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Processo n.º 671/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. foi condenado por sentença proferida em 16-11-2006, no processo comum, com
tribunal singular, n.º 1536/04.0 PBAVR, pendente no 2.º Juízo do Tribunal
Judicial de Albergaria-a-Velha:
a) pela autoria material de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário,
na pena de 280 dias de multa, à taxa diária de € 10,00;
b) pela autoria material de um crime de injúrias, na pena de 90 dias de multa, à
taxa diária de € 10,00;
c) em cúmulo jurídico das referidas penas, na pena única de 330 dias de multa, à
taxa diária de € 10,00;
d) na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período
de 5 meses;
e) e, ainda, no pagamento à demandante B. da indemnização no montante de €
650,00, acrescida de juros à taxa legal vencidos desde 16 de Junho de 2006 até
integral pagamento.
Foi interposto recurso da referida decisão pelo arguido, pugnando este pela
nulidade da sentença condenatória, com fundamento, para além do mais, na
valoração pelo Tribunal de primeira instância de provas nulas, porque obtidas
mediante ilegítima intromissão na vida privada.
O Tribunal da Relação de Coimbra viria a julgar este recurso totalmente
improcedente, por acórdão de 9-5-2007, mantendo assim a sentença recorrida.
Para tanto, o Tribunal da Relação de Coimbra fundamentou essa decisão da
seguinte forma, na parte que ora releva:
“(...) 3.3. Se é ou não (e corolário, neste caso) admissível a valoração como
meio de prova do documento junto a fls. 198/203 dos autos (conclusões 9ª a 17ª).
A resposta apresentada pelo recorrido Ministério Público, a propósito, mostra-se
pertinente, motivo porque a seguiremos de perto. Assim:
A Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro [Lei da Protecção de Dados Pessoais], define
como “Dados pessoais”, qualquer informação, de qualquer natureza e
independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma
pessoa singular, identificada ou identificável (“titular dos dados”), é
considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou
indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a
um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica,
psíquica, económica, cultural ou social.
O tratamento de tais “dados pessoais” mostra-se, todavia, submetido a diversas
medidas tendentes a acautelar a respectiva segurança e confidencialidade.
Na verdade, em especial, o seu artigo 17.º, n.º 1 disciplina que os responsáveis
do tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas
funções, tenham conhecimento dos dados pessoais tratados, ficam obrigados a
sigilo profissional mesmo após o termo das suas funções.
Vale por dizer no caso concreto, que a responsável pelo tratamento de tais dados
– C., S.A. –, bem como o seu pessoal, se encontravam obrigados ao dever de
sigilo profissional – o qual, é consabido, se traduz na proibição de revelar
factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou que foram confiados no
exercício ou em razão de uma actividade profissional.
Este dever, correspondente ao intuito de evitar a devassa à reserva da vida
privada alheia, não é, porém, absoluto.
Norma nuclear respeitante ao regime constitucionalmente fixado para os direitos,
liberdades e garantias é a constante do artigo 18.º da CRP, e em cujos termos se
mostra admissível a restrição de certos direitos fundamentais, para garantir a
salvaguarda de outros com igual arrimo legal. Princípios norteadores são os de
que tais restrições se limitem ao estritamente necessário para alcançar os
objectivos, apontando-se como critério aferidor o de uma proporcionalidade entre
os meios legais restritivos e os fins obtidos. Isto é, em outras palavras,
respigadas da dita resposta, “a limitação dos direitos deverá mostrar-se
necessária e ser imposta com fundamento em motivo social relevante, num justo
equilíbrio entre o interesse público e a vida privada do cidadão.”
O artigo 35.º, n.º 4 da CRP concretiza esta orientação, exigindo que seja a lei
a estabelecer as condições de acesso a dados pessoais de terceiros.
O fundamento da discórdia do recorrente traduz-se em que não existe como
legalmente tipificado um qualquer regime que permita o acesso aos dados pessoais
constantes dos documentos juntos a fls. 199 a 203, em especial, à listagem das
passagens registadas pelo identificador “via verde”, associado ao automóvel
..-..-...
Quid iuris?
Pelo contrário, adiantamos, o regime penal adjectivo contém normas expressas
relativas à problemática da quebra de sigilo.
Ao que ora releva, o decorrente do artigo 182.º, n.º 1, em cujos termos as
pessoas obrigadas ao dever de sigilo (indicadas nos artigos 135.º e 137.º),
apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou
quaisquer objectos que tiverem em sua posse ou devam ser apreendidos, salvo se
invocarem, por escrito, segredo profissional ou segredo de Estado.
Isto é, não se antolha aqui algo mais do que a possibilidade de a autoridade
judiciária poder ordenar por despacho a requisição de documentos dos quais
constem dados pessoais.
Na situação presente, a listagem de fls. 200, e demais documentação que a
antecede e o recorrente impugna, foi junta aos autos na sequência de um despacho
do Ministério Público (cfr. fls. 153 e 154).
Ou seja, mostrava-se possível ao Tribunal a quo, atento ademais o disposto pelo
artigo 125.º do CPP, valorar, como o fez, os questionados documentos (...)”.
O Arguido interpôs então recurso da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do
artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), em que, após convite para corrigir o requerimento inicial,
suscitou a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 125.º e 126.º,
n.º 3, e, por extensão do artigo 374.º, n.º 2 “in fine”, todos do Código de
Processo Penal (C.P.P.), quando interpretadas no sentido de ser permitida a
admissão e valoração de provas documentais relativas a dados pessoais do arguido
respeitantes à sua vida privada retirados de uma base informatizada, sem o
respectivo consentimento, por violação do disposto nos artigos 17.º, 18.º, n.º 1
a 3, 32.º, n.º 8, e 35.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa
(C.R.P.).
Concluiu, do seguinte modo, as suas alegações:
“1º O presente recurso vem do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de
2007.05.09, que por sua vez confirmou a também douta sentença proferida pelo
Tribunal Judicial da Comarca de Albergaria-a-Velha, de fls. 236 a 248 dos autos,
pela qual o ora Recorrente foi condenado nos termos nela expressos que por
economia se dão por reproduzidos nesta sede;
2º O julgamento da questão-de-facto constante da douta sentença de 1ª Instância,
entretanto confirmada pela Relação “a quo”, fundou-se no conjunto da prova
produzida em audiência, e designadamente nos documentos de fls. 165 (CRC do
arguido), e de fls. 8, 13, 60 e 198-203 dos autos;
3º O documento de fls. 198 a 203, requisitado por despacho do Ministério Público
a C., SA, inclui dados informáticos ou informatizados relativos ao identificador
“via verde” emitido para e em nome da dita firma “D., LDA.”, designadamente
concernentes ao trajecto percorrido por uma das suas viaturas na data dos factos
– 2004.08.08, eventualmente o veículo automóvel ligeiro 64-11-XB, dado como
conduzido pelo aqui Recorrente;
4º A questão arguida por esse Venerando Tribunal Constitucional reconduz-se à
admissibilidade do documento de fls. 198-203 por inconstitucionalidade e logo
também por ilegalidade, que foi essencial à convicção do Digno Tribunal que
julgou a questão-de-facto, e logo para a condenação do arguido;
5º A questão da (in)constitucionalidade foi desde logo levantada em sede da
motivação do recurso oportunamente interposto para a indicada Veneranda Relação,
designadamente concretamente na respectiva 15ª conclusão;
6º A Veneranda Relação “a quo”, admitindo a legalidade e constitucionalidade da
requisição do documento em causa desde que requisitada por autoridade judiciária
(no caso em apreço, o Ministério Público, fls. 153 e 154 dos autos), dando por
adquirido a existência de lei ordinária procedente que o admite, reconduziu a
questão em apreço à extensão do dever de sigilo profissional prevista no art.
17º, nº 1 da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro (Lei de Protecção de Dados
Pessoais), no caso concreto da sociedade comercial “C., SA.” e seus agentes,
assumindo a respectiva quebra como viável à luz do nº 2 do art. 18º da CRP
enquanto “limitação de direitos” imposta por motivo social relevante, visando o
equilíbrio entre o interesse público e a tutela da vida privada do cidadão;
7º O Digno Tribunal “a quo” defendeu ainda que o regime penal adjectivo
contém(inha) normas expressas relativas à quebra do sigilo, desde logo o art.
182º, nº 1, aplicável às pessoas indicadas nos artigos 135º a 137º, todos do
CPP, e concluiu pela admissibilidade da prova documental em causa e respectiva
valoração ao abrigo do artigo 125º do mesmo diploma legal;
8º Mais afirmando, que a bondade dessa orientação é acolhida no nº 4 do art. 35º
da CRP, ao relegar para a lei ordinária as condições de acesso aos dados
pessoais de terceiro;
9º O recorrente, à luz do conteúdo gramatical do preceito constitucional ora
indicado, é terceiro para com o Estado, e logo os tribunais que o integram;
10º À norma em causa é extensível o regime dos direitos liberdades e garantias,
sendo directamente aplicáveis e obrigando entidades públicas e privadas – arts.
17º e 18º, nº 1 da CRP;
11º Os direitos, liberdades e garantias expressamente previstos na CRP só podem
ser restringidos pela lei ordinárias nos casos expressamente naquela admitidos,
e sempre na proporção indispensável a salvaguardar outros direitos, liberdades e
garantias, sem que daí possa advir diminuição da extensão e do alcance do
conteúdo essencial dos preceitos constitucionais – art. 18º, nºs 2 e 3 da CRP;
12º O Digno Tribunal “a quo” ao considerar que as disposições em causa,
designadamente os arts. 135º e 182º, nº 1 do CPP, a par do art. 17º, nº 1 da Lei
de Protecção de Dados Pessoais, são aquelas que equivalem à derrogação
excepcional do princípio constitucional de proibição de acesso a base de dados
pessoais de terceiros, designadamente para os fins do caso em apreço, recorreu a
normas jurídicas cujo escopo visa regular o exercício do sigilo profissional por
parte de membros de corporações sujeitos a especial regulamentação legal,
estatutária e deontológica dos respectivos deveres nesta matéria (caso de
sacerdotes, médicos, advogados, jornalistas, etc.), salvo melhor opinião ausente
ou pelo menos insuficiente no caso em apreço;
13º A ser assim, não se respeita o requisito da excepcionalidade da derrogação
da proibição de acesso a dados pessoais de terceiro contido no nº 4 do art. 35º
da CRP, logo encontrando-se ferida de inconstitucionalidade material a
interpretação e aplicação que a Veneranda Relação fez das evidenciadas normas de
direito ordinário;
14º Excluindo-se as ditas normas da lei ordinária do âmbito ou do escopo do art.
35º, nº 4 “2ª parte” da CRP, também não colhe respeitado o recurso ao princípio
da proporcionalidade contido no artigo 18º, nº 2 “2ª parte” da CRP, dado que,
data venia, este expediente fica vedado no caso em apreço por força do disposto
na sua 1ª parte, em conjugação com o preceituado nos arts. 17º e 18º, nºs 1 e 3
da CRP;
15º E, sem prescindir, mesmo que assim não se entenda e sob pena de violação do
artigo 18º, nº 2 da CRP, será desproporcionado e não conforme com o dito
princípio da proporcionalidade, relegar o critério da devassa da vida privada
dos cidadãos a entidades que não se encontram imbuídas e submetidas a objectivos
e rigorosos critérios deontológicos, com inexistente ou pelo menos insuficiente
tutela disciplinar;
16º Logo, também não é sustentável considerar que o contrário queda admitido por
efeito do art. 125º do CPP, já que aquela não preenche a noção de legalidade de
que depende a sua procedência;
17º E, à míngua como no caso em apreço de consentimento do titular do direito,
não estando a sua admissibilidade ressalvada por lei, não é pertinente qualquer
hermenêutica do art. 126º, nº 3 do CPP que não considere a prova em discussão
neste recurso como nula por abusiva intromissão na vida privada;
18º Aliás, em conformidade com o ordenado pelo nº 8 do artigo 32º da CRP, que de
modo contrário também resulta(ria) violado, pois prevê a nulidade de toda a
prova obtida em processo criminal com intromissão abusiva na vida privada;
19º Os artigos 125º e 126º, nº 3 do CPP não têm como escopo dirimir
especificamente a questão do acesso excepcional a base de dados pessoais tal
como nos é posto no art. 35º, nº 4 da CRP, que por sua vez concretiza
especialmente o estatuído em normas como os 17º, 18º, nºs 1 a 3, 32º, nº 8 da
CRP;
20º E se assim é, o douto acórdão sob crítica também admitiu o insuficiente
exame crítico das provas antes operado pela 1ª Instância, logo consentindo em
interpretação do artigo 374º, nº 2 do CPP em contravenção com os referenciados
artigos 17º, 18º, nºs 1 a 3, 32º, nº 8 e 35º, nº4 da CRP;
21º Termos em que se conclui a inexistência de regime legal tipificado que
permita o acesso a essas bases de dados, pelo menos em harmonia com o
determinado constitucionalmente, mantendo-se pois o imperativo constitucional de
lhes não aceder;
22º E em consequência, com o devido respeito, a Veneranda Relação de Coimbra, na
sequência de posição prévia de igual teor tomada pela Digna 1ª Instância, ao
considerar que os artigos arts. 125º e 126º, nº 3, e por extensão do art. 374º,
nº 2 “in fine”, e, atento o teor da fundamentação do douto acordo sob crítica,
os indicados arts. 135º e 182º, nº 1, todos do CPP e até o artigo 17º, nº 1 da
Lei de Protecção de Dados Pessoais, aprovado pela Lei nº 67/98, de 26 de
Outubro, permitem(iam), em vez de excluir, como seria mister, a admissão e
valoração de provas documentais relativas a dados pessoais do Recorrente,
terceiro para o efeito, retiradas de uma base informatizada sem o consentimento
do próprio, caso do documento de fls. 198 e 203, impediu não só a directa
aplicação do regime próprio dos direitos, liberdades e garantias, mas também
acolheu interpretação que pressupõe intromissão abusiva na vida privada do
Recorrente, e logo a violação por inconstitucionalidade material dos artigos
17º, 18º, nºs 1 a 3, 32º, nº 8 e 35º, nº 4 da CRP.
Termos em que e pelo que doutamente for suprido deve-se dar provimento ao
presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade dos artigos arts. 125º e
126º, nº 3, e por extensão do art. 374º, nº 2 “in fine”, bem como dos indicados
arts. 135º e 182º, nº 1, todos do CPP, e do art. 17º, nº 1 da Lei nº 67/98, de
26 de Outubro, atenta a aplicação e interpretação dos mesmos perfilhada pela
Veneranda Relação “a quo”, por violação material dos preceitos constitucionais
acolhidos designadamente nos artigos 17º, 18º, nºs 1 a 3, 32º, nº 8 e 35º, nº 4
da CRP, revogando-se em consequência o douto acórdão recorrido, e ordenando-se a
baixa dos autos à competente instância a fim desta proceder à prolação de novo
douto aresto em harmonia com o determinado por esse Tribunal Superior de
apreciação da (in)constitucionalidade em sede do também seu douto acórdão a
proferir, com as legais consequências.”
O Ministério Público concluiu do seguinte modo as suas contra-alegações:
“Não é inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 125.º, 126.º, n.º
3 e 374.º, nº 2, todos do Código de Processo Penal, no sentido de poderem ser
valorados como prova documentos referentes a dados pessoais, solicitados pela
autoridade judiciária, ao abrigo do disposto nos artigos 135.º e 182.º, nº 1, do
mesmo diploma legal.
A assistente Elisabete Peralta não apresentou contra-alegações.
*
Fundamentação
1. Do objecto do recurso
O recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a questão
da constitucionalidade das normas contidas nos artigos 125.º e 126.º, n.º 3, e,
por extensão, no artigo 374.º, n.º 2, “in fine”, todos do C.P.P., quando
interpretadas no sentido de ser permitida a admissão e valoração de provas
documentais relativas a dados pessoais do arguido respeitantes à sua vida
privada, retirados de uma base informatizada sem o respectivo consentimento, por
violação do disposto nos artigos 17.º, 18.º, n.º 1 a 3, 32.º, nº 8, e 35.º, n.º
4, da C.R.P..
Nos termos do disposto no artigo 280.º, nº 1, alínea b), da C.R.P., e no artigo
70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das
decisões dos tribunais que 'apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo'.
Sucede que a decisão recorrida não aplicou todas as normas processuais penais
identificadas pelo recorrente, nem as aplicou com a concreta interpretação que
lhe foi assacada em sede de requerimento de interposição do presente recurso.
Para o efeito que aqui releva, e por referência às normas invocadas pelo
recorrente, resulta claramente da decisão recorrida – acima transcrita – que o
tribunal a quo se limitou a aplicar o art. 125.º, do C.P.P., na interpretação
segundo a qual é permitida a admissão e valoração de provas documentais
relativas a listagens de passagens de um veículo automóvel nas portagens das
auto-estradas, que foram registadas pelo sistema de identificador da “VIA
VERDE”, armazenadas numa base de dados informatizada e ulteriormente juntas ao
processo criminal, sem o consentimento do arguido e por determinação do
Ministério Público.
O objecto do recurso deve assim restringir-se à aludida questão da
constitucionalidade da interpretação normativa do art. 125.º, do C.P.P., acima
enunciada.
2. Da questão da constitucionalidade da interpretação normativa do artigo 125.º,
do Código de Processo Penal de 1987
O presente recurso versa a temática delicada das proibições de prova em processo
penal, tendo como pano de fundo a alegada violação da protecção constitucional
dos dados pessoais informatizados e da reserva da intimidade da vida privada.
A norma infraconstitucional em que se apoia a decisão recorrida dispõe que “são
admissíveis as provas que não forem proibidas por lei” (artigo 125.º, do
C.P.P.).
Recuperemos, em síntese, os contornos do caso concreto que suscitaram a
interposição do presente recurso de constitucionalidade.
Em sede de primeira instância, o tribunal deu como provado, para além do mais,
que o arguido – e ora recorrente – conduziu o veículo automóvel de matrícula
64-11-XB, pertencente à empresa “D., Lda.”, nas circunstâncias de modo, tempo e
espaço descritas na acusação, o que conduziu à condenação do recorrente como
autor de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário e de um crime de
injúrias.
O tribunal de comarca motivou expressamente o julgamento positivo da referida
factualidade com a valoração do conteúdo do documento constante de fls. 198 a
203 dos autos, o qual corresponde à listagem de passagens do aludido veículo nas
portagens da auto-estrada que foram oportunamente registadas pelo identificador
“Via Verde” instalado nesse veículo e que foram ulteriormente objecto de
tratamento informático pela empresa “C., S.A.” no âmbito da relação contratual
por si mantida com a sociedade proprietária do veículo automóvel.
Vejamos em pormenor o teor desses dados:
Lista de passagens Via Verde
Período 8/8/2004 a 10/8/2004
B. de entradaData de entradaB. de SaídaData de saídaValor
Estarreja8/8/2004 11:21:02IC 24 PV8/8/2004 11:36:46 2,15 €.
Valença8/8/2004 18:53:31Maia PV8/8/2004 19:29:16 7,00 €.
IC 24 PV8/8/2004 19:41:30Albergaria8/8/2004 19:57:04 2,80 €.
Albergaria8/8/2004 20:00:16Estarreja8/8/2004 20:06:03 0,65 €.
Os dados em questão foram disponibilizados pela empresa “VIA VERDE” para
comunicação ao procedimento criminal em causa, a solicitação do Ministério
Público, sem que tivesse sido excepcionado qualquer obstáculo de ordem jurídica,
nomeadamente a existência de qualquer sigilo profissional que obstasse ao
fornecimento da referida informação.
O tribunal a quo entendeu que qualquer autoridade judiciária, nomeadamente o
Ministério Público, podia ordenar a requisição daqueles meios de prova para
efeito de junção ao processo e ulterior valoração em sede de julgamento da
matéria de facto, desde que o fizesse ao abrigo do disposto no art. 182.º, n.º
1, do C.P.P. e não lhe fosse excepcionado o segredo profissional previsto no
artigo 17.º, n.º 1, da L.P.D.P..
O recorrente pretende que a admissão e a valoração dos referidos meios de prova
naqueles precisos termos assentaram numa interpretação das disposições do
C.P.P. que violam expressamente o disposto na Constituição.
2.1. Da protecção dos dados pessoais
O primeiro parâmetro constitucional à luz do qual há-de avaliar-se a
constitucionalidade da interpretação normativa questionada é o artigo 35.º, da
C.R.P., com a redacção vigente desde a Revisão Constitucional de 1997, cujo teor
é o seguinte na parte que ora releva:
“ 1. Todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes
digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de
conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei.
2. A lei define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis
ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a
sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente.
3. A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a
convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé
religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso
do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou
para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis.
4. É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos
excepcionais previstos na lei (sublinhado acrescentado).
(…)”.
O referido preceito consagra a protecção dos cidadãos perante o tratamento de
dados pessoais informatizados, tendo vindo a ser objecto de profundas
remodelações pelas sucessivas revisões do texto constitucional, com o objectivo
de dar resposta às novas questões que o desenvolvimento tecnológico vai
suscitando.
Na verdade, o crescente recurso, nas mais diferentes áreas, a meios hodiernos,
como a telemetria, que deixam “pegadas electrónicas”, susceptíveis de serem
armazenadas informaticamente, exige a construção de garantias que impeçam que
esta realidade possa colocar em causa direitos fundamentais dos cidadãos, como o
direito à reserva da intimidade da vida privada (sobre as ameaças das novas
tecnologias aos direitos fundamentais e a construção de garantias de protecção,
leia-se, por exemplo, SEABRA LOPES, em “A protecção da privacidade e dos dados
pessoais na sociedade de informação”, em “Estudos dedicados ao Prof. Doutor
Mário Júlio de Almeida Costa”, pág. 779 e seg., ed. de 2002 da Universidade
Católica Portuguesa).
Um desses instrumentos jurídicos de garantia é a proibição contida no acima
transcrito n.º 4, do artigo 35.º, da C.R.P., que, como regra, veda o acesso aos
dados pessoais de terceiros, de forma a impedir a sua devassa.
Note-se, contudo, que esta proibição não impede o acesso apenas aos dados
íntimos duma pessoa, mas a todos os dados a ela relativos, mesmo que em nada
afectem a sua privacidade. O que se pretende preservar é a informação individual
de uma pessoa, independentemente desta respeitar ou não à sua intimidade,
prevenindo-se um potencial risco de violação de direitos fundamentais do
cidadão, nomeadamente o direito à reserva da intimidade da vida privada (vide,
neste sentido HELENA MONIZ, em “Notas sobre a protecção de dados pessoais
perante a informática”, na R.P.C.C., Ano 7, n.º 2, pág. 250-251).
Protege-se o chamado direito à autodeterminação informacional, o qual tem um
círculo de aplicação, apenas parcialmente coincidente com o círculo de aplicação
do direito à reserva da intimidade da vida privada, e que funciona como direito
de garantia deste.
O legislador ordinário, utilizando a liberdade de conformação legislativa
concedida no n.º 2, do artigo 35.º, da C.R.P., veio a definir o conceito de
dados pessoais (inicialmente na Lei n.º 10/91, de 29 de Abril), e fá-lo,
actualmente, através da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, (a L.P.D.P.), em
declarada transposição da Directiva n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 24 de Outubro de 1995.
De acordo com o referido diploma legal, entende-se por dados pessoais “qualquer
informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte,
incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou
identificável («titular dos dados»); é considerada identificável a pessoa que
possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência
a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua
identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social” (art.
3.º, a), da L.P.D.P.).
A L.P.D.P. “aplica-se ao tratamento de dados pessoais por meios total ou
parcialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não automatizados
de dados pessoais contidos em ficheiros manuais ou a estes destinados” (art.
4.º/1).
Situa-se neste âmbito a listagem de passagens de um veículo automóvel nas
portagens da auto-estrada que foram oportunamente registadas pelo identificador
“Via Verde” instalado nesse veículo e que foram ulteriormente objecto de
tratamento informático pela empresa “C., S.A.”, no desenvolvimento da relação
contratual por esta empresa mantida com o proprietário daquele veículo
automóvel.
Apesar dessa listagem apenas localizar no espaço e no tempo o trânsito de um
determinado veículo automóvel, referenciado pela sua matrícula, sendo este
necessariamente conduzido por uma pessoa singular, identificável como seu
utilizador habitual, essas informações também se lhe reportam, pelo que é
correcto dizer-se que estamos perante dados pessoais, nos termos do artigo 3.º,
a), da L.P.D.P., sujeitos às regras estabelecidas no artigo 35.º, da C.R.P.
(este tipo de informações tem sido objecto de tratamento como dados pessoais
para efeitos de aplicação da Lei n.º 67/98, de 16 de Outubro, pela Comissão
Nacional de Protecção de Dados, como resulta, por exemplo, na autorização nº
79/2002, ou da deliberação n.º 1/96, acessíveis em www.cnpd.pt).
E o facto de no caso sub iudicio o veículo automóvel pertencer a uma pessoa
colectiva do tipo societário, como é uma sociedade comercial por quotas
unipessoal, e o artigo 3.º, a), da L.P.D.P., apenas integrar no conceito de
“dados pessoais” os que se referem a pessoas singulares, não é suficiente para
excluir aquelas informações da protecção conferida pelo n.º 4, do artigo 35.º,
da C.R.P., uma vez que esta também abrange os dados respeitantes a pessoas
colectivas quando deles possa resultar a indicação de dados pessoais
concernentes a pessoas singulares. Na verdade, os veículos automóveis são
conduzidos por pessoas singulares e, por regra, estão afectos à utilização de
uma determinada pessoa em particular, a qual poderá ser identificada através de
outros elementos referenciadores.
Este tipo de dados pessoais, pelas suas características, não se enquadram nos
apelidados dados sensíveis (artigo 35.º, n.º 3, da C.R.P.), pertencentes ao
núcleo duro dos dados constitucionalmente tutelados, os quais apenas são
susceptíveis de tratamento, mediante condições específicas.
E a proibição contida no artigo 35.º, n.º 4, da C.R.P., como o próprio preceito
indica, não é absoluta, admitindo excepções que poderão ser definidas pelo
legislador ordinário. Estas excepções constituem restrições ao direito de
controlo do registo informático, devendo ser-lhes aplicada o regime das
restrições aos direitos, liberdades e garantias dos n.º 2 e 3, do artigo 18.º,
da C.R.P. (vide, neste sentido, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, na ob. cit.,
pág. 555, e HELENA MONIZ, na ob. cit., pág. 247-248).
Uma das excepções que é frequentemente apontada como podendo justificar uma
restrição ao referido direito é a da utilização desses dados para fins de
investigação criminal, designadamente como meio de prova em processo penal
(vide, neste sentido, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, na ob. cit., pág. 555,
PAULA RIBEIRO FARIA, em “Constituição Portuguesa Anotada” dirigida por Jorge
Miranda e Rui Medeiros, tomo 1, pág. 383, da ed. de 2005, da Coimbra Editora,
PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, em “Protecção de dados pessoais e direito à
privacidade”, em “Direito da sociedade da informação”, vol. I, pág. 252, da ed.
de 1999, da Coimbra Editora, e o Parecer n.º 21/2000 da P.G.R., pub. no D.R. II
Série, de 28-8-2000).
Na verdade, o artigo 182º, do C.P.P., admite que “as pessoas indicadas nos
artigos 135.º a 137.º apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar,
os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser
apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de
funcionário ou segredo de Estado”.
Entre essas pessoas encontram-se os responsáveis do tratamento de dados
pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham
conhecimento de dados pessoais tratados, nos termos do artigo 135.º, n.º 1, do
C.P.P., e 17.º, da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro.
O interesse público constitucionalmente protegido da descoberta da verdade
material, essencial à administração da justiça penal como pilar de um Estado de
direito, pode justificar a quebra da confidencialidade dos dados pessoais,
desde que dela não resulte uma restrição intolerável dos direitos fundamentais
do cidadão.
Quando o acesso aos dados pretendidos para a investigação criminal põe em causa
direitos fundamentais do cidadão, como o direito à reserva da intimidade da vida
privada (artigo 26.º, n.º 1, da C.R.P.), há que tomar em consideração a garantia
específica para essa situação, prevista no artigo 32º, n.º 8, da C.R.P..
2.2. Da proibição de provas obtidas com abusiva intromissão na vida privada
O recorrente alegou que a questionada interpretação normativa caucionaria a
valoração de provas obtidas mediante abusiva intromissão na sua vida privada, o
que violaria o disposto no n.º 8, do artigo 32.º, da C.R.P., nos termos do qual
“são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da
integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no
domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações” (sublinhado
acrescentado).
Os veículos automóveis são necessariamente conduzidos por pessoas singulares e
estas, mercê do princípio da universalidade (artigo 12º, da C.R.P.), gozam todas
do direito à reserva da intimidade da vida privada.
Efectivamente, de acordo com o disposto no n.º 1, do art. 26.º da C.R.P., “a
todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal (...) à reserva da
intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer
formas de discriminação”, acrescentando o n.º 2 que “a lei estabelecerá
garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à
dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias”.
Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (ob. cit., p. 467), “o direito à reserva
da intimidade da vida privada e familiar (…) analisa-se principalmente em dois
direitos menores: a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações
sobre a vida privada e familiar e b) o direito a que ninguém divulgue as
informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem”.
Mas a esfera da intimidade da vida privada possui fronteiras pouco nítidas,
desde logo porque a Constituição e a lei ordinária não estabelecem
expressamente o conteúdo e alcance do direito à reserva da intimidade da vida
privada. Daí que a definição positiva deste conceito seja caracterizada na
doutrina como obscura e sem um verdadeiro conteúdo preciso, revelando-se, por
vezes, tarefa difícil decidir aquilo que pertence à vida pública ou à vida
privada de uma pessoa (na procura dos limites do âmbito deste direito vide RITA
AMARAL CABRAL, em “O direito à intimidade da vida privada”, em separata dos
“Estudos em memória do Prof. Dr. Paulo Cunha”, pág. 24-37, 1988, PAULO MOTA
PINTO, em “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, no
B.F.D.U.C., vol. LXIX, pág. 524-539, “A protecção da vida privada e a
Constituição”, no B.F.D.U.C., vol. LXXVI, pág. 164 e seg., GOMES CANOTILHO e
VITAL MOREIRA, na ob. cit., pág. 467-468, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, em
“Direito de personalidade”, pág. 79-83, da ed. de 2006, da Almedina, e
RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, em “O direito geral de personalidade”, pág.
316-351, da ed. de 1995, da Coimbra Editora).
Sem a pretensão de neste local se definir qualquer critério orientador, para se
identificar uma situação coberta por este direito de reserva, há que verificar,
de acordo com os padrões da vida contemporânea, se, numa apreciação objectiva, é
justificado que determinado fragmento ou aspecto da vida de uma pessoa não seja
divulgado.
Neste caso, será de entender que o conteúdo das listagens de passagens de
veículos nas portagens das auto-estradas também integra o conceito de reserva da
intimidade da vida privada ?
As listagens em questão apenas permitem, para além do conhecimento da identidade
do titular do identificador “via verde”, o acesso às “passagens” do veículo
automóvel X por determinada portagem de certa auto-estrada, mais concretamente
às “horas” e “dias” a que ocorreram essas passagens.
A circunstância das portagens estarem localizadas na via pública e, portanto,
sob os olhos de todos que nelas se encontrem ou transitem, não conduz
necessariamente à negação de atribuição da característica da privacidade aos
referidos dados, uma vez que o critério do lugar não é determinante para esse
efeito. Factos respeitantes à vida privada podem, perfeitamente, ocorrer em
locais públicos, desde que praticados de forma anónima (vide PAULO MOTA PINTO,
em “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, no B.F.D.U.C., vol.
LXIX, pág. 526, e em “A protecção da vida privada e a Constituição”, no
B.F.D.U.C., vol. LXXVI, pág. 165, e RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, ob. cit, pág.
327).
Por outro lado, a circunstância de estar em causa um identificador “via verde”
registado em nome de uma pessoa colectiva também não afasta a privacidade desses
dados na medida em que, conforme já foi sublinhado, os veículos automóveis são
conduzidos por pessoas singulares e, por regra, estão afectos à utilização de
uma determinada pessoa em particular, a qual poderá ser identificada através de
outros elementos referenciadores.
A movimentação duma pessoa, nomeadamente a sua deslocação em veículo automóvel,
pelas diferentes vias públicas, apesar de ocorrer em locais acessíveis a outras
pessoas, é efectuada de forma tendencialmente anónima, pelo que a divulgação de
informações sobre essas concretas deslocações automóveis a terceiros (local,
dia e hora) poderá comprometer o direito à reserva da intimidade da vida privada
do seu condutor.
Mas isso não significa que o acesso a essas listagens, para fins probatórios em
processo penal, se traduza numa inadmissível intromissão na vida privada do
condutor do veículo em causa.
Na verdade, as provas obtidas por intromissão na vida privada só são proibidas
quando essa intromissão se revelar “abusiva”, pelo que esta proibição é relativa
(vide, neste sentido, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, na ob. cit., pág. 524, e
PAULO DE SOUSA MENDES, em “As proibições de prova em processo penal”, em
“Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 137, da ed.
de 2004, da Almedina).
Como defende PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, a polaridade entre o público e o privado
corresponde a uma escala progressiva e gradual, sem quebras de continuidade nem
saltos bruscos, entre aquilo que é mais íntimo e o que se partilha com toda a
gente (em “Direito de personalidade”, pág. 81, da ed. de 2006, da Almedina), ou
como refere RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, a amplidão da tutela da vida privada
desdobra-se em círculos concêntricos de reserva, dotados de maior ou menor
eficácia jurídica, particularmente de garantias mais ou menos profundas (na ob.
cit., pág. 326-327).
Quando a situação em causa, embora sujeita a reserva, decorre em espaços que
permitem a sua observação por qualquer pessoa, nomeadamente vias públicas, a
intensidade da tutela é menor, podendo esta ter de ceder, para salvaguardar
interesses superiores (vide, neste sentido, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, na ob.
cit., pág. 327).
E o interesse público constitucional da realização da justiça penal justifica a
afectação da privacidade em zonas distantes do seu núcleo mais íntimo (vide,
neste sentido PAULO MOTA PINTO, em “O direito à reserva sobre a intimidade da
vida privada”, no B.F.D.U.C., vol. LXIX, pág. 566, e em “A protecção da vida
privada e a Constituição”, no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, vol. LXXVI, pág. 196, e MARIA FERNANDA PALMA, em “Tutela da vida
privada e Processo Penal”, em “Estudos em memória do Conselheiro Luís Nunes de
Almeida”, pág. 657, da ed. de 2007, da Coimbra Editora).
Ora, situando-se o tipo de intromissão sub iudicio numa zona já afastada do
núcleo mais íntimo da vida privada, justifica-se plenamente que prevaleça o
interesse superior da obtenção da verdade material na realização da justiça
penal, o qual legitima o conhecimento e a valoração probatória judicial das
mencionadas listagens, não se mostrando violados os direitos constitucionais
consagrados nos artigos 35.º, n.º 4, e 32.º, n.º 8, da C.R.P..
2.3. Da necessidade de intervenção de um juiz
Na concreta dimensão normativa aqui posta em crise é reconhecida competência ao
Ministério Público para ordenar a apresentação das listagens das passagens do
veículo automóvel nas portagens das auto-estradas, as quais serão fornecidas
sem qualquer intervenção judicial, se a entidade responsável pelo armazenamento
destes dados não invocar sigilo profissional (artigo 182.º, n.º 1, do C.P.P.).
Apesar do recorrente não ter indicado este parâmetro constitucional, é
pertinente colocar-se a questão da compatibilização desta atribuição de
competência com o disposto no n.º 4, do art. 32.º, da C.R.P., nos termos do qual
“toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei,
delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que não se prendam
directamente com os direitos fundamentais”.
A respeito desta norma, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/90
(publicado na 2.ª série do Diário da República, de 4 de Julho de 1990) precisou
que:
“2.2 — No fundo, a dicotomia investigação criminal — instrução do processo
criminal (...) funde-se em interdependência e complementaridade: a fase prévia
serve para criar a convicção da entidade titular da acção penal, a subsequente
destina-se a moldar a convicção do julgador. A garantia da natureza judicial
desta última expande-se aos actos praticados na primeira sempre que equacionados
os direitos fundamentais do arguido, implicando a intervenção do juiz-garante.
(...)
Por outras palavras e no concreto caso, o n.º 4 do artigo 32.º da CRP prossegue
a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta
medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos
fundamentais dos cidadãos («reserva do juiz»).
Intervenção do juiz que vale — e só vale — no âmbito do núcleo da garantia
constitucional.
Assim ocorre em toda a fase de inquérito ao Ministério Público confiada pelo
CPP actual, compreendendo o conjunto de diligências que visam investigar a
existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles,
descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262.º,
n.º 1), justificando-se a intervenção do juiz-garante sempre que afectado aquele
núcleo — consoante o elenco de situações descritas nos artigos 268.º e 269.º.”
Apesar de se admitir que o inquérito criminal possa ser dirigido pelo Ministério
Público e não por um juiz, quando nesta fase haja que praticar actos
instrutórios que possam restringir severamente direitos fundamentais, deve ser
um juiz a decidir a sua realização, na sua veste de “juiz das liberdades” (PAULO
SOUSA MENDES, na ob. cit., pág. 139).
A independência da magistratura judicial e o seu maior distanciamento da
actividade investigatória, confere-lhe uma maior disponibilidade funcional e
psicológica para, com objectividade, decidir os limites toleráveis do sacrifício
dos direitos fundamentais em favor do interesse da realização da justiça penal.
Daí que, para a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade, bem como
para a ingerência na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de
comunicação, o legislador ordinário tenha rodeado essas intromissões de
especiais cautelas, ao fazer intervir um magistrado judicial a montante ou a
jusante do procedimento de obtenção de meios de prova, reservando-lhe em
exclusivo a competência para ordenar, autorizar ou validar as referidas
diligências intrusivas na intimidade da vida privada dos suspeitos da prática
das infracções criminais (vide artigos 177.º, 179.º e 187.º do C.P.P.).
Contudo, como tem realçado a mais recente jurisprudência constitucional, apenas
os actos que contendem, de forma relevante, com direitos, liberdades e garantias
fundamentais do arguido, no decurso da fase de inquérito, dependem da prévia
autorização do juiz de instrução (vide Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º
42/2007, 155/2007 e 228/2007, publicados na 2.º Série do Diário da República, de
11 de Maio, 10 de Abril e de 23 de Maio de 2007, respectivamente).
Ora, como já acima se realçou, a intromissão na vida privada do condutor do
veículo automóvel a que respeitam as listagens requisitadas pelo Ministério
Público, situa-se numa zona muito distante do núcleo sensível da intimidade
pessoal, pelo que não é constitucionalmente exigível que o respectivo acto seja
ordenado ou validado por um juiz, encontrando-se o direito restringido
suficientemente garantido com a intervenção de um Magistrado do Ministério
Público, cuja acção é norteada por deveres de isenção, objectividade e
legalidade.
2.4. Conclusão
Do raciocínio apresentado resulta que a interpretação contida na decisão
recorrida, segundo a qual é permitida a admissão e valoração de provas
documentais relativas a listagens de passagens de um veículo automóvel nas
portagens das auto-estradas, que foram registadas pelo sistema de identificador
da “VIA VERDE”, armazenadas numa base de dados informatizada e ulteriormente
juntas ao processo criminal, sem o consentimento do arguido e por mera
determinação do Ministério Público, não viola qualquer parâmetro constitucional,
nomeadamente o disposto nos artigos 35.º, nº 4, e 32.º, n.º 4 e 8, da C.R.P.,
pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.
*
Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto por A. do
acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido nestes autos em 9 de Maio de
2007.
*
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
ponderados os critérios enunciados no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, da C.R.P.).
*
Lisboa, 2 de Abril de 2008
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos