Imprimir acórdão
Processo n.º 804/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença do
1.º Juízo Liquidatário do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que negou
provimento ao recurso contencioso por ele deduzido contra a Comissão de
Inscrição da Associação dos Técnicos Oficiais de Contas relativo ao acto de
recusa da sua inscrição, naquela Associação, praticado em 14 de Julho de 1998.
A sentença foi proferida na sequência de Acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo de 14 de Maio de 2003 que havia concedido parcial provimento ao
recurso interposto de sentença anteriormente prolatada, nos autos, pelo Tribunal
Administrativo do Círculo do Porto, e que havia julgado inverificado o vício de
forma e verificado o vício de violação de lei. Aquele Alto Tribunal acordou,
então, na revogação da sentença quanto à anulação do acto administrativo
recorrido por violação de lei bem como na verificação da falta de fundamentação,
ordenando a baixa do processo.
Em 3 de Novembro de 2005 foi então proferida sentença pelo 1.º Juízo
Liquidatário do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, negando provimento ao
recurso contencioso. Vejamos o que, a dado passo, se escreveu nessa decisão:
“A imputação de violação destes princípios é baseada no facto de,
‘anteriormente, nomeadamente no ponto 1, da al. c) do Regulamento de aplicação
do ponto 3 do Despacho n.º 8470/97, de 16 de Setembro, do Ministro das Finanças,
a ATOC definiu que o período decorrido entre 1 de Janeiro de 1989 e a data da
publicação do Dec.-Lei n.º 265/95 compreendia, para os efeitos dos três anos de
actividade exigidos, ‘os exercícios de 1989 a 1995, inclusive’, ou seja, a
circunstância de o acto recorrido não ter considerado ‘reconhecimentos
administrativos anteriores’ designadamente o de que os três anos de exercício a
ter em consideração corresponderia aos exercícios de 1989 a 1995.
Só que não foi o acto impugnado que não considerou aquele período mas a própria
lei (nomeadamente o regulamento em questão nos autos). E, não se pode considerar
que o citado Despacho n.º 840/97, de 16 de Setembro, do Ministro das Finanças,
tenha reconhecido qualquer direito de inscrição ao recorrente.
Aliás, mais se diga que, conforme se diz no Despacho n.º 840/97, ponto 1 al. c),
o requisito exigido é que os candidatos ‘sejam ou tenham sido, no período
decorrido entre 1 de Janeiro de 1989 e a data de publicação do referido
estatuto, durante três exercícios seguidos interpolados, os responsáveis
directos por contabilidade organizada, termos do Plano oficial de Contabilidade,
de entidades que naquele período possuíssem ou devessem possuir esse tipo de
contabilidade’.
E, face a este requisito e toda a prova apresentada pelo recorrente,
independentemente da sua valoração, diz respeito aos exercícios de 1993 a 1995,
sendo que só é relevante o exercício da actividade de responsável pela
contabilidade até a data da publicação do Estatuto, ou seja, 17-10-95.
Assim sendo, quer à luz do Despacho n.º 840/97 quer da Lei n.º 27/98 o
recorrente não perfazia o exercício da actividade responsável pela contabilidade
durante três anos, mas tão só durante 1993, 1994 e parte de 1995.”
2. Interposto recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo,
foi-lhe, no entanto, negado provimento, por Acórdão de 26 de Setembro de 2006.
Para o que ora releva, pode ler-se nesse aresto:
“O primeiro ponto a apreciar consiste na omissão de pronúncia da questão da
inconstitucionalidade do Regulamento e do próprio artigo 1.º da Lei 27/98, na
interpretação que dela fez aquele Regulamento.
Tal questão não foi efectivamente tratada, ‘qua tale’ pela sentença.
Vejamos se deveria ter sido.
Nas conclusões da alegação do recurso contencioso a referência efectuada, e
sobre a qual se poderia tentar basear a asserção de ter sido alegada a
inconstitucionalidade que agora se diz não ter sido conhecida, é a conclusão
19.ª deste teor:
‘[O ponto 1 da al. c) do Regulamento viola] não só o princípio da igualdade
constitucional previsto no artigo 13.º da CRP, como também o princípio da boa fé
(artigo 6-A do CPA) e da responsabilidade pelas informações prestadas aos
particulares (artigo 7.º n.º 2 do CPA)’ (fls. 156).
Bem se vê que a invocação efectuada de violação de norma constitucional é
restrita a de violação do princípio da igualdade, sendo certo que a sentença
tratou desta questão e assim sendo não se verifica a nulidade invocada, antes se
constata que as questões de constitucionalidade que agora se referem são
trazidas de novo ao processo neste recurso jurisdicional.
O recorrente afirma agora neste recurso, na alegação, a fls. 499 que nem todas
as questões foram conhecidas na sentença recorrida, mas identifica apenas a da
inconstitucionalidade que se acaba de analisar pelo que não há lugar a outra
pronúncia quanto à referência genérica que efectuou.
2. Passando à análise de fundo, a sentença vem atacada, em primeiro lugar com o
fundamento de que o Regulamento da ATOC ofende o princípio da reserva de lei,
não podendo configurar restrições ao acesso à inscrição na profissão de Técnico
oficial de Contas, sendo nulo, por incompetência absoluta e por versar matéria
da reserva absoluta de competência da AR – artigo 165.º, b).
A sentença não conheceu da questão de o Regulamento não se conformar com a lei
que visava regulamentar, porque esta questão tinha sido resolvida pelo Acórdão
do STA em relação a todos os aspectos, ao concluir que a restrição dos meios de
prova não afectou o recorrente, porque ele não apresentou prova suficiente para
preencher os requisitos do artigo 1.º da Lei 27/98 invadir a reserva de lei da
AR.
Ao assim decidir o STA afastou todas as possibilidades de confrontar o acto com
vícios que o inquinassem pela via indirecta do contágio por vícios do próprio
Regulamento, uma vez que cortou com o facto de ter sido aplicado e passou a
apreciar a validade do acto apenas em função do artigo 1.º da Lei 27/98, tendo
concluído que face a ela não tinha sido efectuada ou sequer oferecida prova
capaz de preencher os requisitos que eram exigidos para a inscrição na ATOC.
Quanto à violação, na emissão do Regulamento, das normas de precedência
obrigatória de lei, invocada na conclusão 13.ª do recorrente no recurso
jurisdicional, tal como da invalidade do Regulamento por tratar matéria da
exclusiva competência da AR, constante da conclusão 14.ª, não se debruçou a
sentença nem tinha de o fazer pela razão antes apontada de o Acórdão do STA ter
apreciado o acto face à Lei 27/98, considerando-o válido, nos termos apontados.
E assim, não há agora que censurar a sentença nestes aspectos.
3. O recorrente ataca depois a sentença dizendo que o artigo 2.º do Regulamento
pretende derrogar o regime fixado no artigo 1.º da Lei 27/98, ao interpretar a
expressão do DL 265/95, de 17.10, – desde 1 de Janeiro de 1989 e até à data da
publicação do DL 265/95, de 17 de Outubro – como desde 1 de Janeiro de 1989 e
até 31 de Dezembro de 1994.
Mas, ainda aqui são aplicáveis as considerações precedentes significando que o
alcance do julgado, com trânsito, pelo Acórdão deste STA, de 14.5.2003,
proferido neste mesmo processo em apreciação do vício de violação de lei que
julgou improcedente, se estende ao fundamento desta mesma decisão, que como
vimos assenta em que o acto de indeferimento se deve considerar válido por não
se terem provado no procedimento os pressupostos enunciados no artigo 1.º da Lei
27/98, de 3.6.
Assim sendo, foi de todo afastada a relevância dos vícios do Regulamento na
apreciação efectuada pelo que há apenas que acatar o decidido com trânsito em
julgado, quer pela sentença, quer neste recurso jurisdicional.
O mesmo se deve ainda dizer em relação à conclusão do recorrente de que o artigo
3.º do Regulamento criou para o conceito de responsáveis directos por escrita
organizada, os que tenham assinado declarações tributárias, que não consta da
Lei 27/98 e deixa de fora, por exemplo, os técnicos de contas integrados em
sociedades que não assinavam as declarações devido a razões internas daquela
organização. Também esta conclusão passa pela aplicação de norma do Regulamento
que o Acórdão transitado em julgado considerou irrelevante face à confrontação
directa que fez do acto impugnado com os pressupostos da Lei 27/98.”
Vem então, no seguimento de algumas vicissitudes processuais que não importam
para os presentes autos, interposto, de tal aresto, recurso de
constitucionalidade, nos seguintes termos:
“O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1., do artigo 70.º da Lei
28/82, de 15 de Novembro, porquanto o Acórdão recorrido fez aplicação de normas
– o Regulamento aprovado pela ATOC, em especial a alínea d), do n.º 1., do
artigo 1.º e artigo 3.º, cuja inconstitucionalidade e ilegalidade tinha sido
suscitada nos autos, por violação do disposto nos artigos 13.º, 18.º, 112.º, n.º
8., e artigo 165.º, n.º 1., alínea b) da Constituição da República Portuguesa,
bem como violação do artigo 1.º da Lei n.º 27/98, de 3 de Junho, norma que
aplicada com o mesmo sentido e alcance do Regulamento foi inconstitucionalizada
pelo Acórdão recorrido, já que considerou não observado, pela recorrente, o
exigido pelo artigo 1.º da Lei n.º 27/98, de 3 de Junho, porquanto aceitou a
limitação dos meios de prova, inconstitucionalmente impostos por aquele
Regulamento.”
Notificado para alegações, concluiu o Recorrente do seguinte modo:
“1. O Regulamento dito de execução da Lei n.º 27/98, de 3 de Junho, enferma todo
ele de ilegalidade e de inconstitucionalidade, por falta de habilitação legal
para a sua elaboração, conforme exigido pelo n.º 8., do artigo 112.º da C.R.P.,
como muito bem sustenta o Prof. Vital Moreira.
2. Por sua vez, decorre da Lei n.º 27/98 a vontade do legislador proporcionar o
acesso à profissão de técnico oficial de contas, a quem satisfizesse os
requisitos do artigo 1.º daquela Lei, cuja prova teria de respeitar os mais
elementares princípios da sua livre admissibilidade – artigo 345.º, n.º 2., do
Código Civil e artigo 87.º do C.P.A., pelo que a alínea d) do n.º 1., do artigo
1.º do Regulamento e o artigo 3.º são ilegais e inconstitucionais, por violarem
o artigo 1.º da Lei n.º 27/98, e restringirem as condições de acesso a uma
profissão, à segurança no emprego, e a uma actividade, violando os artigos 47.º,
53.º e 61.º da C.R.P.
3. De igual modo, tais disposições do Regulamento (alínea d) do n.º 1., do
artigo 1.º e artigo 3.º) ao excederem o âmbito, a letra e o espírito da Lei n.º
27/98 e do seu artigo 1.º, acabam por dispor praeter legem, ou melhor, contra
legem, enfermando ainda de inconstitucionalidade por usurpação de competência de
reserva da lei da Assembleia da República e por restringirem direitos
fundamentais, violando o artigo 18.º, n.º 3. e o artigo 165.º, n.º 1., alínea
b), da C.R.P.
4. As restrições de prova impostas pelo artigo 1.º, em especial a alínea d) do
seu n.º 1. e pelo artigo 3.º do Regulamento em causa, atentam com princípios e
direitos fundamentais consagrados na Constituição, pelo que aquelas disposições
enfermam ainda de inconstitucionalidade por porem em causa a liberdade de
escolha da profissão (artigo 47.º da C.R.P.), a segurança no emprego (artigo
53.º da C.R.P.), e o direito ao trabalho (artigo 58.º da C.R.P.).
5. Tudo isto se torna ainda mais evidente, quando é certo que, não só o artigo
1.º da Lei n.º 27/98, estabelecia já os requisitos, como os mesmos foram
adulterados pelo Regulamento, apenas e só com o assumido propósito (V. Doc. 12
junto com a p.i.) de restringir, dificultar e mesmo impedir a inscrição, na
ATOC, de quem tinha direito a isso.
6. Na verdade, só com tal objectivo se compreende que se tenha imposto a
apresentação do Mod. 22, assinado pelo responsável pela contabilidade,
exactamente em período em que a lei deixara de ter tal exigência, como resulta
do Preambulo do Dec-Lei n.º 265/95, de 17 de Outubro de que se transcreve a
seguinte passagem:
‘Com a aprovação do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas
e o das Pessoas Singulares, que começaram a vigorar em 1989, foi revogado o
referido Código da Contribuição Industrial, deixando de ser obrigatória a sua
assinatura nas declarações fiscais, desaparecendo, no plano institucional, a
figura do técnico de contas’.
7. Aliás, este Tribunal Constitucional no seu notável Acórdão de 6 de Julho de
2005, (Autos de Recurso n.º 119/04, 1.ª Secção), também entendeu reconhecer, em
situação totalmente similar à dos autos, a inconstitucionalidade das disposições
do Regulamento em causa, decidindo o seguinte:
‘Na medida em que o artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento, nos termos expostos, não
respeitou, como ficou dito, o limite da ressalva referida (ou seja, não editou
norma meramente executiva), encontra-se o mesmo ferido de inconstitucionalidade
orgânica. De facto, ‘o grau de autonomia regulamentar das ordens depende
naturalmente da lei, conforme esta se limite a estabelecer os princípios gerais
ou seja mais densa, em cada um dos domínios regulatórios. Todavia, lá onde
esteja constitucionalmente estabelecida uma reserva de lei – como sucede
normalmente em matéria de restrições aos direitos fundamentais, como é o caso da
liberdade de profissão –, fica então o regulamento reduzido a um papel executivo
da lei’ (Vital Moreira, ob. cit., p. 271 e s.)’.”
3. Já a Recorrida suscitou questão prévia tendente ao não conhecimento do
objecto do recurso de constitucionalidade, pelo facto de o acórdão recorrido não
ter aplicado as normas impugnadas pelo Recorrente.
Ordenada a notificação do Recorrente para, nos termos previstos no artigo 704.º,
n.º 2, do Código de Processo Civil, se pronunciar sobre a questão prévia
referida, veio aquele, a fls. 659 a 601 dos autos, propugnar pela não
verificação da mesma, sustentando que “interpretar, como o Acórdão recorrido
interpretou o artº 1º da Lei nº 27/98, em termos de aceitar a referida restrição
de meios de prova, que nega o exercício de um direito fundamental – o direito à
profissão, traduz-se em manifesta inconstitucionalização daquela disposição da
Lei n.º 27/98.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
Questão Prévia
4. Como é sabido, a apreciação de recursos de constitucionalidade interpostos ao
abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional,
depende da verificação de alguns pressupostos. Assim, é necessário que,
nomeadamente, as normas ou dimensões normativas impugnadas tenham sido aplicadas
pela instância recorrida como ratio decidendi, isto é, como fundamento da
decisão, na exacta dimensão interpretativa contestada pelo recorrente.
5. No caso em apreço, a questão de constitucionalidade versa, o artigo 1.º, n.º
1, alínea d), e o artigo 3.º, do Regulamento aprovado pela Comissão Instaladora
da ATOC. No entanto, cotejado o acórdão recorrido do Supremo Tribunal
Administrativo, verifica-se que as normas citadas não foram, sequer, aplicadas,
assim se frustrando, pelo menos nesta parte, a verificação de requisito
essencial ao conhecimento do recurso.
Com efeito, como se comprova pelas transcrições que constam supra do acórdão
recorrido, relativas à alegada omissão que inquinaria a sentença da primeira
instância por não se ter debruçado sobre as inconstitucionalidades assacadas ao
referido Regulamento, não houve qualquer aplicação das normas referenciadas, nem
de quaisquer outras, do Regulamento em causa.
Nestas matérias, e como resulta do Acórdão cujo trecho se acabou de transcrever,
a pronúncia jurisdicional encontrava-se já limitada pela força de caso julgado
que, face ao trânsito, assumiu o anterior Acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo de 14 de Maio de 2003 e que, como igualmente se comprova do que
ficou transcrito, se limitou a, não obstante concluir pela invalidade das normas
do Regulamento que haviam sido aplicadas, considerar que o Recorrente, face ao
artigo 1.º, da Lei n.º 27/98, não logrou efectuar prova bastante de que cumpria
os requisitos necessários para poder beneficiar do regime excepcional de
inscrição como técnico oficial de contas previsto naquele diploma (situação
semelhante, como refere a Recorrida, à que foi decidida pelo Acórdão n.º
35/2007, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, não se verificando um dos pressupostos essenciais do recurso interposto –
impugnação de normas e dimensões interpretativas que constituam a ratio
decidendi da pronúncia recorrida – não pode o mesmo ser objecto de conhecimento.
III – Decisão
6. Nos termos e pelos fundamentos expostos decide-se, na 1.ª Secção do Tribunal
Constitucional, não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 12 (doze) UC.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2008
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos