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Processo n.º 109/08
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e B. e recorrido o Ministério Público, a Relatora proferiu a
seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que são recorrentes A. e B. e recorrido o Ministério
Público, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b) da
CRP e do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação
de Guimarães, proferido em 10 de Dezembro de 2007, para que fosse apreciada a
constitucionalidade da interpretação segundo a qual “não se verificou a
descriminalização daquela conduta, mantendo, assim, em vigor o disposto no nº. 4
do artº. 105º. do RGIT, na versão originária, quanto aos seus efeitos, nos casos
que foram julgados, com trânsito, antes da alteração daquela norma” (fls. 127),
visto que os recorrente entendem que a redacção do n.º 4 do artigo 105º do RGIT,
introduzida pelo artigo 95º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, “se aplica,
ao caso, no seu entender, por força do disposto no artº. 2º .2 do CP e, também,
dos artºs. 13º., 18º.2, 29º.4 e 32º.2 da Constituição” (fls. 126).
2. Tal acórdão foi proferido na sequência de recurso interposto pelos
recorrentes de despacho proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga
(fls. 40 a 44), em 25 de Junho de 2007, relativo a requerimento para declaração
da extinção de procedimento criminal (já transitado em julgado, mas com execução
de pena suspensa pendente). Nos termos do referido despacho que negou a extinção
do procedimento criminal, decidiu-se que:
“Ora, «in casu», o art. 95º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro veio
introduzir no art. 105.º, n.º 4 do RGIT uma nova condição de punibilidade que,
como tal, não faz parte do tipo de ilícito nem da culpa. Por conseguinte, a lei
nova não adiciona qualquer elemento à factualidade típica existindo uma
continuidade normativo-típica entre a lei antiga e a lei nova, pelo que nunca
poderá estar em causa uma despenalização, como alegam os arguidos.
Face ao exposto, e tendo concluído que entre a antiga e a nova redacção do art.
105.º, n.º 4 do RGIT existe uma verdadeira sucessão de leis, aos processos
pendentes aplicar-se-á a lei mais favorável ao agente, nos termos do disposto no
art. 2.º, n.º 4 do Código Penal (…)
Uma vez que, de acordo com o exposto, só podem beneficiar da nova condição
objectiva de punibilidade, os contribuintes que tenham cumprido as suas
obrigações declarativas, o que não sucedeu «in casu», indefiro o requerido.”
(fls. 43 e 44)
3. Por sua vez, em sede de motivação e respectivas conclusões de recurso, os
recorrentes afirmaram, entre outros argumentos, o seguinte.
“17.
Por outro lado, na interpretação do sentido normativo do nº 4 do artº. 105º.
referido, o Tribunal não considerou o disposto nos artºs. 13º., 18º. 2, 29º.4 e
32º.2 da Constituição, á luz dos quais deveria ter interpretado aquela norma,
até por força do disposto no princípio da interpretação das leis em conformidade
com a Constituição.
(…)
20.
Por seu lado, o artº. 2º.2 do CP traduz na lei ordinária o direito
fundamental consagrado no nº. 4 do artº. 29º. da Constituição, Nesta norma
também se aflora o princípio «in dubio pro reo». Por isso os novos elementos do
nº. 4 do artº 105º. devem ser interpretados em conformidade com essa norma
constitucional. Os elementos desse nº. 4 são claramente especializadores; mas,
se dúvidas há, tal dúvida só pode aproveitar aos RECORRENTES.
(…)
6ª
Os efeitos da condenação proferida nos autos, bem como a execução dessa
sentença, tem por base factos meramente contra-ordenacionais.
Por isso, a manutenção desses efeitos viola o disposto no artº. 2º.2 do CP, bem
como o disposto nos artºs. 13º., 18º.2, 29º.4 e 32º.2 da Constituição.) (fls.
59, 60 e 64)
4. Pronunciando-se sobre o recurso interposto, o Tribunal da Relação de
Guimarães, considerou, para aquilo que releva nos presentes autos:
“§ 1. A norma em questão [alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT na redacção
que lhe foi conferida pela lei n.º 53º-A/2006] reveste, inequivocamente, a
natureza de condição objectiva de punibilidade.
(…)
Contrariamente ao sustentado pelo recorrente, o facto punível segundo a lei
vigente no momento da sua prática não foi eliminado do número de infracções pela
lei nova (artigo 2º, n.º 2 do Código Penal)
(…)
No caso dos autos, conforme os recorrentes expressamente reconhecem, as dívidas
tributárias em questão não foram comunicadas ao credor tributário. Por isso que
esta nova condição objectiva de punibilidade nunca pudesse aproveitar aos
recorrentes.
Por isso, também, que a construção dos recorrentes, segundo a qual os factos por
que fo[ram] condenados à luz da lei vigente, são mera contra-ordenação social,
não tenha qualquer suporte legal.
(…)
Em consequência, improcede a tese dos recorrentes, não se vislumbrando qualquer
violação nem do disposto no artigo 2º, n.º 2 do Código Penal nem muito menos,
dos artigos 13º, 18º, n.2, 29º e 32º, n.º 2 da Constituição da República.” (fls.
113, 119 e 121)
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls.
129), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o
Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo
que se deve começar por averiguar se estão preenchidos todos os pressupostos de
admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Sempre que constatar que não foram preenchidos os pressupostos de interposição
de recurso, o Relator pode proferir decisão sumária de não conhecimento,
conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
6. Por força do artigo 79º-C da LTC, este Tribunal só pode apreciar a
constitucionalidade de normas que tenham efectivamente sido aplicadas pelas
decisões recorridas. Se tal não suceder, haverá razão para o não conhecimento do
objecto do recurso interposto.
Ora, como é bem evidente pelos excertos supra identificados, os recorrentes
invocaram apenas a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 4 do artigo
105º do RGIT, na sua versão originária, quando conjugado com o n.º 2 do artigo
2º do Código Penal. Significa isto que os recorrentes entendiam que a norma
resultante da conjugação daqueles dois preceitos legais seria inconstitucional,
na medida em que a alteração introduzida pelo artigo 95º da Lei n.º 53-A/2006
configuraria uma situação de descriminalização em sentido estrito e não uma
situação de mera sucessão de leis penais no tempo. Aliás, tal constatação sai
reforçada pelo próprio requerimento de interposição do recurso ora em apreço,
através do qual os recorrente retomam a tese de que a decisão recorrida teria
aplicado, ainda que incorrectamente (segundo o seu entendimento) o n.º 2 do
artigo 2º do Código Penal (cfr. fls. 126).
Antes de mais, deve frisar-se que este Tribunal não dispõe de poderes para
sindicar a justeza das decisões interpretativas que envolvam exclusivamente
juízos relativamente ao Direito infra-constitucional. Como tal, não cabe agora
indagar se andou bem ou mal o tribunal “a quo” ao concluir pela aplicação do n.º
4 do artigo 2º do CP, ao invés do n.º 2 do artigo 2º do CP, conforme pretendiam
os recorrentes. Certo é que a decisão recorrida rejeitou expressamente que a
alteração legislativa introduzida pelo artigo 95º da Lei n.º 53º-A/2006 ao n.º 4
do artigo 105º do RGIT constituísse uma descriminalização em sentido estrito,
pelo que é dentro deste parâmetro de entendimento que este Tribunal terá de
aferir o recurso interposto.
Partindo deste pressuposto, impõe-se concluir que a decisão recorrida nunca
aplicou o n.º 4 do artigo 105º do RGIT, na sua versão originária, conjugado com
o n.º 2 do artigo 2º do CP, tendo antes conjugado aquele primeiro preceito legal
com a norma constante do n.º 4 do artigo 2º do CP. Assim, verdadeiramente, a
norma que os recorrentes pretendem ver fiscalizada por este Tribunal não
constituiu a verdadeira “ratio decidendi” da decisão recorrida.
Da leitura da decisão recorrida – em especial, dos excertos supra identificados
– resulta que não houve uma efectiva aplicação da norma constante do n.º 4 do
artigo 105º do RGIT, nos exactos termos em que os recorrentes fixaram o objecto
do presente recurso. Pelo contrário, antes frisou o tribunal “a quo” que,
considerando que a alteração legislativa em causa introduziu uma verdadeira
condição objectiva de punibilidade, não se verificou uma verdadeira
descriminalização da conduta, subsumível ao n.º 2 do artigo 2º do CP, como
pretendiam os recorrentes.
Em suma, não tendo sido a norma, cuja inconstitucionalidade é invocada pelos
recorrentes, sido aplicada com a interpretação que eles indicam no requerimento
de recurso, impõe-se o não conhecimento do objecto do presente recurso, ao
abrigo do n.º 2 do artigo 72º da LTC.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98,
de 26 de Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7
UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de
Outubro.»
2. Inconformado com esta decisão, vem o recorrente reclamar, para a conferência,
contra a não admissão do recurso, nestes precisos termos:
«1.
No despacho sob reclamação foi escrito que, “por força do artigo 79°. -C da
LTC”, este “Tribunal (Constitucional) só pode apreciar a constitucionalidade de
normas que tenham efectivamente sido aplicadas pelas decisões recorridas”, e “se
tal não suceder, haverá razão para o não conhecimento do objecto do recurso
interposto.
2.
E por isso o recurso foi rejeitado porque “os recorrentes invocaram apenas a
inconstitucionalidade da norma constante do nº. 4 do artigo 105°. do RGIT, na
sua versão originária, quando conjugado com o nº. 2 do artigo 2°. do Código
Penal”.
3.
Com ressalva do respeito devido, o juízo espelhado no ponto anterior não
corresponde inteiramente ao que consta das alegações de recurso para o Tribunal
da Relação de Guimarães, onde sobretudo, invocaram inconstitucionalidades, nem
com o requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional.
4.
Ora, mormente daquelas conclusões de recurso colhe-se que os RECORRENTES puseram
em causa, o modo como o caso dos autos - cujos efeitos ainda se não extinguiram
- foi interpretado quer em função do nº. 4 do art°. 105°. do RGIT, na versão
originária, quer na versão actual, em função das normas constitucionais.
5.
Como os seus efeitos ainda se não extinguiram, com a entrada em vigor da nova
redacção do nº. 4 do art°. 105°. do RGIT, em 1.1.2007 esse facto era meramente
contra-ordenacional, por força do disposto nº 1 do art°. 114°. e al. d) do art°.
61°., também do RGIT, conjugados com a referida nova redacção do art°. 105°.
6.
Por isso, os RECORRENTES não puseram directamente em causa o disposto em
qualquer uma das versões do nº. 4 do art°. 105º., mas a interpretação que as
instâncias deram ao caso concreto dos autos, em função da sucessão de leis.
7.
E foi também por isso que disseram, nas conclusões aludidas, que, “de harmonia
com o princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição, a
nova redacção do nº. 4 do art°. 105°. do RGIT, à luz das normas constitucionais
(...) invocadas, despenalizou as condutas anteriores, quando não se verifiquem
os elementos referidos na conclusão 4ª: (das conclusões referidas), como é o
caso dos autos”.
8.
Portanto, o que foi posto em causa foi a interpretação do nº. 4 do art°. 105º.
do RGIT - até mais na versão em vigor que na revogada -, em função ou
conformidade com a Constituição, e não propriamente o teor dessas disposições.
9.
Foi isto que os RECORRENTES pretenderam dizer; se o não disseram melhor (e não
podem deixar de o admitir), por outra coisa não foi que a de falta de jeito.
10.
Por isso no requerimento de recurso para este Alto Tribunal, disseram que também
colocavam o recurso ao abrigo do art°. 80°.3 da LTC.
11.
E requereu assim porque, no seu modesto entender, em interpretação extensiva do
disposto no art°. 204° da Constituição, com o amparo no princípio da
interpretação das leis em conformidade com a Constituição, bem como com o
princípio da aplicação directa das normas constitucionais que estabelecem ou
consagram os direitos, liberdades e garantias, entre estes o direito - ou
garantia - consagrado na 2ª parte do nº. 4 do art°. 29°. da Constituição,
princípio este consagrado no nº. 1 do art°. 18°. da Constituição, as próprias
decisões judiciais podem ser objecto de um juízo de inconstitucionalidade, pelo
Tribunal Constitucional.
12.
Isso acontece quando o vício em causa - “in casu” a alegada despenalização -
surge “de uma desconformidade concernente à Constituição” (Marcelo Rebelo de
Sousa, O Valor Jurid. do Acto Inconstitucional, p. 321).
O mesmo Autor (idem, 324 e segt.) diz que “a depreciação mais intensa concebível
para um acto jurisdicional inconstitucional é a da inexistência, encontrando-se
em tal situação”, entre outros que elenca, “as aparências de actos
jurisdicionais que violem os direitos absolutos, o objecto ou conteúdo dos
demais direitos fundamentais e a essência de outros princípios integrantes da
Constituição material”.
13.
Não integrará esta categoria as decisões recorridas que mantêm os efeitos de uma
sentença, que ainda estão em vigor, baseada em prática de facto jurídico-penal
despenalizado?
Para os Recorrentes, com ressalva do respeito devido e melhor opinião, os actos
jurisdicionais recorridos integram aquela categoria de actos jurisdicionais
inconstitucionais.
Termos em que esta reclamação deverá proceder, prosseguindo o recurso os seus
termos.» (fls. 145 a 149)
3. Notificado da reclamação, o Representante do Ministério Público junto deste
Tribunal pronunciou-se no seguinte sentido:
«1º
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º
Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão
reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do recurso
interposto.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Para além de, na parte final da sua reclamação, denotar uma manifesta
confusão entre “inconstitucionalidade de acto jurisdicional” e
“inconstitucionalidade de norma aplicada por acto jurisdicional” – o que sempre
impediria este Tribunal de conhecer de um recurso que tivesse por objecto uma
decisão jurisdicional e não as normas por si aplicadas –, importa apenas
constatar que nenhum dos argumentos aduzidos pelos ora reclamantes colocam em
crise tudo o que já se encontra afirmado na decisão sumária.
Com efeito, conforme notado pela decisão reclamada, a decisão recorrida rejeitou
expressamente que a alteração legislativa introduzida pelo artigo 95º da Lei n.º
53º-A/2006 ao n.º 4 do artigo 105º do RGIT constituísse uma descriminalização em
sentido estrito, aplicando o regime previsto no n.º 4 (e não o n.º 2) do artigo
2º do Código Penal. Uma vez que este Tribunal não dispõe dos poderes para
sindicar a justeza dos juízos interpretativos estritamente dirigidos a normas de
Direito infra-constitucional, o recurso interposto nos presentes autos só
poderia ser aferido à luz daquele parâmetro interpretativo. Ora, como o próprio
reclamante reconhece na reclamação ora deduzida (cfr. §§ 6 e 7), aquele invocou
que pretendia ver apreciada a constitucionalidade de uma interpretação normativa
que pressupunha a descriminalização de uma conduta, quando a decisão recorrida
apenas entendeu ter havido uma sucessão de leis penais no tempo, em sentido não
estritamente descriminalizador.
Deste modo, não subsiste fundamento para alteração da decisão reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 16 de Abril de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão