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Processo n.º 62/07
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso para o Plenário, ao abrigo
do artigo 79.º-D da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão n.º 458/2007
(3.ª Secção) que conclui pela não inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do
artigo 116.º do CPP quando interpretada no sentido de que a testemunha que não
compareça a acto processual para que tenha sido convocada ou notificada e não
justifique a falta tem de ser sancionada, mesmo que o sujeito processual que a
arrolou prescinda do seu depoimento e o tribunal não determine oficiosamente a
inquirição. Invoca oposição com o acórdão n.º 184/06 (2.ª Secção), em que o
Tribunal julgou a mesma norma inconstitucional por violação do princípio da
proporcionalidade resultante dos artigos 2.º e 18.º da Constituição.
2. O recurso foi admitido, sendo notificado para alegar o Ministério Público e a
testemunha faltosa A..
Apenas o Ministério Público apresentou alegações, nas quais sustentou a doutrina
do acórdão fundamento e concluiu nos seguintes termos:
“1º
É inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, a
interpretação normativa do artigo 116.º, n.º 1, do Código de Processo Penal,
segundo o qual deve ser aplicada sanção processual à testemunha faltosa, apesar
de a mesma ter sido prescindida por quem a arrolou, e sem que o tribunal haja
determinado a respectiva comparência, para efeito de inquirição oficiosa.
2º
Não encontra suporte no texto da Lei Fundamental a interpretação segundo a qual
é devida pelos cidadãos uma “cega obediência” ao conteúdo das notificações
processuais, devendo a falta ser sancionada com multa, mesmo nos casos em que a
realidade processual superveniente implique manifesta inutilidade na comparência
em juízo, por não ter lugar a prestação do depoimento que justificava a
originária notificação para comparência.
3º
Termos em que deverá adaptar-se o entendimento subjacente ao decidido no Acórdão
nº 184/06.”
3. Concluída a discussão, tendo por base o acórdão recorrido e
memorando apresentado pelo relator, cumpre formular a decisão em conformidade
com o vencimento apurado.
II. Fundamentos
4. Verificam-se os pressupostos do recurso para o Plenário ao abrigo do artigo
79-º-D da LTC, designadamente, o julgamento da questão de constitucionalidade em
sentido divergente do anteriormente adoptado pelo Tribunal quanto à mesma norma.
Com efeito, os acórdãos de secção em confronto decidiram em sentido oposto a
questão da constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 116.º do Código de
Processo Penal (na versão do Código anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto,
sendo que este preceito não sofreu alteração), quando interpretado no sentido de
que a testemunha que, em processo penal, falte a acto processual para que tenha
sido convocada ou notificada e não justifique a falta incorre no pagamento da
soma prevista nesse preceito legal, ainda que o sujeito processual que a arrolou
prescinda do seu depoimento e o tribunal não determine oficiosamente a
inquirição.
Aliás, o acórdão recorrido dá nota dessa divergência.
5. A solução encontrada para a questão da constitucionalidade em
apreciação surge assim justificada no acórdão recorrido:
“7. A “soma “ referida no n.º 1 do artigo 116.º do CPP, embora as finalidades
próprias do direito processual penal possam influir no respectivo regime,
designadamente quanto aos termos da justificação da falta para que é cominada e
ao seu montante, é uma sanção pecuniária com a mesma natureza das demais multas
processuais.
A propósito deste tipo de sanções pecuniárias disse o Tribunal no acórdão n.º
315/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., pág. 323 (cfr. tb. o
acórdão n.º 680/2004, in www.tribunalconstitucional. pt):
“Se a doutrina processual civil se refere a elas (às multas processuais), por
vezes, como «penas», é porque utiliza esta expressão amplamente, em sinonímia
com «sanções punitivas» (assim, Manuel de Andrade, Noções Elementares de
Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, edição revista e
actualizada por Herculano Esteves, 1976, p.354, e Alberto dos Reis, Código de
Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., reimpressão, 1981, p.261)
As sanções processuais são cominadas para ilícitos praticados no processo, cujo
adequado desenvolvimento visam promover. Com a sua estatuição, pretende-se,
conforme os casos, obter a cooperação dos particulares com os serviços
judiciais, impor aos litigantes uma conduta que não prejudique a acção da
justiça ou ainda assegurar o respeito pelos Tribunais.
(...)
Mas as multas processuais (...) constituem sanções indiscutivelmente estranhas
ao direito disciplinar e ao direito de mera ordenação social.
O direito disciplinar caracteriza-se pela existência de um poder hierárquico que
o tribunal não possui, evidentemente, quando aplica multas processuais às partes
ou a outros intervenientes no processo. Tão pouco o direito de mera ordenação
social, que se distingue do direito penal, tendencialmente, «... pela natureza
dos respectivos bens jurídicos...(e) ... pela desigual ressonância ética» e,
decisivamente, através da qualificação feita pelo próprio legislador (cfr. o
preâmbulo do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro), pode abranger as multas
processuais - sanções historicamente anteriores e não filiadas no direito
penal.”
8. A soma cujo pagamento é imposto ao abrigo do n.º 1 do artigo 116.º do CPP
para a falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente notificada
ou convocada para acto do processo penal sanciona um comportamento que, em
extremo rigor, poderia integrar crime de desobediência, mas ao qual a lei
tradicionalmente confere tratamento privilegiado, sancionando-o expeditamente
com uma multa processual, aplicável mediante um incidente simplificado (Cfr., a
propósito de mecanismo sancionatório semelhante que já constava do artigo 91.º
do Código de Processo Penal de 1929, o Parecer n.º 98/78, da Procuradoria-Geral
da República, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 284, págs. 30 e
segs.).
O fim imediato desta sanção é reprimir o incumprimento do dever de colaboração
para que o agente é solicitado no âmbito de um concreto processo. Dever esse a
cujo cumprimento o faltoso pode, aliás, ser judicialmente coagido (n.º 2 do
artigo 116.º do CPP e alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP; cfr., quanto ao
processo civil, n.º 2 do artigo 519.º do CPC).
Mas a sanção cumpre também um fim de prevenção geral, intimidando os potenciais
infractores e contribuindo para instilar na comunidade a consciência da
efectividade desse dever, minorando a perniciosa repercussão da generalização de
uma atitude de desrespeito pelas convocatórias dos tribunais na tarefa
fundamental do Estado de administrar justiça. Esta preocupação em atacar o que
era identificado como um dos pontos críticos da morosidade da justiça penal
tornou-se evidente com as novas regras de justificação das faltas em processo
penal, introduzidas no artigo 117.º do CPP pela Lei n.º 55/98, de 25 de Agosto.
Avulta neste regime a imposição de que a falta seja comunicada com cinco dias de
antecedência, se for previsível, ou no dia e hora designados para a prática do
acto, se imprevisível, e não em momento posterior à falta, como era tradicional
(Outro aspecto em que se verificou inovação, para o presente recurso
irrelevante, consiste em ter deixado de se fazer referência aos critérios de
justificação da falta por remissão para o regime substantivo de exclusão da
ilicitude e da culpa, o que pode ser interpretado como alargando a margem de
apreciação judicial das razões justificativas da não comparência).
É neste contexto que se há-de ver se o sancionamento da testemunha regularmente
convocada e que não justifica a falta, mas cujo depoimento é considerado
prescindível tanto pelo sujeito processual que a arrolou como pelo tribunal,
viola o princípio da proibição do excesso, concretizador do princípio do Estado
de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
9. A colaboração dos cidadãos na administração justiça, que se desdobra nos
deveres de testemunhar, de intervir como perito, de participar no tribunal do
júri e intervenções ocasionais semelhantes (com ressalva dos casos de recusa
legítima), corresponde a um dever fundamental dos cidadãos para com o Estado, de
conteúdo cívico-político. Afigura-se lícito extrair essa fundamentalidade da
expressa autorização constitucional para impor o cumprimento coercivo de tal
dever (rectius, da imposição coactiva de um dever prodrómico desse dever de
colaboração, que é o dever de comparência perante as autoridades judiciárias
quando a pessoa é regularmente convocada – alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da
CRP), o que pressupõe o seu implícito reconhecimento constitucional. De todo
modo, mesmo quem assim não entenda não negará carácter de dever legal
fundamental ao dever de colaborar na administração da justiça (Parece ser esta a
opinião de Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª
ed., pág. 534 e de José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos,
pág. 94).
