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Processo n.º 156/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal de Pequena
Instância Criminal do Porto vem reclamar da decisão judicial que indeferiu o seu
requerimento de recurso para este Tribunal ao abrigo do disposto nos artigos
77.º e 78.º-A, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
Sustenta a sua reclamação invocando, nomeadamente
“(…) da leitura integral do douto despacho judicial recorrido e da respectiva
integração na antecedente tramitação processual que conduziu à prolação do
mesmo, parece-nos inegável que consubstancia este, de facto, a recusa de
aplicação da norma constante do n.º 2, do art. 389º, do CPP, – constante de acto
legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto – 15.ª Alteração ao Código de Processo
Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro) –, por
inconstitucionalidade e/ou ilegalidade.
De facto, tendo o MP, nos termos do douto despacho exarado a fls. 7, verificados
que se mostravam os pressupostos dos art.ºs 381º, n.º 1, al. a), e 387º, n.º 1,
do CPP, determinado, nos termos do disposto na 2.ª parte, do n.º 2, do art.
382º, do CPP, a apresentação do ‘.../... expediente, ao M.º Juiz de Turno para
os efeitos do art.. 387.º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, … /...’
(…) e tendo este – Mmo/a Juiz de turno –, com os fundamentos de facto e de
direito que constam do douto despacho judicial de fls. 8 determinado ‘…./... que
o arguido seja notificado para comparecer no próximo dia 26/11/2007, pelas 10.00
horas, (…) e tendo ainda o MP, entretanto e atento o despacho judicial de fls.
10 – ‘Atento a promoção e o despacho meramente formal de adiamento proferido no
TIC, (artº 387º, nº 2, alínea a) do C.P.P.) vão os autos ao MP, para os fins
tidos por convenientes, respectivamente apresentação da acusação.’ (sic) –, nos
termos consignados a fls. 11, reservado para o início da audiência de discussão
e julgamento, o eventual uso da faculdade prevista no n.º 2. do art. 389º, do
CPP, a decisão judicial entretanto recorrida, ao decidir ‘.../... determino a
remessa dos presentes autos ao Ministério Público para tramitação sob outra
forma processual.’ (sic), não só nega a aplicação daquela disposição legal,
expressamente invocada pelo MP, (ou antes, a possibilidade do exercício, pelo
MP, da faculdade p. na mesma), como fundamenta tal posição, alegando, além do
mais que, ‘É certo que no auto de notícia constam alguns factos.
Todavia, tais factos, por si só não constituem qualquer crime, …/... – o dolo –
constitui elemento típico dos ilícitos criminais, …/... O mesmo sucede quanto à
negligência, … /… Tal elemento subjectivo deverá constar da acusação e/ou do
auto de notícia – …./... .
Do expediente ora em análise não consta qualquer um desses elementos (dolo ou
negligência).
De tal expediente também não se retira a indicação das disposições legais
aplicáveis a chamada qualificação jurídica dos factos, …/…’ (sic), concluindo
com a alegação de que ‘Está em causa a natureza acusatória do processo penal,
além das garantias de defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do
tribunal.’ (sic).
Ora, não sendo obviamente de exigir fórmulas sacramentais para afirmar
princípios, parece-nos que outra coisa não fez o/a Mmo/a Juiz a quo que não
tenha sido recusar a aplicação, in casu, da norma legal expressamente invocada
pelo MP, (n.º 2, do art. 389.º, do CPP), por entender que tal aplicação,
faltando no auto de notícia, ‘o elemento subjectivo’ e ‘a chamada qualificação
jurídica dos factos’, seria inconstitucional, por violação dos, aliás
expressamente citados e assim invocados, princípios constitucionais da
estrutura/natureza acusatória do processo penal e das garantias de defesa do
arguido – art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP – e/ou ilegal, por violação do,
igualmente expressamente citado e invocado, princípio da vinculação temática do
tribunal – art.ºs 358º, 359º e 379º, n.º 1, al. b), do CPP.
Mais alega o/a Mmo/a Juiz a quo no douto despacho ora reclamado, ‘Requisito de
admissibilidade do recurso, nos termos do art. 70.º al. a), é a da existência da
recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Ora, isso não acontece, nem explicita nem implicitamente no despacho em causa
nos autos, …/... .’.
De facto, nos termos da citada al. a), do n.º 1, do art. 70.º, da Lei 28/82, de
15 de Novembro, ao abrigo da qual, também, mas não só, foi interposto o recurso
ora indeferido, o requisito de admissibilidade do recurso é efectivamente a
existência de recusa de aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade.
Contudo, nos termos da al. c), do n.º 1, do mesmo preceito legal, ao abrigo da
qual foi ainda, interposto o recurso em causa, o requisito de admissibilidade do
recurso é a existência de recusa de aplicação de norma constante de acto
legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado.
Ora, a expressa invocação, no despacho recorrido, dos supra referenciados
princípios constitucionais da estrutura/natureza acusatória do processo penal e
das garantias de defesa do arguido e do princípio legal da vinculação temática
do tribunal, resulta inequívoca e inegavelmente do respectivo texto, supra
transcrito, mormente do supra citado segmento da respectiva parte final –‘Está
em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de defesa
do arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal.’ (sic, com
sublinhado nosso).
Face ao exposto, não pode naturalmente concordar-se com a, além de
infundamentada, estranha conclusão, constante do despacho em reclamação, no
sentido de que, no mesmo ‘.../... não acontece, nem explicita nem
implicitamente…/ /...’ (sic) a recusa de aplicação de uma norma com fundamento
na sua inconstitucionalidade, pois que, manifestamente tal acontece,
relativamente à norma constante do n.º 2, do art. 389.º, do CPP, com fundamento,
aliás explícito, e portanto, claro e inegável, na respectiva
inconstitucionalidade e/ou, na respectiva ilegalidade, por violação dos
princípios citados, o que, sendo certo que a norma em referência consta de acto
legislativo, também pode fundamentar a admissibilidade do recurso, ora
indeferido.
Assim sendo, parece-nos forçoso concluir que a decisão em referência não só
admite recurso, para o Tribunal Constitucional, nos termos das supra citadas
als. a) e/ou c). do n.º 1, do art. 70.º, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, como é
o mesmo, aliás, para o MP, atento o prescrito no n.º 3, do art. 72º, da citada
Lei, até obrigatório, por a norma cuja aplicação se mostra recusada, constar de
acto legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto, conforme supra já referido).
Concluindo, o que o/a Mmo/a Juiz fez, no/a douto/a despacho/decisão recorrido/a,
ao decidir ‘.../..., determino a remessa dos presentes autos ao Ministério
Público para tramitação sob outra forma processual.’ (sic), não realizando o
requerido pelo MP, nos termos legais e aliás, anteriormente, judicialmente
determinado, – tendo sido o/a arguido/a e o/a/s agente/s autuante/s de tal
despacho notificado/a/s (cfr. fls. 11) – julgamento do/a arguido/a, em processo
sumário e nem sequer iniciando a audiência, cujo início, note-se, havia sido,
oportuna e anteriormente, judicialmente adiado, nos termos do disposto na al.
a), do n.º 2, do art. 387.º, do CPP, – sem cuidar aqui sequer da questão da
eventual violação do princípio do caso julgado formal, na medida em que se
pronunciou o/a Mmo/a juiz a quo, sobre questão já ultrapassada/processualmente
precludida e relativamente à qual se encontrava esgotado o poder jurisdicional
com a prolacção do anterior despacho judicial, supra citado, que procedeu ao
adiamento do início da audiência de julgamento em processo sumário – foi
manifestamente recusar a aplicação da norma constante do n.º 2, do art. 389.º,
do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade e/ou na sua ilegalidade, por
permitir a realização do julgamento em processo sumário, nos casos em que o MP,
não tendo deduzido acusação, reserva para o início da audiência, a faculdade de
substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da
autoridade que tiver procedido à detenção, quando deste ‘…/… não consta qualquer
um desse elementos (dolo ou negligência,).’ (sic) e ‘…/... não se retira a
indicação das disposições legais aplicáveis, a chamada qualificação jurídica dos
factos, /....’ (sic).
Face ao exposto, o interposto recurso, requerendo a apreciação da
constitucionalidade e legalidade da norma constante do n.º 2 do art. 389º, do
CPP, deveria ter sido admitido (…)”.
Neste Tribunal, o representante do Ministério Público disse o seguinte:
“Pelas razões expressas, nomeadamente, no Acórdão n.º 8/2008 – e na reiterada
jurisprudência que se lhe seguiu – é de considerar improcedente a reclamação
deduzida.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Sobre esta questão concreta, exarou, recentemente, o Tribunal Constitucional
os Acórdãos n.ºs 8/2008, 16/2008, 56/2008, 60/2008, 65/2008, (disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt ) entre vários outros.
Consignou-se no segundo aresto citado:
“2. Face ao teor do requerimento de interposição de recurso, o respectivo
objecto era integrado por alegada decisão de recusa de aplicação da norma do
artigo 389.°, n.° 2, do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade.
Tem este Tribunal entendido que a recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade, para abrir via ao recurso previsto na alínea a) do n.° 1
do artigo 70.° da LTC, tanto pode consistir numa recusa explícita, como numa
recusa implícita, e que são equiparáveis a recusas determinadas decisões de
aplicação da norma interpretada em conformidade com a Constituição, ‘sempre que
se esteja perante uma clara rejeição de certa interpretação, mormente da
interpretação literal ou ‘natural’, com fundamento na sua inconstitucionalidade’
(JOSÉ MANUEL M. CARDOSO DA COSTA, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª
edição revista e actualizada, Coimbra, 2007, p. 73, nota 93). Necessário é
sempre, porém, que o juízo de inconstitucionalidade (ou de desconformidade
constitucional) constitua uma verdadeira ratio decidendi, e não um mero obiter
dictum, da decisão recorrida.
No presente caso, resulta da leitura da decisão recorrida que o elemento
primordial e determinante do entendimento da inadmissibilidade, no caso, de o
Ministério Público ‘substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto
de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção’, prevista no n.° 2 do
artigo 389.° do CPP, resultou da leitura conjugada desse preceito com as
disposições dos artigos 283.°, n.° 3, alíneas b) a d), e 311.°, n.°s 2, alínea
a), e 3, alíneas b), c) e d), do mesmo Código, que, respectivamente, determinam
que a acusação do Ministério Público, sob pena de nulidade, deve conter a
narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis e a prova, e
que o presidente do tribunal, se o processo tiver sido remetido para julgamento,
sem ter havido instrução, deve rejeitar a acusação se a considerar
manifestamente infundada, sendo tido como tal a acusação que não contenha a
narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas
que a fundamentam, ou se os factos não constituírem crime.
Isto é: foi com base na interpretação do direito ordinário que a decisão
recorrida entendeu só ser admissível a substituição da acusação pela leitura do
auto de notícia quando este auto contenha todos os elementos legalmente
exigíveis para a validade de qualquer acusação.
A posterior referência a que violaria a estrutura acusatória do processo
criminal e poria em causa as garantias de defesa do arguido a realização da
audiência, em processo sumário, tendo por acusação apenas o que consta de um
auto de notícia, que não possibilitava ao arguido a conhecimento da totalidade
dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua qualificação
jurídica e a prova, constituiu um mero argumento de conforto da justeza do
entendimento a que anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por
correcta, ao nível da interpretação do direito ordinário aplicável, da
possibilidade de substituição da acusação pelo Ministério Público pela leitura
do auto de notícia.
Só existiria recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade se o tribunal tivesse interpretado o artigo 389.°, n.° 2,
do CPP no sentido de permitir essa substituição mesmo quando o auto de notícia
não contivesse os elementos exigidos para a validade da acusação, e, depois,
sustentasse que, assim interpretada, tal norma violaria princípios
constitucionais. Mas não foi esse, como se evidenciou, o caminho seguido pela
decisão recorrida.”
O teor do Acórdão acabado de transcrever é transponível para a situação em
apreço por idênticos serem os pressupostos que conduziram à reclamação em
análise.
III – Decisão
Em face ao exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 3 de Março de 2008
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos