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Processo n.º 113/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. reclama, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro (LTC), do despacho de 22 de Outubro de 2007, que não admitiu o recurso
que interpôs para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 20 de Setembro de 2007.
Conclui a reclamação do seguinte modo:
“A - O aqui Reclamante, arguiu nos autos uma nulidade processual pelo facto de,
apesar de o seu mandatário ter sido notificado da Reclamação à relação de bens
apresentada, tê-lo sido apenas quanto ao seu conteúdo e pelo mandatário da
Requerente.
B - Porém, não foi notificado pelo Tribunal a quo, como o deveria ter sido por
imposição legal, nos termos da norma constante do art.º 1349.º, n.º 1 do C.P.C.,
para vir aos autos “(...) relacionar os bens em falta ou dizer o que se lhe
oferecer sobre a matéria da reclamação (...)“.
C - Tal notificação deve ser efectuada pelo Tribunal e acompanhada do devido
despacho a ordenar a Resposta, a relacionação dos bens alegadamente em falta na
relação apresentada ou a ordenar uma qualquer outra atitude, não cabendo ao
mandatário da Contraparte o poder de ordenar o cumprimento daquele comando
legal.
D - Ou seja, não era o contraditório de tal reclamação, susceptível de ser
exercido notificação pela parte apresentante, nos termos do disposto nos art.ºs
229.º-A e 260º-A do C.P.C..
E - Em face da falta de resposta “instantânea” do Reclamante à reclamação
apresentada pela ora Recorrida, o Meritíssimo Juiz a quo exarou o despacho em
que, sem ouvir o Reclamante, deu razão à Recorrida quanto à matéria da sua
reclamação.
F - O Reclamante reclamou de tal despacho, argumentando que tendo decidido uma
questão incidental nos presentes autos, sem que tivessem sido obedecidos os
trâmites e formalidades processuais prescritas na lei, nomeadamente sobre a
forma e ao tempo em que seria exercido o contraditório, tal aresto era nulo, nos
termos do disposto nos art.ºs 201º, n.º 1 do C.P.C., por omissão de formalidade
que directamente influiu no exame e decisão de tal questão incidental,
reclamação que lhe foi indeferida, atitude confirmada em sede de recurso para o
Tribunal da Relação.
G - Tal não é consentâneo com o estatuído legalmente e mesmo com a ratio da
norma em causa - art.º 1349.º, n.º 1 do C.P.C., porquanto nos parece ser
manifesto que a letra do n.º 1 do art.º 1349.º do C.P.C. impõe um despacho, no
sentido da necessidade de ordenar ao cabeça-de-casal que venha aos autos
responder à matéria da Reclamação.
H - E nem nos parece que o comando do art.º 1328.º do C.P.C., se ajuste ao
sentido, porquanto a criação de tais normas nem sequer teve lugar na altura em
que as notificação em processos pendentes passaram a ser efectuadas entre
mandatários.
I - Mas, na dúvida sobre a interpretação de tal norma, apela-se ao mecanismo de
interpretação de normas que nos é indicado pelo art.º 9º do C.C..
J - Assim, atendendo ao sentido litera1 da redacção do artigo em causa, não tem
lógica o sentido de que deve ser a contraparte, através de requerimento, a quem
caiba notificar o Cabeça-de-Casal para os termos expressos no mesmo, seja pela
oração impositiva que o mesmo revela - “...é o Cabeça-de-Casal notificado para
relacionar os bens em causa - seja pela oração seguinte que implica uma atitude
de alguém em posição exterior à causa, à questão sub judice, mormente, na
posição imparcial e superior de quem a julga - “ou dizer o que se lhe oferecer
sobre a matéria da reclamação...”.
L - De outro modo não pode ser interpretada tal norma, porquanto é manifesto que
a sua redacção perderia todo o sentido e grande parte do alcance prático que
pretende, tornando-se, assim, inócua.
M - Por outro lado, interpretando a mesma norma através do seu elemento
histórico e atendendo à ratio da mesma – nos termos da parte final do n.º 1 do
art.º 9.º do C.C. – conclui-se que, se tal norma foi criada em período de tempo
no qual existia uma diferente dinâmica processual, no que às notificações diz
respeito, não podemos deixar de ter em conta que a mesma se inseria com perfeito
alcance prático no sistema em vigor à altura da sua criação.
N - A posterior alteração daquela dinâmica, impõe que o alcance prático da mesma
se mantenha, ainda que apesar de tal alteração, através do ajuste do disposto na
nova lei ao efeito pretendido pela norma em causa, função que está atribuída ao
Tribunal, no uso dos poderes que lhe são concedidos pelo Princípio da adequação
formal, nos termos do art.º 265.º-A do C.P.C..
O - E não se diga que, no uso de tais poderes, a solução correcta é subscrita
pelas decisões já recorridas, porquanto, antes de mais, há que ter em conta a
finalidade da norma, tal como, aliás, o impõe o referido art.º 265.º-A do
C.P.C..
P - Caso assim não seja, o sentido prático da norma perder-se-ia por completo,
não só porque retira ao Tribunal a possibilidade de prévio exame e admissão ou
rejeição da Reclamação de Bens, mas também porque a ordem de admissão ou
retirada dos bens assim reclamados, da relação de bens, tem que partir sempre do
Tribunal e nunca das partes.
Q - A lógica de tal solução, está no facto de que, por ex., caso o Juiz do
processo decida que tal nem será relevante, pelas hipóteses acima descritas, o
contraditório poderia nem ter que ser exercido.
R - Tais argumentos apresentados perante o Venerando S.T.J., referiam, assim, um
perspectiva histórica, lógica e axiológica, concordante com a perspectiva
patente na nossa constituição, elo que, no entender do Reclamante, o
entendimento não podia ser diferente.
S - Entender de modo diferente, perante os argumentos apresentados, seria
legislar uma outra nova norma, sem poderes para tal, violando, assim, o disposto
nos art.ºs 161.º e 198.º da C.R.P..
T - Sendo Portugal um país democrático e uma nação de direito, tal implica que
existe a obrigatoriedade do respeito ao princípio da legalidade.
U - Implica, igualmente, que a Lei tem um determinado sentido que tem que ser
respeitado. Tal sentido é aferido aquando da criação da Lei, mantendo-se o mesmo
até que uma nova Lei a revogue.
V - Não havendo revogação da Lei, à mesma poderia ainda ser dado um outro
sentido, se expressamente assim fosse declarado pelo legislador, adaptando,
então, na perspectiva unitária da Lei, todas as restantes normas ao sentido que
pretenda que prevaleça naquele momento.
X - Por outro lado, decidir contra tal entendimento, é violar o princípio do
direito de defesa do Reclamante, bem como o princípio do respeito e garantia da
efectivação dos seus direitos, seja, porquanto o mesmo confiou no sentido da Lei
que o Legislador lhe atribuiu na sua criação, aquando da sua criação, atribuiu a
esta.
Z - Ora, alterando-se o referido sentido, por mera decisão jurisprudencial, caso
tal seja possível, viola-se a legítima expectativa do Reclamante em efectivar o
seu direito através da Lei, na qual confiou, seguro de tal sentido, afectando,
por esta via, a expectativa de, através dos tribunais, ver o seu direito
confirmado. O mesmo é dizer que, na prática, se afasta o direito de Acesso ao
Direito e aos Tribunais por parte do Reclamante, porquanto não é pela via
judicial que o mesmo veria o seu direito garantido e efectivado, violando-se,
igualmente, o disposto nos art.ºs 2.º e 20.º da C.R.P.!
AA - Por esse mesmo motivo, é que tal omissão de formalidade consubstancia uma
nulidade processual, nos termos do disposto no art.º 201.º do C.P.C. e não uma
qualquer irregularidade!
BB - Tal violação, no entender do Reclamante, ocorre na, aliás douta, decisão
proferida pelo S.T.J. e não antes, na qual se pretende dar um sentido diferente
à norma em causa, agindo, pois, aquele Venerando Tribunal, fora das suas
competências, uma vez que o mesmo não é um órgão legislativo.
CC - E, em consequência, viola, com tal decisão, os direitos fundamentais
referidos supra, sendo tal decisão ferida de inconstitucionalidade.”
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação carece ostensivamente de fundamento: para além do
recorrente não lograr identificar, nos termos minimamente inteligíveis, qual a
norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendia questionar,
é evidente que não suscitou, durante o processo – podendo obviamente tê-lo
feito, face ao objecto da controvérsia – qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, susceptível de integrar o objecto de um recurso
de fiscalização concreta.”
2. Para apreciação da reclamação interessa considerar as ocorrências processuais
seguintes:
a) O reclamante, cabeça de casal no processo de inventário para partilha de bens
subsequente à dissolução do seu casamento, recorreu para a Relação do despacho
que desatendeu a arguição de nulidade do despacho que recaiu sobre a reclamação
apresentada pela sua ex‑mulher (co-interessada no inventário) contra a relação
de bens.
b) A Relação negou provimento ao recurso.
c) O reclamante interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que lhe
negou provimento por acórdão de 20 de Setembro de 2007, confirmando o
entendimento das instâncias de que a notificação entre mandatários é meio idóneo
para convocar o cabeça de casal a exercer o contraditório previsto no n.º 1 do
artigo 1439.º do Código de Processo Civil (fls. 24/26).
d) O reclamante interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional
mediante requerimento do seguinte teor:
“A., Recorrente nos autos indicados em epígrafe e neles melhor id., tendo sido
notificado do, aliás, douto Acórdão proferido, e não se conformando com o teor
do mesmo, dele vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, por julgar o
mesmo inconstitucional, nos termos do disposto no art.º 70.º, n.º 1 b) e c) da
Lei do Tribunal Constitucional, mormente por violação do disposto no art.º 20.º
da Constituição da República.
Por via do presente requerimento ser apresentado no segundo dia útil após o
termo do prazo para o mesmo, Requer a VV. Exa. se digne ordenar a passagem da
competente guia de multa prevista no art.º 145.º, n.º 5 do C.P.C., para
pagamento da mesma.”
e) Sobre tal requerimento recaiu despacho reclamado, do seguinte teor:
“Uma vez que o agravante não alegou anteriormente a, agora, invocada
inconstitucionalidade, não é admissível o recurso para o Tribunal
Constitucional.
Pelo exposto, indefere-se o requerimento de fls. 155.”
3. A reclamação tem de ser julgada improcedente pelas seguintes razões que, pelo
seu carácter manifesto face à lei e à jurisprudência consolidada do Tribunal, se
passam a enunciar sumariamente:
A)
O fundamento da não admissão do recurso adoptado pelo despacho
reclamado consistiu em não ter sido suscitada qualquer questão de
inconstitucionalidade no recurso de agravo, interposto do acórdão da Relação
para o Supremo Tribunal de Justiça, que deu origem ao acórdão recorrido. Com
efeito, é pressuposto do recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo de
qualquer dos preceitos invocados pelo reclamante (as alíneas b) e c) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC) que a questão de constitucionalidade ou de ilegalidade tenha
sido suscitada, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Sucede que o próprio recorrente reconhece não ter suscitado a
questão de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal de Justiça, afirmando
que levantou tal questão, apenas, no requerimento de interposição de recurso.
Esse já não é momento processualmente adequado para cumprir tal ónus. Assim,
para que o recurso pudesse ser admitido seria necessário que se verificasse
qualquer das circunstâncias em que, num entendimento funcional daquele ónus, a
jurisprudência do Tribunal tem considerado não ser exigível a prévia submissão
da questão de constitucionalidade ao tribunal da causa. O que o recorrente não
alega, nem se afigura que o pudesse fazer com qualquer vislumbre de sucesso,
visto que a questão de direito adjectivo decidida pelo Supremo Tribunal de
Justiça foi rigorosamente a mesma que desde a primeira instância vinha a ser
discutida e que o acórdão recorrido se limita a optar pela confirmação do
entendimento das instâncias de que a convocação do cabeça de casal a exercer o
contraditório previsto no n.º 1 do artigo 1439.º do Código de Processo Civil se
faz pela notificação entre mandatários, não carecendo de despacho judicial. O
recorrente pusera em causa esse entendimento no agravo para o Supremo, mas não
questionara a constitucionalidade ( ou, para fazermos referência ao outro
fundamento de recurso indicado no requerimento de interposição, sem compromisso
com a respectiva plausibilidade, a ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado) das normas que o suportavam.
Merece, portanto, confirmação o fundamento de não admissão do
recurso adoptado no despacho reclamado.
B)
De todo o modo, sempre se lembrará que o recurso das decisões dos
demais tribunais para o Tribunal Constitucional, tal como está consagrado na
Constituição (artigo 280.º da CRP) e na lei (artigo 70.º da LTC), só pode ter
por objecto a verificação da constitucionalidade (ou da ilegalidade por violação
de lei de valor reforçado) de normas que a decisão jurisdicional recorrida tenha
aplicado ou a que tenha recusado aplicação (com fundamento em violação da
Constituição ou de lei de valor reforçado). Não cabe, entre nós, tal recurso
quando a violação da Constituição (ou de lei com valor reforçado) seja imputada
directamente à decisão jurisdicional, em si mesma considerada. Em conformidade
com esta natureza normativa do objecto do recurso, a lei impõe ao recorrente que
identifique, logo no requerimento de interposição, a norma cuja
inconstitucionalidade ou ilegalidade pretende que o Tribunal aprecie (artigo
75.º-A da LTC).
Ora, no requerimento de interposição de recurso o reclamante diz claramente
interpor recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça “por julgar o mesmo
inconstitucional” sem referência à norma cujo confronto com a Constituição se
proponha obter. E na reclamação – onde o interessado tem o ónus de corrigir as
deficiências supríveis daquele requerimento em ordem a permitir a decisão
definitiva sobre a admissibilidade do recurso nos termos do n.º 4 do artigo 77.º
da LTC – continua a não identificar, em termos minimamente inteligíveis,
qualquer norma cuja (in)constitucionalidade pretenda submeter a apreciação do
Tribunal. Não se trata, portanto, de uma deficiência da indicação do objecto do
recurso, mas da pretensão de ver apreciada pelo Tribunal Constitucional a
alegada violação de direitos fundamentais directamente imputada à concreta
decisão judicial e não a qualquer norma (ainda que de sentido mediatizado pela
decisão recorrida) de que o acórdão recorrido tenha feito aplicação.
A desenvolvida motivação da reclamação - aliás, desinteressando-se da ratio
decidendi do despacho reclamado que deveria refutar -, revela inequivocamente
que aquilo que se pretende deste Tribunal é a censura à interpretação e
aplicação feita pelo acórdão recorrido de normas de direito ordinário relativas
à notificação do cabeça de casal no incidente de reclamação contra a relação de
bens no processo de inventário. O que, obviamente, não cabe na competência do
Tribunal Constitucional.
Portanto, não tendo o recurso objecto idóneo, também por isso nunca
a reclamação poderia proceder.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o reclamante nas
custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 21 de Fevereiro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão