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Processo n.º 641/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra A. e B. pela
prática de factos que integram crime de detenção ilícita de material de guerra,
previsto e punido, no que se refere ao primeiro arguido, pelos artigos 82° e
83°, n° 1, alínea b), do Código de Justiça Militar, com referência ao artigo 7°
do mesmo Código e 202° do Código Penal, e, no que respeita ao segundo arguido,
pelos artigos 82° e 83°, n° 2, alínea a), do Código de Justiça Militar, com
referência ao artigo 7° do mesmo Código e 202°, alínea b), do Código Penal.
A acusação refere-se à prática de factos que se encontram descritos do seguinte
modo:
No dia 6 de Dezembro de 2005 foi encontrado na posse do arguido, A., no Campo de
Santa Clara, em Lisboa, e no interior da sua residência, sita Rua …, n° .., em
Almeirim, o seguinte:
No Campo de Santa Clara:
- 2 (dois) Sabres Baioneta para Espingarda automática “G-3”, no valor de 37,78
euros;
- 7(sete) Sabres de vários modelos para “MAUSER”, no valor de 6 4,55 euros;
- 3 (três) Bússolas militares, sendo 1 MARK 1 e 2 SILVA - Ranger, no valor de 6
679,80 euros;
- 1 (um) Binóculos militares “Oficine Gauleo”, sem valor determinado;
Na sua residência:
- 2 (dois) Sabres Baioneta para Espingarda automática “G-3”, no valor de 37,78
euros;
- 11 (onze) Sabres de vários modelos para “MAUSEK” , no valor de 7,15 euros;
tudo valor global de 767,06 euros.
No dia 7 de Dezembro de 2005, na Calçada … nº …, em Lisboa, foi encontrado na
posse do arguido, B., o seguinte:
- 11 (onze) fustes (Guarda-mão) para Espingarda automática “G -3”, no valor de
0,11;
-11 (onze) punhos de Espingarda automática “G-3” no valor de 0,11 euros;
- 1 (uma) coronha madeira para Espingarda automática “G-3”, sem valor
determinado
- 7 (sete) Sabres Baioneta para arma “BRAUNBESS”, sem valor determinado;
- 7 (sete) Sabres Baioneta para “FBP”, no valor de 35 euros,
- 1 (um) Sabre Baioneta para “AK 47” e 2 (dois) de arma desconhecida, no valor
de 15 euros;
- 40 (quarenta) Sabres Baioneta para Espingarda automática “G-3”, no valor de
755,60 euros;
- 31 (trinta e um) carregadores para Espingarda automática “G-3 “, no valor de
77,19 euros;
- 23 (vinte e três) carregadores para Espingarda automática “G-3”, no valor de
57,27 euros;
- 5 (cinco) carregadores para Metralhadora “UZI”, sem valor determinado;
- 2 (dois) carregadores para “Walther” , no valor de 54,26 euros;
- 1 (um) carregador para “EBP”, sem valor determinado;
- 7 (sete) fitas de munições, no valor de 17.457,93 euros;
- 3 (três) carregadores curvos para arma desconhecida, sem valor determinado;
- 1 (uma) Caixa com 480 parafusos tipo 1, 222 parafusos tipo 2, 238 parafusos
tipo 3, 29 cavilhas tipo 4, 11 fitas com 50 elos cada e 205 elos, relativos à
Espingarda Automática “G-3”, no valor global de 613,91 euros;
- 1 (um) Tapa-chamas para pistola automática ‘BREDA”, sem valor terminado;
- 4 (quarenta e três) Tapa-chamas para Espingarda automática “G-3”, no valor de
9,89 euros;
- 4 (quatro) aparelhos de pontaria para Morteiro, sem valor determinado;
- 5 (cinco) aparelhos de pontaria, sem valor determinado;
- 2 (duas) ; granadas sem valor determinado;
- 22 (vinte e duas) munições 12 mm, sem valor determinado;
- 21 (vinte e uma) munições 20 mm, sem valor determinado;
- 1 (um) conjunto para “G-3” constituído por culatra, cabeça da culatra,
percutor e respectiva mola do Artº 7, sem valor determinado;
- 1 (uma) culatra para FMP 6.74 mm, no valor de 1 euro;
- 1 (um) percutor 11.73, no valor de 17,95 euros;
- 1 (uma) caixa com quantidade indiscriminada de elos para Metralhadora
“BROWNING”, sem valor determinado;
- 1 (um) colete anti-bala e 1 placa de trauma, no valor de 1000 euros;
- 76 (setenta e seis) bússolas militares, no valor de 15.960 euros;
tudo no valor global de 36.085,28 euros.
Os arguidos agiram com vontade livre e consciente, bem sabendo que não podiam
ter consigo os referidos objectos, por serem material de guerra, não terem
autorização legal para tanto, estando cientes de que a sua detenção constituiu,
em abstracto, um risco para a integridade física e para a vida de terceiros.
Sabiam que a sua conduta era proibida e criminalmente punida”
Remetidos os autos à 1ª Vara Criminal de Lisboa, o juiz, com invocação do
disposto no artigo 311°, n.º 2, alínea a), e n.º 3, do Código de Processo
Penal, decidiu não aceitar a acusação nos seguintes termos:
A) Não receber a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos A.
e B. porquanto a mesma se revela manifestamente infundada, na medida em que faz
uma interpretação do artigo 82° do CJM desajustada com o disposto no artigo 18º,
n° 2, da Constituição Portuguesa, incriminando a posse de material de guerra
cuja perigosidade não afecta minimamente o bem jurídico tutelado pelo ilícito em
causa;
B) E também porque se funda no artigo 82° do CJM, preceito legal que deverá
ter-se como inconstitucional, com todas as consequências legais, por violador do
disposto no artigo 18°, n.º 2, da Constituição Portuguesa na medida em que as
penas previstas para as condutas tipificadas nessa norma, mostram-se
desajustadas, e desproporcionadas à culpa do agente do crime, atento o bem
jurídico tutelado pelo ilícito em causa.
Tendo-se operado, por essa forma, a desaplicação da referida norma do artigo 82°
do CJM, o Ministério Público veio interpôr recurso obrigatório para o Tribunal
Constitucional, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
1. O crime do artigo 82º do Código de Justiça Militar apenas admite a forma
dolosa e visa a tutela de bens jurídicos que têm a ver com a capacidade militar
e a defesa nacional, mas também com o património das Forças Armadas e
equiparadas, conforme resulta da sua inserção na secção IV, do capitulo V, do
titulo II do referido Código.
2. Qualquer acção voluntária que, reunindo os demais elementos constitutivos
tenha por objecto qualquer do material referido no artigo 7º do Código de
Justiça Militar, está apta a preencher o tipo legal definido no artigo 82º do
mesmo Código e a violar os bens jurídicos tutelados pela incriminação.
3. O legislador ordinário goza de suficiente liberdade para criminalizar certos
e determinados comportamentos e com a severidade que entender por conveniente,
apenas merecendo censura do ponto de vista constitucional se o fizer de forma
manifestamente excessiva e arbitrária.
4. Não assume tal forma, não violando por isso a norma do artigo 18º, nº 2, da
Constituição, ou qualquer outra, a norma do artigo 82º do Código de Justiça
Militar, tal como foi desaplicada na decisão recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
2. Em causa está, no presente processo, a eventual inconstitucionalidade da
norma do artigo 82º do Código de Justiça Militar, por violação do artigo 18º, nº
2, da Constituição da República, numa dupla vertente: quando interpretada no
sentido de que permite incriminar o agente por detenção de material de guerra
quando a perigosidade desse material não afecta minimamente o bem jurídico
tutelado; e no que se refere à fixação da respectiva moldura penal, no ponto em
que estabelece penas desajustadas e desproporcionadas à culpa do agente do
crime, atento ainda o bem jurídico tutelado.
O referido preceito, sob a epígrafe «Comércio ilícito de material de guerra»,
dispõe o seguinte:
Aquele que importar, fabricar, guardar, comprar, vender ou puser à venda, ceder
ou adquirir a qualquer título, transportar, distribuir, detiver, usar ou trouxer
consigo material de guerra, conhecendo essa qualidade e sem que para tal esteja
autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da
autoridade competente, é punido com as penas previstas no artigo seguinte.
Por sua vez, as penas aplicáveis são, por efeito da remissão constante da parte
final da norma, as que se encontram previstas no subsequente artigo 83º para o
crime de furto de material de guerra e que estão fixadas em penas de prisão de
1 a 4 anos quando a coisa furtada for de valor diminuto, de 2 a 8 anos quando
a coisa furtada for de valor elevado, e de 4 a 10 anos quando a coisa furtada
for de valor consideravelmente elevado ou tiver sido subtraída penetrando o
agente em edifício ou em outro local fechado, por meio de arrombamento,
escalamento ou chaves falsas ou tendo-se ele introduzido furtivamente ou
escondido com a intenção de furtar.
É, por outro lado, o artigo 7º do CJM que, para efeito do que se dispõe nesse
Código, discrimina o que se entende por material de guerra, norma que, pelo
relevo de que se reveste para a matéria em discussão, se justifica também
transcrever:
Para efeito do presente Código, considera-se material de guerra:
a) Armas de fogo portáteis e automáticas, tais como espingardas, carabinas,
revólveres, pistolas, pistolas-metralhadoras e metralhadoras, com excepção das
armas de defesa, caça, precisão e recreio, salvo se pertencentes ou afectas às
Forças Armadas ou outras forças militares;
b) Material de artilharia, designadamente:
i) Canhões, obuses, morteiros, peças de artilharia, armas anticarro,
lança-foguetões, lança-chamas, canhões sem recuo;
ii) Material militar para lançamento de fumo e gases;
c) Munições destinadas às armas referidas nas alíneas anteriores;
d) Bombas, torpedos, granadas, incluindo as fumígeras e as submarinas, potes de
fumo, foguetes, minas, engenhos guiados e bombas incendiárias;
e) Aparelhos e dispositivos para uso militar especialmente concebidos para a
manutenção, activação, despoletagem, detonação ou detecção dos artigos
constantes da alínea anterior;
f) Material de direcção de tiro para uso militar, designadamente:
i) Calculadores de tiro e aparelhos de pontaria em infravermelhos e outro
material para pontaria nocturna;
ii) Telémetros, indicadores de posição e altímetros;
iii) Dispositivos de observação electrónicos e giroscópios, ópticos e
acústicos;
iv) Visores de pontaria, alças para canhão e periscópios para o material citado
no presente artigo;
g) Veículos especialmente concebidos para uso militar e em especial:
i) Carros de combate;
ii) Veículos de tipo militar, couraçados ou blindados, incluindo os anfíbios;
iii) Trens blindados;
iv) Veículos militares com meia lagarta;
v) Veículos militares para reparação dos carros de combate;
vi) Reboques especialmente concebidos para o transporte das munições referidas
nas alíneas c) e d);
h) Agentes tóxicos ou radioactivos, designadamente:
i) Agentes tóxicos biológicos ou químicos e radioactivos adaptados para
produzir, em caso de guerra, efeitos destrutivos nas pessoas, nos animais ou nas
colheitas;
ii) Material militar para a propagação, detecção e identificação das substâncias
mencionadas na subalínea anterior;
iii) Material de protecção contra as substâncias mencionadas na subalínea i);
i) Pólvoras, explosivos e agentes de propulsão líquidos ou sólidos,
nomeadamente:
i) Pólvoras e agentes de propulsão líquidos ou sólidos especialmente concebidos
e fabricados para o material mencionado nas alíneas c), d) e na alínea anterior;
ii) Explosivos militares;
iii) Composições incendiárias e congelantes para uso militar;
j) Navios de guerra de qualquer tipo e seus equipamentos especializados, tais
como:
i) Sistemas de armas e sensores;
ii) Equipamentos especialmente concebidos para o lançamento e contramedidas de
minas;
iii) Redes submarinas;
iv) Material de mergulho;
l) Aeronaves militares de qualquer tipo e todos os seus equipamentos e
sistemas de armas;
m) Equipamentos para as funções militares de comando, controlo, comunicações e
informações;
n) Aparelhos de observação e registo de imagens especialmente concebidos para
uso militar;
o) Equipamentos para estudos e levantamentos hidrográficos, oceanográficos e
cartográficos de interesse militar;
p) Partes e peças especializadas do material constante do presente artigo, desde
que tenham carácter militar;
q) Máquinas, equipamento e ferramentas exclusivamente concebidas para o estudo,
fabrico, ensaio e controlo das armas, munições e engenhos para uso
exclusivamente militar constantes do presente artigo;
r) Qualquer outro bem pertencente às Forças Armadas ou outras forças militares
cuja falta cause comprovados prejuízos à operacionalidade dos meios.
No caso vertente, a decisão recorrida ponderou que o tipo legal do artigo 82° do
CJM constitui um crime de natureza estritamente militar que visa tutelar o
perigo inerente à diminuição da capacidade militar e de defesa nacional, pelo
que só as condutas ilícitas que fossem adequadas, segundo um princípio de
proporcionalidade, a causar um dano ao bem jurídico tutelado é que poderiam
integrar a norma incriminadora. E, nesse sentido, uma interpretação que leve a
incluir no tipo de crime o comércio de objectos militares que, em si, não sejam
susceptíveis de afectar directa ou indirectamente os interesses que são
protegidos pela norma, mostrar-se-ia inconstitucional, por violação do disposto
no artigo 18°, n° 2, da Constituição.
Numa segunda linha de argumentação, o juiz igualmente sustenta que a moldura
penal prevista para o mencionado crime, encontrando-se definida em função do
valor de mercado dos objectos, por efeito da remissão feita para as situações
aplicáveis ao furto de material de guerra, é também desconforme com o princípio
que decorre do artigo 18°, n° 2, da Constituição, na medida em que a pena não é
referenciada ao bem jurídico tutelado mas a uma realidade diversa, e não é, por
isso, ajustada à culpa do agente do crime.
É nesta dupla ordem de considerações que repousa a recusa de aplicação de norma
com a consequente rejeição da acusação.
3. Deve começar por afirmar-se que não cabe ao Tribunal Constitucional verificar
a correcção da qualificação jurídica que conduziu à subsunção dos factos
indiciários que são imputados aos arguidos no tipo legal do artigo 82° do CJM,
pelo que a única questão que cabe dilucidar, no âmbito do presente recurso, é
apenas a de se saber se a norma em causa, na interpretação dada pelo tribunal
recorrido, padece do invocado vício de inconstitucionalidade.
O mencionado artigo 18º, n.º 2, da Lei Fundamental determina que a « [A] lei só
pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente
previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
À luz deste enunciado, entende-se serem pressupostos materiais de legitimidade
das restrições ao exercício de direitos, liberdades e garantias, a exigência de
previsão constitucional expressa da respectiva restrição, a vinculação da
restrição à necessidade de salvaguardar um outro direito, liberdade e garantia,
e, bem assim, a subordinação das leis restritivas a um princípio da
proporcionalidade, o que desde logo significa, num sentido estrito, que os meios
legais restritivos devem situar-se numa justa medida e não poderão ser
desproporcionados ou excessivos em relação aos fins que se pretende obter (Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I,
Coimbra, 4ª edição, págs. 391-393).
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem reiteradamente reconhecido que a
Constituição acolhe, nesse artigo 18º, n.º 2, os princípios da necessidade e da
proporcionalidade das penas e das medidas de segurança, aceitando o princípio –
que constitui um afloramento do Estado de Direito democrático – de que as
sanções penais, por serem as que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos
direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que
não se demonstre a sua necessidade (cfr. o acórdão n° 494/03 e a abundante
jurisprudência nele citada)
A esse propósito, o Tribunal tem sublinhado que « [...] O direito penal,
enquanto direito de protecção, cumpre uma função de ultima ratio. Só se
justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurídicos – e se não for
possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas
menos violentas do que as sanções criminais. É, assim, um direito enformado pelo
princípio da fragmentariedade, pois que há-de limitar-se à defesa das
perturbações graves da ordem social e à protecção das condições sociais
indispensáveis ao viver comunitário. E enformado, bem assim, pelo princípio da
subsidiariedade, já que, dentro da panóplia de medidas legislativas para
protecção e defesa dos bens jurídicos, as sanções penais hão-de constituir
sempre o último recurso» (acórdão n° 108/99). Poderá assim concluir-se como se
ponderou também no acórdão 99/02, que “ [...] as medidas penais só são
constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e
proporcionadas à protecção de determinado direito ou interesse
constitucionalmente protegido, e só serão constitucionalmente exigíveis quando
se trate de proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e
essa protecção não possa ser suficiente e adequadamente garantida de outro
modo”.
Não pode perder-se de vista, em todo o caso, como também tem sido frequentemente
afirmado, que o juízo de constitucionalidade se não pode confundir com um juízo
sobre o mérito da lei, pelo que não cabe ao Tribunal Constitucional
substituir-se ao legislador na determinação das opções políticas sobre a
necessidade ou a conveniência na criminalização de certos comportamentos”
(assim, designadamente, o Acórdão n.º 99/02).
Como observa Sousa e Brito (A lei penal na Constituição, Estudos sobre a
Constituição, 2º volume, pág. 218), é “evidente que o juízo sobre a necessidade
do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se
há-de reconhecer, também neste matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A
limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois,
ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva”.
Em suma, aceitando-se que, «também em matéria de criminalização, o legislador
não beneficia de uma margem de liberdade irrestrita e absoluta, devendo
manter-se dentro das balizas que lhe são traçadas pela Constituição», o certo
que, «no controlo do respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de
conformação, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o
Tribunal Constitucional só deve proceder à censura das opções legislativas
manifestamente arbitrárias ou excessivas» (assim, o citado acórdão nº 99/02, na
linha de uma firme orientação jurisprudencial).
4. Revertendo ao caso concreto, importa notar que a decisão recorrida questiona,
em primeiro lugar, a qualificação como material de guerra, para efeito da norma
incriminadora do artigo 82º do CJM, de objectos militares que, em si, não
apresentam qualquer perigosidade para os interesses da capacidade militar e da
defesa nacional, e, assim, não são passíveis de porem em causa o bem jurídico
tutelado pelo tipo legal de crime.
E seria esse o caso dos autos, visto que a acusação se refere à posse, pelos
arguidos, de material que aparentemente seria inócuo do ponto de vista do seu
potencial risco para o exercício da função militar.
Sabe-se que o punctum saliens dos crimes estritamente militares se encontra na
natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens
jurídicos militares. Essa ilação, que o Tribunal Constitucional já retirara em
relação aos crimes essencialmente militares (acórdão nº 271/97, publicado no
Diário da República, I Série-A, de 15 de Maio de 1997), surge agora mais
reforçada com o recurso à figura do crime de natureza estritamente militar, com
assento no texto constitucional (artigo 213º da CRP), e que apresenta um cunho
mais restritivo relativamente àquele anterior conceito. Crimes essencialmente
militares eram aqueles que afectavam bens ou interesses que fossem, no
essencial, militares, permitindo abranger os factos que violavam algum dever
militar ou ofendiam a segurança e disciplina das Forças Armadas, ainda que não
se tratasse de dever exclusivamente militar ou de uma ofensa directa desses
valores; o crime estritamente militar implica que os bens ou interesses
protegidos pelo tipo legal sejam exclusivamente ou integralmente militares
(Vitalino Canas/Ana Luisa Pinto/Alexandra Leitão, Código de Justiça Militar
Anotado, Coimbra, 2004, págs. 16-17).
O direito penal militar – como sublinha Figueiredo Dias – deverá ser assim
entendido como um direito de tutela de bens jurídicos militares, isto é, daquele
conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar
específica. E nessa medida, como acrescenta o mesmo autor, o «direito penal
militar não poderá constituir um outro direito penal, mas deverá limitar-se a
ser um direito penal comum, só especializado pelos específicos bens jurídicos
que lhe cumpre proteger e pela específica àrea de tutela em que os princípios da
dignidade e da necessidade penais têm de actuar» (Justiça Militar, in «Colóquio
Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional», edição da Assembleia da
República, 1995, pág. 26).
O artigo 1º, n.º 2, do CJM limita-se a fornecer um conceito meramente formal de
crime estritamente militar, definindo-o como «o facto típico, ilícito e culposo
lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a
Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado por lei».
De entre os crimes qualificados como estritamente militares encontram-se, no
Capítulo V da Parte Especial, os «crimes contra a capacidade militar e a defesa
nacional», em que se inserem, na secção IV, o «extravio, furto e roubo de
material de guerra». Aqui se inclui, na norma do artigo 82º, já anteriormente
transcrita, o «comércio ilícito de material de guerra», que abarca a importação,
fabrico, guarda, compra, venda, cedência ou aquisição, a qualquer título, de
material de guerra, bem como o transporte, distribuição ou posse desse material.
O já mencionado artigo 7º do CJM explicita o que se entende por material de
guerra, para efeitos do disposto nesse Código, e, portanto, também, para efeito
da incriminação prevista no artigo 82º, incluindo nesse elenco para além de uma
grande diversidade de equipamentos, aparelhos e dispositivos para uso militar
(aí se compreendendo armas de fogo, material de artilharia, munições, aeronaves,
navios e veículos especialmente concebidos para uso militar), as partes e peças
especializadas de todo o material discriminado nesse preceito «desde que tenham
carácter militar» (alínea p)) e, bem assim, «qualquer outro bem pertencente às
Forças Armadas ou outras forças militares cuja falta cause comprovados prejuízos
à operacionalidade dos meios» (alínea r)).
Embora a acusação do Ministério Público se tenha limitado a efectuar uma
remissão genérica para o disposto no artigo 7º do CJM, para efeito de integração
dos factos na norma incriminadora do artigo 82º, sem especificar a definição
legal em que se poderá enquadrar cada um dos objectos que foram encontrados na
posse dos arguidos, poderá subentender-se a consideração de que se tratava, na
generalidade dos casos, de componentes de armas de fogo, que, como tal, seriam
subsumíveis na cláusula geral da alínea p) do artigo 7º.
Não se vê, em todo o caso, que a posse ou detenção, por particulares, fora das
condições legais e sem prévia autorização da entidade competente, de partes e
peças especializadas de material de guerra, se encontre desprovida de relevo
jurídico penal, do ponto de vista do bem jurídico que é tutelado pela norma do
artigo 82º do CJM.
Basta notar que o bem jurídico protegido, no crime de comércio ilícito de
material de guerra, não se reduz apenas a um potencial perigo que possa resultar
para a integridade do território ou a segurança das populações da detenção
incontrolada de material de guerra por parte de pessoas que não integrem o corpo
hierarquizado das Forças Armadas; mas reporta-se também à diminuição da
capacidade militar, com a consequente perda de operacionalidade, que deriva da
apropriação por terceiros de material que deve estar exclusivamente afecto aos
fins de defesa nacional. Assim se compreende que o crime de comércio ilícito de
material de guerra se encontre sistematizado na rubrica dos «crimes contra a
capacidade militar e a defesa nacional» e, especialmente, nos crimes de
«extravio, furto e roubo de material de guerra», a par de outros tipos legais em
que se pune o desvio ou a apropriação indevida de material pertencente às Forças
Armadas.
É nessa linha de entendimento que poderá explicar-se que a lei considere como
material de guerra, para efeitos do disposto no Código, quaisquer bens
pertencentes às Forças Armadas ou outras forças militares «cuja falta cause
comprovados prejuízos à operacionalidade dos meios» (artigo 7º, alínea r)), o
que vem demonstrar que a prática do crime de comércio ilícito de material de
guerra não está necessariamente dependente da qualidade específica ou potencial
perigosidade dos objectos.
Neste enquadramento sistemático, poderá ainda dizer-se que a punição do comércio
ilícito de material de guerra surge como também uma forma indirecta de prevenir
as actuações negligentes que conduzam ao desencaminhamento de material de guerra
das instalações militares, bem como as situações de subtracção fraudulenta ou
roubo de material de guerra.
Seja como for, mesmo a admitir-se que estamos apenas perante um crime de perigo
abstracto – tal como preconiza a decisão recorrida –, em que o está em causa é a
mera probabilidade de um dano por efeito da existência de um comportamento
potencialmente perigoso (a detenção de material de guerra), a questão da
eficácia ou idoneidade dos objectos constituiria um elemento do tipo legal de
crime, de tal modo que se essa qualidade não existir, em concreto, não ocorre
também o perigo que constitui o motivo da punição (neste sentido, quanto ao caso
paralelo do artigo 275º do Código Penal, Paula Ribeiro Faria, Comentário
Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra, 1999, pág. 894).
Então estaríamos, não perante um problema de constitucionalidade mas de mera
qualificação jurídica, competindo ao tribunal de julgamento, no uso dos poderes
que conferem o artigo 311º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, não
aceitar a acusação com fundamento na indevida subsunção jurídica dos factos na
norma.
Em qualquer caso, como se deixou já esclarecido, a opção legislativa quanto à
incriminação das condutas tipificadas no citado artigo 82º só poderia
considerar-se constitucionalmente ilegítima quando pudesse apresentar-se como
manifestamente excessiva ou desproporcionada, sendo que fora dessa situação
limite haverá sempre que respeitar a liberdade de conformação do legislador,
pois é a ele que a Constituição confia, nos termos do artigo 165º, n.º 1, alínea
c), a tarefa de «definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos
pressupostos». Não estando, de nenhum modo, demonstrada a manifesta
desproporcionalidade da previsão normativa, também por esta razão não poderia
considerar-se como violado o disposto no artigo 18º, n.º 2, da Constituição.
Por todo o exposto, não se vê motivo para declarar a inconstitucionalidade da
norma do artigo 82º do CJM com o invocado fundamento da violação do princípio da
proporcionalidade.
5. Cabe ainda analisar uma segunda linha de argumentação segundo a qual a norma
do mesmo artigo 82° deve ter-se como inconstitucional, por violação do disposto
no artigo 18°, n.º 2, da Constituição da República, na medida em que as penas
previstas para as condutas nela tipificadas se mostram desajustadas e
desproporcionadas à culpa do agente do crime, atento o bem jurídico tutelado
pelo ilícito em causa.
Neste ponto, a decisão recorrida assenta na ideia de que a norma do artigo 82º
do CJM, ao punir um crime de perigo abstracto através da remissão para o artigo
subsequente, que se refere ao crime de furto de material de guerra, está a
utilizar uma moldura penal que se reporta a um crime contra o património – em
que o bem jurídico tutelado é a propriedade – e que não constitui a estatuição
ajustada para um tipo legal que pretende proteger um outro bem jurídico, que
será o da potencial perigosidade para afectar a capacidade militar e a defesa
nacional. Deste modo, a medida da pena legalmente fixada não seria a adequada à
culpa do agente.
Todas as precedentes considerações já expendidas a propósito da primeira questão
de constitucionalidade permitem desde logo afastar semelhante entendimento.
Na verdade, o crime de comércio ilícito de material de guerra insere-se no
Capitulo V da Parte Especial do CJM, atinente aos «crimes contra a capacidade
militar e a defesa nacional», numa secção referente a «extravio, furto e roubo
de material de guerra» (artigos 81º a 84º). Essa inserção sistemática coloca o
crime de comércio ilícito de material de guerra no elenco dos ilícitos penais
que são susceptíveis de pôr em causa a operacionalidade da função militar, assim
se compreendendo que o tipo legal surja interligado a outras normas
incriminadoras que caracterizam tradicionalmente os crimes contra o património.
Por outro lado, não deixa de ser relevante, no plano de uma interpretação
teleológica do preceito, que no âmbito dos «crimes contra a capacidade militar e
a defesa nacional» se posicionem também – ao lado dos crimes contra o património
militar, em que se enquadra o comércio ilícito de material de guerra –, os
crimes de dano em bens militares ou de interesse militar (secção III – artigos
79º e 80º), também estes tidos como ilícitos que visam proteger o património.
Neste contexto legal, tudo indica que o legislador configurou os «crimes contra
a capacidade militar e a defesa nacional», pelo menos numa das suas componentes,
como sendo crimes contra a propriedade militar, aí inserindo quer o dano quer a
apropriação ilícita de bens militares.
Não causa estranheza, neste plano de consideração, que a medida das penas seja
definida em função do prejuízo patrimonial que constitua a consequência ou o
efeito normal da actuação ilícita, referenciando-se a moldura penal ao valor da
coisa furtada.
A opção legislativa de indexar as penas do crime de comércio ilícito de material
de guerra ao previsto para o crime de furto tem neste plano toda a
razoabilidade, já que se trata de punir situações que podem elas próprias
derivar da apropriação indevida de material de guerra e em que, por outro lado,
se tem em vista censurar criminalmente os efeitos negativos que esse tipo de
ilícito pode gerar no funcionamento e operacionalidade da instituição militar.
Por outro lado, tratando-se de um tipo legal que o legislador integra no elenco
dos crimes contra o património militar, compreende-se que dentro da dosimetria
intra-sistemática se estabeleça uma relativa unidade de valoração no que se
refere às diferentes molduras penais.
De todo o modo, como se deixou já exposto, só quando a punição pudesse
considerar-se manifestamente excessiva ou desproporcionada – o que obviamente
não sucede no caso em apreço – é que poderia entender-se como verificada a
violação do princípio da proporcionalidade, tal como é acolhido no citado artigo
18º, n.º 2, da Constituição.
Também não existe, por isso, motivo para declarar a inconstitucionalidade da
norma do artigo 82º do CJM no que se refere fixação da respectiva moldura penal.
III – Decisão
Termos em que acordam em conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da
decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de
constitucionalidade.
Sem custas
Lisboa, 5 de Março de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão