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Processo nº 454/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos, emergentes de um processo de inquérito que corre termos
no Tribunal Judicial da Comarca de Loures (3.º Juízo Criminal), foi, em 13 de
Dezembro de 2006, proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que
negou provimento ao recurso interposto por A. do despacho, de 20 de Maio de
2005, que indeferira o pedido por si deduzido de reconhecimento da formação de
acto tácito relativamente à sua pretensão de concessão de protecção jurídica
formulada junto da Segurança Social.
Para tal, o tribunal recorrido desenvolveu a seguinte argumentação:
Com o presente recurso o recorrente pretende ver apreciada a decisão judicial
que indeferiu um seu requerimento para que fosse considerada tacitamente
aprovada a concessão de protecção jurídica, formulada à Segurança Social.
Estriba a sua discordância com aquela decisão judicial na circunstância de
considerar que a decisão administrativa da Segurança Social, relativa ao seu
pedido de protecção jurídica, foi proferida após o prazo de 30 dias indicado no
art. 25° n° 1 da Lei n° 34/2004 de 29 de Julho, e como tal um deferimento tácito
da sua pretensão.
Compulsados os Autos verifica-se que o recorrente formulou aquele pedido à
Segurança Social em 23.03.2005 – cfr. fls. 129 – e que os competentes serviços
daquela entidade proferiram decisão final em 03.05.2005 – cfr. fls. 138.
Todavia, daquela análise resulta também que aquele prazo não decorreu
ininterruptamente, mas antes foi suspenso em duas ocasiões — de 12 a 14 de Abril
de 2005 e de 23 a 28 de Abril de 2005 – pelo que, nos termos do art. 1° n° 3 da
Portaria n° 1085-A/2004 de 31 de Agosto, ao aludido prazo de 30 dias, se teria
necessariamente que aditar os 9 dias de suspensão.
Pelo que, a decisão proferida no dia 03.05.2005 ocorreu antes da formação do
acto tácito de deferimento.
Nesta conformidade, improcede o alegado pelo recorrente, no tocante à contagem
dos prazos em apreço nestes Autos, pois que esta se mostra correctamente
efectuada, tendo em conta o disposto nos artigos 38° e 25° da Lei n° 34/2004 de
29 de Julho e 1° n° 3 da Portaria n° 1085‑A/2004 de 31 de Agosto.
Como se refere no Despacho recorrido, no caso do recorrente a Segurança Social
deveria ter procedido à diligência de audição prévia do requerente “por
imposição do referido dispositivo legal (art° 23° da Lei 34/2004) e de acordo
com o n° 3 do art° 100º do C.P.A.”. Porém, não o tendo feito, não compete a esta
jurisdição a apreciação de tal circunstância, mas tão só a apreciação de
decisões judiciais, como a ora sub-judice.
De qualquer forma sempre se referirá que a realização daquela diligência
suspende a contagem dos prazos em todos os procedimentos administrativos, pelo
que, por maioria de razão, se conclui pelo não decurso da totalidade do prazo de
formação do acto tácito de deferimento.
Do mesmo modo improcedem a invocada violação do disposto dos artigos 20°, 32° e
13° da Constituição da República.
Pois que, a propósito desta mesma questão, suscitada pelo mesmo recorrente no
processo n° 822/02 desta Secção e Tribunal, em que a ora Relatora interveio como
Adjunta, se esclareceu no Acórdão aí proferido que: “(...) Em conformidade com o
princípio constitucional consagrado no art. 20°, n° 1, da CRP, segundo o qual,
“A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus
direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada
por insuficiência de meios económicos”, a lei ordinária consagra no art. 1°, da
Lei a° 34/2004, de 29JUL, o princípio de que todo o cidadão tem acesso ao
direito e aos tribunais, destinando-se a promover que a ninguém seja dificultado
ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência
de meios económicos de fazer valer ou defender os seus direitos.
De acordo com este princípio, a lei consagra o direito à protecção jurídica, que
reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário, (art. 6°, do
da citada Lei n° 34/2 004, de 29JUL), às pessoas singulares que demonstrem não
dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários profissionais
forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços, e para custear,
total ou parcialmente os encargos normais de uma causa judicial (art. 8°, da
mesma Lei).
(...)
O direito de acesso aos tribunais implica o direito ao processo entendendo‑se
que este postula um direito a uma decisão final incidente sobre o fundo da causa
sempre que se hajam cumprido e observado os requisitos processuais da acção ou
recurso. Por outras palavras: no direito de acesso aos tribunais inclui‑se o
direito de obter uma decisão fundada no direito, embora dependente da
observância de certos requisitos ou pressupostos processuais legalmente
consagrados. Por isso, a efectivação de um direito ao processo não equivale
necessariamente a uma decisão favorável; basta uma decisão fundada no direito
quer seja favorável quer seja desfavorável às pretensões deduzidas em juízo.
(…)
Também não foram violadas as garantias de defesa consagradas no art. 32°, n°s 1
e 2, da CRP, porque são próprias do arguido, nem o princípio da igualdade
consagrado no art. 13°, da CRP, atenta a diferença processual do estatuto do
arguido e do assistente.
Também o direito de acesso aos tribunais (20º, n°1) não é violado porque se
houver insuficiência económica ao recorrente será concedido apoio judiciário e
nomeado patrono pelas entidades competentes, não dependendo isso da sua condição
de assistente. Por outro lado, também não se mostra violado o art. 32°, n° 7, da
CRP, porque o recorrente, enquanto ofendido, continua com o direito de intervir
no processo nos termos do CPP e da Lei de Protecção Jurídica.»
Desta forma se conclui pela improcedência das alegadas inconstitucionalidades.
Nas alegações de recurso, o recorrente suscitara a inconstitucionalidade da
interpretação dada pelo Tribunal Judicial da Comarca de Loures (3.º Juízo
Criminal) aos “normativos dos Artºs 23º, 25º e 38º da Lei n.º 34/2004, de 29 de
Julho, o Artº 1.º, n.º 3, da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, dos
Artºs 254º, n.º 2 e 255º, n.º 1, do Código de Processo Civil”, por violação
“maxime (d)os imperativos dos n.ºs 1, 4 e 5, do Artº 20.º da Constituição da
República Portuguesa”.
Notificado daquele aresto, A. veio arguir a nulidade do mesmo, requerendo “a
sanação da arguida nulidade, contabilizando-se o período de suspensão do prazo
para a decisão administrativa, pelo mínimo, desde a remessa postal da
notificação para a prática de acto processual, ou, em bom rigor, da sua
recepção, efectiva ou presumida, com as consequências daí advindas para a
Veneranda decisão, qual seja o reconhecimento inequívoco da formação de acto
tácito e a inevitável concessão do Instituto ao Recorrente nas modalidades
peticionadas.”
Por acórdão de 28 de Fevereiro de 2007, o Tribunal da Relação de Lisboa
indeferiu a arguição de nulidade de omissão de pronúncia, concluindo na sua
fundamentação que “ainda que de forma não concordante com a posição do
recorrente, este Tribunal se pronunciou clara e explicitamente sobre o alegado
pelo recorrente.”
2. Inconformado, A. veio interpor o presente recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), “(P)para
apreciação da inconstitucionalidade interpretativa das normas contidas conjugada
e concomitantemente nos artigos 23.º, 25.º e 32.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de
Julho, e no artigo 1.º, n.º 3, da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, e
dos artigos 254.º, n.º 2, e 255.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na
interpretação dada nos venerandos arestos, no sentido de que o prazo peremptório
concedido na lei de protecção jurídica para a respectiva decisão administrativa
se suspende durante o período de entrega de documentos solicitados pela
administração, contada essa suspensão desde o dia seguinte à data de emissão das
correspondentes notificações até à entrega das respostas do interessado nos
serviços da autoridade administrativa.” No seu entender, “(U)uma tal
interpretação dessas conjugadas normas legais viola os imperativos dos n.ºs 1, 4
e 5, do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.”
Admitido o recurso, foi determinada a produção de alegações, que o recorrente
concluiu da seguinte forma:
1. Ao contrário do que vem interpretado no texto do aresto superior aqui
sindicado por interpretação inconstitucional, de forma implícita, ali com alusão
expressa apenas em relação a uma das regras legais infra, confirmando o plasmado
em sede judicial anterior, configura-se uma constitucionalmente errada
interpretação das normas dos art.°s 23.° e 25.° da Lei n.° 34/2004, de 29 de
Julho, do art.° 1.°, n.° 3, da Portaria n.° 1085/2004, de 31 de Agosto, e dos
art.°s 254.°, n.° 2, e 255.°, n.° 1, do Código de Processo Civil, no que tange
ao início e termo da suspensão do prazo para a formação de acto tácito, em sede
de protecção jurídica.
2. Pois que essa contabilidade temporal tem que se submeter às regras dos art°s
254.°, n.° 2, e 255.°, n.° 1, da aludida lei adjectiva civil e sempre com a
necessária conjugação com os seus dispositivos dos art.°s 144.°, n.° 1, e 284.°,
n° 1, alínea d), todos eles aplicáveis, em matéria de prazos, por força do art.°
38.° da já citada Lei n.° 34/2004.
3. Estas normas legais, conjugadas entre si, dão cumprimento total ao imperativo
emergente dos n°s 1, 4 e 5 do artigo 20.° da Constituição da República
Portuguesa, sendo a sua posterga grave violação desses preceitos fundamentais
impedindo, cerceando e restringindo o rápido acesso ao direito e aos tribunais
para defesa em tempo útil e oportuno dos interesses legítimos do cidadão,
abstracto ele, legalmente protegidos e com tutela efectiva contra ameaças e
violações.
4. Para além do que, complementar e concomitantemente, vem expresso
peremptoriamente quanto a esta particular matéria de notificações em sede do
art.° 268.°, que complementa a acima aludida norma constitucional em que se
funda a directa e essencial violação arguida.
5. Pois que a única interpretação consonante com esses imperativos
constitucionais, – e das próprias notificações efectuadas pela autoridade
administrativa – é a de que o início da contagem da suspensão do prazo previsto
no n.° 1 do art° 25.° da Lei n.° 34/2004 se dá com a recepção, efectiva ou
presumida, conforme a efectiva possibilidade de apuramento factual, da
notificação para cumprir as exigências da autoridade administrativas, qual sejam
as previstas no art.° 23.° da lei de protecção jurídica ou a da Portaria n.°
1085/2004, de 31 de Agosto, que a complementa e regula especificadamente no
particular do acervo probatório, terminando com a efectiva resposta do cidadão
interessado.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
contra-alegou, concluindo:
1. Do bloco normativo, que é objecto do recurso, relativo à suspensão do prazo
para apreciação do pedido de protecção jurídica não resulta que tenha ocorrido
qualquer interpretação violadora das normas constitucionais.
2. Termos em que não deverá proceder o presente recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
3. A questão que se discute no presente recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade é a da conformidade constitucional da interpretação
normativa dos artigos 23.º, 25.º e 38.º [e não 32.º, como, certamente por lapso,
invoca o recorrente] da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, do artigo 1.º, n.º 3,
da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, e dos artigos 254.º, n.º 2, e
255.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “no sentido de que o prazo
peremptório concedido na lei de protecção jurídica para a respectiva decisão
administrativa se suspende durante o período de entrega de documentos
solicitados pela administração e de audição prévia, contada essa suspensão desde
o dia seguinte à data de emissão das correspondentes notificações até à entrega
das respostas do interessado nos serviços da autoridade administrativa.”
Ora, sobre questão muito semelhante à ora em apreço, já se pronunciou o Tribunal
Constitucional. Com efeito, pelo recente Acórdão n.º 618/2007, tirado em 19 de
Dezembro de 2007, no processo n.º 261/07, desta 3.ª Secção, também da iniciativa
do ora recorrente, este Tribunal decidiu no sentido da inexistência de
inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria n.º 1085-B/2004, de 31
de Agosto, na interpretação de que a falta de entrega, conjuntamente com o
requerimento de protecção jurídica, dos documentos referidos na alínea a) do n.º
2 do artigo 3.º e no artigo 14.º da mesma Portaria, suspende ope legis o decurso
do prazo de produção do deferimento tácito do pedido, independentemente da
prolação de despacho ou de notificação do requerente para suprir a falta.
Esse Acórdão n.º 618/2007 teve, na parte que ora interessa, os seguintes
fundamentos:
5. O artigo 25.º, n.º1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho (serão deste diploma
legal todas as disposições legais doravante citadas sem outra referência), fixa
o prazo de 30 dias para conclusão e decisão do procedimento administrativo
respeitante ao pedido de protecção jurídica, pretensão esta cuja apreciação,
mesmo na modalidade de apoio judiciário, passou competir aos serviços de
segurança social desde a desjudicialização que neste domínio foi operada pela
Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro. Decorrido esse prazo, considera-se
deferido o pedido de pretensão de protecção jurídica formulado (artigo 25.º, n.º
2).
O legislador enveredou, neste domínio, pelo regime de deferimento tácito, isto
é, por atribuir um efeito jurídico positivo (de assentimento) ao silêncio
administrativo, concedendo ao requerente o benefício correspondente à sua
pretensão, verificado que seja o decurso do lapso temporal legalmente fixado sem
que o órgão com dever legal de decidir se tenha pronunciado expressamente. Além
disso, estabeleceu um prazo consideravelmente mais curto do que o prazo geral de
produção de deferimento tácito, que é de 90 dias a contar da formulação do
pedido ou da apresentação do processo para esse efeito (cfr. n.º 2 do artigo
108.º do Código do Procedimento Administrativo). Quer a valoração positiva do
silêncio administrativo, quer o encurtamento do prazo, são soluções ordenadas a
assegurar, no plano procedimental, maior celeridade e mais intensa protecção à
garantia de que o acesso à justiça não seja denegado por insuficência de meios
económicos.
Ora, um dos problemas que tem sentido colocar, no âmbito do regime geral dos
requisitos de formação do deferimento tácito é o de saber se esse efeito é
afastado pela falta de qualquer elemento essencial para apreciação do pedido e
se nessa categoria cabe a falta de um documento cuja junção constitua ónus do
requerente e que seja exigido por lei para a instrução do requerimento.
Independentemente da resposta que em geral se dê a este problema (cfr. joão
tiago silveira, O Deferimento Tácito, pág. 168), quanto ao procedimento relativo
ao pedido de protecção jurídica a questão é objecto de regime especial, estando
expressamente resolvida pelo n.º 3 do artigo 1.º da Portaria n.º 1085‑A/84, de
31 de Agosto, editada ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 8.º da Lei n.º
34/2004.
Efectivamente, o artigo 1.º da Portaria 1085-A/2004 estabelece o seguinte
(itálico aditado quanto à norma impugnada):
“Apresentação de documentos
1 - Com o requerimento de protecção jurídica devem ser juntos os documentos
referidos nos artigos 3.º a 5.º e 14.º e 15.º da presente portaria.
2 - O requerente deve juntar ainda, com o requerimento de protecção jurídica,
outros documentos comprovativos das declarações prestadas, incluindo documentos
de identificação pessoal do requerente e do respectivo agregado familiar, no
caso de se tratar de pessoa singular, ou, tratando-se de pessoa colectiva ou
equiparada, cópia do pacto social actualizado, no caso das sociedades, e outros
documentos de identificação do requerente e respectivos representantes legais,
se existirem.
3 - Sem prejuízo do pedido de apresentação de provas a que haja lugar nos termos
da lei, a falta de entrega dos documentos referidos nos números anteriores
suspende o prazo de produção do deferimento tácito do pedido de protecção
jurídica.”
Na interpretação que lhe é dada pela decisão recorrida – e, é bom repeti-lo,
esse é o sentido normativo cuja inconstitucionalidade cumpre apreciar –, resulta
desta disposição que, não cumprindo o requerente o ónus que o n.º 1 do mesmo
preceito lhe impõe, de acompanhar o requerimento de protecção jurídica com os
elementos de prova da insuficiência económica que a lei (rectius o regulamento)
taxativamente exige, o prazo de deferimento tácito fica automática e
imediatamente suspenso. Independentemente de qualquer acto da Administração a
advertir ou convidar o requerente do apoio judiciário para suprir a falta, o
prazo para a decisão final não corre – nem sequer se inicia – enquanto os
documentos não forem juntos ou a Administração declare deles prescindir.
[Assinale-se que este regime sofreu alterações com a Lei 47/2007, de 28 de
Agosto, que entrarão em vigor em 1 de Janeiro de 2008, sendo aditado à Lei
24/2004 um artigo 8.º-B, que passará a dispor que, se não forem entregues com o
requerimento de protecção jurídica os elementos de instrução legalmente
exigidos, os serviços da segurança social notificam o interessado para que este
os apresente no prazo de 10 dias, suspendendo-se o prazo para a formação de acto
tácito. No termo desse prazo, se o interessado não tiver procedido à
apresentação de todos os elementos de prova necessários, o requerimento é
indeferido. Passará a estar expressamente estabelecida, com efeitos
cominatórios, uma notificação para completar a instrução nestas circunstâncias].
6. Segundo o recorrente, na aludida interpretação, a norma do n.º 3 do artigo
1.º da Portaria n.º 1085-A/2004 violaria o disposto nos n.ºs 1, 4 e 5 do artigo
20.º da Constituição.
Trata-se de questão de constitucionalidade com fortes semelhanças com aquela que
foi apreciada pelo Tribunal no acórdão n.º 364/2004,publicado no Diário da
República, II Série, de 30 de Junho de 2004.
Nesse acórdão, em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade também
protagonizado pelo ora recorrente, o Tribunal concluiu que não violava os n.ºs
1, 4 e 5 do artigo 20.º da Constituição a norma então constante do n.º 1 do
artigo 26.º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, na interpretação segundo a
qual a «o prazo peremptório ali previsto, suspenso após a notificação prevista
no artigo 24.º da referida Lei e até à sua resposta ou preclusão do prazo para a
mesma, só pode ser contado após a disponibilização à entidade administrativa de
todos os elementos necessários e suficientes à sua apreciação, considerados
[n]estes os que tenham sido carreados em função do aludido artigo 24.º, não se
produzindo assim o deferimento tácito».
As considerações que justificaram essa decisão são em larga parte transponíveis
para o confronto da norma agora em causa com os mesmos preceitos
constitucionais, pelo que se retomam, nos seus traços essenciais.
7. A proibição de denegação de justiça por insuficiência de meios económicos,
que acompanha expressamente a garantia de acesso ao direito e aos tribunais
(n.º1 do artigo 20.º da Constituição), assegurando que esta se não quede por uma
garantia meramente formal, impõe ao Estado um dever de prestação a favor
daqueles cuja situação económica lhes não permita custear as despesas inerentes
ao exercício do direito de acesso à via judiciária. Tratando-se de uma prestação
positiva que apenas deve ser realizada a favor de quem precise dela, dado nada
impor que a justiça seja gratuita (cfr. j.j. gomes canotilho e vital moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, Vol. I, pag. 411), não
pode a respectiva previsão constitucional deixar de ser lida no sentido de que a
sua concessão seja necessariamente precedida de um acto de avaliação daquela
insuficiência económica para suportar as despesas da lide.
Como já se deixou dito, a competência para essa avaliação está hoje atribuída à
Administração (artigo 20.º da Lei 34/2004), que decide em conclusão de um
procedimento administrativo especial em que ao interessado – que pode requerer
por si ou através de advogado, advogado estagiário ou solicitador e, ainda,
socorrer-se de representação pelo Ministério Público (cfr. artigo 19.º da Lei
34/2004) – incumbe instruir o requerimento com os documentos relativos aos
rendimentos e activos (próprios ou de elementos do respectivo agregado familiar)
que a Portaria 1085‑B/2004, de 31 de Agosto, alterada pela Portaria n.º
288/2005, de 21 de Março, especifica.
A Administração aprecia a ocorrência da situação de insuficiência económica
alegada, em face dos elementos probatórios que o requerente junte e dos
esclarecimentos complementares que oficiosamente solicite ou obtenha e extrai
daí as consequências inerentes quanto à concessão, modalidade e extensão do
benefício de apoio judiciário pretendido. Apreciação a que, salvo situações
excepcionais (cfr. n.º 2 do artigo 20.º da Lei 34/2004), os serviços da
Segurança Social procedem por aplicação de critérios tarificados no Anexo à Lei
34/2004 e quantificados nos artigos 6.º a 13.º da Portaria n.º 1085-B/2004,
tendentes a eliminar a subjectividade da apreciação administrativa.
Esta decisão tem a Administração de tomá-la no prazo de 30 dias subsequentes à
formulação do pedido, sob pena de ocorrer o deferimento tácito a que alude o n.º
2 do artigo 25.º da Lei n.º 34/2004. Mas, de acordo com a norma questionada, com
o sentido cuja verificação de conformidade à Constituição é deferida ao Tribunal
em recurso de fiscalização concreta, este efeito não se verifica se o pedido não
estiver devidamente instruído com os elementos cuja junção com o requerimento
inicial o regulamento expressamente impõe. E, de acordo com a mesma
interpretação – e isto é o que diferencia a presente situação daquela que foi
apreciada no acórdão n.º 364/2004 –, independentemente de despacho a advertir o
interessado para a necessidade de juntar os elementos em falta. O acórdão
recorrido reconhece a existência de um dever de a Administração notificar o
requerente para suprir a falta, mas afirma que não é dessa notificação que
resulta a suspensão do prazo de produção do deferimento tácito e que o
incumprimento pontual de tal dever de colaboração com o particular não interfere
com tal suspensão.
8. A norma assim interpretada não colide com qualquer das normas ou princípios
constitucionais que o recorrente invoca.
8.1. Em primeiro lugar, este regime de suspensão do prazo de formação do
deferimento tácito no âmbito do procedimento de apreciação do pedido de
protecção jurídica não viola a proibição de denegação de justiça por
insuficiência de meios económicos, consagrada no n.º 1 do artigo 20.º da
Constituição.
É certo que não basta para cumprir este imperativo constitucional a mera
existência do instituto do apoio judiciário no nosso ordenamento; impõe-se que a
sua modelação seja adequada, tanto nos pressupostos de atribuição e nas
prestações em que se analisa, como no procedimento a permitir o acesso aos
tribunais por parte daqueles que carecem dos meios económicos suficientes para
suportar os encargos que são inerentes à instauração e desenvolvimento de um
processo judicial, designadamente custas e honorários forenses (assistência
judiciária e patrocínio judiciário). Todavia, nem a imposição legal ou
regulamentar de que o pedido de protecção jurídica seja instruído com
determinados elementos destinados a provar a insuficiência económica colide com
esse direito, nem a consequência que a norma em causa, na interpretação
adoptada, comina para o seu incumprimento (não correr o prazo para o deferimento
tácito) se apresenta como inadequada ou excessiva.
Tratando-se de uma pretensão a uma prestação positiva do Estado (o pagamento das
despesas de patrocínio) e à exoneração ou modificação de encargos (as custas e
demais encargos processuais) a que os utentes da justiça estão geralmente
sujeitos, nada tem de desrazoável que o interessado seja onerado com a prova dos
respectivos pressupostos, aliás de acordo com o princípio geral de que àquele
que invocar um direito cabe fazer a prova dos respectivos factos constitutivos
(cfr. artigo 342.º do Código Civil).
O efeito cominado pela norma em causa consiste, apenas, em não se considerar o
pedido tacitamente deferido enquanto o interessado não tiver criado as condições
para que a Administração possa apreciar a justeza da sua pretensão, não o de
denegar-lhe o benefício se ocorrer uma situação de demonstrada insuficiência
económica.
Aliás, apesar de se aceitar que a opção pelo regime do deferimento tácito para o
pedido de protecção jurídica não decidido no prazo legal cumpre o objectivo de
conferir melhor protecção constitucional ao acesso ao direito e aos tribunais,
eliminando entraves que pudessem advir da inércia administrativa, não pode
considerar-se essa opção legislativa como constitucionalmente imposta (a única
solução legítima) para garantir que a justiça não seja denegada por
insuficiência de meios económicos, seja pelos princípios fundamentais da
actividade administrativa (artigo 266.º e n.º 4 do artigo 267.º da CRP), seja em
decorrência do complexo de direitos consagrados no artigo 20.º da CRP.
O legislador optou pela cominação do deferimento tácito como meio de compelir a
Administração a decidir dentro do prazo e por reputar essa via mais capaz de
oferecer protecção à posição do particular sem necessidade de intermediação do
juiz. Porém, a especial exigência de celeridade procedimental não é incompatível
com valoração diversa do silêncio administrativo, desde que ao interessado sejam
facultados meios contenciosos que permitam fazer apreciar jurisdicionalmente a
sua pretensão, com alcance e com efeitos que não comprometam a efectividade
prática do direito de acesso aos tribunais, pelo que a opção por um ou outro
sistema cabe na discricionariedade legislativa.
8.2. Também não procede a argumentação com que o recorrente tenta convencer de
que a norma em causa é susceptível de violar os n.ºs 4 e 5 do artigo 20.º da
Constituição.
Estas normas constitucionais contemplam, no seu dispositivo imediato,
procedimentos judiciais e não procedimentos administrativos. Admite-se, todavia,
que a protecção concedida por tais normas constitucionais se estenda aos
procedimentos administrativos que, pela sua directa relação com os processos
judiciais, possam comprometer o direito à decisão da causa em prazo razoável e o
direito ao processo equitativo (n.º 4 do artigo 20.º da CRP) ou a efectividade
da tutela judicial na defesa dos direitos liberdades e garantias pessoais (n.º 5
do artigo 20.º da CRP). Nesta perspectiva, o procedimento relativo ao apoio
judiciário integra-se nesta categoria de procedimentos administrativos cuja
organização e estrutura podem contender com tais direitos relativos ao processo
judicial, dos quais é instrumental.
Todavia, nem com esta extensão pode imputar-se à solução normativa em análise a
violação de qualquer destas normas constitucionais, porque delas decorre a
obrigação de o legislador adoptar soluções processuais e organizatórias que
permitam realizar os referidos direitos, mas não que o interessado deva ser
protegido contra as consequências das próprias opções, quando estas se traduzam
no incumprimento de ónus procedimentais racionalmente fundados. Ora, o
retardamento da decisão do procedimento e, reflexamente, da decisão judicial no
processo em que se pretende beneficiar de apoio judiciário, é aqui consequência
da actuação do requerente ao não facultar à Administração os elementos
necessários à apreciação da pretensão de apoio judiciário directamente
estabelecidos pela lei (Recorda-se que, face à delimitação do objecto do
recurso, não está em consideração a conformidade constitucional das normas que
fixam os documentos a apresentar).
8.3. E não é exacto que a interpretação normativa questionada, ao não subordinar
a suspensão do prazo de formação de deferimento tácito a prévio convite ou
advertência ao requerente do apoio judiciário para completar a instrução do
requerimento, o deixe ad aeternum em situação de incerteza ou na dependência
irremediável da inércia da Administração, o que poderia conduzir a um juízo de
violação do princípio do procedimento equitativo.
Com efeito, o acórdão recorrido reconheceu que os serviços da Segurança Social
tem o dever de notificar o interessado para a falta de determinados elementos,
estabelecendo até esse prazo em 8 dias. Perante isso, o requerente poderá
completar a instrução do pedido, se acatar as razões da Administração, ou
impugnar a decisão subsequente de indeferimento, se discordar da exigência. Foi,
aliás, o que no caso sucedeu, pelo que este argumento do recorrente não
corresponde à dimensão normativa efectivamente aplicada pela decisão recorrida
na solução da questão controvertida.
É certo que o acórdão refere que o incumprimento do prazo, seja qual for a sua
expressão não tem quaisquer consequências neste domínio ('…se, por hipótese, a
Segurança Social não o fizer em 8 dias mas em 8 meses, o prazo de produção do
deferimento tácito do pedido de protecção jurídica continua suspenso desde lá
atrás, enquanto o requerente não juntar os documentos'). Porém, esta afirmação é
meramente conjectural, não correspondendo à dimensão normativa efectivamente
aplicada. Na verdade, segundo a matéria de facto que o acórdão recorrido deu
como provada, os serviços da Segurança Social advertiram o requerente para a
insuficiência da instrução, não no prazo de 8 dias, mas seguramente antes de
decorrido o prazo de 30 dias, já que o pedido de apoio judiciário foi formulado
em 19 de Janeiro de 2005 e a notificação ao recorrente para completar a
instrução consta de ofício de 7 de Fevereiro de 2005, vindo o pedido a ser
indeferido em 1 de Março de 2005. No total, com notificação para completar a
instrução e audição prévia do requerente, menos de um mês e meio até à decisão
final. Foi esta a situação que o acórdão apreciou, pelo que aquela afirmação não
integra a dimensão normativa que constitui a sua ratio decidendi na solução da
questão controvertida, retirando objecto à alegação do recorrente de que a
interpretação normativa acolhida implica a suspensão intolerável do prazo para
decisão administrativa.
Estas considerações devem ser reiteradas, até por maioria de razão, no presente
caso, em que está em causa igualmente a norma do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria
n.º 1085-B/2004, de 31 de Agosto, interpretada no sentido de que o prazo
peremptório concedido na lei de protecção jurídica para a respectiva decisão
administrativa se suspende durante o período de entrega de documentos
solicitados pela administração e de audição prévia, contada essa suspensão desde
o dia seguinte à data de emissão das correspondentes notificações até à entrega
das respostas do interessado nos serviços da autoridade administrativa.
Pelos fundamentos transcritos, há, pois, que, negar provimento ao recurso.
III
Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 23.º,
25.º e 38.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, artigo 1.º, n.º 3, da Portaria
n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, e artigos 254.º, n.º 2, e 255.º, n.º 1, do
Código de Processo Civil, no sentido de que o prazo peremptório concedido na lei
de protecção jurídica para a respectiva decisão administrativa se suspende
durante o período de entrega de documentos solicitados pela administração,
contada essa suspensão desde o dia seguinte à data de emissão das
correspondentes notificações até à entrega das respostas do interessado nos
serviços da autoridade administrativa.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita;
c) Condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 25 UC’s.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão