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Processo n.º 950/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. requereu aos serviços da Segurança Social que lhe fosse concedido apoio
judiciário, a fim de deduzir oposição em acção executiva, na modalidade de
dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e
pagamento da remuneração do solicitador de execução designado.
Aqueles serviços, por decisão de 20-6-2007, concederam apoio judiciário ao
requerente, na modalidade de pagamento faseado da taxa de justiça, dos demais
encargos com o processo e da remuneração do solicitador de execução designado.
O requerente impugnou esta decisão, alegando, além do mais, que no seu
requerimento não referiu a despesa fixa que suporta mensalmente com a prestação
de amortização da compra de um veículo automóvel a qual deve ser valorada.
Concluiu pela revogação da decisão impugnada e sua substituição por outra que
lhe conceda apoio judiciário, na modalidade de dispensa total de pagamento de
taxa de justiça e outros encargos.
Os serviços de Segurança Social mantiveram a decisão impugnada, tendo remetido o
processo para os Juízos de Execução do Porto.
Aí foi concedido provimento à impugnação e revogada a decisão dos serviços da
Segurança Social, tendo-se concedido ao requerente o benefício de apoio
judiciário na modalidade peticionada.
Na fundamentação desta decisão recusou-se a aplicação do disposto nos artigos
6.º a 10.º, da Portaria n.º 1085-A/2004 e do Anexo à Lei n.º 34/2004, por
inconstitucionalidade, por não permitir a valoração de despesas concretas do
requerente de apoio judiciário, nomeadamente os gastos com a amortização de um
empréstimo para aquisição de um automóvel.
O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, nos seguintes termos:
“O Ministério Público junto dos Juízos de Execução do Porto, não se conformando
com a decisão proferida nos presentes autos que apreciou o recurso de impugnação
judicial de apoio judiciário e que decidiu recusar a aplicação das normas
constantes do Anexo da Lei 34/2004 e da Portaria n.° 1085-A/2004, publicada no
D.R. l-B de 31 de Agosto de 2004, por serem inconstitucionais e violarem o
disposto no art° 20°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, na parte
em que impõem que o rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício
do apoio judiciário seja necessariamente determinado a partir do rendimento do
agregado familiar independentemente de o requerente fruir esse rendimento e não
considerarem os encargos com empréstimo (automóvel) para concessão do beneficio
do apoio judiciário, vem interpor RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL da
referida decisão, para apreciação da alegada inconstitucionalidade das normas
constantes do Anexo da Lei 34/2004 e da Portaria n.º 1085-A/2004, publicada no
D.R. I-B de 31 de Agosto de 2004, na parte em que impõem que o rendimento
relevante para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário seja
necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado familiar
independentemente de o requerente fruir esse rendimento e não considerarem os
encargos com empréstimo (automóvel) para concessão do beneficio do apoio
judiciário.”
Apresentou alegações com as seguintes conclusões:
1ª - Face à situação processual documentada nos autos – sendo todos os
rendimentos relevantes para aferir da insuficiência económica do requerente de
apoio judiciário auferidos exclusivamente por ele próprio – não tem qualquer
utilidade a invocação do juízo de inconstitucionalidade formulada no acórdão n.º
654/06, sendo tal argumentação, expressa na decisão recorrida, configurável como
simples obiter dictum.
2º - Não é inconstitucional a norma constante do Anexo da Lei n.º 34/04,
conjugada com o disposto no artigo 8.º da Portaria nº 1085-A/04 (e respectivo
anexo I) enquanto mandam determinar, de forma tabelada, o valor das despesas
presumivelmente realizadas com a satisfação das necessidades básicas do
requerente de apoio judiciário, através de um coeficiente estabelecido em função
do rendimento auferido – e não mediante a valoração do valor efectivamente
dispendido, nomeadamente com despesas de crédito ao consumo por parte do
interessado.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
O recorrido apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
1ª - Na estrita medida em que a Portaria 1085-A/2004, melhor, a sua aplicação é
cega no que toca ás despesas concretas, o que, além de prejudicar, pode
igualmente beneficiar, pois atente-se no facto de ficcionar despesas que podem
não ocorrer por parte do interessado, e, por isso, nega o acesso ao direito, tal
como esta contemplado na Lei 34/2004,
2ª - É manifestamente inconstitucional a norma constante do Anexo da Lei
34/2004, conjugada com o disposto no art. 8° da Portaria 1085-A12004, enquanto
mandam determinar, de forma tabelada, o valor das despesas presumidamente
realizadas com a satisfação de necessidades básicas do requerente de apoio
judiciário, através de um coeficiente estabelecido em função do rendimento
auferido — e não mediante valoração do valor efectivamente dispendido,
nomeadamente com despesas de credito por parte do interessado.
Nestes termos e nos melhores de Direito não deve ser concedido provimento ao
presente recurso com todas as consequências legais.”
*
Fundamentação
1. Do objecto do recurso
A decisão recorrida afastou a aplicação do disposto nos artigos 6.º a 10.º, da
Portaria n.º 1085-A/2004, e das normas constantes do Anexo à Lei n.º 34/2004,
com fundamento na sua inconstitucionalidade. Como suporte desta sua posição o
tribunal recorrido invocou o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 654/2006, o
qual efectivamente julgou inconstitucional aquelas disposições, mas apenas na
parte em que as mesmas impõem que o rendimento relevante para efeitos de
concessão de benefício de apoio judiciário seja necessariamente determinado a
partir do rendimento do agregado familiar do requerente, independentemente
deste fruir tal rendimento.
Apesar da decisão recorrida assumir que segue de perto este acórdão, a verdade é
que aquela apenas utiliza a fundamentação deste sob o argumento da identidade de
razões, isto é, para defender que os mesmos dispositivos normativos também
sofrem de inconstitucionalidade na parte em que não permitem a valoração de
despesas concretas do requerente de apoio judiciário, nomeadamente os gastos com
a amortização de um empréstimo para aquisição de um automóvel.
É este, pois, o sentido normativo que importa sindicar.
Os diplomas legais em causa, em especial as normas cuja aplicação se recusou,
sofreram alterações, mercê da publicação da Lei 47/2007, de 28 de Agosto, mas as
mesmas não assumem qualquer relevância no caso concreto, na medida em que só
entraram em vigor no dia 1 de Janeiro de 2008, não se aplicando aos
requerimentos de apoio judiciário apresentados até essa data (artigo 6.º).
2. Do mérito do recurso
Conforme facilmente se alcança, os direitos em geral e os direitos fundamentais
em particular, podem ser realizados ou afectados de modos muito diferenciados,
desde logo pela concreta conformação do regime processual do acesso ao Direito e
aos tribunais (vide JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, em “Constituição Portuguesa
Anotada”, tomo I, pág. 176, da ed. de 2005, da Coimbra Editora).
Tendo essa evidência muito presente, o n.º 1, do artigo 20.º, da Constituição,
na redacção vigente, introduzida pela Revisão Constitucional de 1997, prescreve
que:
“A todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus
direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada
por insuficiência de meios económicos”.
A jurisprudência constitucional sobre o conteúdo e alcance desta norma tem sido
abundante, não havendo assim margem para grandes originalidades e inovações
interpretativas, importando, por isso, recuperar algumas das suas notas mais
relevantes para assim melhor densificar o sentido da constitucionalização do
sistema de acesso ao Direito e aos tribunais.
Desde logo, importa ter presente as reflexões firmadas no Parecer n.º 8/78 da
Comissão Constitucional (publicado em Pareceres da Comissão Constitucional, 5.
Volume, pág. 3), nomeadamente:
“ (…) ao assegurar a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos,
o legislador constitucional reafirma o princípio geral da igualdade consignado
no n.º 1 do artigo 13.º.
Mas indo além do mero reconhecimento de uma igualdade formal no acesso aos
tribunais, o n.º 1 do artigo 20.º, na sua parte final, propõe-se afastar neste
domínio a desigualdade real nascida da insuficiência de meios económicos,
determinando expressamente que tal insuficiência não pode constituir motivo de
denegação da justiça.
Está assim o legislador constitucional a consagrar uma aplicação concreta do
princípio sancionado no n.º 2 do artigo 13.º, segundo o qual «ninguém pode ser
(…) privado de qualquer direito (…) em razão de (…) situação económica».
Não se dirá, todavia, que do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição decorre o
imperativo de uma justiça gratuita.
O sentido do preceito, na sua parte final, será antes o de garantir uma
igualdade de oportunidades no acesso à justiça, independentemente da situação
económica dos interessados.
E tal igualdade pode assegurar-se por diferentes vias, que variarão consoante o
condicionalismo jurídico-económico definido para o acesso aos tribunais. Entre
os meios tradicionalmente dispostos em ordem a atingir esse objectivo conta-se,
como é sabido, o instituto de assistência judiciária, mas, ao lado deste, outros
institutos podem apontar-se ou vir a ser reconhecidos por lei.
Será assim de concluir que haverá violação da parte final do n.º 1 do artigo
20.º da Constituição se e na medida em que na ordem jurídica portuguesa, tendo
em vista o sistema jurídico-económico aí em vigor para o acesso aos tribunais,
puder o cidadão, por falta de medidas legislativas adequadas, ver frustrado o
seu direito à justiça, devido a insuficiência de meios económicos.”.
Desenvolvendo um pouco mais esta linha argumentativa, o Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 433/87 (em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 10.º vol.,
pág. 479), reforçaria que:
“A ideia de uma justiça gratuita tem-se, em geral, por utópica. Mas a
onerosidade dos processos constitui, de per si, um factor de forte incidência
discriminatória do acesso aos tribunais, pois que pode reduzir o respectivo
direito a uma pura ilusão para todos aqueles que, por falta de capacidade
económica, não possam suportar as despesas inerentes ao facto de estar em juízo.
Sendo isto assim, o Estado de direito democrático não há-de contentar-se com
proclamar os direitos fundamentais dos cidadãos; designadamente, não lhe basta
afirmar que «a todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus
direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios
económicos» (cfr. artigo 20.º, n.º 2, da Constituição).
A mais do que isso, tem de preocupar-se com proporcionar a todos os meios
concretos do exercício de um tal direito, providenciando para que os litigantes
carecidos de meios económicos para a demanda se não vejam, por esse facto,
impedidos de defender em juízo os seus direitos, nem tão-pouco sejam colocados
em situação de inferioridade perante a contraparte com capacidade económica.”
Especificamente sobre a relevância dos encargos da lide para a generalidade dos
cidadãos e para os mais carenciados economicamente, o Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 352/91 (publicado em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”,
19.º vol., pág. 549) não deixou de afirmar que:
“ (…) o legislador pode, assim, exigir o pagamento de custas judiciais, sem que,
com isso, esteja a restringir o direito de acesso aos tribunais. E, na fixação
do montante das custas, goza ele de grande liberdade, pois é a si que cabe optar
por uma justiça mais cara ou mais barata.
Essa liberdade constitutiva do legislador tem, no entanto, um limite — limite
que é o de a justiça ser realmente acessível à generalidade dos cidadãos sem
terem que recorrer ao sistema de apoio judiciário.
É que, o nosso ordenamento jurídico concebe o sistema de apoio judiciário como
algo que apenas visa garantir o acesso aos tribunais aos economicamente
carenciados, e não como um instrumento ao serviço também das pessoas de médios
rendimentos (salvo, naturalmente, se estas houverem de intervir em acções de
muito elevado valor).
Na fixação das custas judiciais, há-de, pois, o legislador ter sempre na devida
conta o nível geral dos rendimentos dos cidadãos de modo a não tornar
incomportável para o comum das pessoas o custeio de uma demanda judicial, pois,
se tal suceder, se o acesso aos tribunais se tornar insuportável ou
especialmente gravoso, violar-se-á o direito em causa”.
O conceito de insuficiência económica surge, assim, como um dos conceitos
nucleares do regime constitucional do acesso ao Direito e aos tribunais.
O artigo 8º, n.º 1, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, determina que se
“encontra em situação de insuficiência económica aquele que, tendo em conta
factores de natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem
condições objectivas para suportar pontualmente os custos do processo.”
Por força do disposto no n.º 5, do artigo 8.º, da Lei 34/2004, de 29 de Julho,
na redacção originária, a prova e a apreciação da insuficiência económica do
requerente da protecção jurídica devem ser feitas de acordo com os critérios
estabelecidos e publicados em anexo à referida lei.
O Anexo da referida lei é composto pelas seguintes normas:
«I – Apreciação da insuficiência económica
1 – A insuficiência económica é apreciada da seguinte forma:
a) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica igual ou menor do que um quinto do salário mínimo nacional
não tem condições objectivas para suportar qualquer quantia relacionada com os
custos de um processo;
b) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica superior a um quinto e igual ou menor do que metade do
valor do salário mínimo nacional considera-se que tem condições objectivas para
suportar os custos da consulta jurídica e por conseguinte não deve beneficiar de
consulta jurídica gratuita, devendo, todavia, usufruir do benefício de apoio
judiciário;
c) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica superior a metade e igual ou menor do que duas vezes o
valor do salário mínimo nacional tem condições objectivas para suportar os
custos da consulta jurídica, mas não tem condições objectivas para suportar
pontualmente os custos de um processo e, por esse motivo, deve beneficiar do
apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado, previsto na alínea d) do nº
1 do artigo 16º da presente lei;
d)…
2 – Se o valor dos créditos depositados em contas bancárias e o montante de
valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado de que o
requerente ou qualquer membro do seu agregado familiar sejam titulares forem
superiores a 40 vezes o valor do salário mínimo nacional, considera-se que o
requerente de protecção jurídica não se encontra em situação de insuficiência
económica, independentemente do valor do rendimento do agregado familiar.
3 – Para os efeitos desta lei, considera-se que pertencem ao mesmo agregado
familiar as pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção
jurídica
Por seu turno, os artigos 6.º a 10.º, da Portaria n.º 1085-A/2004, com as
alterações introduzidas pela Portaria n.º 288/2005, de 21 de Março, que procede
à concretização dos critérios de prova e de apreciação da insuficiência
económica, têm o seguinte conteúdo:
«SECÇÃO II
Apreciação do requerimento
Artigo 6.º
Rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica
1 — Para efeitos do disposto no anexo da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, o
rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica (YAP) é o montante que
resulta da diferença entre o valor do rendimento líquido completo do agregado
familiar (YC) e o valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica
(A), ou seja, YAP = YC–A.
2 — O rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica (YAP) é expresso
em múltiplos do salário mínimo nacional.
Artigo 7.º
Rendimento líquido completo do agregado familiar
1 — O valor do rendimento líquido completo do agregado familiar (YC) resulta da
soma do valor da receita líquida do agregado familiar (Y) com o montante da
renda financeira implícita calculada com base nos activos patrimoniais do
agregado familiar (YR), ou seja, YC= Y+ YR.
2 — Por receita líquida do agregado familiar (Y) entende-se o rendimento depois
da dedução do imposto sobre o rendimento, das contribuições obrigatórias dos
empregados para regimes de segurança social e das contribuições dos
empregadores para a segurança social.
3 — O cálculo da renda financeira implícita é efectuado nos termos previstos no
artigo 10.º da presente portaria.
Artigo 8.º
Dedução relevante para efeitos de protecção jurídica
1 — O valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica (A) resulta
da soma do valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado
familiar (D) com o montante da dedução de encargos com a habitação do agregado
familiar (H), ou seja, A = D + H.
2 — O valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado familiar
(D) resulta da aplicação da seguinte fórmula:
em que n é o número de elementos do agregado familiar e d é o coeficiente de
dedução de despesas com necessidades básicas do agregado familiar, determinado
em função dos diversos escalões de rendimento, de acordo com o previsto no anexo
I.
3 — O montante da dedução de encargos com a habitação do agregado familiar (H)
resulta da aplicação do coeficiente h ao valor do rendimento líquido completo do
agregado familiar (YC), ou seja, H = h×YC, em que h é determinado em função dos
diversos escalões de rendimento, de acordo com o previsto no anexo II.
Artigo 9.º
Cálculo do valor do rendimento relevante
para efeitos de protecção jurídica
O valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica, especificado
nos artigos anteriores, é calculado através da fórmula prevista no anexo III
desta portaria.
Artigo 10.º
Cálculo da renda financeira implícita
1 — O montante da renda financeira implícita a que se refere o n.º 1 do artigo
7.º é calculado mediante a aplicação de uma taxa de juro de referência ao valor
dos activos patrimoniais do agregado familiar.
2 — A taxa de juro de referência é a taxa EURIBOR a seis meses correspondente ao
valor médio verificado nos meses de Dezembro ou de Junho últimos, consoante o
requerimento de protecção jurídica seja apresentado, respectivamente, no 1.º ou
no 2.º semestre do ano civil em curso.
3 — Entende-se por valor dos bens imóveis aquele que for mais elevado entre o
declarado pelo requerente no pedido de protecção jurídica, o inscrito na matriz
predial e o constante do documento que haja titulado a respectiva aquisição.
4 — Quando se trate da casa de morada de família, no cálculo referido no n.º 1
apenas se contabiliza o valor daquela se for superior a € 100 000 e na estrita
medida desse excesso.
5 — O valor das participações sociais e dos valores mobiliários é aquele que
resultar da cotação observada em bolsa no dia anterior ao da apresentação do
requerimento de protecção jurídica ou, na falta deste, o seu valor nominal.
6 — Entende-se por valor dos veículos automóveis o respectivo valor de mercado».
Da leitura conjugada destes preceitos resulta que com a Lei nº 34/2004, a
concessão de protecção jurídica a quem, tendo em conta factores de natureza
económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem condições objectivas
para suportar pontualmente os custos de um processo (cfr. artigo 8.º, nº 1, da
Lei nº 34/2004), passou a depender do valor do rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica (artigos 8.º, n.º 5, e 20.º, nº 1, e ponto 1. do Anexo da
Lei nº 34/2004), o qual é calculado através da aplicação de fórmulas
matemáticas, constantes da lei.
O preenchimento da situação de carência económica, merecedora de apoio
judiciário, deixou, assim, em regra, de ser efectuado casuisticamente pelo
decisor, perante o universo de circunstâncias do caso concreto, ou através do
funcionamento de presunções ilidíveis estabelecidas na lei, como sucedia nas
legislações anteriores à Lei n.º 34/2004, para resultar da aplicação rígida e
tabelar de fórmulas matemáticas, legislativamente consagradas, a determinados
dados do caso concreto.
A esta mudança de opções legislativas não terá sido estranha a avaliação da
aplicação prática da anterior Lei n.º 30-E/2000 que havia atribuído aos serviços
de segurança social a apreciação dos pedidos de concessão de apoio judiciário,
retirando tal competência aos tribunais, os quais passaram apenas a julgar as
impugnações das decisões daquelas entidades administrativas.
Na verdade, o Ministério da Justiça, autor da proposta que esteve na base desta
reforma legislativa no domínio do apoio judiciário, justificou esta mudança nos
seguintes termos:
“O regime de apoio judiciário consagrado na Lei n.º 30-E/2000, de 20 de
Dezembro, não contemplava um conceito de insuficiência económica, propiciando
assim uma apreciação subjectiva (dependente da avaliação pessoal do jurista
encarregue da mesma) e geograficamente heterogénea dos pedidos de apoio
judiciário pela Segurança Social. Tal disparidade de procedimentos de avaliação
revelou-se uma fonte evidente de iniquidade do sistema de concessão de apoio
judiciário.
Com a criação do critério de insuficiência económica pretendeu-se introduzir
maior rigor na concessão do benefício, uniformizando os critérios de concessão
do mesmo nos diversos centros decisores da Segurança Social. Tal critério de
concessão, por ser objectivo e transparente, permitirá a qualquer requerente
saber se tem ou não direito ao benefício e em que modalidade e medida.” (no site
www.mj.gov.pt).
Nos termos da Portaria n.º 1085-A/2004, o rendimento relevante para efeitos de
protecção jurídica resulta da diferença entre o valor do rendimento líquido
completo do agregado familiar do requerente e o valor da soma dos encargos com
necessidades básicas do agregado familiar, com o montante da dedução de encargos
com a habitação do agregado familiar, traduzindo-se assim o conceito de
rendimento relevante para efeitos de apoio judiciário no rendimento disponível
permanente, ou seja, na fracção do rendimento do agregado familiar que não está
afecto a despesas que, pela sua natureza, são indispensáveis à sobrevivência do
requerente e seu agregado familiar.
Concretizando um pouco mais os critérios legais aplicáveis à matéria em questão,
importa observar que as despesas consideradas como elegíveis correspondem a duas
categorias da classificação económica das despesas de consumo:
a) Despesas pessoais básicas, que incluem as efectuadas com alimentação,
vestuário e higiene.
b) Despesas com a habitação.
O volume destas despesas é calculado através da aplicação de coeficientes de
dedução que variam em função do rendimento e que, no caso do coeficiente de
dedução das despesas pessoais, variam também em função do número de elementos
que constituem o agregado familiar.
Os coeficientes de dedução das despesas são fixados em função da despesa média
anual por agregado familiar e segundo os escalões de rendimento líquido do
agregado familiar.
Uma vez que se trata de despesas com bens e serviços necessários, os
coeficientes são decrescentes em função do aumento do nível de rendimento, o que
confere um carácter progressivo ao critério de avaliação da insuficiência
económica, ou seja, o benefício médio concedido é decrescente com o rendimento.
Os acima referidos propósitos de tornar a decisão de concessão de apoio
judiciário objectiva e uniforme, além de terem conduzido ao desprezo de despesas
correspondentes à satisfação de necessidades básicas de cariz não permanente,
como as despesas com saúde e educação, determinaram que o montante das despesas
a considerar seja um valor tabelado presumido, resultante da aplicação de um
coeficiente legalmente determinado ao valor do rendimento do agregado familiar
do requerente, não permitindo, assim, a ponderação de todas as despesas
efectivamente realizadas.
Este critério de avaliação das situações de insuficiência económica para efeito
de concessão de apoio judiciário, pela sua rigidez, permite que lhe possam
escapar situações de efectiva incapacidade económica para satisfazer os custos
com uma acção judicial (v.g. pessoas que tenham avultados gastos permanentes com
despesas médicas).
É certo que a própria Portaria n.º 1085-A/2004, ao mesmo tempo que prevê este
regime de apuramento das situações de insuficiência económica através da
aplicação rígida e tabelar de fórmulas matemáticas, não deixa ela própria de
admitir no respectivo artigo 2.º que “o disposto na presente portaria não
prejudica a possibilidade de ser concretamente apreciada a situação económica
dos requerentes de protecção judiciária, nos termos previstos no n.º 2, do
artigo 20.º, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho”.
Este artigo 20.º, n.º 2, dispõe o seguinte:
“Se os serviços da segurança social, perante um caso concreto, entenderem não
dever aplicar o resultado da apreciação efectuada nos termos do número anterior,
remetem o pedido, acompanhado de informação fundamentada, para uma comissão
constituída por um magistrado designado pelo Conselho Superior da Magistratura,
um magistrado do Ministério Público designado pelo Conselho Superior do
Ministério Público, um advogado designado pela Ordem dos Advogados e um
representante do Ministério da Justiça, a qual decide e remete tal decisão aos
serviços da segurança social.”
Contudo, esta comissão nunca foi constituída, pelo que a possibilidade de
consideração da real situação económica do requerente de apoio judiciário na
fase administrativa do procedimento nunca foi utilizada.
O tribunal recorrido, apesar de sustentar que, no caso em apreciação, se
justificava a ponderação de despesas concretas do requerente, afastando-se a
aplicação das tabelas matemáticas constantes da Portaria n.º 1085-A/2004,
entendeu não o fazer, com fundamento na utilização da faculdade prevista no
transcrito artigo 2.º desta Portaria, pelo que interpretou este normativo no
sentido do mesmo não poder ser aplicado pelo tribunal em sede de impugnação
judicial.
Não existindo assim, na interpretação da decisão recorrida, uma cláusula de
salvaguarda que permita ao tribunal considerar todas as despesas relevantes do
requerente do apoio judiciário, evitando a denegação da concessão desse
benefício a quem apresente uma situação de real insuficiência económica, não se
encontra garantida a possibilidade das pessoas recorrerem aos serviços de
justiça para defenderem os seus direitos, sem impedimentos de natureza
económica, o que ofende o disposto no artigo 20.º, n.º 1, da C.R.P..
Deste modo, conclui-se que as normas cuja aplicação foi recusada pelo tribunal
recorrido, na interpretação que este lhes conferiu, violam o disposto no artigo
20.º, da C.R.P., pelo que deve ser negado provimento ao recurso interposto.
*
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional por violação do direito de acesso aos tribunais,
consagrado no artigo 20.º, nº 1, da C.R.P., as normas constantes dos artigos 6.º
a 10.º, da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, e do Anexo à Lei n.º
34/2004, de 29 de Julho, interpretadas no sentido de que determinam que seja
considerado, para efeitos do cálculo do rendimento relevante do requerente do
benefício de apoio judiciário, o rendimento do seu agregado familiar, nos termos
aí rigidamente impostos, sem permitir em concreto aferir da real situação
económica do requerente, em função das suas despesas concretas.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
*
Sem custas.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos