso ou a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de
facto, consagrados no nº 1 do artigo 32º da Constituição mormente quando o Juiz
de primeira instância refere expressamente que só os documentos de fls. 212 e
213 serviram para formar a sua convicção e o recorrente ter alegado e concluído
que sustentar a sua decisão exclusivamente naquele meios de prova, é claramente
insuficiente.
Sobre este aspecto particular do seu recurso sobre a matéria de facto, o arguido
não tinha que indicar outras provas diferentes porque invocou que os meios de
prova admitidos à convicção pelo tribunal de primeira instância – somente fls.
212 e 213 dos Autos – eram notoriamente insuficientes para, a partir deles, se
darem como provados todos os factos da Acusação, cabendo à Relação apreciar, tão
só, a SUFICIÊNCIA OU INSUFICIÊNCIA DAQUELES DOCUMENTOS PARA PROVA DE TODOS OS
FACTOS DA ACUSAÇÃO.
Ao decidir desta maneira, ou melhor, ao aplicar o artigo 374º nº3 alínea b) ao
Recurso do Arguido concluindo que ele não deu cumprimento às exigências ali
mencionadas, o Tribunal da Relação interpretou e aplicou o nº3 alínea b) do
artigo 412º no sentido reputado de inconstitucional pelo recorrente.
Da parte do recurso sobre a alegada inconstitucionalidade do artigo 127 do C.P.
e 374 nº2 do CPP
(…)
É certo que o Tribunal Constitucional só pode apreciar a constitucionalidade de
normas jurídicas. Mas se perante uma decisão de primeira instância, em que o
Tribunal de Primeira Instância declara expressamente, no texto da decisão
recorrida, que formou a sua convicção com base em ilações que foram possíveis de
discorrer dos únicos dados objectivos do processo, os documentos de fls. 212 e
213, e declara que não formou a sua convicção nem nos depoimentos dos arguidos
nem nos depoimentos das testemunhas, ou seja, em nenhum meio de prova dos
produzidos em audiência de julgamento e nem explica de que modo infere dos
documentos, a demonstração dos quase 30 factos dados como provados, e perante
isto, o Tribunal da Relação de Coimbra afirma que “A convicção do tribunal está
devidamente fundamentada, desenvolvendo a análise e exame crítico da prova”,
corroborando, em última análise a fundamentação do Tribunal Primeira Instância,
o Tribunal da Relação de Coimbra só pode estar a aplicar a norma do nº2 do
artigo 374 do CPP no sentido de admitir a legalidade de um fundamentação
negativa da sentença.
Só pode ser esta a conclusão da premissa. A não ser assim estaríamos todos a
fechar os olhos a uma condenação de primeira instância nos termos da qual, e não
é o arguido nem um terceiro que o diz, é o próprio tribunal que declara
expressamente no texto da sentença, não se ter baseado em nenhum outro meio de
prova para além dos documentos de fls. 212 e 213 e de ter dado como provados
todos os factos com base em ilações.
A aplicação de qualquer norma a um caso concreto pressupõe necessariamente a sua
interpretação prévia, no sentido da mesma poder ou não ser aplicada, e em
resultado da qual se possa decidir num ou noutro sentido.
Perante a decisão de primeira instância, diz o Acórdão da Relação:
“ Perante esta motivação temos de concluir que de forma exaustiva o Sr. Juiz fez
uma análise crítica dos depoimentos prestados pelos arguidos, pelas testemunhas,
que de acordo com os restantes elementos de prova impõe a decisão proferida
quanto à matéria de facto. Na verdade, tendo o Sr. Juiz enumerado as provas que
teve ao seu dispor, indicando o essencial do seu conteúdo e, portanto, o modo
como formou o juízo da sua veracidade, cumpriu com o dever de fundamentação
contido no artigo 374º nº2 do CPP” o Acórdão da relação está a reportar-se aos
meios de prova de que o Exmo Juiz de primeira instância não formou a sua
convicção nem formulou juízos de veracidade, mas ao contrário, formulou juízos
de não veracidade, para então concluir “ A convicção do tribunal está
devidamente fundamentada, desenvolvendo a análise e exame crítico da prova”.
Esta interpretação e aplicação normativa do nº2 do artigo 374 do CPP é, no
entendimento do arguido, inconstitucional, na medida em que está a afirmar a
legalidade à luz daquele preceito legal, da fundamentação negativa da sentença
de primeira instância, ou seja, uma fundamentação que se consubstancia no exame
critico das provas que não participaram nem contribuíram para formação da
convicção do Exmo. Juiz de primeira instância.
Por esta razão o arguido entende que o Acórdão da Relação interpretou e aplicou
a norma do artigo 374º nº2 no sentido reputado de inconstitucional pelo
recorrente.
(…)
Assim sendo, se a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra entende que a
aplicação dos artigos 374º nº2 e 127º do CPP na decisão de primeira instância
foi correcta, legal e constitucional, não merecendo qualquer censura. E que em
consequência dessa sua decisão, mantém-se a condenação de um arguido com base
num conjunto de ilações tal como decorre do texto da decisão recorrida – páginas
27, a conclusão desta premissa só poder ser a de que o Tribunal da Relação
entende que a condenação do arguido com base naquelas ilações é admitida nos
termos do artigo 374º nº2 e 127 ambos do CPP, caso contrário não o teria
admitido. Ora, é exactamente esta última realidade fáctica e jurídica que o
legislador daqueles preceitos visava precisamente eliminar.
Assim, não pode ser outro, o entendimento defendido pelo Acórdão da Relação das
normas 374º nº2 e 127º do CPP do que aquele que possibilita que o Tribunal de
Primeira Instância possa dar como provados os factos constantes da pronuncia sem
ser necessário indicar nem condenar com base em prova positiva que contrarie a
presunção de inocência.
Só pode ser esta a conclusão da premissa. A não ser assim estaríamos todos a
permitir uma condenação de primeira instância nos termos da qual, é o próprio
tribunal que declara expressamente no texto da sentença, não se ter baseado em
nenhum outro meio de prova para além dos documentos de fls. 212 e 213 e de ter
dado como provados todos os factos com base em ilações.
Por esta razão entende o recorrente que o sentido interpretativo adoptado pela
decisão recorrida corresponde àquele que o recorrente lhe imputa e que o mesmo é
inconstitucional.»
3. Notificado para se pronunciar sobre a referida reclamação, o Ministério
Público veio pronunciar-se no seguinte sentido:
«1º
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º
Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão
reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do recurso
interposto.» (fls. 1216)
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. A decisão sumária reclamada não conheceu do objecto do recurso, no essencial,
e conforme os casos, por considerar que as questões de constitucionalidade
normativa não tinham sido suscitadas de modo processualmente adequado, as normas
questionadas não tinham sido aplicadas pela decisão recorrida e esta não tinha
aplicado qualquer norma já julgada inconstitucional pelo Tribunal
Constitucional.
Inconformado, vem o recorrente reclamar. Da leitura exaustiva da reclamação
apresentada resulta que o ora reclamante não só abandonou as questões de
constitucionalidade respeitantes aos artigos 1º, al. f), 358º e 359º do CPP, mas
também que toda a sua argumentação está apenas dirigida à reapreciação da
decisão sumária, quanto ao preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do
recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC. Daqui decorre que o
objecto da presente reclamação apenas abrange a verificação do alegado
preenchimento dos pressupostos do recurso interposto ao abrigo daquela alínea b)
quanto às interpretações normativas alegadamente feitas pela decisão recorrida,
em relação aos artigos 127º, 374º, n.º 2, e 412º, n.º 3, alínea b) e n.º 4,
todos do CPP, estando a decisão sumária transitada em julgado quanto às
restantes decisões de não conhecimento.
5. Quanto à questão relativa ao não conhecimento do recurso interposto a
propósito da alegada inconstitucionalidade de interpretações normativas
resultantes do artigo 127º CPP, como se demonstrou na decisão sumária, o
preceito não foi aplicado com o sentido questionado pelo reclamante (aliás,
também nunca fora por este suscitada qualquer questão de constitucionalidade
normativa a este propósito), pelo que aqui se reitera o que então foi dito,
improcedendo manifestamente a reclamação.
No que toca ao artigo 374º, nº 2, do CPP, tal como se disse na decisão sumária,
nunca foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa pelo
reclamante durante o processo, pelo que a reclamação é também manifestamente
improcedente.
Relativamente ao artigo 412º, n.º 3, alínea b) do CPP, a decisão sumária recusou
conhecer do recurso porque a interpretação normativa questionada não foi alvo de
qualquer suscitação prévia de inconstitucionalidade, conforme era exigido pelo
n.º 2 do artigo 72º da LTC, o que, aliás, não é contestado pelo ora reclamante.
Assim sendo, improcede, assim, a reclamação também nesta parte.
Em relação ao n.º 4 do artigo 412º do CPP, independentemente da questão de saber
se se trata, ou não, de uma decisão-surpresa, a norma não foi aplicada pela
decisão recorrida com o sentido normativo questionado, tal como se disse na
decisão sumária e aqui se dá por reproduzido. Tanto basta para que a reclamação
improceda.
Na verdade, no requerimento de interposição do recurso, o recorrente indica como
interpretação normativa alegadamente inconstitucional e aplicada pelo tribunal
recorrido a seguinte:
“São inconstitucionais as normas contidas no artigo 412º, nº 4 do CPP, na
interpretação do Tribunal da Relação de Coimbra segundo a qual o Arguido não
cumpre com a exigência ali consagrada quando faz referência, quer nas suas
alegações, quer nas suas conclusões, aos suportes técnicos de gravação com a
indicação de cassete, lado e localização de depoimentos (…).” (negrito aditado).
Ora, não foi este o sentido normativo aplicado pela decisão recorrida, que
considerou que o recorrente se limitou a indicar cassete e lado, sem
localização, o que “não é fazer referência aos suportes técnicos”.
Não tendo sido aplicada pela decisão recorrida a interpretação normativa
indicada pelo recorrente no requerimento de recurso, tal como se disse na
decisão sumária, também quanto ao artigo 412º, nº 4, do CPP, a reclamação não
pode proceder.
6. Assim, torna-se evidente que nenhuma das considerações tecidas pelo
reclamante – muitas delas sem qualquer conexão com os presentes autos,
exclusivamente destinados a apreciar questões de inconstitucionalidade – logra
colocar em crise os fundamentos de não conhecimento do recurso que presidiram à
decisão reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 5 de Março de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão