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Processo n.º 760/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A Caixa Geral de Aposentações recorreu da sentença do Tribunal Administrativo
e Fiscal de Coimbra que julgou procedente a acção administrativa especial de
pretensão conexa com actos administrativos que contra si havia sido intentada
por A., com sinais nos autos.
Alegou, tendo concluído:
“1.ª – A Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, revogou o Decreto-Lei n.º 116/85, de
19 de Abril, com efeitos reportados a 1 de Janeiro de 2004 – cfr. artigo 1.º,
n.º 3, e artigo 2.º, da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro.
2.ª – À excepção da Lei criminal, o princípio da não retroactividade das leis
não tem assento constitucional – artigos 3.° e 29.° da CRP – pelo que, apesar de
publicada em 15 de Janeiro, nada impede que a sua eficácia retroaja a 1 de
Janeiro de 2004.
3.ª – As disposições do Código Civil não têm mais força vinculativa que as de
outras Leis ordinárias, pelo que aquelas não prevalecem sobre o resultado da
interpretação destas.
4.ª – Assim, para que um pedido de aposentação ao abrigo do Decreto-lei n.º
116/85, de 19 de Abril, fosse considerado por esta Caixa, necessário era que o
processo tivesse sido enviado até ao dia 2004.01.01.
5.ª – O pedido de aposentação do representado do A., formulado ao abrigo do
Decreto-Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, foi remetido à CGA em 12 de Janeiro de
2004 – Ponto 4 da matéria de facto dada como assente.
6.ª – Donde, nunca poderia o pedido de aposentação, por aquele formulado, ser
deferido ao abrigo do Decreto-Lei n.° 116/85, de 19 de Abril, uma vez que à data
em que ia ser apreciado tal regime já se encontrava legalmente revogado.
7.ª – Consequentemente, o despacho da Direcção da CGA de 7 de Maio de 2004 – que
reconheceu ao recorrido o direito à aposentação, ao abrigo do Decreto-lei n.º
116/85, de 19/04, encontrava-se ferido de ilegalidade por erro nos pressupostos
de facto, pelo que se impunha a sua revogação ao abrigo do artigo 141.º do CPA,
como veio a suceder.
8.ª – Em suma, violou a douta sentença recorrida o disposto nos n.°s 6 e 8 do
artigo 1.º e artigo 2.° da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, e o artigo 141.º do
CPA.”
O Tribunal Central Administrativo Norte negou provimento ao recurso, tendo
concluído pela inconstitucionalidade material das normas vertidas no n.º 6 do
artigo 1.º, e no artigo 2.º, da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, quando
entendidas no sentido de que não é aplicável o regime do Decreto-Lei n.º 116/85,
de 19 de Abril, aos processos que se iniciaram antes de 31 de Dezembro de 2003,
pelo simples facto de não terem dado entrada na Caixa Geral de Aposentações até
à data da entrada em vigor daquela Lei, por violação conjugada do dispostos nos
artigos 2.º, e 266.º, da Constituição da República Portuguesa (princípios da
protecção da confiança e da segurança jurídica inerentes ao princípio do Estado
de Direito).
Veio, então, a Caixa Geral de Aposentações interpor recurso do aludido aresto
para este Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), pretendendo a
fiscalização da constitucionalidade das normas constantes dos n.ºs 6 e 8 do
artigo 1.º, e artigo 2.º, da Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, na interpretação
que foi feita pelo Tribunal Central Administrativo Norte, o qual recusou a sua
aplicação com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação do
disposto nos artigos 2.º e 266.º da Constituição.
Junto deste Tribunal concluiu as suas alegações pela seguinte forma:
“1.ª O Decreto-Lei n.° 116/85, de 19/04, previa um regime especial e excepcional
de aposentação antecipada face ao regime-regra previsto no artigo 37.° do
Estatuto da Aposentação e constituía, antes de tudo o mais, uma medida
conjuntural ‘de descongestionamento da Administração Pública’ dependente de não
haver ‘prejuízo para o serviço’, e não o reconhecimento incondicional de um
direito dos funcionários à aposentação antecipada, sendo expectável a sua
alteração quando se modificassem as circunstâncias da adopção da medida
legislativa.
2.ª A tramitação administrativa triangular – bem conhecida do legislador –,
prevista no artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 116/85, de 19 de Abril, esteve na base
da eleição do critério da data do envio do processo para a CGA a que se refere o
artigo 1.º, n.º 6, da Lei n.° 1/2004, de 15 de Janeiro, não tendo sido
propositadamente dada qualquer relevância à data em que o subscritor efectuou o
pedido junto do serviço.
3.ª Tal critério é claro e objectivo, não violando qualquer princípio ou norma
constitucional.
4.ª Acresce que a revogação do Decreto-Lei n.° 116/85, de 19 de Abril, não
atingiu o conteúdo essencial do direito à aposentação dos subscritores da CGA,
seja nos termos gerais, (artigo 37.°, n.° 1 e 2 do Estatuto da Aposentação –
EA), seja na nova modalidade de aposentação antecipada (prevista no art.° 37.°-A
do EA) e, como tal, não implica ‘uma alteração inadmissível, intolerável,
arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente’.
5.ª A publicação tardia do Acórdão n.° 360/2003 do Tribunal Constitucional que
considerou a revogação do Decreto-Lei n.° 116/85, de 19 de Abril, pelo artigo
9.° da Lei n.° 32-B/2002, de 30 de Dezembro, inconstitucional por razões de mera
forma, bem como o excessivo formalismo exigido, via interpretativa para a
aprovação dos diplomas legais, implicou o atraso no procedimento legislativo
tendente à publicação da Lei n.° 1/2004 – que culminou na sua retroactividade
‘quinzenal’ –, mas igualmente permitiu o perfeito (re)conhecimento daquele
diploma antes da sua publicação final (pois as normas constantes desta Lei são
exactamente as mesmas que foram declaradas inconstitucionais no âmbito da Lei
n.° 32-B/2002, de 30 de Dezembro) quer pelos Sindicatos, que as contestaram viva
e publicamente, quer pelos subscritores da CGA, para além do eco que as reformas
introduzidas no regime jurídico de aposentação tiveram nos media, bem como as
vicissitudes a ela ligadas.
6.ª A revogação do Decreto-Lei n.° 116/85, de 19 de Abril, era uma alteração com
a qual os cidadãos e a comunidade já há muito podiam contar, expectantes que
estavam, razoável e fundadamente, na alteração do ordenamento jurídico que regia
a constituição daquelas relações jurídicas de aposentação, já que, como se
demonstrou, era público e notório que estava em marcha o processo legislativo
tendente à aprovação de tal medida, nos mesmos moldes que já haviam sido
adoptados um ano antes pela Lei n.° 32-B/2002, de 30 de Dezembro, o mais
rapidamente possível, para entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2004, como, aliás
é norma neste tipo de diplomas.
7.ª O atraso na publicação, que criou a situação de retroactividade ou de
retrospectividade em meros 15 dias, e cuja aprovação, sublinha-se, foi
amplamente noticiada na comunicação social e vivamente contestada pelos
Sindicatos, não invalida de modo algum os seus efeitos, já que a sua vigência
não depende do seu conhecimento efectivo, embora a sua eficácia dependa da sua
publicação.
8.ª Em conclusão, os artigos 1.°, n.° 6, e 2.°, da Lei n.° 1/2004, de 15 de
Janeiro, por conterem normas de efeitos retroactivos, não são inconstitucionais,
já que não atingem, de forma inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado
onerosa e inconsistente as legítimas expectativas daqueles que podiam requerer a
pensão de aposentação, de características excepcionais, prevista no regime
instituído pelo Decreto-Lei n.° 116/85, de 14 de Abril.”
Não foram produzidas contra-alegações.
2. Na decisão recorrida importou a seguinte factualidade:
“1. O autor é funcionário do quadro de pessoal do Município da Figueira da Foz,
com a categoria de sub-chefe de bombeiros municipal, e está inscrito na Caixa
Geral de Aposentações (cfr. fls. 23 do PA).
2. Em 4 de Agosto de 2003, dirigiu ao Presidente da Câmara Municipal da Figueira
da Foz o requerimento que constitui de fls. 9 da certidão junta pelo autor sob
documento n.º 1, de cujo teor aqui se destaca o seguinte: ‘em virtude de ter
completado 36 anos de serviço, solicita a V. Exa. se digne promover o
requerimento seja remetido à Caixa Geral de Aposentações (…) depois de informado
por esta Câmara Municipal.’
3. Em 11 de Novembro de 2003, dirigiu novo requerimento ao Presidente da Câmara
Municipal da Figueira da Foz (cfr. fls. 19 do PA), requerendo o seguinte: ‘em
virtude de ter completado 36 anos de serviço, solicita a V. Exa. se digne
promover o requerimento seja remetido à Caixa Geral de Aposentações (…) depois
de informado por esta Câmara Municipal’.
4. O seu requerimento mereceu informações favoráveis do comandante dos Bombeiros
(‘não se vê inconveniente no seu pedido de aposentação’) e da Vereadora dos
Recursos Humanos da Câmara Municipal da Figueira da Foz (‘não se vê
inconveniente no pedido de aposentação do funcionário’), nos termos constantes
de fls. 23 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
5. Por ofício datado de 12 de Janeiro de 2004, a Vereadora da Câmara Municipal
da Figueira da Foz com delegação de competências remeteu à CGA o processo de
aposentação do autor, processo que foi recebido na GGA em 14 de Janeiro de 2004
– cfr. fls. 18 a 28 do PA, bem como fls. 58 do PA, cujo teor aqui se dá por
integralmente reproduzido.
6. Nos termos constantes do Mapa de Contagem de Tempo, que consta de fls. 31 e
32 do PA, homologado pelo chefe do serviço da ré por despacho de ‘concordo’
datado de 30 de Abril de 2004, em 1 de Janeiro de 2004 o autor contava 40 anos e
10 meses de tempo de serviço.
7. Por ofício datado de 7 de Maio de 2004, o autor foi notificado de que, por
despacho dessa mesma data, da Direcção da CGA ‘foi reconhecido o direito à
aposentação (…) tendo sido considerada a sua situação existente em 2004-01-01’ –
cfr. fls. 41 e 42, e ainda fls. 38 e 39 do PA.
8. Por ofício datado de 2 de Setembro de 2004, do Chefe do Serviço da ré, o
autor foi notificado da proposta de indeferimento do seu pedido de aposentação
aposentada (cfr. fls. 47 do PA, cujo teor aqui se dá por reproduzido), tendo o
mesmo se pronunciado nos termos constantes de 50 a 53 do PA, opondo-se à solução
propugnada.
9. Por ofício datado de 27 de Setembro de 2004, o autor foi notificado do
despacho de ‘concordamos’ dos Directores da CGA de 27 de Setembro de 2004,
aposto sobre a informação do Chefe do Serviço da ré da mesma data, nos termos do
qual se decide o seguinte:
‘Por despacho de 2004-05-07 (…) foi fixada ao subscritor em referência uma
pensão de aposentação, ao abrigo do Dec-Lei 116/85, de 19/4. – Verificando-se,
porém, que o pedido veio endereçado em 2004-01-12 (…), fora do prazo
estabelecido no n° 6 do artigo 1° da Lei 1/2004, de 15/1, diploma que revoga, no
seu n° 3 do artigo 1°, o Dec-Lei 116/85, de 19/04, parece de revogar o referido
despacho de 2004/05/07, indeferindo-se, em consequência, o pedido de
aposentação.’ – cfr. fls. 55 e 56 do PA.”
Decidindo.
II – Fundamentação
3. O recurso ora em análise vem interposto do acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte proferido no âmbito do Recurso Jurisdicional n.º
735/04.2BECBR, que, confirmando a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal
de Coimbra, recusou a aplicação do disposto nos artigos 1.º, n.º 6, e 2.°, da
Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro, com fundamento em inconstitucionalidade,
quando interpretados no sentido de que não é aplicável o regime do Decreto-Lei
n.° 116/85, de 19 de Abril, aos processos de aposentação requeridos nos serviços
dos interessados até 31 de Dezembro de 2003 que não foram enviados à Caixa Geral
de Aposentações até à data de entrada em vigor daquela Lei, por violação dos
princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica, previstos nos
artigos 2.º e 266.º, da Constituição.
Verifica-se, pelo cotejo dos autos, que o pedido de aposentação antecipada
apresentado pelo Recorrido A., foi efectuado ao abrigo do disposto no
Decreto-Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, e foi enviado pelos serviços da Câmara
Municipal da Figueira da Foz à Caixa Geral de Aposentações em 12 de Janeiro de
2004.
Esse facto levou a que, por despacho da Direcção da Caixa Geral de Aposentações
de 27 de Setembro de 2004, tenha sido revogada a resolução da mesma Direcção de
7 de Maio do mesmo ano, que lhe havia reconhecido o direito à aposentação
previsto no Decreto-Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, em virtude da revogação
deste diploma operada pela Lei n.º 1/2004, de 15 de Janeiro.
O n.º 6 do artigo 1.º, da Lei n.° 1/2004, de 15 de Janeiro, cuja
constitucionalidade foi posta em causa no douto Acórdão recorrido, determina
que:
“O disposto nos números anteriores [as alterações efectuadas ao Estatuto da
Aposentação e a revogação do Decreto-Lei n.° 116/85, de 19 de Abril] não se
aplica aos subscritores da Caixa Geral de Aposentações, cujos processos de
aposentação sejam enviados a essa Caixa, pelos respectivos serviços ou
entidades, até à data de entrada em vigor deste diploma, desde que os
interessados reúnam, nessa data, as condições legalmente exigidas para a
concessão da aposentação, incluindo aqueles cuja aposentação depende da
incapacidade dos interessados e esta venha a ser declarada pela competente junta
médica após aquela data.”
E o artigo 2.° do mesmo diploma estabelece que:
“A presente lei entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004”.
Através do artigo 1.º, n.º 3, da Lei n.º 1/2004, procedeu-se à revogação do
Decreto-Lei n.º 116/85, de 19 de Abril, que, entre outras, dispunha que:
Artigo 1º
“1 – Os funcionários e agentes da administração central, regional e local,
institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados ou de
fundos públicos e organismos de coordenação económica, seja qual for a carreira
ou categoria em que se integrem, poderão aposentar-se, com direito à pensão
completa, independentemente de apresentação a junta médica e desde que não haja
prejuízo para o serviço, qualquer que seja a sua idade, quando reúnam 36 anos de
serviço.
(…)
Artigo 3º
1 – Os requerimentos solicitando a aposentação nos termos do n.º 1 do artigo 1º
devem dar entrada nos departamentos onde os funcionários e agentes prestam
serviço, acompanhados dos necessários documentos comprovativos do tempo de
serviço prestado.
(…).
4. Pergunta o Recorrente, na sua alegação de recurso para este Tribunal, se o
“critério eleito pelo legislador ordinário de fazer relevar a data do envio dos
pedidos de aposentação à CGA e não a data em que o requerimento é efectuado
pelos subscritores nos serviços, concatenado com a retroactividade ou
retrospectividade decorrente do atraso da publicação da Lei n.° 1/2004, de 15 de
Janeiro, atinge de forma inadmissível ou demasiadamente onerosa os seus
destinatários que sejam titulares de direitos ou de expectativas legalmente
fundadas, violando dessa forma o princípio da confiança, ínsito num Estado de
direito democrático.”
O Tribunal Constitucional tem entendido que a tutela constitucional da confiança
não abrange todo e qualquer juízo de previsibilidade que o sujeito possa fazer
em face de determinado quadro normativo vigente. Com efeito, apenas colidirá com
a tutela da confiança a afectação infundada e arbitrária de expectativas
legítimas objectivamente consolidadas (ver Acórdãos n.ºs 330/93, 580/99,
95/2004, 99/2004, 202/2004, 302/2006, publicados, respectivamente, no Diário da
República, II Série, de 30 de Julho de 1993, 21 de Fevereiro de 2000, 1 de Abril
de 2004, 3 de Junho de 2004 e 12 de Junho de 2006).
Com efeito, apesar de uma alteração legislativa poder operar uma modificação do
tratamento normativo conferido a uma dada categoria de situações, havendo
situações substancialmente iguais que terão soluções diferentes, não se pode
falar neste tipo de casos de uma diferenciação verdadeiramente incompatível com
a Constituição.
A diferença de tratamento decorre da possibilidade que o legislador tem de
modificar (revogar) um quadro legal vigente num determinado período. A intenção
de conferir um diferente tratamento legal à categoria de situações em causa é
afinal a razão de ser da própria alteração legislativa. Por outro lado, o
critério de aplicação da lei no tempo reportado ao momento da prática do acto
administrativo que reconhece o direito (no caso, à pensão) não é desrazoável
mesmo numa perspectiva de igualdade de posições de sujeitos jurídicos
diacronicamente considerada.
Que a lei aplicável seja a lei vigente em tal momento, é um critério de decisão
que se fundamenta num critério objectivo e racional, decorrente dos próprios
princípios gerais relativos à aplicação da lei no tempo (aplicação da lei
vigente no momento da prática do acto).
Um tal critério não fundamenta diferenciações injustificadas nem contraria a
segurança e a justiça.
Neste sentido, exarou-se, no Acórdão n.º 580/99 deste Tribunal (citado), que:
“A recorrente sustenta, por um lado, que as normas impugnadas violam os
princípios da confiança e da boa fé, ínsitos no princípio do Estado de direito
democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 303/90 (D.R., I Série, de 26 de
Dezembro de 1990), afirmou que no princípio do Estado de direito democrático
‘está, entre o mais, postulada uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos
e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um
mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a
elas são juridicamente criadas.’ ”
Por outro lado, no Acórdão n.º 237/98 (publicado no Diário da República, II
Série, de 17 de Junho de 1998), o Tribunal considerou que:
“‘uma norma jurídica apenas violará o princípio da protecção da confiança do
cidadão, ínsito no princípio do Estado de direito, se ela postergar de forma
intolerável, arbitrária, opressiva ou demasiado acentuada aquelas exigências de
confiança, certeza e segurança que são dimensões essenciais do princípio do
Estado de direito’: Nesse aresto, afirmou-se ainda que o ‘princípio do Estado de
direito democrático é um princípio cujos contornos são fluidos (…), pelo que tem
um conteúdo relativamente indeterminado’. Em consequência, concluiu-se que tais
características ‘sempre inspirarão prudência ao intérprete e convidá-lo-ão a não
multiplicar, com apoio nesse princípio, as ilações de inconstitucionalidade.’
Resulta da jurisprudência citada que o Tribunal Constitucional tem entendido que
a tutela constitucional da confiança não abrange todo e qualquer juízo de
previsibilidade que o sujeito possa fazer em face de determinado quadro
normativo vigente. Com efeito, apenas colidirá com a tutela da confiança a
afectação infundada e arbitrária de expectativas legítimas objectivamente
consolidadas.
Nos presentes autos, a recorrente requereu uma pensão de aposentação num momento
em que vigorava um regime que levaria à fixação do respectivo valor num
determinado montante (…). Contudo, nesse momento, vigorava também a norma que
estabelecia que o regime aplicável à fixação da pensão de aposentação seria o
regime vigente no momento em que o despacho de reconhecimento do direito à
pensão de aposentação voluntária viesse a ser proferido [artigo 43.º, n.º 1,
alínea a), do Estatuto de Aposentação]. Nessa medida, a recorrente sabia, quando
requereu a pensão, que o respectivo montante seria fixado de acordo com a lei
vigente no momento da prolação desse despacho.
A pensão foi definitivamente fixada no valor de (…), nos termos do artigo 10.º,
n.º 1, da Lei n.º 2/92, de 9 de Março. O regime legal aplicado determinou,
portanto, uma redução do valor da pensão em relação ao valor que resultaria da
aplicação do regime vigente no momento em que a pensão foi requerida.
No entanto, na data em que apresentou o requerimento (altura em que a situação
jurídica da requerente como pensionista não se encontrava ainda definida), a
recorrente tinha apenas a expectativa de lhe vir a ser atribuída uma pensão
(caso se verificassem os respectivos pressupostos) nos termos da lei vigente no
momento da prolação do despacho que viesse a reconhecer o direito à pensão,
tendo, naturalmente, o legislador a possibilidade de, no âmbito da liberdade de
conformação legislativa, vir a estabelecer novos critérios de fixação da pensão
aplicáveis, desse modo, no momento da fixação definitiva.
Uma vez que era já configurável a possibilidade de a sua situação vir a ser
definida de acordo com o regime introduzido por uma eventual alteração
legislativa, a recorrente não tinha uma expectativa consolidada de ver a sua
pensão fixada de acordo com a lei vigente no momento em que apresentou o
respectivo requerimento. Com efeito, em face do quadro legal vigente, a
requerente apenas podia, como se referiu, representar que lhe seria, em
princípio, concedida uma pensão de aposentação, de acordo com o regime vigente
na data do despacho de reconhecimento do direito à pensão. Conclui-se, assim,
que não se verifica qualquer violação arbitrária e intolerável do princípio da
confiança e da boa fé quando, de acordo com a norma contida no artigo 43.º n.º
1, alínea a), do Estatuto de Aposentação (norma vigente no momento em que a
pensão foi requerida), se fixa definitivamente o montante da pensão de
aposentação à luz da lei vigente no momento em que o despacho que reconhece o
direito da pensionista é proferido (…).”
Acrescentou-se, ainda, no citado Acórdão n.º 580/99:
“A recorrente sustenta que, dado ter requerido a pensão no domínio da vigência
de um determinado regime que lhe é mais favorável (e que foi aplicado a colegas
de profissão na mesma situação), a pensão a atribuir só poderia ser fixada de
acordo com tal regime, não sendo portanto aplicável a lei vigente (desfavorável
em comparação com aquele regime) no momento em que o despacho que reconheceu o
direito à pensão foi proferido.
Colocada a questão neste plano, importa ter presente que o legislador tem uma
ampla liberdade no que respeita à alteração do quadro normativo vigente num dado
momento histórico. Na verdade, o legislador, de acordo com opções de política
legislativa tomadas dentro de uma ampla zona de autonomia, pode proceder às
alterações da lei que se lhe afigurarem mais adequadas e razoáveis, tendo
presente, naturalmente, os interesses em causa e os valores ínsitos na ordem
jurídica.
Uma alteração legislativa para operar, consequentemente, uma modificação do
tratamento normativo conferido a uma dada categoria de situações. Com efeito, as
situações abrangidas pelo regime revogado são objecto de uma valoração diferente
daquela que incidirá sobre as situações às quais se aplica a lei nova. Nesse
sentido, haverá situações substancialmente iguais que terão soluções diferentes.
Contudo, não se pode falar neste tipo de casos de uma diferenciação
verdadeiramente incompatível com a Constituição. A diferença de tratamento
decorre, como resulta do que se disse, da possibilidade que o legislador tem de
modificar (revogar) um quadro legal vigente num determinado período. A intenção
de conferir um diferente tratamento legal à categoria de situações em causa é
afinal a razão de ser da própria alteração legislativa.
O entendimento propugnado pela recorrente levaria à imutabilidade dos regimes
legais, pois qualquer alteração geraria sempre uma desigualdade. Ora, tal
posição não é reclamável pelo princípio da igualdade no quadro constitucional
vigente.”
E, no campo de maior incidência da situação em análise, reportada à pertinência
constitucional da dimensão da sucessão de leis no tempo, acrescentou-se no
citado Acórdão que:
“O legislador não tem a possibilidade de abranger na lei nova todas as situações
que entender. Existem limites constitucionais (para além dos limites à aplicação
retroactiva da lei penal e da lei fiscal – que não estão em causa nos presentes
autos) que decorrem, desde logo, da tutela da confiança.
(…) o critério de aplicação da lei no tempo acolhido pela norma contida no
artigo 43.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto de Aposentação (aplicação da lei
vigente no momento da prática do acto administrativo que reconhece o direito à
pensão) não é desrazoável mesmo numa perspectiva de igualdade de posições de
sujeitos jurídicos diacronicamente considerada. Com efeito, a solução que
determina que a lei aplicável a um dado acto administrativo é a lei vigente no
momento em que a Administração aprecia as circunstâncias do caso e define,
inovatoriamente, através do acto administrativo praticado a situação do
particular é uma solução racionalmente justificada, porque o momento do
reconhecimento, do direito é o momento central da definição da situação do
particular requerente. E nesse momento que a situação é valorada e decidida na
sua dimensão fundamental (é nessa altura que se decide da existência ou não do
direito, neste caso particular do direito à pensão). Que a lei aplicável seja a
lei vigente em tal momento, é um critério de decisão que se fundamenta num
critério objectivo e racional, decorrente dos próprios princípios gerais
relativos à aplicação da lei no tempo (aplicação da lei vigente no momento da
prática do acto). Um tal critério não fomenta diferenciações injustificadas nem
contraria a segurança e a justiça.”
5. “Esclarecido este aspecto, impõe-se, contudo, aferir da similitude entre
aquelas situações controvertidas que deram lugar à jurisprudência supra
reproduzida e a situação concreta em apreço nos presentes autos.
Deve notar-se, em primeiro lugar, que este Tribunal, nos arestos citados,
abordou um problema geral – o de saber se a introdução de uma diferente e menos
favorável fórmula de cálculo da pensão de aposentação afecta expectativas
legítimas dos subscritores da Caixa Geral de Aposentações. E a esse problema
optou por responder negativamente, isto porque os princípios da segurança
jurídica e da tutela da confiança não fundamentam o reconhecimento de
expectativas legítimas à manutenção de um regime de aposentação mais favorável
que haja vigorado ao longo da carreira contributiva do candidato a aposentado”,
conforme se exarou no citado Acórdão n.º 615/2007.
Além disso, é de sublinhar que a jurisprudência deste Tribunal quando invoca o
artigo 43.º do Estatuto da Aposentação o faz, apenas, enquanto elemento da
“previsibilidade genérica de mudança do regime de aposentação ao longo da
carreira contributiva do subscritor e não no âmbito do problema específico da
alteração dos pressupostos da constituição da situação do aposentado” ocorrida
no decurso de processos de aposentação pendentes, conforme se salientou no
recente Acórdão nº 615/2007, publicado no Diário da República, II Série, de 8 de
Fevereiro de 2008.
6. Decidiu aí o Tribunal, que:
“O problema que se coloca no caso em apreço nos presentes autos é, portanto,
diferente.
Sublinhe-se que, neste caso, foi o próprio legislador que pretendeu assegurar um
grau mais intenso de protecção da segurança jurídica e da legítima confiança de
alguns subscritores da Caixa Geral de Aposentações, garantindo que a extinção,
por revogação, do regime especial previsto no Decreto-Lei n.º 116/85, de 19 de
Abril, ‘não se aplica aos subscritores da Caixa Geral de Aposentações cujos
processos de aposentação sejam enviados a essa Caixa, pelos respectivos serviços
ou entidades, até à data de entrada em vigor deste diploma.’ Significa isto que,
ciente das consequências jurídicas do artigo 43º do Estatuto da Aposentação –
que permitiria a aplicação imediata do novo regime a partir da sua entrada em
vigor –, o legislador quis adoptar – e adoptou – uma norma transitória que
permitia que os subscritores da Caixa Geral de Aposentações continuassem a
beneficiar do regime anterior de aposentação, desde que os pedidos fossem
enviados – e não recebidos, note-se – até à entrada em vigor da Lei n.º 1/2004,
de 15 de Janeiro.
Daqui decorre que o regime da aposentação destes subscritores (…) não seria
fixado com base na lei em vigor à data em que ‘se profira despacho a reconhecer
o direito a aposentação voluntária que não dependa de verificação de
incapacidade’, conforme determinado pela alínea a) do n.º 1 do artigo 43º do
Estatuto da Aposentação, mas com base na lei vigente à data em que os ‘processos
de aposentação sejam enviados a essa Caixa, desde que os interessados reúnam,
nessa data, as condições legalmente exigidas para a concessão da aposentação’,
nos termos do n.º 6 do artigo 1º da Lei n.º 1/2004.
Consequentemente, por força da adopção pelo legislador desta norma transitória,
o regime jurídico da aposentação (…) do recorrido passa a depender do acaso de o
seu processo ser, ou não, enviado pelos serviços antes da entrada em vigor do
novo regime jurídico da aposentação.
Mas a verdade é que a partir do momento em que o serviço em causa reconhece que
a aposentação (…) do recorrido poderia ocorrer ‘sem prejuízo para o serviço’,
este criou legitimamente expectativas que o legislador considerou merecedoras de
tutela, uma vez que introduziu um desvio ao regime geral.
A decisão acabada de transcrever é transponível para o recurso ora em análise
até porque, numa perspectiva fáctica, existe coincidência nas datas da
apresentação e da remessa do respectivo processo da Câmara Municipal da Figueira
da Foz para a Caixa Geral de Aposentações.
7. Não obstante a decisão acabada de extractar ser transponível para o presente
recurso, entende-se, no entanto, que a questão de inconstitucionalidade
suscitada pode e deve ser analisada na perspectiva da violação do princípio da
confiança, na linha do também recente aresto deste Tribunal n.º 158/2008
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que se passa a transcrever:
“Como no aludido Acórdão n.º 615/2007 se recordou, a jurisprudência deste
Tribunal tem entendido que – para além dos casos de retroactividade
explicitamente postergados pela Constituição quanto às leis restritivas de
direitos, liberdades e garantias, leis penais e leis criadoras de impostos
(artigos 18.º, n.º 3, 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, e 103.º, n.º 3, da CRP) – a afectação
de legítimas expectativas dos cidadãos só se reputa violadora do princípio da
confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, quando seja de
reputar ‘inadmissível e arbitrária’, devendo a ‘ideia geral de
inadmissibilidade’ ser aferida pelo recurso a dois critérios: (i) ‘afectação de
expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível quando constitua uma
mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas
dela constantes não possam contar’; e (ii) ‘quando não for ditada pela
necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos que devam considerar‑se prevalentes (deve recorrer‑se, aqui, ao
princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos
direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição desde
a 1.ª revisão’ (formulações do Acórdão n.º 287/90, na esteira dos Acórdãos n.ºs
11/83, 17/84, 86/84 e 99/99, e que viriam a ser frequentemente retomadas em
decisões posteriores: cf. Acórdãos n.º 285/92 e 302/2006).
Estes apertados critérios foram estabelecidos para situações em que os cidadãos
detinham apenas meras expectativas legítimas, sendo obviamente distinta a
situação quando estejamos perante situações de direitos já completamente
formados e, ainda mais, de direitos já exercitados, como ocorre no presente
caso.
Na verdade, sendo evidente que o facto de um interessado ter ingressado na
função pública no domínio de um determinado regime legal, designadamente em
matéria de definição dos requisitos para a aposentação e das regras de cálculo
das respectivas pensões, não lhe outorga o direito a ver inalterado esse regime
durante todo o tempo, em regra várias décadas, que durar a sua carreira até
atingir o seu termo por aposentação, substancialmente distinta é a situação –
que é a ora em apreço – em que os requisitos legais para a passagem à situação
de aposentado se completaram no domínio da vigência de determinado regime legal
e são posteriormente alterados em termos de determinarem o não reconhecimento
desse direito.
A consagração legal do direito exercitado pelo funcionário representado pelo
Sindicato ora recorrido remonta à Lei n.º 2‑B/85, de 28 de Fevereiro (Orçamento
do Estado para 1985), cujo artigo 10.º, n.º 4, dispôs: ‘Poderão aposentar‑se,
com direito à pensão completa, independentemente de apresentação a junta médica
e desde que não haja prejuízo para o serviço, os funcionários e agentes que,
qualquer que seja a sua idade, reúnam 36 anos de serviço’.
Em execução deste comando foi editado o Decreto‑Lei n.º 116/85 (…).
Contrariamente ao sustentado pela recorrente, não resulta, nem do artigo 10.º,
n.º 4, da Lei n.º 2‑B/85, nem do preâmbulo e do articulado do Decreto‑Lei n.º
116/85, que o regime instituído fosse considerado excepcional e transitório. Na
sua consagração confluíram razões ligadas à necessidade de descongestionamento e
de rejuvenescimento da Administração, é certo, mas também motivações de justiça
material com reconhecido lastro temporal: satisfazer ‘pretensão desde há muito
manifestada por numerosos funcionários e agentes públicos que, possuindo 36 anos
de serviço e tendo por isso direito à pensão completa, eram obrigados a aguardar
pelo completamento dos 60 anos de idade’. De qualquer forma, mesmo que tivesse
sido – e não foi – inicialmente pensado para vigorar durante um período limitado
de tempo, o certo é que o regime em causa persistiu durante mais de 18 anos.
Dele resultava que a aquisição do direito à aposentação dependia de três
elementos: (i) requerimento do interessado; (ii) prova da prestação de 36 anos
de serviço; e (iii) inexistência de inconveniência para o serviço motivada pela
aposentação. Reunidos estes três elementos, a concessão da pensão de aposentação
constituía acto estritamente vinculado da Caixa Geral de Aposentações, à qual
não era reconhecido qualquer possibilidade de denegação da pretensão.
No presente caso, tratando‑se de funcionário da administração local, a
competência para emitir despacho de concordância com a informação no sentido da
inexistência de prejuízo para o serviço foi exercitada pela Vereadora dos
Recursos Humanos, que ratificou a informação prestada pelo Comandante dos
Bombeiros Municipais, encontrando‑se ambos os despachos exarados em informação
datada de 20 de Novembro de 2003 (fls. 11 destes autos).
Com a conjugação desses três requisitos subjectivou‑se na titularidade do
interessado o direito à aposentação, que ele exercitou em plena vigência do
regime legal que o consagrava. A retirada, por lei posterior, desse direito não
pode deixar de ser considerada violadora do princípio da confiança, sendo
substancialmente distinta da situação (essa, sim, não necessariamente violadora
de tal princípio) de a alteração do regime da aposentação, com a eliminação da
modalidade criada pelo Decreto‑Lei n.º 116/85, ser aplicável aos funcionários
que estavam ao serviço ao tempo da publicação e entrada em vigor da Lei n.º
1/2004 mas que nessa data ainda não tinham reunido os requisitos necessários
para o exercício desse direito.
Este entendimento não é afectado pelo disposto no artigo 43.º, n.º 1, alínea a),
do Estatuto da Aposentação, que determina que o regime da aposentação se fixa
com base na lei em vigor e na situação existente à data em que se profira
despacho a reconhecer o direito a aposentação voluntária que não dependa de
verificação de incapacidade. Desde logo, é sustentável que esta norma tem em
vista primacialmente o regime aplicável ao cálculo da pensão de aposentação.
Como anota António José Simões de Oliveira (Estatuto da Aposentação Anotado e
Comentado, Coimbra, 1973, p. 119), esta norma – tendo por pressuposto a
conveniência de ‘uma verificação administrativa do direito de requerer a
aposentação’ – visou acautelar as situações em que entre a data do requerimento
e a da resolução do processo de aposentação decorra largo tempo, no decurso do
qual o funcionário, em princípio, se manteve ao serviço, com mais tempo
aproveitável para a aposentação e eventual superveniência de outras alterações
relevantes, designadamente ao nível remuneratório, sendo manifestamente injusto,
em tal quadro, calcular a pensão à data do requerimento [No sentido da
inconstitucionalidade da referida norma se interpretada no sentido de aplicar
alterações de regime desfavoráveis ao interessado surgidas após a data do
requerimento – questão que não está em causa no presente recurso – cf. José
Cândido de Pinho, Estatuto da Aposentação, Coimbra, 2003, p. 161].
Este Tribunal já teve oportunidade de salientar a necessidade de distinguir o
momento em que se subjectiva o direito a uma pensão de reforma e o momento em
que se subjectiva o direito ao montante da pensão (cf. Acórdão n.º 330/93,
último parágrafo do n.º 8), considerando que, embora o direito do então
recorrente a uma pensão extraordinária de aposentação se tenha subjectivado na
data do despacho que o considerou deficiente das Forças Armadas (20 de Agosto de
1976), o certo é que, como ele optou por se manter no serviço activo e só em 15
de Dezembro de 1983 veio requerer a transição para a situação de reforma
extraordinária, no cálculo que então se operou do montante da pensão houve que
ter em conta as alterações legislativas ocorridas entre 1976 e 1983.
No presente caso, porém, não está em causa o direito a um determinado montante
de pensão de aposentação, mas tão‑só o direito à aposentação nos termos do
Decreto‑Lei n.º 116/85, e este, pelas razões expostas, entrou na titularidade do
interessado quando se reuniram os três elementos de que dependia (requerimento
do interessado, 36 anos de serviço e inexistência de prejuízo para o serviço) e
foi por ele efectivamente exercitado na plena vigência desse regime, sendo
intolerável que posterior demora burocrática no envio do processo para a Caixa
Geral de Aposentações, demora a que o interessado foi de todo alheio, tivesse
como efeito a perda desse direito.
É que, neste domínio, o funcionário encontra‑se numa situação de autonomia
subjectiva face à Administração. Na verdade, não é mais sustentável a concepção
que reduzia o funcionário público a ‘elemento integrante do aparelho
administrativo, objecto de supremacia absoluta da Administração, que define, com
o legislador, autoritária e integralmente, o seu estatuto (de sujeição)
especial’ – o chamado sistema de inclusão (António Lorena de Sèves, ‘Os
concursos na função pública’, em Seminário Permanente de Direito Constitucional
e Administrativo, vol. I, Braga, 1999, p. 49). Antes se reconhece que, pelo
menos em certos domínios, a posição do funcionário face à Administração é, não
de inclusão, mas de alteridade, que pressupõe a autonomia jurídica do
funcionário. Impõe‑se, assim, a distinção entre ‘relação orgânica’ (o
funcionário como órgão do aparelho administrativo) e ‘relação de serviço ou de
emprego’ (que, na concepção clássica de funcionário, era absorvida pela
primeira), reconhecendo a esta, tal como às comuns relações de trabalho, uma
tutela jurídica específica, quer na contraprestação que constitui a remuneração,
‘quer com todas as outras situações que se repercutem em termos económicos na
esfera do agente (v. g., qualificação profissional, carreira, férias, duração do
trabalho, segurança social, etc.)’ (Francisco Liberal Fernandes, Autonomia
Colectiva dos Trabalhadores da Administração. Crise do Modelo Clássico de
Emprego Público, Coimbra, 1995, pp. 107‑108).
A revisão constitucional de 1982, ao mudar a expressão ‘funcionários e agentes
do Estado e das demais entidades públicas’, constante do primitivo artigo 270.º,
n.º 1, para ‘trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e
outras entidades públicas’, do novo artigo 269.º, tornou claro que nenhum
argumento justifica ‘não considerar os funcionários públicos como trabalhadores,
para efeitos de titularidade dos correspondentes direitos, liberdades e
garantias constitucionais’ (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição
da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 945).
Ao direito ora em causa, situado na confluência do direito da função pública e
do direito de segurança social, é, nesta última perspectiva, aplicável, entre
outros princípios gerais, o da ‘conservação dos direitos adquiridos e em
formação’ (artigo 6.º da Lei de Bases da Segurança Social – Lei n.º 32/2002, de
20 de Dezembro) ou da ‘tutela dos direitos adquiridos e em formação’ (artigo 5.º
da Lei de Bases do Sistema de Segurança Social – Lei n.º 4/2007, de 16 de
Janeiro), que ‘visa assegurar o respeito por esses direitos’ (artigos 21.º da
Lei de 2002 e 20.º da Lei de 2007), considerando‑se direitos adquiridos, ‘os que
já se encontram reconhecidos ou possam sê‑lo por se encontrarem cumpridas as
respectivas condições legais’ (artigo 44.º, n.º 2, alínea a), da Lei de 2002) ou
‘os que já se encontram reconhecidos ou possam sê‑lo por se encontrarem reunidos
todos os requisitos legais necessários ao seu reconhecimento’ (artigo 66.º, n.º
2, alínea a), da Lei de 2007).
No presente caso, estando reunidos, antes da publicação da Lei n.º 1/2004, todos
os requisitos legais para o reconhecimento, através de acto estritamente
vinculado, do direito do interessado à aposentação nos termos do Decreto‑Lei n.º
116/85 – e tendo esse direito sido efectivamente exercitado em plena vigência
deste diploma –, do que se tratava, com o critério normativo que o acórdão
recorrido recusou aplicar com fundamento em inconstitucionalidade, era, em
rigor, da destruição retroactiva de um ‘direito adquirido’, que, manifestamente,
não pode deixar de ser reputada violadora do princípio da confiança [Paulo Veiga
e Moura (A Privatização da Função Pública, Coimbra, 2004, pp. 223‑225) sustenta
mesmo a inconstitucionalidade do novo regime quando aplicado a funcionários que,
tendo reunido em 31 de Dezembro de 2003 as condições para a aposentação, só a
vieram a requerer já após a publicação da Lei n.º 1/2004, questão de que não
cumpre tratar no âmbito do presente recurso].”
O Acórdão acabado de transcrever é transponível para a situação em apreço,
traduzindo jurisprudência que ora se reitera.
III – Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do princípio da
protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito, e do princípio
da igualdade, consagrados nos artigos 2.º e 13.º da Constituição da República
Portuguesa, as normas constantes dos artigos 1.º, n.º6, e 2.º da Lei 1/2004, de
15 de Janeiro, quando interpretados no sentido de que aos subscritores da Caixa
Geral de Aposentações que, antes de 31 de Dezembro de 2003, hajam reunidos os
pressupostos para a aplicação do regime fixado pelo Decreto-Lei n.º 116/85, de
19 de Abril, e hajam requerido essa aplicação, deixa de ser reconhecido o
direito a esse regime de aposentação pela circunstância de o respectivo processo
ter sido enviado à Caixa, pelo serviço onde o interessado exercia funções, após
a data da entrada em vigor da Lei n.º 1/2004; e, em consequência,
b) Confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 17 de Abril de 2008
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração)
Gil Galvão (com declaração)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto a decisão por entender que norma viola (unicamente) o princípio da
protecção da confiança.
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão nos precisos termos
em que o fiz no acórdão n.º 615/2007.
Gil Galvão