Efectivamente, quanto à finalidade imediata de alguns modos de colaboração (v.
gr., como perito, depositário e semelhantes), ainda seria teoricamente
conjecturável uma organização pública ou contratualizada de serviços que
permitisse à administração da justiça funcionar sem recurso a esses modos de
colaboração ocasional do cidadão. Mas isso seria absolutamente impossível
relativamente à modalidade de colaboração que é a prestação de depoimento como
testemunha (artigo 131.º do CPP). Pode reduzir-se a onerosidade da intervenção
na qualidade de testemunha (v. gr., mediante a prestação de depoimento por
vídeo-conferência ou outros modos que não exijam a presença no tribunal da
causa), mas não pode eliminar‑se o dever porque não pode cumprir-se a tarefa
constitucional dos tribunais sem o respectivo reconhecimento. A disciplina
jurídica e os aspectos organizacionais que se dirijam a obviar ou reduzir as
causas de adiamento das diligências – por exemplo, o maior rigor quanto aos
termos de justificação das faltas – serão mesmo um instrumento para tornar
globalmente menos oneroso o dever de colaboração. Mas não se concebe que possa
prescindir-se da imposição de comparência perante as autoridades judiciárias por
parte de quem deva prestar depoimento, porque esse é um meio de prova sem o qual
a instrução e o julgamento das causas é, geralmente, impossível. E não pode
deixar de estabelecer-se o adequado e expedito sancionamento dos faltosos, pois
de outro modo a imposição do dever não teria eficácia.
10. Reentrando no caso, é exacto que, numa situação em que esteja adquirido que
nenhum dos sujeitos processuais – nem aquele que a indicou, nem o tribunal por
sua iniciativa – consideram necessário inquirir a testemunha arrolada, a sua
falta de comparência na audiência de julgamento, apesar de regularmente
convocada, não se repercute na descoberta da verdade, na boa decisão da causa,
ou na marcha do processo. Se a testemunha tivesse comparecido, seria mandada
embora sem prestar depoimento, pelo que a deslocação ao tribunal teria
constituído um sacrifício (pelo menos de tempo ou de disponibilidade pessoal)
sem qualquer utilidade para os fins endo-processuais Nestas circunstâncias, a
sanção para a falta injustificada de comparência não pode encontrar fundamento
na necessidade de assegurar o cumprimento do dever de colaboração com os
tribunais, como testemunha, na administração da justiça penal (artigo 131.º do
Código de Processo Penal: dever de testemunhar) porque essa colaboração é, em
concreto e por definição, desnecessária. Assim, se identificarmos o bem jurídico
tutelado mediante a cominação da multa para a falta injustificada, apenas, com a
utilidade da comparência para os fins processuais em função da qual foi
concretamente ordenada, é compreensível que se considere a imposição dessa
sanção, na hipótese considerada, como violando o princípio da proporcionalidade.
Com efeito, o princípio da proibição do excesso postula que, entre o conteúdo da
decisão estadual (a norma que manda sancionar a testemunha que não justificou a
falta) e o fim que ela prossegue, haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e
uma justa medida. As vantagens (obtidas por todos) através da medida estadual
devem ser proporcionais às desvantagens que tal medida tenha eventualmente
causado a alguns membros da comunidade jurídica, de tal modo que o peso da
decisão pública nunca venha a exceder o quantum requerido pela prossecução do
seu fim (maria lúcia amaral, A Forma da República, pág.186). Deste modo, se o
fim específico da imposição do pagamento de uma soma entre duas e dez UCs fosse
exclusivamente assegurar a satisfação da necessidade de comparência da
testemunha no concreto processo para que foi indicada, obrigá-la a justificar a
falta a um acto para que a sua presença teria sido inútil – portanto,
retrospectivamente, a convocatória objectivamente injustificada – e impor-lhe
uma sanção por não ter comparecido nem justificado a falta, seria impor-lhe um
encargo desnecessário, incompatível com o princípio geral de limitação do poder
público que se ancora no princípio do Estado de direito (artigo 2.º da CRP).
11. Todavia, a norma que manda impor ao faltoso o pagamento de uma “soma” não
se destina, ou não se destina apenas, a reprimir a falta em função do resultado
concreto, mas a sancionar a desobediência à ordem de comparência, enquanto
conduta potencialmente lesiva da boa administração da justiça, que transcende
esse resultado ou o perigo concreto.
Pretende-se, por um lado, mediante a imposição do dever de comunicação
antecipada da causa impeditiva de comparência previsível, habilitar o tribunal
(ou a autoridade judiciária) com informação atempada que lhe permita reorganizar
o serviço e reduzir, até onde for possível, as consequências negativas da falta,
seja para o serviço em geral, seja para os restantes intervenientes processuais.
E visa-se, concomitantemente, criar na comunidade em geral a convicção na
efectividade da norma que estabelece o dever de testemunhar e, para tanto, de
comparecer no local e na data determinados pela autoridade que dirige o
processo.
Perante esta plurifuncionalidade do dever de justificação das faltas e da
correspondente imposição do pagamento da “soma” prevista no n.º 1 do artigo
116.º do CPP, quando a testemunha não comparece nem justifica a falta ao acto
para que foi regularmente convocada, não pode afirmar-se que a norma em causa
viole o princípio da proporcionalidade. A exigência de justificação para a não
comparência e a correspondente sanção pecuniária quando a testemunha falta sem
justificação, mesmo que, em concreto, a falta não tenha tido reflexos na prática
do acto, reafirma comunitariamente a norma que estabelece o dever de comparecer
perante a autoridade judiciária para prestar depoimento.
Embora a regra essencial seja a de que só devem existir os deveres necessários e
na medida necessária para a salvaguarda dos direitos fundamentais ou de
interesses constitucionalmente protegidos, encontrado um interesse
constitucional que ainda suporta a imposição do dever de comparência ou
justificação da ausência e para cujo incumprimento a sanção pecuniária se
apresenta adequada e não excessiva, cabe na discricionariedade legislativa optar
por exigir sempre a justificação por parte do interessado ou dispensá-la quando
a falta não tenha repercussão no acto processual, consoante a maior ou menor
prevalência que o legislador dê à necessidade de prevenção geral e a avaliação
que faça sobre as vantagens e desvantagens para os cidadãos e para o próprio
funcionamento dos tribunais (a celeridade, a economia processual, a relação
custo-benefício) na imposição desse ónus de justificação.
A cominação da sanção pecuniária mesmo nas circunstâncias da hipótese normativa
em apreciação – a adequação e a proporcionalidade da medida em sentido estrito
não estão em dúvida – traduz uma opção do legislador por um modelo de
relacionamento entre as autoridades judiciárias e os intervenientes acidentais
de pendor mais autoritário ou de maior rigor dogmático (todo o cidadão convocado
deve comparecer ou justificar a falta, sob pena de sanção), em contraposição a
um modelo mais pragmático adoptado em processo civil (não tem utilidade
justificar a falta, se esta não teve consequências), que não é manifestamente
desrazoável face aos fins próprios do processo penal e que não cabe ao juiz
constitucional censurar. Isto na pressuposição, relembra-se, da bondade da
interpretação adoptada, que é domínio exclusivo do tribunal da causa.
Em conclusão, não pode considerar-se que a norma do n.º 1 do artigo 116.º do
Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a testemunha que
não justifique a falta tem de ser condenada ao pagamento de uma soma entre duas
e dez UCs, ainda que o sujeito processual que a arrolou prescinda do respectivo
depoimento e o juiz não determine oficiosamente a inquirição, viole o princípio
da proibição do excesso, enquanto subprincípio caracterizador do princípio do
Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.”
6. Acompanha-se este entendimento, remetendo-se para a
fundamentação do acórdão recorrido, ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo
79.º-D da LTC, uma vez que nada foi trazido à discussão que, no essencial, não
tenha já sido objecto de ponderação (cfr., sobretudo, os n.ºs 10 e 11 do acórdão
recorrido).
Apenas se acrescenta que não é exacto que isso signifique perfilhar o critério
de que é devida pelos cidadãos uma “cega obediência” ao conteúdo das
notificações para comparecimento emanadas dos tribunais ou das autoridades
judiciárias. O que o acórdão recorrido considerou e, agora, se acompanha é que a
norma tutela um bem jurídico que transcende a utilidade que, em “prognose
póstuma”, seja possível atribuir à convocatória para os fins da concreta
diligência para que a comparência foi determinada e que é susceptível de
justificar constitucionalmente o sancionamento da testemunha que, em processo
penal, não cumpra o dever de comparecer e não apresente justificação para a
falta nos termos dos artigos 116.º e 117.º do CPP. Há o dever de comparecer e o
dever de justificar a não comparência, tendo as alterações introduzidas pela Lei
n.º 55/98 tornado mais apertadas as exigências desta, em particular quanto ao
momento da apresentação da justificação, em ordem a permitir a reprogramação do
serviço e, paralelamente, desmotivar a apresentação de justificações falsas ou
inconsistentes. Este objectivo é susceptível de ser posto em risco por condutas,
como a sancionada pela norma em apreciação, de desinteresse pela apresentação de
qualquer justificação para a não comparência.
Por outro lado, salienta-se que o que está em causa é a conformidade
constitucional da aplicação da sanção à testemunha que não compareça nem
apresente qualquer justificação e não a questão de saber se deveria
considerar-se justificada uma falta de comparência cujo pedido de justificação,
porventura, se fundasse no conhecimento antecipado (v. gr., por informação sobre
a disposição do sujeito processual que indicou a testemunha de vir a dispensar o
seu depoimento) de factos que tornariam objectivamente inútil a comparência (ou,
perspectivando a questão como de constitucionalidade normativa, a interpretação
em que se fundasse a resposta negativa a um pedido de justificação da falta
assim construído).
III. Decisão
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Abril de 2008
Vítor Gomes
José Borges Soeiro
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
João Cura Mariano
Ana Maria Guerra Martins (vencida,
pelas razões constantes de declaração do Exmo. Senhor Conselheiro Mário Torres
e pelos
fundamentos constantes do acórdão 184/06).
Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido,
pelos fundamentos constantes do Acórdão n.º 184/2006 e pelas razões constantes
da declaração de voto do Exmo. Senhor Conselheiro Mário Torres)
Mário José de Araújo Torres (vencido,
nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, pelas
razões constantes do acórdão n.º 184/2006, que subscrevi, e acompanhando a
declaração de voto do Senhor Conselheiro Mário Torres.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por continuar a entender que, tal como
decidido no Acórdão n.º 184/2006, da 2.ª Secção, que subscrevi, a norma do
artigo 116.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), interpretada no sentido
de que tribunal é obrigado a sancionar a testemunha faltosa, apesar de a mesma
ter sido prescindida pelo sujeito processual que a apresentou e de o tribunal
não ter oficiosamente determinado a sua inquirição, é inconstitucional, por
violação do princípio da proporcionalidade, resultante dos artigos 2.º e 18.º da
Constituição da República Portuguesa.
O Acórdão n.º 458/2007, da 3.ª Secção, agora confirmado,
reconheceu que na situação em causa, isto é, “numa situação em que esteja
adquirido que nenhum dos sujeitos processuais – nem aquele que a indicou, nem o
tribunal por sua iniciativa – consideram necessário inquirir a testemunha
arrolada, a sua falta de comparência na audiência de julgamento, apesar de
regularmente convocada, não se repercute na descoberta da verdade, na boa
decisão da causa, ou na marcha do processo”, já que “se a testemunha tivesse
comparecido, seria mandada embora sem prestar depoimento, pelo que a deslocação
ao tribunal teria constituído um sacrifício (pelo menos de tempo ou de
disponibilidade pessoal) sem qualquer utilidade para os fins endo‑processuais”.
“Nestas circunstâncias – prossegue o citado acórdão –, a sanção para a falta
injustificada de comparência não pode encontrar fundamento na necessidade de
assegurar o cumprimento do dever de colaboração com os tribunais, como
testemunha, na administração da justiça penal (artigo 131.º do Código de
Processo Penal: dever de testemunhar)”. E, por isso, conclui o mesmo acórdão
que, “se identificarmos o bem jurídico tutelado mediante a cominação da multa
para a falta injustificada, apenas, com a utilidade da comparência para os fins
processuais em função da qual foi concretamente ordenada, é compreensível que se
considere a imposição dessa sanção, na hipótese considerada, como violando o
princípio da proporcionalidade”. Como é óbvio, concordo inteiramente com esta
constatação.
No entanto, o referido Acórdão n.º 458/2007, cuja
doutrina foi agora maioritariamente confirmada, acabou por entender não ocorrer
violação do princípio da proporcionalidade, por a norma em causa se destinar
também “a sancionar a desobediência à ordem de comparência, enquanto conduta
potencialmente lesiva da boa administração da justiça”, de acordo com dois
vectores: por um lado, pretender‑se‑ia, “mediante a imposição do dever de
comunicação antecipada da causa impeditiva de comparência previsível, habilitar
o tribunal (ou a autoridade judiciária) com informação atempada que lhe permita
reorganizar o serviço e reduzir, até onde for possível, as consequência
negativas da falta, seja para o serviço em geral, seja para os restantes
intervenientes processuais”; e, por outro lado, visar‑se‑ia, “concomitantemente,
criar na comunidade em geral a convicção na efectividade da norma que estabelece
o dever de testemunhar e, para tanto, de comparecer no local e na data
determinados pela autoridade que dirige o processo”.
É deste entendimento que divirjo.
A primeira perspectiva invocada é, salvo o devido
respeito, manifestamente improcedente: a prévia comunicação da não comparência
sempre seria irrelevante para a eficiência do serviço, pois a dimensão
normativa em causa pressupõe justamente que a falta da testemunha, porque o seu
depoimento foi considerado inútil não só pela parte que a ofereceu como também
pelo tribunal, em nada afectou a descoberta da verdade nem foi, ela mesma, causa
de qualquer adiamento processual.
Resta, assim, a última razão, que se reconduz, no fundo,
ao relevo dado a considerações de “prevenção geral”, “intimidando os potenciais
infractores e contribuindo para instilar na comunidade a consciência da
efectividade desse dever [dever de colaboração com os tribunais], minorando a
perniciosa repercussão da generalização de uma atitude de desrespeito pelas
convocatórias dos tribunais na tarefa fundamental do Estado de administrar
justiça”.
Entendo, no entanto, que estas preocupações, sem dúvida
legítimas, não exigem que o tribunal seja sempre obrigado a sancionar a
testemunha faltosa, podendo ser inteiramente garantidas com a atribuição ao
tribunal da faculdade de sancionar, ou não, a testemunha de acordo com as
especificidades do caso concreto.
Recorde‑se que, em processo civil, o artigo 629.º do CPC
não prevê a aplicação de sanção à testemunha faltosa que tenha sido prescindida
pela parte que a ofereceu e, mesmo quando não seja prescindida, o n.º 5 desse
preceito isenta de sanção a testemunha faltosa quando o julgamento tenha sido
adiado por razão diversa da respectiva falta, desde que a parte se comprometa a
apresentá‑la no dia designado para a realização da audiência. A especificidade
do processo penal em relação ao processo civil, por naquele incumbir ao tribunal
oficiosamente a busca da verdade material e este estar sujeito ao princípio
dispositivo, justifica que – na tese que defendo e que fora a seguida nas
decisões recorridas –, para além de ser prescindida pela parte, se exija, para
não tornar obrigatória a aplicação da sanção, que o próprio tribunal tenha
considerado dispensável o depoimento da testemunha. Mas, fora essa diferença,
não se me afigura que as razões ligadas à afirmação da autoridade dos tribunais
sejam menos válidas em processo civil do que em processo penal.
Constitui um dado da experiência comum que, muitas
vezes, os mandatários das partes sabem seguramente que, por diversos motivos,
ligados ora ao próprio tribunal, ora às partes, determinada diligência
processual, designadamente audiências de julgamento, não se irão realizar na
data marcada e disso avisam as respectivas testemunhas. Nestas condições, a não
comparência dessas testemunhas na data designada, para além de, como a própria
posição maioritária reconheceu, em nada afectar a eficiência da administração
da justiça, também não revelará, na generalidade dos casos, qualquer atitude de
desrespeito perante uma ordem de comparência emitida por um tribunal. Nesse
contexto, a única solução constitucionalmente conforme ao princípio da
proporcionalidade será conferir ao tribunal a faculdade de, atentas as
circunstâncias do caso, sancionar ou não essa falta.
Nem se diga, como o faz o precedente acórdão, que “o que
está em causa é a conformidade constitucional da aplicação da sanção à
testemunha que não compareça nem apresente qualquer justificação e não a questão
de saber se deveria considerar‑se justificada uma falta de comparência cujo
pedido de justificação, porventura, se fundasse no conhecimento antecipado (v.
g., por informação sobre a disposição do sujeito processual que indicou a
testemunha de vir a dispensar o seu depoimento) de factos que tornariam
objectivamente inútil a comparência (ou, perspectivando a questão como de
constitucionalidade normativa, a interpretação em que se fundasse a resposta
negativa a um pedido de justificação da falta assim construído)”. É que a norma
em causa neste recurso – sendo obviamente a que torna obrigatória a aplicação de
sanção à testemunha faltosa – tem de ser apreciada em si e na sua circunstância,
e desta “circunstância” faz parte, como um dado da questão, a restrição legal de
justificação das faltas aos casos em que a falta foi motivada “por facto não
imputável ao faltoso que o impeça de comparecer no acto processual para que foi
convocado ou notificado” (artigo 117.º, n.º 1, do CPP), sendo manifesto que o
aviso da alta probabilidade ou mesmo certeza da não realização da diligência ou
do propósito da dispensa do depoimento da testemunha não impediam esta de
comparecer.
Por último, importa salientar que a obrigação da
deslocação de testemunhas a tribunal, sendo obviamente uma decorrência
perfeitamente aceitável do dever cívico de colaboração dos cidadãos na tarefa
fundamental do Estado de administrar a justiça, envolve custos, desde logo pela
restrição da liberdade das pessoas convocadas, com constrangimento do modo de
organização da sua actividade pessoal, e também custos económicos, quer a nível
individual, quer da colectividade.
A imposição, sob a ameaça de inarredável sancionamento,
de comparência das testemunhas a actos processuais quando antecipadamente se
conhece a desnecessidade ou inutilidade dessa comparência, representa, assim,
uma solução desproporcionada, pois, como se tentou demonstrar, a protecção do
único bem constitucionalmente relevante que se concluiu estar causa (após o
afastamento, reconhecido pela própria maioria que fez vencimento, da
consideração da necessidade de assegurar o cumprimento do dever de colaboração
com os tribunais), a saber, o incremento de uma atitude de respeito perante as
convocatórias dos tribunais), não exigia que aos tribunais fosse legalmente
imposta a obrigação de aplicação da sanção, retirando‑lhe a possibilidade de
avaliar, em concreto, a respectiva justificação.
(Mário José de Araújo Torres)