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Processo n.º 989/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A.,
S.A., o primeiro vem interpor recurso, para si obrigatório, ao abrigo da alínea
a) do nº 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional [de ora em diante, LTC], da decisão da 1ª Secção do 2º
Juízo do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (fls.67 a 75) que recusou a
aplicação das normas constantes dos artigos 4º, 8º e 23º do Regulamento de
Publicidade no Município de Cascais, aprovado em 23 de Julho de 1997, por
deliberação da Câmara Municipal de Cascais, e, em 06 de Outubro de 1997, por
deliberação da Assembleia Municipal de Cascais, “por se entender que as mesmas
padecem de inconstitucionalidade orgânica, violando, à data, os arts. 106º, nº 2
e 168º, nº 1, al. i) da CRP (actuais artigos 103º, n- 2 e 165º, nº 1, al. i) da
CRP)” (fls. 80).
O enunciado das normas desaplicadas pela decisão recorrida, com fundamento em
inconstitucionalidade, é o seguinte:
“Artigo 4º
(Licenciamento)
1. A afixação ou a inscrição de mensagens publicitárias em bens ou espaços
afectados ao domínio público, ou que sejam deles visíveis, fica sujeita a
licenciamento prévio, nos termos e condições estabelecidos no presente
regulamento.
2. O disposto no número anterior não é aplicável:
a) às mensagens publicitárias amovíveis, expostas no interior ou montras,
com acesso pelo interior dos estabelecimentos, ou que não tenham sobre a via
pública saliência superior a 10 cm, sem prejuízo de outras autorizações ou
licenças exigíveis;
b) à informação que resulte de imposição legal;
c) os distintivos que indiquem a concessão de regalias inerentes à
utilização de sistemas de crédito ou de pagamento, nos estabelecimentos onde
estejam colocados.
3. (…)
Artigo 8º
(Renovação)
As licenças anuais de publicidade são automaticamente renováveis,
por iguais e sucessivos períodos, excepto se o seu titular:
a) requerer a não renovação da licença, nos 30 dias anteriores ao termo da
sua validade;
b) requerer a alteração da mensagem publicitária;
c) for notificado da não renovação da licença, nos 30 dias anteriores ao
termo da sua validade.
Artigo 23º
(Taxas)
O titular da licença para inscrição ou afixação das mensagens
publicitárias, fica sujeito ao pagamento das taxas devidas, nos termos da
regulamentação em vigor.”
2. Notificado para alegar, o Ministério Público veio pronunciar-se no seguinte
sentido:
“1. Apreciação da questão de inconstitucionalidade suscitada
O presente recurso vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que recusou
aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma, constante do
regulamento local (artigos 4º, 8º e 23º do Regulamento Municipal de Publicidade
de Cascais), enquanto submete ao pagamento de taxa a renovação de licença de
publicidade situada ou afixada em imóveis pertencentes a particulares.
Como, aliás, dá nota a decisão recorrida, a jurisprudência
constitucional vem, de modo reiterado, entendendo que falta o essencial
requisito da bilateralidade ou sinalagmaticidade aos tributos que oneram
mensagens publicitárias situadas inteiramente em imóveis particulares.
Tal jurisprudência impõe-se, aliás, com particular nitidez e clareza
nos casos em que está em causa a mera renovação anual da licença – e não a
originária autorização ou licenciamento para a criação do suporte publicitário
(em que se poderia ainda ver na imposição do referido tributo, a contrapartida
de uma actividade de polícia ou fiscalização legitimamente exercitada pela
autarquia, nos domínios urbanísticos e ambiental) – cfr. Cardoso da Costa, Ainda
a Distinção entre «Taxas» e «Impostos» na Jurisprudência Constitucional in
Homenagem a José Guilherme Xavier de Bastos, 2006.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º
Conforme jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional, são
inconstitucionais as normas que impõem o pagamento de taxas como pretensa
contrapartida da mera renovação anual de licenças em publicidade, quando os
suportes publicitários se encontrem inteiramente situados em prédios
pertencentes a particulares.
2º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade da norma que
integra o objecto do presente recurso.”
3. Notificada para alegar, a recorrida A., S.A., acompanhou
integralmente a fundamentação constante da decisão recorrida, tendo pugnado pela
confirmação do juízo de desaplicação das normas objecto do presente recurso, com
fundamento na sua inconstitucionalidade.
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Com efeito, conforme aliás abundantemente demonstrado pela decisão recorrida
e realçado pelo Ministério Público, nas suas alegações, a questão de
inconstitucionalidade que constitui objecto do presente recurso já foi decidida,
em diversas oportunidades, por jurisprudência constante deste Tribunal (a mero
título de exemplo, ver Acórdãos n.º 558/98, n.º 63/99, n.º 32/00, n.º 437/03,
n.º 453/03, n.º 34/04, n.º 109/04, n.º 464/04).
Em todas essas ocasiões, o Tribunal Constitucional pôde concluir que, havendo
utilização de imóveis cuja propriedade pertence a particulares para afixação de
publicidade, não se verifica qualquer ónus ou encargo para o espaço público,
pelo que falece qualquer tentativa de estabelecer uma
correspectividade/sinalagmaticidade entre a taxa a pagar e qualquer serviço a
prestar pelo município, a título de contrapartida específica. Não sendo
verificada qualquer correspectividade/sinalagmaticidade entre a taxa a pagar e
uma eventual contrapartida por parte do município que beneficia da quantia
entregue para liquidação da taxa, é forçoso concluir pela natureza de imposto
daquele dever fiscal. Nestes termos, na medida em que as normas constantes dos
artigos 4º, 8º e 23º do Regulamento de Publicidade no Município de Cascais não
constam nem de lei da Assembleia da República, nem sequer de decreto-lei
autorizado, verifica-se uma evidente inconstitucionalidade orgânica daqueles
mesmos preceitos legais. Neste sentido, ver, a título de exemplo, o acórdão nº
32/00:
“A questão que a recorrente coloca, a este respeito, é a da natureza da
importância exigida pela Câmara Municipal, a título de licença ou sua renovação:
será uma «taxa» ou revestirá a natureza de um verdadeiro imposto?
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria e precisamente
sobre o artigo 18º da mencionada Tabela. Uma primeira vez, a propósito de norma
de teor idêntico, mas correspondente à publicidade nos veículos de transporte
colectivo e nos veículos particulares (Artigo 62º da Tabela de Taxas e Licenças
Municipais da Câmara Municipal de Guimarães), no Acórdão n.º 558/98, publicado
no Diário da República, IIª Série, de 11 de Novembro de 1998). E, pela segunda
vez, mas agora exactamente sobre o artigo 18º da Tabela de Taxas e Outras
Receitas Municipais da Câmara Municipal de Lisboa, no Acórdão n.º 63/99, de 2 de
Fevereiro de 199, publicado no Diário da República, IIª Série, de 31 de Março de
1999.
Neste segundo Acórdão, o Tribunal remeteu para a argumentação expendida no
Acórdão n.º 558/98, por se tratar de hipóteses em tudo semelhantes, a merecerem
o mesmo tratamento jurisprudencial.
No caso em apreço, trata-se exactamente da mesma norma que foi apreciada no
Acórdão n.º63/99, não se vislumbrando quaisquer razões que imponham uma
diferente solução da que ali foi adoptada. Assim, passa-se a transcrever a
fundamentação que ali foi expendida:
“Simplesmente, não será do simples facto de o licenciamento da actividade
publicitária competir, na área dos respectivos municípios, às câmaras
municipais, que decorre, desde logo e sem mais, que o tributo cobrado pelas
edilidades aos responsáveis pela afixação e inscrição das mensagens de
propaganda, haja de ser considerado como uma «taxa».
Efectivamente, não passa este Tribunal em claro que, como se disse no citado
Acórdão nº 313/92, 'mesmo nas hipóteses em que a actividade dos particulares
sofre uma limitação, aqueloutra actividade estadual, consistente na retirada do
obstáculo à mencionada limitação mediante o pagamento de um tributo, é vista
pela doutrina como a imposição de uma «taxa» somente desde que tal retirada se
traduza na dação de possibilidade de utilização de um bem público ou
semi-público (cfr., sobre o ponto, Teixeira Ribeiro na citada Revista)',
acrescentando-se que, '[s]e este último condicionalismo não ocorrer,
deparar-se-á uma situação subsumível à existência de um encargo ou de uma
compensação tributo que se aproximará da figura do «imposto» nos termos que a
seguir se verão, sem que com isto se queira significar que a imposição de
contributo só é recondutível à dicotomia de «taxas» ou «impostos».
Na realidade, assente uma relação sinalagmática característica da «taxa», o que,
como é claro, implica uma contrapartida de diferentes naturezas por parte do
ente público impositor do tributo, tem a doutrina entendido que são
essencialmente três os tipos de situações em que essa contrapartida se verifica
e que se consubstanciam na utilização de um serviço público de que beneficiará o
tributado, na utilização, pelo mesmo, de um bem público ou semi-público ou de um
bem do domínio público e, finalmente, na remoção de um obstáculo jurídico ao
exercício de determinadas actividades por parte dos particulares (cfr. Teixeira
Ribeiro, ob. e local citados, Pitta e Cunha, Xavier de Basto e Lobo Xavier,
também ob. e loc. cits.).
Ora, quando em causa se encontra a terceira daquelas situações (rememore-se, a
que consiste no levantamento do obstáculo jurídico ao exercício de determinada
actividade por parte do tributado), defende a doutrina que o encargo pela
remoção - in casu, a concessão de licenciamento para a afixação ou inscrição de
publicidade - só pode configurar-se como «taxa» se com essa remoção se vier a
possibilitar a utilização de um bem semi-público (vide autores por último
citados e Sousa Franco in Finanças Públicas e Direito Financeiro, 4ª ed., vol.
1, 33, que, em vez de bens semi-públicos, fala de bens colectivos, quer públicos
ou privados de uma perspectiva de provisão pública, quer de bens colectivos
impuros).
Neste contexto, e não olvidando que a norma sub specie se reporta a painéis
publicitários afixados ou inscritos, não em quaisquer bens ou locais públicos ou
semi-públicos, mas sim em veículos de transporte colectivo ou em veículos
particulares (e são desta última espécie os veículos da recorrente), não se
lobriga, por um lado, que forma de utilização de um bem semi-público esteja em
causa e, por outro, que o ente tributador venha a ser a ser constituído numa
situação obrigacional de assumpção de maiores encargos pelo levantamento do
obstáculo jurídico.
Mas, mesmo que o tributo criado pela norma em análise, possa ser visualizado
como aquilo que certa doutrina (designadamente estrangeira) apelida de
contribuições especiais ou tributos especiais (cfr. Perez de Ayala e Eusebio
Gonzalez Curso de Derecho Tributário, 1º Tomo, 208), o que é certo é que a
doutrina nacional, quase diríamos sine discrepante, tem sustentado que tais
contribuições ou tributos não devem, do ponto de vista do seu tratamento, ser
vistas diferenciadamente dos «impostos».
Em face do exposto, e porque se não vê, por um lado - perspectivando o tributo
em causa como um encargo derivado pelo levantamento de obstáculos jurídicos ao
exercício ou ao desenvolvimento de uma actividade por parte de um particular -
que haja da sua parte a utilização de um bem semi-público (ou colectivo na
linguagem de Sousa Franco) e, por outro, que, mesmo na óptica de nos situarmos
perante uma contribuição ou um tributo especial, ele devesse ter um tratamento
sui generis diferente do que deve ser conferido aos impostos, uma só solução se
nos anteolha. É ela a de a respectiva imposição haver de obedecer aos ditames
que pela Lei Fundamental são dirigidos aos «impostos».
Daí que a norma impositora do encargo em apreciação, porque criada por diploma
não emanado pela Assembleia da República (ou pelo Governo devidamente
credenciado por aquela), deva ser considerada como enfermando do vício de
inconstitucionalidade orgânica.”.
8 – Nos autos, tratando-se de hipótese inteiramente similar da que foi tratada
no acórdão transcrito – reclamos luminosos instalados em telhados de/ou nos
próprios prédios urbanos - não se está perante a utilização de bens ou locais
públicos ou semi-públicos, mas de bens ou locais pertencentes a particulares,
como resulta do artigo 1344º do Código Civil, pois que “a propriedade dos
imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície”.
Acresce que o facto de, no caso em apreço, se tratar de renovações, em nada
altera a conclusão a que se chegou quanto á natureza da importância exigida pela
Câmara Municipal. De facto, para além de a renovação da licença – se o prazo
para que foi concedida for igual ou superior a 30 dias – ser «automática e
sucessiva», o Regulamento respectivo determina que a tais renovações se aplica a
mesma «taxa» que se exige para o licenciamento: ou seja, à renovação da licença
é aplicável a mesma obrigatoriedade de pagamento de uma dada importância a
título de «taxa» que é exigida para o licenciamento prévio, que ficam assim
totalmente equiparados.
No sentido de que este tipo de taxa criado pela norma que vem questionada é
inconstitucional, veja-se o trabalho de P. Pitta e Cunha, J. Xavier de Basto e
A. Lobo Xavier, Os Conceitos de Taxa e Imposto – A propósito de licenças
Municipais, in FISCO, n.º 51-52, Fev.-Mar. 93, pág. 13 e ss).
Tem, pois, de se concluir pela inconstitucionalidade orgânica das normas
questionadas: os artigos 14º e 22º do Regulamento sobre Publicidade da Câmara
Municipal de Lisboa, e o artigo 18º da Tabela de Taxas, Licenças e Outras
Receitas Municipais.”
5. Esta jurisprudência tem sido, como se disse, persistente e constantemente
reiterada nos Acórdãos supra mencionados, sendo inteiramente aplicável ao caso
sub judice.
Aliás, a circunstância de, no caso em apreço nos presentes autos, se discutir a
constitucionalidade de normas que impõem o pagamento de uma taxa pela mera
renovação de licença (e não apenas pelo licenciamento “ex novo”) mais reforça a
ausência de qualquer correspectividade/sinalagmaticidade entre a taxa devida e o
serviço a prestar pelo município, na medida em que a publicidade em causa já se
encontra devidamente afixada no imóvel pertencente à recorrida, não se
vislumbrando que serviços concretos poderia aquele município ser forçado a
praticar, por força da mera renovação da licença.
III – DECISÃO
Nestes termos, e pelos fundamentos supra expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 103º, n.º
2 e 165º, n.º 1, alínea i), ambos da Constituição da República Portuguesa, as
normas constantes dos artigos 4º, 8º e 23º do Regulamento de Publicidade no
Município de Cascais, aprovado em 23 de Julho de 1997, por deliberação da Câmara
Municipal de Cascais, e, em 06 de Outubro de 1997, por deliberação da Assembleia
Municipal de Cascais;
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 5 de Março de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Vítor Gomes
Gil Galvão