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Processo n.º 547/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. O presente recurso vem interposto pelo Ministério Público, com natureza
obrigatória, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 da CRP e dos
artigos 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.º 3, ambos da LTC, da sentença proferida
pelo Tribunal da Relação do Porto, em 23 de Janeiro de 2007 (fls. 634 a 654) que
julgou improcedente o recurso interposto e determinou a desaplicação da norma
extraída do n.º 4 do artigo 23º do Código de Expropriações, uma vez que aquele,
constituindo “um preceito de natureza exclusivamente fiscal, é inconstitucional
por violar de forma flagrante o princípio da irretroactividade da lei fiscal e
da igualdade fiscal” (fls. 649).
2. Notificado para alegar, o Ministério Público apresentou as suas
alegações, cujo teor ora se reproduz:
“1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida no Tribunal da Relação do Porto, que recusou aplicar, com
fundamento em inconstitucionalidade, a norma constante do artigo 23°, nº 4, do
Código de Expropriações de 1999.
Esta questão não é nova na jurisprudência constitucional, tendo sido — em
momento relativamente recente — apreciada pelo Plenário do Tribunal
Constitucional que concluiu, no Acórdão nº 422/04, que a referida norma não
viola o disposto nos artigos 13° e 62°, n°2, da Constituição da República
Portuguesa.
A decisão recorrida adere, no essencial, à tese que ficou vencida no referido
aresto, bem como às posições doutrinárias que aí foram analisadas e ponderadas.
Deste modo, não se verificando qualquer elemento novo ou superveniente que
determine a reponderação do juízo de não inconstitucionalidade formulado, por
maioria, pelo Plenário deste Tribunal Constitucional — e que coincide, aliás,
com o sentido propugnado na alegação, apresentada pelo Ministério Público no
processo que culminou na prolação de tal acórdão — entendemos que — reiterando
os fundamentos do Acórdão n° 422/04 — deverá proceder o presente recurso.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º
Pelas razões invocadas no Acórdão nº 422/04, proferido pelo Plenário do Tribunal
Constitucional, a norma constante do artigo 23°, nº 4, do Código de
Expropriações de 1999 não viola o disposto nos artigos 13° e 62°, nº 2 da
Constituição da República Portuguesa.
2°
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
4. Por sua vez, notificado das alegações do Ministério Público, o
recorrido A. juntou requerimento aos autos, informando que “prescinde de o
fazer, mais requerendo que o prazo concedido se esgote com o presente
requerimento.
Quanto à recorrida Câmara Municipal de Amarante, notificada das
referidas alegações, deixou esgotar o respectivo prazo de resposta sem que
viesse aos autos pronunciar-se.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Entre a data de apresentação dos autos, conclusos, à Relatora do presente
recurso e a prolação do presente acórdão, este Tribunal teve oportunidade de
apreciar a questão relativa à inconstitucionalidade do n.º 4 do artigo 23º do
Código de Expropriações, mediante intervenção do seu Plenário, com vista à
prevenção de eventuais divergências jurisprudenciais, conforme decorre do n.º 1
do artigo 79º-A da LTC. Em 14 de Janeiro de 2008, foi aprovado o Acórdão n.º
11/2008, que procedeu a uma reorientação do sentido da jurisprudência deste
Tribunal a propósito daquela questão de inconstitucionalidade normativa,
tendo-se, consequentemente, abandonado o sentido da jurisprudência anteriormente
espelhada no Acórdão n.º 422/2004.
Em função desta recentíssima fixação de jurisprudência constitucional,
procede-se apenas a uma remissão para a fundamentação exaustivamente
desenvolvida no referido Acórdão n.º 11/2008, de 14 de Janeiro de 2008. Assim:
“2. A posição anterior do Tribunal Constitucional
Este Tribunal decidiu, no Acórdão n.º 422/2004 (pub. em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, 59º vol., pág. 687), tirado em Plenário, ao abrigo do disposto
no art.º 79.º - A, da LTC, num caso em que estava em causa a mesma norma, mas
que a entidade expropriante era o Município onde se situava o terreno
expropriado, não julgar inconstitucional a norma questionada.
Considerou-se que o disposto no n.º 4, do artigo 23.º, do Código das
Expropriações de 1999, não violava nem o princípio da igualdade, nem o direito a
uma justa indemnização, consagrados, respectivamente, nos artigos 13.º e 62.º,
n.º 2, da C.R.P. - fundamentos então invocados para recusar a aplicação daquela
norma pela sentença proferida no processo em que foi prolatado o referido
acórdão.
Posteriormente, efectuaram o mesmo juízo de constitucionalidade, por remissão
para os fundamentos do acórdão acima referido, os seguintes acórdãos do Tribunal
Constitucional:
- n.º 585/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 588/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 625/2004 (pub. em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 60.º vol., pág.
503).
- n.º 629/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 643/2004 (pub. no Diário da República, II Série, de 10-1-2005).
- n.º 644/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 662/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 683/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 251/2005 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
- n.º 332/2005 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).
No acórdão n.º 625/2004 afirmou-se que “o acolhimento dessa orientação implica
não apenas o acatamento do sentido da decisão das questões de
constitucionalidade expressamente tratadas pelo acórdão do Plenário, mas também
o respeito pela projecção que, relativamente a questões nele não explicitamente
apreciadas, há que atribuir aos juízos em que se fundaram tais decisões, pelo
menos quando constituam seu pressuposto lógico necessário.”
Este raciocínio permitiu que também se considerasse, nesse acórdão e noutros
posteriormente proferidos, que o disposto no n.º 4, do art.º 23.º, do Código das
Expropriações de 1999, não violava também o princípio da não retroactividade
fiscal, consagrado no art.º 103.º, n.º 3, da C.R.P..
(…)
5. O princípio constitucional da justa indemnização
O artº 62.º, n.º 2, da C.R.P., determina que a expropriação por utilidade
pública só pode ser efectuada mediante o pagamento de justa indemnização.
Apesar da Constituição ter remetido para o legislador ordinário a fixação dos
critérios conducentes à fixação da indemnização por expropriação, ao exigir que
esta seja “justa”, impõe a observância dos seus princípios materiais da
igualdade e proporcionalidade, assim como do direito geral à reparação dos
danos, como corolário do Estado de direito democrático (artº 2.º, da C.R.P.).
Em termos gerais e utilizando definição comum à jurisprudência deste Tribunal,
poder-se-á dizer que a “justa indemnização” há-de tomar como ponto de referência
o valor adequado que permita ressarcir o expropriado da perda do bem que lhe
pertencia, com respeito pelo princípio da equivalência de valores. O valor
pecuniário arbitrado, a título de indemnização, deve ter como referência o valor
real do bem expropriado.
Se é admissível que na fixação deste montante interfiram razões de interesse
público que justifiquem a introdução de cláusulas de correcção do puro valor de
mercado, de modo a evitar avaliações que não se enquadrariam na ideia do valor
“justo”(v.g. o disposto nos art.º 23.º, n.º 2, a), b), c) e d) e n.º 3), já não
devem ser admitidas operações redutoras do valor real do bem expropriado,
visando apenas uma diminuição oportunista da indemnização a pagar, ou com
fundamentos estranhos à equidade desse valor.
O art.º 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., ao impor a dedução do valor
correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de
contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na
avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos, ao
montante indemnizatório calculado de acordo com os critérios previstos no Código
das Expropriações, está a reduzir o valor da indemnização a receber pelo
expropriado, sem que essa redução tenha como finalidade a afinação da “justiça”
desse valor.
Na verdade, a aplicação desta disposição interfere relevantemente na fixação do
quantum indemnizatório (ALÍPIO GUEDES, em “Valorização de bens expropriados”,
pág. 79, da 2ª ed., da Almedina, refere que essa redução é, em média, da ordem
dos 5% do montante indemnizatório), resultando esta tentativa de cobrança de uma
prestação totalmente alheia ao acto expropriativo e às operações de apuramento
do valor do bem expropriado, através de um enxerto procedimental, numa
arbitrária diminuição do valor da indemnização a pagar, com benefício
injustificado para a entidade expropriante.
Traduzindo-se, pois, o disposto no art.º 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., numa
diminuição do montante indemnizatório a pagar pelo acto expropriativo, sem
qualquer fundamento no acerto do valor “justo” do bem expropriado, mostra-se
violado o princípio constitucional da “justa indemnização”, consagrado no art.º
62.º, da C.R.P..
E, uma vez que ao conceito de “justa indemnização” está umbilicalmente ligada a
observância do princípio constitucional da igualdade (art.º 13.º, nº 1, da
C.R.P.), na sua manifestação de igualdade dos cidadãos perante os encargos
públicos, abrangendo a relação externa da expropriação (ALVES CORREIA, na anot.
cit., na R.L.J., Ano 134º, pág. 346), o art.º 23.º, n.º 4, da C.R.P., ao impedir
que os expropriados sejam plenamente compensados pelo “sacrifício” patrimonial
que lhes foi exigido, recebendo menos do que aquilo que perderam, também
infringe o referido princípio da igualdade de encargos.
6. O princípio constitucional da igualdade fiscal
O princípio constitucional da igualdade fiscal, como expressão específica do
princípio geral estruturante da igualdade (art.º 13.º, da C.R.P.), não se resume
à regra da universalidade dos impostos, segundo a qual estes incidem sobre todos
aqueles que tem capacidade contributiva, determinando também que todos devem
estar adstritos ao pagamento de impostos com base no mesmo critério – a regra da
uniformidade dos impostos (sobre este princípio, vide SOUSA FRANCO, em “Finanças
públicas e direito financeiro”, vol. II, pág. 178-182, da 4ª ed., da Almedina, e
CASALTA NABAIS, em “O dever fundamental de pagar impostos”, pág. 435 e seg., da
ed. de 1998, da Almedina).
Segundo esta regra, o que é igual deve ser tributado igualmente e o que é
desigual deve ser tributado desigualmente, na medida dessa desigualdade. Mas a
diferenciação entre o que é igual ou desigual implica a adopção de critérios
valorativos das realidades tributáveis.
Para apurar a eventual violação deste princípio pela norma recusada pela
sentença recorrida convém efectuar um rápido sobrevoo pelo regime da
contribuição autárquica.
A contribuição autárquica sucedeu à contribuição predial, cujo Código mais
recente havia sido aprovado em 1963, pelo D.L. nº 45.104, de 1 de Junho, no
âmbito da Reforma Fiscal de 1958-1966, dirigida pelo Prof. Teixeira Ribeiro (a
contribuição predial terá sido criada pela Lei de 19 de Abril de 1845, sendo a
“jugada”, cobrada no reinado de D.Afonso Henriques, o primeiro imposto predial
conhecido em Portugal).
Esta reforma caracterizou-se por consagrar um sistema misto de impostos
cedulares sobre o rendimento, taxando as suas diferentes categorias, consoante a
respectiva origem, a que acrescia um imposto de sobreposição – o imposto
complementar – que tributava globalmente a soma de todos os rendimentos
pessoais. Nesse conjunto de impostos figurava a contribuição predial, que
tributava os rendimentos efectivamente obtidos, no respeitante aos prédios
urbanos arrendados, o valor locativo, ou seja a utilidade obtida pelo respectivo
uso ou fruição que era dada pela renda que o proprietário poderia obter, caso
tivesse arrendado o imóvel, relativamente aos prédios urbanos não arrendados, e
a renda da terra, obtida pelo rendimento médio presumido, determinado por
avaliação directa ou cadastral, no tocante aos prédios rústicos.
Com a reforma fiscal operada nos anos 1988-1989, a inclusão na base de
tributação dos novos impostos – IRS e IRC – de todos os rendimentos efectivos
auferidos pelos contribuintes, conduziu à consequente extinção da contribuição
predial, apenas relativamente aos prédios produtores de rendimentos, o que
resultou na necessidade de repensar a problemática da tributação predial.
Foi nesta conjuntura legislativa, aliada à problemática do financiamento das
autarquias locais, que nasceu a contribuição autárquica, consagrada no C.C.A.,
aprovado pelo D.L. n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, que entrou em vigor em
1-1-1989.
Este novo imposto municipal pretendeu ser um imposto sobre o património
imobiliário, que incidia sobre o valor de todos os prédios situados no
território de cada município (art.º 1.º, do C.C.A.), enquanto o rendimento real
que alguns deles proporcionavam continuava a ser tributado em sede de IRS e IRC.
Mais do que na lógica do princípio da capacidade de pagar, a criação deste
imposto foi justificada pelo princípio do benefício, na medida em que os
proprietários dos prédios são especiais beneficiários de infra-estruturas e
serviços muito onerosos que a colectividade lhes proporciona, desempenhando as
autarquias um papel relevante nesse domínio (LOPES PORTO, em “A reforma fiscal
portuguesa e a tributação local”, em “Estudos em Homenagem ao Prof. Eduardo
Correia”, no B.F.D.U.C., nº especial do ano de 1984, vol. III, pág. 133-137, RUI
DUARTE MORAIS, em “Notas sobre a contribuição autárquica”, em “Fisco”, 1989,
vol. I, t. 7, pág. 15, VASCO VALDEZ MATIAS, em “A contribuição autárquica e a
reforma da tributação do património”, pág. 24-25, da ed. de 1999, da Vislis, e
CASALTA NABAIS, em “As bases constitucionais da reforma do património”, em
“Fisco”, 2004, vol. XV, t. nº 111/112, pág. 18-20).
Estabeleceu o C.C.A., no seu art.º 7.º, n.º 1, que o valor tributável dos
prédios é o seu valor patrimonial determinado nos termos de um futuro Código das
Avaliações.
Mas, enquanto este Código não entrasse em vigor, os art.º 6.º a 9.º, do D.L. n.º
442-C/88, de 30 de Novembro, estabeleceram, transitoriamente, o seguinte:
“Artº 6º
1 – O valor tributável dos prédios urbanos, enquanto não for determinado de
acordo com as regras do Código das Avaliações, será o que resultar da
capitalização do rendimento colectável actualizado com referência a 31 de
Dezembro de 1988, através da aplicação do factor 15.
2 - O rendimento colectável dos prédios urbanos não arrendados, reportado a 31
de Dezembro de 1988, é desde já objecto de uma actualização provisória de 4% ao
ano, cumulativa, com o limite de 100%, desde a última avaliação ou actualização,
não se considerando para o efeito a que resultou da aplicação do disposto no nº
1 do artigo 69º da Lei nº 2/88, de 28 de Janeiro.
Art.º 7.º
1 – O valor tributável dos prédios rústicos, enquanto não for determinado de
acordo com as regras do Código das Avaliações, será o que resultar da
capitalização do rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de
Dezembro de 1988, através da aplicação do factor 20.
2 – O rendimento colectável dos prédios rústicos, reportado a 31 de Dezembro de
1988, é desde já objecto de uma actualização provisória de 2% ao ano,
cumulativa, com o limite máximo de 100%, desde a última avaliação ou
actualização, não se considerando para o efeito a que resultou da aplicação do
disposto no nº 1 do artigo 69º da Lei nº 2/88, de 28 de Janeiro.
Artº 8º
1 – Enquanto não entrar em vigor o Código das Avaliações, os prédios continuarão
a ser avaliados segundo as correspondentes regras do Código da Contribuição
Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, aprovado pelo Decreto-Lei nº 45
104, de 1 de Julho de 1963, determinando-se o seu valor tributável de acordo com
o disposto nos nºs 1 dos artigos 6º e 7º do presente decreto-lei.
2 – No caso de terrenos para construção, o seu valor tributável será determinado
por aplicação das regras contidas no Código da Sisa e do Imposto sobre as
Sucessões e Doações.
Art.º 9º
Até à entrada em vigor da nova legislação que as regulamente, a organização e
conservação das matrizes será feita por aplicação das correspondentes normas do
Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, aprovado
pelo Decreto-Lei nº 45 104, de 1 de Julho de 1963.”
Perante a falta de um consensual Código de Avaliações pronto para entrar em
vigor simultaneamente com o C.C.A., o legislador recorreu ao regime revogado,
limitando-se a prever uma pequena actualização automática do valor tributável
constante das desactualizadas matrizes prediais.
Apesar da A.R. ter emitido autorização legislativa no sentido do Governo poder
aprovar um Código de Avaliações (art.º 50.º, b), da Lei n.º 2/92, de 9 de Março,
a qual foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo acórdão
n.º 358/92, deste Tribunal, por indeterminação), isso nunca chegou a suceder (um
projecto do Código de Avaliações foi publicado em “Ciência e Técnica Fiscal”, nº
384, Outubro-Dezembro de 1996, pág. 187-235), pelo que as transcritas normas
transitórias perpetuaram-se, tendo acabado por vigorar durante todo o período de
vida da contribuição autárquica.
A constatação da profunda desactualização das matrizes prediais, perante a quase
inexistência de operações de reavaliação pela administração fiscal, nomeadamente
nas situações previstas no artº 263.º, b), e 264.º, do C.C.P.I.I.A., não é
suficiente para que o automatismo da valoração da avaliação efectuada no âmbito
de um processo de expropriação, imposta pelo n.º 4, do art.º 23.º, do Cód. das
Exp., seja considerado um atentado ao princípio da igualdade fiscal.
Na verdade, não pode a desactualização generalizada dos valores matriciais,
resultante da não utilização pela administração fiscal dos mecanismos legais
previstos para evitar esse fenómeno, justificar que se “interdite” um preceito
que prevê, nos casos em que ocorre uma avaliação do imóvel para efeitos de
fixação da indemnização pela expropriação, uma actualização automática daqueles
valores, aproveitando a realização daquela avaliação.
A inexecução generalizada duma lei, por inércia dos órgãos do poder executivo,
frustrando os objectivos do respectivo regime legal, não é suficiente para que
se considere que viola o princípio da igualdade o preceito legal que preveja um
mecanismo de funcionamento automático capaz de atingir aqueles objectivos, em
apenas alguns casos, dispensando a prática de actos de execução.
O princípio da igualdade, funcionando como aferidor de constitucionalidade, deve
ter como termos de comparação previsões normativas, sendo duvidoso que estas
possam ser substituídas por realidades resultantes de uma deficiente execução da
lei, por inércia da administração pública, mesmo que generalizadas.
O art.º 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., prevê um mecanismo de reavaliação
distinto do regime geral, face à existência de um circunstancialismo próprio,
tratando de forma diferente aquilo que é diferente e de forma adequada à
diferença verificada, pelo que o funcionamento de um regime de reavaliação
automática do valor tributável para efeitos de contribuição autárquica não
viola, só por si, o princípio da igualdade fiscal.
Todavia, nos impostos sobre o património adquirem especial importância os
critérios de valoração dos bens que o integram, de cuja aplicação resultará a
quantificação da base tributária, a qual é um dos elementos-chave dos resultados
de qualquer imposto.
Sendo a contribuição autárquica um exemplo paradigmático de um imposto real e
objectivo, uma vez que o sujeito passivo do mesmo é determinado pela qualidade
de ser titular de um direito real sobre um imóvel, a regra da uniformidade impõe
uma igualdade horizontal, ou seja, todos os que são titulares da mesma forma de
riqueza devem ser tributados da mesma maneira (SOUSA FRANCO, na ob. cit., pág.
181).
Assim, para que fosse respeitado o princípio da igualdade fiscal, na sua regra
da uniformidade, os critérios de valoração da propriedade dos imóveis que
integravam a realidade tributada através da contribuição autárquica teriam que
ser uniformes, relativamente a cada espécie de bens.
Daí que importe comparar o critério valorativo resultante da aplicação do
disposto no n.º 4, do art.º 23.º, do Cód. das Exp., do critério valorativo geral
donde resulta a base de incidência da contribuição autárquica.
Considerando o sentido das acima referidas normas transitórias do D.L. n.º
442-C/88, de 30 de Novembro, que acabaram por se aplicar durante todo o período
de vigência da contribuição autárquica, foram os seguintes os critérios de
fixação do valor tributável da contribuição autárquica, relativamente aos
diversos tipos de imóveis:
a) Prédios rústicos
Nos termos do art.º 7.º, do D.L. n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, o valor
tributável dos prédios rústicos, era o que resultava da capitalização do
rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988,
através da aplicação do factor 20.
Este rendimento colectável era a renda fundiária, correspondendo esta ao saldo
de uma conta anual de cultura em que o crédito é representado pelo rendimento
bruto e o débito era constituído pelos encargos mencionados no nº 1, do artº
59.º, do C.C.P.I.I.A., diminuído aquele saldo do lucro da exploração (artº 36.º,
do C.C.P.I.I.A.).
b) Terrenos para construção
Nos termos do n.º 2, do art.º 8.º, do D.L. n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, o
valor tributável destes terrenos era determinado por aplicação das regras
contidas no Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, o qual no
seu artº 94.º, § 4º, determinava que a avaliação de terrenos considerados para
construção basear-se-ia no valor venal de cada metro quadrado.
c) Prédios urbanos
Nos termos do art.º 6.º, n.º 1, do D.L. n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, o valor
tributável dos prédios urbanos, era o que resultava da capitalização do
rendimento colectável actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988,
através da aplicação do factor 15.
Este rendimento colectável, quando os prédios se encontravam arrendados, era
igual às rendas efectivamente recebidas em cada ano, liquidas de uma percentagem
para despesas de conservação e dos encargos referidos no art.º 115.º, do
C.C.P.I.I.A., quando suportados pelo senhorio (art.º 113.º, do C.C.P.I.I.A.).
Quando os prédios não se encontravam arrendados, o rendimento colectável
obtinha-se deduzindo do valor locativo a percentagem e encargos mencionados no
art.º 113.º, do C.C.P.I.I.A., correspondendo o valor locativo à justa renda pelo
período de 1 ano em regime de liberdade contratual (art.º 125.º, do
C.C.P.I.I.A.).
Da análise destes parâmetros resulta que, anacronicamente, a contribuição
autárquica apesar de se assumir como um imposto sobre o património, teve como
critério preponderante de cálculo do valor tributável dos imóveis a
capitalização do seu rendimento líquido real ou presumido (com a excepção dos
terrenos para construção), uma vez que as referidas normas “transitórias” se
limitaram a consagrar uma actualização da capitalização dos rendimentos
colectáveis constantes das matrizes, fixados segundo as regras do Código da
Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (C.C.P.I.I.A.).
Como escreveu RUI DUARTE MORAIS, “sem o novo Código de Avaliações a contribuição
autárquica pouco mais é, na prática, que a velha contribuição predial com outro
nome” (in “Notas sobre a contribuição autárquica”, em “Fisco”, 1989, vol. I, t.
n.º 7, pág. 16).
Conhecidos os critérios gerais estipulados para o cálculo da base de incidência
da contribuição autárquica, importa agora verificar se o art.º 23.º, nº 4, do
Cód. das Expr., obriga a uma liquidação adicional deste imposto, mantendo a
uniformidade de critério de cálculo do valor tributável.
Sendo o controlo de constitucionalidade efectuado por este Tribunal, nos termos
da a), do nº 1, do art.º 70.º, da LTC, um controlo concreto ou incidental,
relativamente ao processo onde ele foi suscitado, tem sido afirmado que o
recurso de constitucionalidade tem uma função meramente instrumental aferida
pela susceptibilidade de repercussão útil no processo concreto de que emerge,
não servindo, assim, para dirimir questões meramente teóricas ou académicas.
Assim, estando em causa neste processo a fixação duma indemnização pela
expropriação duma parcela de terreno integrando um prédio rústico, classificado
para esse efeito como “solo para outros fins”, apenas importa verificar o
critério estabelecido no Código das Expropriações para a avaliação deste tipo de
terrenos, uma vez que é esse o critério que determina o valor da matéria
colectável da contribuição autárquica liquidada adicionalmente.
O art.º 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp. de 1999, ao determinar que “ao montante
indemnizatório, determinado de acordo com os critérios previsto no Código das
Expropriações deverá ser deduzido o valor correspondente à diferença entre as
quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o
expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de
expropriação nos últimos cinco anos”, impõe como valor tributável para
liquidação da contribuição autárquica relativa aos últimos 5 anos anteriores à
expropriação, o resultado da avaliação efectuada para efeitos de atribuição da
indemnização pela expropriação.
Ora, nos termos das disposições do Código das Expropriações, a fixação desse
valor, relativamente aos prédios rústicos que não sejam aptos para a construção
é efectuada segundo as seguintes regras:
“Artigo 23.º (Justa indemnização)
1 – A justa indemnização não visa compensar o benefício alcançado pela entidade
expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da
expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu
destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da
publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as
circunstâncias e condições de facto existentes naquela data.
…
5 – Sem prejuízo do disposto nos ns. 2 e 3 do presente artigo, o valor dos bens
calculado de acordo com os critérios referenciais constantes dos artigos 26º e
seguintes deve corresponder ao valor real e corrente dos mesmos, numa situação
normal de mercado, podendo a entidade expropriante e o expropriado, quando tal
senão verifique requerer, ou o tribunal decidir oficiosamente, que na avaliação
sejam atendidos outros critérios para alcançar aquele valor.
…
Artigo 27º - (Cálculo do valor do solo para outros fins)
1 – O valor do solo apto para outros fins será o resultante da média aritmética
actualizada entre os preços unitários de aquisições ou avaliações fiscais que
corrijam os valores declarados efectuadas na mesma freguesia e nas freguesias
limítrofes nos três anos, de entre os últimos cinco, com média anual mais
elevada, relativamente a prédios com idênticas características, atendendo aos
parâmetros fixados em instrumento de planeamento territorial e à sua aptidão
específica.
2 – Para os efeitos previstos no número anterior, os serviços competentes do
Ministério das Finanças deverão fornecer, a solicitação da entidade
expropriante, a lista das transacções e das avaliações fiscais que corrijam os
valores declarados efectuadas na zona e os respectivos valores.
3 – Caso não se revele possível aplicar o critério estabelecido no nº 1, por
falta de elementos, o valor do solo para outros fins será calculado tendo em
atenção os seus rendimentos efectivo ou possível no estado existente à data da
declaração de utilidade pública, a natureza do solo e do subsolo, a configuração
do terreno e as condições de acesso, as culturas predominantes e o clima da
região, os frutos pendentes e outras circunstâncias objectivas susceptíveis de
influir no respectivo cálculo.
Conforme resulta do transcrito artº 23.º, n.º 1, do Cód. das Exp., o critério
geral de valorização dos bens expropriados, como medida do ressarcimento do
prejuízo sofrido pelo expropriado, no seguimento de longa tradição legislativa,
é o do seu valor corrente, ou seja o seu valor venal ou de mercado, numa
situação de normalidade económica.
Como escreveu ALVES CORREIA “… a indemnização calculada de acordo com o valor de
mercado, isto é, com base na quantia que teria sido paga pelo bem expropriado se
este tivesse sido objecto de um livre contrato de compra e venda, é aquela que
está em melhores condições de compensar integralmente o sacrifício patrimonial
do expropriado e de garantir que este, em comparação com outros cidadãos não
expropriados, não seja tratado de modo desigual e injusto” (em “O plano
urbanístico e o princípio da igualdade”, pág. 546, da ed. de 1989, da Almedina).
Apesar deste valor de mercado não poder atender a situações especulativas e
poder sofrer algumas correcções impostas por razões de justiça que visam evitar
enriquecimentos injustificados (vide as alíneas do n.º 2, e o n.º 3, do artº
23.º, do Cód. das Exp.), donde resultará um “valor de mercado normativo”, é ele
que constitui o critério referencial determinante da avaliação dos bens
expropriados para o efeito de fixação da respectiva indemnização a receber pelo
expropriado.
Procurando evitar alguma subjectividade na determinação deste valor, o
legislador fixou critérios valorativos instrumentais, relativamente a vários
tipos de bens expropriados.
Quanto aos “solos aptos para outros fins”, o que abrange as parcelas de prédios
rústicos que não se destinem à construção, adoptou-se como critério instrumental
preferencial o cálculo aritmético do valor médio actualizado entre os preços
unitários das aquisições ou avaliações fiscais que corrijam os valores
declarados, efectuados na mesma freguesia, ou nas freguesias limítrofes nos 3
anos, de entre os últimos 5, com média anual mais elevada, relativamente a
prédios com idênticas características, atendendo aos parâmetros fixados em
instrumento de planeamento territorial e à sua aptidão específica (art.º 27.º,
n.º 1, do Cód. das Exp.).
As avaliações fiscais aqui referidas eram as correctivas dos valores declarados
nas transmissões de bens, as quais obedeciam às regras do Código da Sisa e do
Imposto sobre as Sucessões e Doações, em nada se identificando com as avaliações
para correcção do valor tributável pela contribuição autárquica, constante das
matrizes prediais (artº 14.º, nº 3, b), do C.C.A.), as quais tinham como
critério o disposto no C.C.P.I.I.A., no que respeita aos prédios rústicos não
destinados à construção (art.º 7.º, do D.L. n.º 442 – C/88, de 30 de Novembro).
No caso de não poder ser aplicado este critério por falta de elementos, o que
parece ter ocorrido por sistema, como já previa PEDRO ELIAS DA COSTA (em “Guia
das expropriações por utilidade pública”, pág. 310, da ed. de 2003, da
Almedina), o valor de mercado será encontrado, por aplicação de um segundo
critério instrumental subsidiário complexo que ponderará, em conjunto, os
seguintes elementos do terreno expropriado: os seus rendimentos efectivo ou
possível no estado existente à data da declaração de utilidade pública, a
natureza do solo e do subsolo, a configuração do terreno e as condições de
acesso, as culturas predominantes e o clima da região, os frutos pendentes e
outras circunstâncias objectivas susceptíveis de influir no respectivo cálculo
(art.º 27.º, n.º 3, do Cód. das Exp.).
Neste critério subsidiário, mas de frequente aplicação, perante a
inaplicabilidade prática do critério preferencial, a consideração do rendimento
efectivo ou possível do terreno expropriado, além de não corresponder à renda
fundiária do C.C.P.I.I.A., é apenas um dos elementos a ponderar, na panóplia de
factores que devem ser considerados para se encontrar o valor de mercado do
terreno expropriado.
Além destes critérios instrumentais não se identificarem com o critério geral
estabelecido para o cálculo da base de incidência da contribuição autárquica, é
necessário ter presente a sua mera instrumentalidade face ao critério principal
que é o do valor de mercado do bem expropriado, o qual não só é ponto de partida
para uma delimitação mais precisa da justa indemnização, mas também ponto de
chegada, face ao disposto no n.º 5, do art.º 23.º, do Cód. das Exp.. Conforme
dispõe este normativo “…o valor dos bens calculado de acordo com os critérios
referenciais constantes dos artigos 26º e seguintes deve corresponder ao valor
real e corrente dos mesmos, numa situação normal de mercado, podendo a entidade
expropriante e o expropriado, quando tal senão verifique requerer, ou o tribunal
decidir oficiosamente, que na avaliação sejam atendidos outros critérios para
alcançar aquele valor”.
Desde que o funcionamento dos critérios instrumentais não conduza a um resultado
conforme ao critério principal, há que proceder às correcções necessárias a que
este critério se mostre observado, pelo que é ele que, em última instância,
determina o valor normativo do bem expropriado.
Comparando o regime geral de valoração da base de incidência da contribuição
autárquica, com o regime de valoração do Código das Expropriações, relativamente
aos terrenos de prédios rústicos que não sejam aptos para a construção,
verifica-se que enquanto o primeiro adopta como critério o da renda fundiária, o
segundo tem como critério o valor de mercado.
São critérios perfeitamente distintos, cuja aplicação conduz a resultados
diferentes, sendo os valores obtidos com a aplicação do último critério bem
superiores aos resultantes da aplicação do primeiro (no estudo realizado em
Dezembro de 1996, pelo GAPTEC da Universidade Técnica de Lisboa, em conjunto com
a Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais – Ministério das Finanças,
coordenado por SIDÓNIO PARDAL, e que se encontra publicado em “Ciência e Técnica
Fiscal”, nº 384, pág. 81 e seg., o valor médio patrimonial dos prédios rústicos
para efeitos de liquidação da contribuição autárquica nos anos de 1993, 1994 e
1995 era de 14.000$00, seguramente muito inferior ao valor médio das
indemnizações por expropriação desse tipo de terrenos).
Assim, do funcionamento do disposto no art.º 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., o
cálculo do valor tributável para efeitos de contribuição autárquica, relativo
aos últimos 5 anos anteriores à expropriação, é diferente para os prédios
expropriados e os não-expropriados, não existindo qualquer razão justificativa
para tal diferenciação.
Se esta circunstância, pela necessidade da realização duma operação de avaliação
do prédio expropriado, pode indiciar a desactualização do valor tributável
aplicado, tornando evidente a necessidade da sua correcção, já não justifica que
se fixe um novo valor tributável para liquidação adicional da contribuição
autárquica, com utilização de critério diferente do legalmente estabelecido,
apenas para aproveitar a avaliação entretanto efectuado no processo
expropriativo.
Verificando-se uma dualidade de critérios na fixação do valor tributável, sem
qualquer justificação, estamos perante uma violação do princípio da igualdade
fiscal, o que também torna inconstitucional esta norma.”
Em suma, face à superveniência desta nova orientação
jurisprudencial, assumida pelo Plenário do Tribunal Constitucional, mais não
resta que reiterar a mesma, concluindo pela inconstitucionalidade da norma
extraída do n.º 4 do artigo 23º do Código das Expropriações.
III – DECISÃO
Nestes termos, em aplicação da doutrina constante do Acórdão do Plenário n.º
11/2008, de 14 de Janeiro de 2008, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos princípios
constitucionais da justa indemnização, consagrado no artigo 62.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa, e da igualdade dos cidadãos perante os
encargos públicos, incluindo o da igualdade tributária, enquanto expressão
específica do princípio geral da igualdade constante do artigo 13.º, da
Constituição da República Portuguesa, o artigo 23.º, n.º 4, do Código das
Expropriações de 1999;
b) Não conceder provimento ao recurso.
Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão