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Processo n.º 249/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A., S.A., reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
no n.º 4 do art.º 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual
versão, do despacho do relator, no Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu
não admitir o recurso por ela interposto para o Tribunal Constitucional de
acórdão da mesma relação que, por seu lado, negara provimento ao recurso
jurisdicional interposto de sentença do 2.º Juízo do Tribunal de Comércio de
Lisboa que negou parcialmente provimento ao recurso de impugnação judicial de
coima aplicada à recorrente e outras arguidas por banda da Autoridade para a
Concorrência.
2 – Fundamentando a sua reclamação, a reclamante discorre do seguinte jeito:
«1- Quanto à substância, a decisão de rejeição do recurso assenta na
consideração de a reclamante não ter suscitado, “nomeadamente nas páginas 4, 5,
9 e 10 da sua motivação, que expressamente indica, qualquer
inconstitucionalidade normativa (art. 70º, nº 1, alínea b), da LTC), apenas
tendo imputado esse vício à própria sentença (...).» (cf. douta decisão
reclamada a fls. 4147 dos autos).
2- Falece, porém, razão à decisão assim tomada.
3- Com efeito, embora, in casu, estejamos perante um recurso interposto ao
abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70° da Lei 28/82, de 15/11
(LTC) – que determina que o interessado nessa forma de impugnação deva ter
suscitado, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade normativa, por
um lado, e que a norma tenha sido aplicada na decisão que se pretende combater
através do recurso para o Tribunal ad quem, por outro – não se esgota no domínio
literal desta base legal a possibilidade de interposição de recurso.
4- Efectivamente, tem sido entendimento do Tribunal ad quem de que se encontra
também preenchido tal requisito da invocação da inconstitucionalidade, nos casos
em que a situação de desconformidade com Constituição da República Portuguesa
(C.R.P.) é suscitada pelo recorrente em relação à forma de interpretação da
norma feita pelo Tribunal a quo, conforme jurisprudência defendida em vários
Acórdãos do Tribunal Constitucional.
5- Ora, no caso em apreço, a reclamante suscitou a questão da
inconstitucionalidade da interposição das normas dos artigos 374°, nº 2 e 375º,
nº 1 do C. P. Penal; 41°, nº 1 do D.L. nº 433/82 de 27/10 (versão actualizada) e
22° e 44° da Lei nº 18/2003, de 11/06, por desconformidade com a norma contida
no artigo 205°, n°1 da C.R.P.
6- Tal suscitação teve lugar nas páginas 4 e 5 da Motivação de Recurso
apresentada pelo reclamante no Tribunal recorrido.
7- E a interpretação do identificado complexo normativo adoptado pelo Tribunal a
quo foi considerada violadora da norma constitucional que se indicou por, no
mínimo, interpretar restritivamente aquele complexo normativo.
8- Daí resultando que a sentença não diga, como devia, em termos de se conhecer
qual foi o seu itinerário cognoscitivo e valorativo, se o sentido favorável,
referido no arte 22 da aludida Motivação, se repercutiu e em que medida, na
dosimetria da sanção aplicada in casu.
9- O que, repete-se, manifestamente conflitua com a norma do nº 1 do art. 205°
da C.R.P.
10- Na mesma sede de Motivação de Recurso, também se suscitou a questão da
inconstitucionalidade da interpretação do artigo 43°, nº 1, alínea a) da Lei
18/2003, de 11/06, por violar o princípio Constitucional da igualdade,
consagrado normativamente no art. 13° da C.R.P.
11- Suscitação que tem lugar nas páginas 9 e 10 dessa Motivação.
12- Entende a reclamante que a interposição dada pelo Tribunal a quo à norma
daquele artigo 43°, nº 1, alínea a) da Lei 18/2003, de 11/06 é uma interposição
declarativa lata que, designadamente pelo alegado de 55. a 62. da Motivação
apresentada pela ora reclamante, viola, insiste-se, aquele princípio da
igualdade, constitucionalmente consagrado, e por mor disso trata de modo igual
aquilo que é desigual, com prejuízo claro para a reclamante.
13- Sendo certo que a interpretação inconstitucional, pelo Tribunal a quo, das
normas elencadas em 5. e 10. desta reclamação se verificou em concreto no
processo.
14- Em manifesta violação, respectivamente, da norma do nº 1 do art. 205° da
C.R.P. e do princípio constitucional plasmado no art. 13° da Lei Fundamental.
15- E que tais normas, alvo dessa interpretação inconstitucional, foram
aplicadas na decisão de que intenta recorrer.
16- Assim, por tudo o que se veio de expor e tendo em consideração a dimensão
normativa dos supra identificados preceitos, sublinha-se que não se pretende
imputar inconstitucionalidade à decisão do Tribunal a quo.
17- Mas sim à interpretação que essa decisão deu àqueles citados preceitos.
II
18- A decisão de rejeição do recurso assenta, por outra banda, no facto de,
alegadamente, ter sido o respectivo requerimento de interposição de recurso
apresentado depois do termo do prazo para tanto estabelecido legalmente (art.
75°, n°1, da L.T.C).
19- Entende a reclamante que tal intempestividade não se verificou.
20- Efectivamente, a reclamante recebeu notificação, datada de 08/11/2007, do
Tribunal da Relação de Lisboa, dando-lhe conhecimento do Acórdão contendo a
decisão de mérito da causa.
21- Em 23/11/2007, a co-arguida e recorrente “B., Lda requereu àquele Tribunal
da Relação que procedesse à rectificação de erros materiais contidos naquele
Acórdão, sendo disso o reclamante notificado pelo Tribunal da Relação em
26/11/2007.
22- Em 13/12/2007, a reclamante é notificada pelo mesmo Tribunal da Relação do
Acórdão por este proferido, no qual procede à correcção de lapsos e erros no
Acórdão de mérito da causa.
23- O Acórdão corrigido contivera erros e lapsos cuja eliminação não importou
modificação essencial (cf. art. 380°, nº 1, al. b) de C.P. Penal), e sem
relevância para caber no art. 410°, nº 2 do C. P. Penal.
24- Por via do requerimento de rectificação referido em 21. desta reclamação, o
prazo para recurso do começa a correr depois de notificada a decisão proferida
tal requerimento de rectificação (cf. anotação 2, alínea h) ao art. 380° e
anotação 2 ao art. 411°, ambos do C. P. Penal, PAULO PINTO ALBUQUERQUE in
“Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da
Convenção dos Direitos do Homem”, Universidade Católica Editora, págs. 950, 1125
e 1126)
25- Sendo certo que esta última notificação, repete-se, foi feita à reclamante
pelo Tribunal da Relação em 13/12/ 2007.
26- O prazo para interpor recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias.
27- Houve uma interrupção do prazo, decorrente das férias judiciais, que começou
em 22/12/2007 e acabou em 03/01/2008.
28- A ora reclamante deu entrada, nos C., S.A., em 08/01/2008, do seu
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
29- Pelo exposto, consideradas que sejam as regras legais de contagem dos prazos
aplicáveis in casu (art. 103° nº 1 do C. P. Penal), só se pode constatar que a
reclamante apresentou tempestivamente o seu requerimento de interposição de
recurso para o Tribunal Constitucional.
30- É facto adquirido que no caso presente se verificou prévio esgotamento dos
meios ordinários de recurso quanto à decisão ora em crise e sub judice.
Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência, ser
admitido o recurso.».
3 – O despacho reclamado tem o seguinte teor:
«Os recursos interpostos nestes autos para o Tribunal da Relação de Lisboa foram
apreciados pelo acórdão neles proferido no dia 7 de Novembro de 2007 (fls. 4065
a 4106).
Esse acórdão foi notificado aos recorrentes por via postal registada expedida no
dia seguinte (fls.4109 e 4110).
Essa notificação presume-se efectuada no dia 13 de Novembro (artigo 113°, nº 2,
do Código de Processo Penal).
Uma vez que não era admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça
(artigo 75°, nº 1, do RGIMOS), não foi tempestivamente interposto recurso para o
Tribunal Constitucional (artigo 75°, nº 1, da LTC) e não foi, no prazo de 10
dias (artigo 105°, nº 1, do Código de Processo Penal), exercido qualquer dos
direitos conferidos pelo artigo 380° do Código de Processo Penal ou arguida a
nulidade do acórdão (artigo 379° do mesmo diploma e artigo 668°, nº 3, do Código
de Processo Civil), é claramente intempestiva a arguição de nulidades feita
através do requerimento remetido a este tribunal pela “B.” no dia 10 de Janeiro
de 2008.
Tal como dissemos no acórdão proferido no dia 12 de Dezembro (fls. 4122 a 4128),
e pelos fundamentos dele constantes, não se pode entender que o requerimento
sobre o qual o mesmo versou consubstancie o exercício do direito de correcção da
sentença previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 380° do Código de Processo
Penal, não tendo, por isso, esse requerimento interrompido o prazo para a
prática dos mencionados actos processuais.
Assim sendo, o acórdão proferido no dia 7 de Novembro já transitou em julgado.
Não há, portanto, que apreciar o requerimento de fls. 4141 a 4144 apresentado
pela “B.”.
Notifique.
Fls. 4134: uma vez que, pelo que se referiu, o requerimento de interposição do
recurso foi apresentado depois do termo do prazo para tanto estabelecido
legalmente (art. 75°, nº 1, da LTC) e porque a sociedade “A.” não suscitou,
nomeadamente nas páginas 4, 5, 9 e 10 da sua motivação, que expressamente
indica, qualquer inconstitucionalidade normativa [art. 700, nº 1, alínea b), da
LTC], apenas tendo imputado esse vício à própria sentença, não admito o recurso
por ela interposto para o Tribunal Constitucional (art. 76° da LTC).
Notifique.».
4 – O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional pronunciou-se, no
seu parecer, pelo indeferimento da reclamação com base nos mesmos fundamentos em
que se abonou a decisão reclamada, dizendo:
«A jurisprudência constitucional vem entendendo, de forma reiterada, que a
suscitação pela parte, perante o Tribunal “a quo”, de incidentes pós-decisórios
anómalos, não legalmente previstos, não “prorroga” o prazo de 10 dias para
interpor o recurso de fiscalização concreta da decisão originariamente
proferida: é, porém, duvidoso que se possa reconduzir a esta situação o caso em
que a parte vem requerer a rectificação de lapsos de escrita, constantes da
decisão reclamada – pretensão esta que, apesar da manifesta irrelevância de tais
lapsos materiais, acabou por ser deferida pela Relação.
De qualquer modo, subsiste inteiramente o segundo fundamento apontado no
despacho reclamado para a rejeição do recurso: não ter obviamente suscitado a
sociedade recorrente, no âmbito das conclusões da motivação de recurso, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de constituir objecto
idóneo do recurso endereçado a este Tribunal Constitucional. Tal circunstância
determina naturalmente a manifesta improcedência da presente reclamação.».
B – Fundamentação
5.1 – Como resulta do relatado, a decisão ora reclamada não admitiu o recurso
de constitucionalidade com base em dois fundamentos autónomos: por um lado,
porque o prazo da sua interposição se havia já esgotado e, por outro, porque a
reclamante não suscitara, no recurso interposto para a Relação, qualquer questão
de constitucionalidade normativa.
A resposta ao problema da tempestividade do recurso de constitucionalidade
depende da posição que se tome quanto à questão de saber se deverá tomar-se como
incidente pós-decisório que seja enquadrável na alínea b) do n.º 1 do art.º
380.º do Código de Processo Penal o requerimento de rectificação do acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa, pretendido recorrer, de 7 de Novembro de 2007,
que foi apresentado não pela agora reclamante mas por uma co-arguida – a B.,
L.da.
Na verdade, a entender-se que tal requerimento não consubstancia o direito
previsto em tal preceito, como ajuizou a decisão ora reclamada, e mesmo a
admitir-se que o exercício desse direito aproveite ao co-arguido que o não
apresentou, teria sempre de concluir-se pela sua extemporaneidade, por
ultrapassado o prazo de 10 dias estabelecido no art.º 75.º, n.º 1, da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (LTC) para a interposição do recurso de
constitucionalidade, mesmo descontadas as férias judiciais do Natal.
Não se torna, todavia, necessário tomar posição nessa questão: é que a
reclamação sempre improcede com base no outro fundamento alternativo da decisão
reclamada.
5.2 – Estabelecem os art.ºs 280º, n.º 1, alínea b), da CRP e 70º, n.º 1,
alínea b), da LTC que cabe recurso, para o Tribunal Constitucional, de decisões
dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada
durante o processo.
Segundo a jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal, constituem
pressupostos específicos do recurso interposto ao abrigo destes preceitos que a
norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional
aprecie tenha constituído a ratio decidendi da decisão, ou o fundamento
normativo do seu próprio conteúdo, nisso se traduzindo a aplicação em concreto
da norma, e que a questão de inconstitucionalidade tenha sido suscitada, em
tempo e por modo funcionalmente adequado, para que o tribunal recorrido pudesse
conhecer dela.
A exigência daquele requisito encontra a sua razão de ser na própria natureza
da função jurisdicional (aqui constitucional), dado que lhe cumpre apenas
conhecer e decidir de controvérsias concretas e não de situações apenas
académicas: se a norma cuja validade constitucional se questiona não serviu de
fundamento à decisão, nunca a pronúncia sobre a sua eventual
inconstitucionalidade poderia ter quaisquer reflexos jurídicos sobre a decisão,
permanecendo-lhe estranha.
Cabe, por outro lado, acentuar, que o objecto desse recurso constitucional só
pode ser constituído por normas jurídicas que tenham constituído ratio decidendi
da decisão (cf., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96,
publicado no DR II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho,
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 6.ª edição, p. 924).
O recurso de constitucionalidade, tal como foi gizado pelo legislador
constitucional – com natureza instrumental e relativamente a normas jurídicas -
tem em vista o controlo da conformidade com a Constituição (as normas e
princípios constitucionais) das normas jurídicas que tenham sido convocadas como
suporte normativo da concreta decisão proferida.
Sendo assim, estão arredados do objecto do recurso os outros actos admitidos
na ordem jurídica, embora estes façam aplicação directa das normas e princípios
constitucionais, como acontece com as decisões judiciais (sentenças e
despachos), os actos administrativos e os actos políticos.
Deste modo, não pode, no recurso de constitucionalidade, sindicar-se a
correcção jurídica da sentença, no que concerne à aplicação que a mesma faça,
directamente, das normas de direito infraconstitucional e das normas e
princípios constitucionais.
A violação directa das normas e princípios constitucionais pela decisão
judicial, atenta a circunstância de não vigorar, entre nós, o meio
constitucional do recurso de amparo, apenas pode ser conhecida no plano dos
recursos de instância previstos na respectiva ordem de tribunais.
Já relativamente ao ónus de suscitação, a questão tem que ver com o sistema
de fiscalização concreta de constitucionalidade das normas que a nossa Lei
Fundamental adoptou, de controlo difuso por via do recurso (cf. José Manuel M.
Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e
actualizada, 2007, pp. 31 e segs.).
Torna-se, pois, necessário que a questão de inconstitucionalidade tenha sido
suscitada durante o processo.
A suscitação, durante o processo, tem sido entendida, de forma reiterada pelo
Tribunal, como sendo a efectuada em momento funcionalmente adequado, ou seja, em
que o tribunal recorrido pudesse dela conhecer por não estar esgotado o seu
poder jurisdicional (cf., entre outros, os acórdãos n.º 496/99, publicado no
Diário da República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 33º vol., p. 663; n.º 374/00, publicado no Diário da República
II Série, de 13 de Julho de 2000, Boletim do Ministério da Justiça – BMJ – 499º,
p. 77, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., p.713; n.º 674/99,
publicado no Diário da República II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, BMJ 492º,
p. 62, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45º vol., p.559; n.º 155/00,
publicado no Diário da República II Série, de 9 de Outubro de 2000).
Mas, por outro lado, o ónus de suscitação da constitucionalidade, durante o
processo, tem ainda uma outra vertente.
É que a questão de constitucionalidade da norma cuja apreciação se requer ao
Tribunal Constitucional por via do recurso tem de ser colocada ao tribunal
recorrido em termos de este saber que tem de apreciar e decidir essa concreta
questão de constitucionalidade, o que implica, que a questão seja colocada ao
tribunal recorrido, em termos perceptíveis (cfr., acórdão n.º 178/95, publicado
nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p. 1118).
A este respeito, escreveu-se no acórdão n.º 560/94 (publicado no Diário da
República II Série, de 10 de Janeiro de 1995) que «a exigência de um cabal
cumprimento do ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da
questão de constitucionalidade não é [...] “uma mera questão de forma
secundária”.
É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva
pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal
Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da questão (e
não a um primeiro julgamento de tal questão.».
Deste modo, a questão de constitucionalidade tem de ser colocada ao tribunal
recorrido, em termos de este saber que tem essa concreta questão de
constitucionalidade para resolver. Donde resulta que o questionante tenha de
colocar, em termos perceptíveis, qual a concreta questão de normatividade
jurídica cuja validade constitucional controverte.
5.3 – Ora, examinando as alegações da reclamante para o Tribunal da Relação
de Lisboa, condensadas na respectiva síntese conclusiva, constata-se que esta
não questionou, sob o prisma de constitucionalidade, nenhuma norma que viesse a
constituir fundamento normativo do decidido.
Na verdade, nessas conclusões, a recorrente concluiu do seguinte jeito:
«I- No seu recurso de impugnação judicial a recorrente alegou que
era uma empresa conceituada como reconhecido pela distinção que lhe fora
conferida pelo poder autárquico do território onde se encontra sedeada.
II- A douta sentença não conheceu de tal realidade factual, nem a
valorou como circunstância a qualquer título relevante.
III- E deveria tê-la conhecido e apreciado, pois que tem relevância
para a medida da sanção aplicada.
IV- Assim, é nula, por esta vertente, a sentença sub judice
V- A sentença recorrida decidiu que não houve
violação, por parte das arguidas, do art. 81º do Tratado C.E., ao contrário do
que havia decidido a AdC e que tal deveria funcionar em “sentido favorável” a
elas.
VI- Mas a sentença não curou de dizer em como e em
que medida tal “sentido favorável” fundamentadamente presidiu à escolha e à
medida da sanção aplicada.
VII- Por isso, também por esta óptica, a douta sentença
padece do vício de nulidade e de inconstitucionalidade, por lhe falecer a
fundamentação devida.
VIII- Como esteio da sua alegação da figura do “estado de
necessidade” a recorrente indicou um conjunto de dados económicos numérica e
graficamente expressos, dados que nunca foram postos em causa nem pela AdC nem
pelo M.P.
IX- Tais dados, conjugados com as regras da
experiência comum consubstanciam argumentação capaz e cabal para sustentar a
posição defendida pela recorrente “estado de necessidade”.
X- Esses dados devem ainda ser somados com o que
provado se encontra nos pontos 63 e 81 da matéria de facto provada (pgs. 65 e 66
da sentença.
XI- Toda esta realidade, mesmo que se entenda que
aqui só tem aplicação o art. 35º, nº 2 do C. Penal, deveria ter determinado uma
atenuação especial da coima, o que o Tribunal não fez, tendo neste campo
decidido mal.
XII- A dita realidade (procura, impondo as suas
condições à oferta no negócio do sal) configura, na prática, uma situação de
“abuso de dependência económica”, também alegada pela recorrente no seu recurso
de impugnação judicial.
XIII- O “Acordo” em exame nestes autos surgiu e
desenvolveu-se num quadro económico do sector do sal em que as empresas
respectivas, entre as quais a recorrente, vinham acumulando resultados de
exercício negativos, em vista da actuação das chamadas “grandes superfícies” e
“centrais de compras” do comércio tradicional, as quais configuravam e
configuram uma situação de “abuso de dependência económica”.
XIV- Mesmo que tal situação, de per si, não justificasse
o acordo dos autos, por não estarem preenchidos os requisitos do art. 5º da L.C.
sempre deveria ser levado em linha de conta, considerando-se diminuta a culpa
das arguidas participantes no acordo, com o consequente impacto na respectiva
censurabilidade e na dosimetria sancionatória.
XV- E mal andou a Meritíssima Juíza a quo ao não ter
levado em linha de conta no sentido propugnado.
XVI- Foi exclusivamente quanto à mercadoria “sal” que foi
estabelecido o acordo dos autos, que terá motivado a contra ordenação em apreço.
XVII- No que respeita ao ano de 2004 o volume de negócios da
recorrente respeitante ao sal, foi de € 5.436.188,74 correspondendo 10% deste
valor a € 543.618,87.
XVIII- O volume de negócios da recorrente, a considerar para
efeitos de medida da coima, deve reportar-se unicamente ao sal, pelo que deve o
art. 43°, nº 1 al. a) da L.C. ser interpretado restritivamente nesse sentido,
sob pena de a recorrente ficar prejudicada relativamente às suas co-arguidas,
pondo-se em crise o princípio constitucional da igualdade, pois que quanto a
elas não resultou provado que negociassem com outro produto para além do sal.
XIX- Deve ser assim, aplicada coima recorrente que não
exceda o montante de € 27.180,94, considerando o que se diz no artigo 71 das
alegações do recurso de impugnação judicial, o que tudo aqui se dá por
reproduzido, por economia processual.
XX- A sentença labora em erro ao calcular o benefício
económico obtido alegadamente pela recorrente com o acordo, fazendo-o
corresponder às compensações recebidas.
XXI- As empresas arguidas, mesmo quando recebiam as
penalizações/compensações ficavam prejudicadas, pois perdiam quotas de mercado e
os custos fixos da empresa, em função das quantidades vendidas, aumentavam.
XXII- Só com uma perícia aos elementos
económico-contabilisticos da recorrente e co-arguidas se poderia, efectivamente,
ter apurado com certeza e segurança e tal não foi feito.
XXIII- Não pode, assim, o benefício económico, entendido como
foi pelo Tribunal, funcionar como critério de determinação da medida da coima
contra a recorrente e co-arguidas, pois que tal violaria o princípio da
presunção de inocência do arguido e do in dubio pro reo, o que está
constitucionalmente consagrado.
XXIV- Não deve ser considerada circunstância agravante para a
recorrente o facto de ter iniciado o acordo, pois que não teve uma posição de
liderança no funcionamento do mesmo, como vem reconhecido na sentença e ipso
facto não poderá tal “Agravante” ser tida em conta na medida da coima.
XXV- Não se provou que durante o período de vigência do
acordo tivesse havido aumentos dos preços do sal; que tenha havido efeitos no
sector da extracção de sal limitando aí as aquisições; não se provou que as
arguidas fossem responsáveis por cerca de 75% a 90% das vendas de sal por grosso
em território nacional; nem se provou que o poder de negociação delas face aos
seus clientes passasse para as mesmas percentagens no mercado do sal.
XXVI- Continuou no dito período a haver concorrência e
importações de sal.
XXVII- O mercado do sal continuou a funcionar e não foi
demonstrado que tenha sido afectado de forma sensível, o que afasta a prática da
infracção ao art. 4º, nº 1 da L.C.
XXVIII- Mesmo que assim não se entenda, o desvalor e danosidade da
conduta em apreço são diminutas e deveriam ter-se repercutido como tal na medida
da coima.
XXIX- A coima aplicada, de qualquer modo, é excessiva, sendo
exorbitante o valor da mesma, pelo que sempre deverá ser diminuída como atrás se
propugnou em conclusão.
XXX- O acordo – mesmo que entenda que violou o art. 4º, nº 1
da L.C. – teve carácter defensivo face à prática comercial das “Grandes
Superfícies/Grandes distribuidoras” e “Centrais de compras”, no campo da
procura, o que retira, ou diminui drasticamente, a censurabilidade à conduta da
recorrente.
XXXI- A decisão a quo violou o disposto nos art°s 374º, nº 2 e
375º, nº 1 e 379º do C. P. Penal; art°s 4º, nº 1, 43º, nº 1 e 44º da L.C.; art°s
18º, nº 1, 32º e 44º, nº 1 da R.G.C.O.; art°s 35, nº 2 e 71º e 72º do C. Penal e
art°s 13º, 32º, nºs 2 e 10 e 205º, nº 1 da C.R.P.,
XXXII- O art. 43º, nº 1 da L.C. devia ter sido interpretado
restritivamente in casu, quanto à recorrente, no sentido de que o “volume de
negócios” ali referido só se reportava ao “sal”.».
Posteriormente, veio a recorrente dizer mais o seguinte:
«A., SA., recorrente nestes autos, onde melhor identificada está, apercebendo-se
agora que, por lapso, não formulou expresse a conclusão que, aliás, já estava
implícita e era decorrência das demais conclusões, vem agora em aditamento
formulá-la expressamente como segue, devendo ser acobertada sob o número XXXIII:
“Devem ser decretadas as nulidades e a inconstitucionalidade apontadas à
sentença nas precedentes conclusões (IV e VII, notadamente); mesmo que não se
entenda que a decisão é nula e inconstitucional, deve, de qualquer modo ser a
mesma revogada e substituída por outra que reconheça que não houve infracção ao
art. 4º, nº 1 da LC ou, caso também assim não se entenda, deve a coima aplicada
ser considerada excessiva e baixada para € 27.180,94, o que tudo se requer com
as legais consequências”.».
Nesta argumentação, a reclamante não questiona a constitucionalidade, por
violação de quaisquer normas ou princípios constitucionais, das normas jurídicas
que constituíram a ratio decidendi da decisão pretendida recorrer, mas antes
apoda a inconstitucionalidade ou a violação de princípios constitucionais à
própria decisão judicial em si mesma, maxime, ao seu momento subsuntivo perante
o sistema legal, como bem nota o despacho ora reclamado.
Sendo assim, a reclamação não pode proceder.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide
indeferir a reclamação e condenar a reclamante nas custas, fixando a taxa de
justiça em 20 UCs.
Lisboa, 2 de Abril de 2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos