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Processo n.º 499/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Relatório
1. A fls. 445 foi preferida a seguinte decisão sumária:
A., LDA. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1
do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), do acórdão proferido em
14 de Março de 2006 na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo que negara
provimento ao recurso jurisdicional interposto da sentença proferida no tribunal
administrativo de 1ª instância pela qual improcedera o recurso contencioso
interposto contra o despacho da Vereadora do Urbanismo da Câmara Municipal de
Lisboa, de 28 de Junho de 1999, que indeferiu o pedido formulado pela recorrente
de licenciamento para construção de um edifício de habitação em prédio sito na
Rua Xavier Araújo, em Benfica, Lisboa.
Esclareceu, a convite do Tribunal, que o recurso tinha como objecto 'a questão
de inconstitucionalidade das normas dos artigos 69.º e 70.º do Regulamento do
PDM de Lisboa, ratificado pela RCM 94/94, de 29 de Setembro (DR, I Série-B, de
29/09/1994)', pretendendo a recorrente 'questionar a dimensão normativa das
referidas disposições regulamentares, no sentido em que estas foram
interpretadas no douto aresto recorrido, considerando-as aplicáveis a pedido de
licenciamento apresentado na sequência de diversos actos administrativos
constitutivos de direitos anteriores à publicação e entrada em vigor daquele
instrumento de gestão territorial, não salvaguardando os efeitos produzidos por
aqueles actos que o antecederam' e, ainda, na 'dimensão normativa e sentido em
que foram interpretadas no douto aresto recorrido, considerando que consagram
restrições urbanísticas de carácter preventivo que não estariam sujeitas a
qualquer prazo de caducidade'.
Do aresto recorrido foi ainda interposto recurso por oposição de julgados para o
Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal
Administrativo, julgado findo por acórdão de 6 de Março de 2007 que não admitiu
a invocada oposição de jurisprudência. Depois disso, o processo foi remetido ao
Tribunal Constitucional, onde deu entrada em 10 de Janeiro de 2008.
A recorrente fez, então, saber que mantém interesse no julgamento do presente
recurso.
Cumpre, por isso, verificar se ocorrem os requisitos que a lei impõe.
Recorde-se que o recurso em causa tem natureza puramente normativa, pelo que não
é possível, através dele, sindicar directamente a decisão recorrida ou os
juízos jurisdicionais nela contidos.
Deverá, assim, verificar-se se a questão que é colocada ao Tribunal tem natureza
normativa, isto é, se se traduz na acusação de inconstitucionalidade de norma
efectivamente aplicada como ratio decidendi na decisão recorrida; tal implica
que haja identidade perfeita entre a norma aplicada e aquela que é definida pelo
recorrente como objecto do seu recurso.
Ora, salta à vista que ao pretender sindicar artigos 69.º e 70.º do Regulamento
do PDM de Lisboa no entendimento de que tais normas seriam 'aplicáveis a pedido
de licenciamento apresentado na sequência de diversos actos administrativos
constitutivos de direitos anteriores à publicação e entrada em vigor daquele
instrumento de gestão territorial, não salvaguardando os efeitos produzidos por
aqueles actos que o antecederam', a recorrente está a querer sindicar a decisão
recorrida e não a norma aplicada, pois é manifesto que o Supremo Tribunal
Administrativo não a interpretou desta forma, ao contrário, aliás, do que
pretendia a recorrente.
Diz – com marcada clareza – a decisão recorrida:
II.2.2. Assim sendo, isto é, revelando-se insubsistente algum direito
(decorrente de anterior aprovação de algum aproveitamento urbanístico almejado
pela recorrente) adquirido ou interesse legítimo verificado na vigência do
Dec.-Lei 166/70, falece o pressuposto essencial de que arrancou (e com o que
continua a esgrimir) a recorrente, perdendo todo o sentido falar de (não)
caducidade de actos de licenciamento ou aprovação de obras daí decorrentes.
II.2.3. Não se verificando, pois, como subsistente na ordem jurídica alguma
decisão administrativa que pudesse condicionar (ou que de algum modo devesse
conformar) a Administração, nada obstava, bem pelo contrário, a que a algum
pedido de aproveitamento urbanístico deduzido fosse aplicável a disciplina
normativa então vigente. Isto é, a um pedido como o formulado a 17.07.96 teria
que se aplicar o que dimanava do DL 445/91, e, para o que vai ver-se de seguida,
o disposto no Artigo 52.º, nº 2, alínea a), com referência ao que decorre do
art. 70.º do RPM, aprovado pela RCM 94/944 (cuja invocada inaplicabilidade perde
qualquer sentido face à insubsistência de algum anterior direito da recorrente,
como se viu) e que, como deflui da Mª de Fº (cf. alínea g), considera o terreno
em causa como inserido em área de estruturação urbanística habitacional, ali
identificada e, como tal, e segundo aqueles normativos, sujeito às
prescrições/autorizações decorrentes de um plano de urbanização que à data do
acto impugnado, e como regista a Mª de Fº (cf. alínea g.4.), ainda se encontrava
em elaboração no competente departamento da CML.
Nem se diga, como pretende a recorrente, que aqueles art.s 69.º e 70.º do RPM
consubstanciam medidas preventivas, e, como tal, e por força do disposto no art.
112.º/2 do DL 380/99, de 22 de Setembro, à data do acto impugnado (28.06.99) já
haviam caducado, sem o que aqueles dispositivos dos art.s 69.º e 70.º violariam
os art.s 2.º, 9.º, 13.º, 18.º, 62.º e 266.º da CRP.
Vejamos:
Face ao que decorre do art. 107.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão
Territorial — RJIGT —, contido no Decreto-Lei n.º 380/99 de 22 de Setembro, bem
como face ao que já decorria do art. 7.º do DL 69/90 de 2/MAR, as medidas
preventivas, e como se escreveu no acórdão deste STA de 06-07-2004, (Rec. nº
0619/04), constituem “regulamentos que têm como objectivo garantir para uma área
que tem em preparação um plano ou a sua revisão, que a liberdade de decisão não
fique condicionada por decisões entretanto tomadas em processos individuais com
base nos regimes que se pretendem alterar, de tal forma que inviabilize os
objectivos do planeamento.
“São medidas”, mais ali se disse, “sujeitas ao critério da necessidade, de
âmbito territorial limitado e de âmbito temporal também efémero, não podendo
vigorar por mais de dois nos e que deixam de vigorar quando entrar em vigor o
plano que motivou a sua emissão.”
São, em suma, prescrições destinadas a evitar a alteração das circunstâncias e
das condições de facto existentes que possam limitar a liberdade de planeamento
ou comprometer ou tornar mais onerosa a execução do plano como refere o art.
107.º do RJIGT.
Ora, atentando no RPM constata-se desde logo que, como medidas preventivas (que
“prevalecem sobre as disposições do presente Regulamento”) apenas são referidas
as registadas no artigo 126.º, n.º 1, alínea a).
Por outro lado, e como de mais relevante, importa referir que o que se prescreve
no citado artigo 70.º do RPM não consubstancia alguma norma temporária, antes
sim estatuições (regras supletivos, como ali são denominadas, mas nunca de
carácter temporalmente efémero) de ordenamento urbanístico que na área em causa
e na falta dos aludidos planos apenas consentem as obras ali enunciadas, e desde
que se não esteja perante “construções ilegais”, como ainda ali se entendeu
sublinhar, modelando do modo ali prescrito os poderes de uso e fruição dos
imóveis respectivos.
E, um tal entendimento, não é de molde a afrontar algum princípio
constitucional, concretamente contido nalgum dos dispositivos contidos nos artºs
2.º, 9.º, 13.º, 18.º, 62.º e 266.º da CRP como a recorrente, de resto sem o
substanciar, invoca.
À falta de tal materialização, e face ao que está em causa, sempre se dirá que,
estando perante um acto que denegou uma dada pretensão construtiva, nunca o
mesmo poderia ter violado o direito fundamental de propriedade, como irá ver-se.
Efectivamente, como vem sendo reiteradamente afirmado pela doutrina e
jurisprudência, o jus aedificandi (direito de edificar) não se inclui no direito
de propriedade privada, a que se refere o art. 62.º da CRP, sendo antes o
resultado de uma atribuição jurídica pública decorrente do ordenamento jurídico
urbanístico pelo qual é modelado. Por isso, os poderes de uso, fruição e
disposição em que o direito de propriedade se manifesta só podem ser exercidos
se se contiverem dentro dos limites de tal modelação e respeitarem as restrições
por ela impostas.
A propósito, e em tal sentido, poderá ver-se abundante jurisprudência deste STA.
Citam-se, a título de exemplo os seguintes acórdãos: de 30/09/1997 (rec. 35751),
de 18/02/1998 (rec. 27816-P), de 24/05/2000 (rec. 41194), de 24/01/2001 (rec.
40923), de 12/12/2001 (rec. 34981-P), de 07/03/2002 (rec. STA 48179) e de
26/SET02 (rec. 485), de 12 de Novembro de 2002 (Rec. 307/02), de 26 de Setembro
de 2002 (Rec. 485.02.12) e de 31-03-2004 (Rec. 035338-P). Como jurisprudência do
TC, poderão ver-se, v.g., o Ac. n.º 377/99 — Proc. n.º 501/96 de 22 de Junho de
1999 (in DR II n.º 49, de 28 de Fevereiro de 2000) e o AC. n.º. 544/2001 — Proc.
n.º 194/01, com citação de muita outra jurisprudência e doutrina.
Em síntese, e em conclusão, ao pedido de aproveitamento urbanístico por si
formulado a 17.07.96 haveria que aplicar-se o que decorre dos art.s 69.º e 70.º
do RPM, aprovado pela RCM 94/94, pelo que, e face ao que dimana do art. Artigo
52.º, n.º 2, alínea a) do DL 445/91, o invocado deferimento tácito, a ter-se
formado, mostrar-se-ia fulminado de nulidade em virtude de um tal acto ser
desconforme a prescrições/autorizações legalmente exigíveis, e que, no caso, não
consentiam a construção de “quaisquer obras novas”.
Ou seja, o silêncio da Administração, gerador do pretenso acto tácito, teria
recaído sobre um requerimento sujeito àqueles condicionamentos.
E, como é sabido, e segundo o regime jurídico-administrativo em causa, o acto
tácito mais não significa que a lei, em certas circunstâncias, mandar
interpretar para certos efeitos a passividade ou o silêncio de um órgão
administrativo como significando o deferimento ou o indeferimento do pedido,
quando sobre o mesmo tinha obrigação de se pronunciar, com vista a proteger o
interessado contra uma tal passividade. Só que, no caso, e relativamente a um
processo em que a Administração devia intervir nos aludidos termos, a admitir-se
que o seu silêncio significava o deferimento do pedido, face ao que alegadamente
dimana do que se contém nas mencionadas disposições legais, o mesmo teria, como
se viu, e se disse na sentença, de se considerar nulo.
II.2.4. Do antes exposto, e essencialmente porque não pode considerar-se como
subsistindo na esfera jurídica da recorrente, à data do acto impugnado, qualquer
acto administrativo (expresso ou tácito) que a tivesse investido (ou mantido) no
direito ou interesse legítimo que invoca (isto é, na pretensão de construir que
almejava e denegado pelo acto impugnado), e bem assim que pré-determinasse a
aferição do pedido a que se refere o ponto b) da Mª de Fº, também improcede
forçosamente a invocada ilegal revogação de actos administrativos constitutivos
de direitos por parte do ACI, assim improcedendo, e sem necessidade de outras
considerações, tudo a que a tal respeito é invocado pela recorrente, e que
perpassa por boa parte da sua alegação.
Ao contrário do que argumentava a recorrente, o acórdão recorrido concluiu, como
se vê, que os aludidos preceitos seriam aplicáveis ao pedido de licenciamento
formulado pelo recorrente, pois desconsiderou a invocada 'sequência de diversos
actos administrativos constitutivos de direitos anteriores à publicação e
entrada em vigor daquele instrumento de gestão territorial' julgando totalmente
irrelevantes quaisquer efeitos produzidos por aqueles actos.
Na mesma linha se inscreve a questão suscitada também a propósito dos referidos
artigos 69.º e 70.º do Regulamento do PDM de Lisboa, mas agora reportada à
'dimensão normativa' segundo a qual tais normas 'consagram restrições
urbanísticas de carácter preventivo que não estariam sujeitas a qualquer prazo
de caducidade'.
Na verdade, o aresto não perfilhou um entendimento totalmente concordante com a
questionada 'dimensão', pois – como se lê no transcrito texto – recusou atribuir
a estas normas carácter preventivo, antes ponderou que o que se prescreve no
citado artigo 70.º do RPM não consubstancia alguma norma temporária, antes sim
estatuições (regras supletivos, como ali são denominadas, mas nunca de carácter
temporalmente efémero) de ordenamento urbanístico que na área em causa e na
falta dos aludidos planos apenas consentem as obras ali enunciadas, e desde que
se não esteja perante “construções ilegais”, como ainda ali se entendeu
sublinhar, modelando do modo ali prescrito os poderes de uso e fruição dos
imóveis respectivos.
Porém, mais significativo é esta matéria surgir como um argumento destinado a
moldar uma determinada solução, que não uma autónoma acusação de
inconstitucionalidade à norma.
E a prova disto é a circunstância de os preceitos de que falamos apresentarem
estatuições plúrimas, e não se saber – porque o recorrente não a identifica –
qual foi efectivamente a regra adoptada pela decisão em análise. É que, sem
poder desligar-se a questão do complexo preceito legal contido no artigo 69º, a
verdade é que mesmo o artigo 70º do Regulamento em causa comporta pelo menos 3
normas, aplicáveis a diversas situações, e nenhuma delas é apontada como tendo
sido adoptada pelo aresto em análise.
Nestes termos, não é possível conhecer-se do presente recurso. Decide-se, por
isso, com fundamento no artigo 78º-A n.º 1 da LTC, não conhecer do seu objecto.
2.
Contra esta decisão reclama a recorrente dizendo, essencialmente, o seguinte:
A., LDA., recorrente no processo à margem referenciado, não se conformando com a
douta decisão sumária de 2008.01.24, vem, ao abrigo do art. 78º-A da LTC,
reclamar para a conferência, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. [...] a ora reclamante recorreu, em 2005.02.04, para a Secção do Contencioso
Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (STA), invocando nas
conclusões 8.ª e 12.ª das respectivas alegações de recurso, as seguintes
questões de inconstitucionalidade:
“8.ª Os referidos actos constitutivos de direitos são muito anteriores à entrada
em vigor do PDM de Lisboa, ratificado pela RCM 94/94, de 29 de Setembro (v. DR,
I Série B, de 1994.09.29, págs. 5916 e segs.), pelo que este instrumento de
ordenamento do território é inaplicável in casu e nunca poderia determinar o
indeferimento da pretensão formulada pela recorrente (v. arts. 119.º e 266.º da
CRP e arts. 12.º e 13.º do Cód. Civil) — cfr. texto nºs. 13 e 14;
12.ª Os arts. 69.º e 70.º do Regulamento do PDM de Lisboa, interpretados no
sentido de não estarem sujeitos a qualquer prazo de caducidade, são
inconstitucionais por violação dos arts. 2º, 9º, 13º, 18º, 62º e 266º CRP, pois
os particulares ficariam indefinidamente impedidos de aproveitar
urbanisticamente terrenos situados em zonas urbanas, sem qualquer compensação —
cfr. texto nºs. 17 e 18”.
Por Acórdão da 1.º Secção do STA, de 2006.03.14, foi negado provimento ao
recurso jurisdicional interposto pela ora reclamante.
Não se conformando com o referido aresto, a ora reclamante recorreu para este
Venerando Tribunal Constitucional, invocando novamente as referidas questões de
inconstitucionalidade.
Por despacho proferido pelo Senhor Conselheiro Relator, da 1.º Secção do STA, de
2006.04.30, foi admitido o referido recurso interposto para o Tribunal
Constitucional quanto às questões de inconstitucionalidade suscitadas pela ora
reclamante.
Na douta decisão sumária ora reclamada decidiu-se que não podia tomar-se
conhecimento do recurso interposto, pois:
a) A recorrente “ao pretender sindicar os artigos 69.º e 70.º do Regulamento do
PDM de Lisboa (...) está a querer sindicar a decisão recorrida e não a norma
aplicada (sendo que) o acórdão recorrido concluiu (...) que os aludidos
preceitos seriam aplicáveis ao pedido de licenciamento formulado nela
recorrente” (v. fls. 2 e 5).
b) A recorrente não cumpriu o ónus de definição das normas jurídicas julgadas
inconstitucionais pois “os preceitos (...) apresent(am) estatuições plurimas
(...) e nenhuma delas é apontada como tendo sido adoptada pelo aresto em
análise” (v. fls. 6).
Salvo o devido respeito, cremos que a decisão reclamada não pode manter-se.
Vejamos.
2. No caso sub judice verifica-se que o pedido de licenciamento de construção
apresentado pela ora reclamante na Câmara Municipal de Lisboa foi indeferido por
despacho da Senhora Vereadora Margarida Magalhães, de 1999.06.28, num simples
“concordo”.
No despacho em causa declara-se que se concorda com a informação do Senhor
Director do DMPGU, de 1999.06.02, que, por sua vez, remete para a proposta de
indeferimento formulada pelo Senhor Arquitecto Jorge Contreiras, em 1999.02.05,
com o seguinte teor:
“...propõe-se o indeferimento do processo sendo a fundamentação de facto o
incumprimento dos arts. 69.º e 70.º do RPDM e a fundamentação de direito o
incumprimento da b) do n.º 1 do art. 63.º do DL 445/91 com a nova redacção dada
pelo DL 250/94”.
O despacho sub judice indicou as referidas normas como fundamento da decisão de
indeferimento, não tendo contudo sido minimamente explicitadas as razões
jurídicas, face às “estatuições plurimas” emergentes das referidas normas, para
o indeferimento dos pedidos de aprovação de projectos e de licenciamento
apresentados.
Face à aplicação das referidas normas daquele instrumento de gestão territorial
a ora reclamante recorreu daquele acto de indeferimento para os Tribunais
Administrativos, invocando no decurso do recurso contencioso as questões de
inconstitucionalidade acima enunciadas.
Apesar de terem sido proferidas duas decisões judiciais a negar provimento à
pretensão formulada pela ora reclamante, em nenhum delas se indicou ou
concretizou, nos termos exigidos pela decisão sumária ora reclamada, qual das
“estatuições plurimas” dos preceitos em análise – arts. 69.º e 70.º do PDM de
Lisboa – foi subsumida e aplicada ao caso concreto, tendo-se concluindo apenas
no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2006.03.14, que: [...]
Em qualquer dos casos, a impossibilidade de melhor identificação das normas em
causa nunca poderá ser imputada à ora reclamante, que suportou na sua esfera
jurídica as consequências do referido acto administrativo lesivo, tendo
procedido à sua impugnação pelas vias judiciais adequadas (v. art. 268º/4 da
CRP), invocando a inconstitucionalidade dos normativos em causa (v. arts. 2º,
9º, 130, 18º, 62º, 1190 e 266º da CRP).
[...] é manifesto que a decisão reclamada não pode manter-se.
3. Em primeiro lugar, a ora requerente não pretende e nunca pretendeu “sindicar
o mérito da decisão recorrida” proferida pelo STA, tendo apenas questionado a
constitucionalidade da dimensão normativa dos referidos preceitos, face ao
sentido e alcance que lhe foram atribuídos in casu (v. art. 70/1/b da LTC).
[...]
Contrariamente ao que consta da decisão reclamada, a ora recorrente não
pretendeu “sindicar a decisão recorrida”, mas sim a dimensão e alcance normativo
que foi atribuído aos arts. 69º e 70º do RPDM de Lisboa pela decisão recorrida.
[...]
No caso sub judice está em causa um recurso de constitucionalidade interposto
nos termos do art. 70º/l/b) da LTC de decisão de Tribunal que aplicou “norma
cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo”, pelo que nunca
poderia deixar de se entender que é “determinante do juízo a proferir o concreto
teor da decisão recorrida” (v. Ac. TC nº. 366/94, de 6 de Março, Proc. 226/94).
Ora, a requerente apenas questionou a constitucionalidade da dimensão normativa
restritiva atribuída no douto aresto recorrido às normas sindicadas, na medida
em que tal “sentido mediatizado pela decisão recorrida” (v. Ac. TC nº. 433/2006,
de 12 de Julho, Proc. 430/2006), afronta as normas e princípios constitucionais
consagrados nos arts. 2º, 90, 13º, 18º, 62º, 119º e 266º da CRP.
Trata-se assim claramente, nas palavras da decisão reclamada, de uma
“sindic(ância) (d)a decisão recorrida”, quanto ao sentido normativo atribuído às
normas impugnadas, mas assente na violação de parâmetros e critérios
constitucionais, pelos resultados e desconformidade constitucional de tal
interpretação, e não por simples critérios de “interpretação (da) decisão
recorrida” sobre a “aplica(bilidade) ao pedido de licenciamento formulado pela
recorrente” das normas impugnadas, discutindo-se, v.g., se tal interpretação
seria admissível ao abrigo do disposto nos arts. 12º e 13º do C. Civil (cfr.
art. 70º/1/b) da LTC).
No presente recurso, a ora requerente nunca questionou a admissibilidade de tal
interpretação, por violação de critérios de “interpretação (e) aplicabilidade”
das normas impugnadas, mas apenas a constitucionalidade das normas em causa com
o alcance, sentido e dimensão normativa que lhes foi efectivamente atribuído in
casu, pelo que se impõe a respectiva admissão (v. art. 70º/1/b) da LTC).
4. Em segundo lugar, a ora reclamante enunciou e definiu — como lhe competia —
as normas jurídicas que considerou inconstitucionais (v. art. 75º-A/1 e 2 da
LTC).
[...]
A ora reclamante identificou assim adequada e suficientemente a questão de
constitucionalidade (v. art. 75º-A/1 e 2 da LTC).
4.1. Por um lado, a ora reclamante referiu expressamente as normas constantes do
Regulamento do PDM de Lisboa, que considerou inconstitucionais no corpo das suas
alegações e conclusões de recurso.
4.2. Por outro lado, a ora reclamante indicou expressamente o sentido ou
critério normativo que foi atribuído às normas em causa pelo aresto recorrido,
que, além do mais, considerou-as aplicáveis a pedido de licenciamento na
sequência de diversos actos administrativos constitutivos de direitos anteriores
à publicação e entrada em vigor daquele instrumento de gestão territorial, não
salvaguardando os efeitos produzidos por aqueles actos que o antecederam,
desconsiderando que consagram restrições urbanísticas de carácter preventivo não
sujeitas a qualquer prazo de caducidade e restrições de carácter preventivo,
pelas quais os particulares ficariam indefinidamente impedidos de aproveitar
urbanisticamente terrenos situados em zonas urbanas, sem qualquer compensação ou
indemnização.
4.3. Por outro lado ainda, a ora reclamante indicou também expressamente a
violação dos princípios constitucionais consagrados nos arts. 2º, 9º, 13º, 18º,
62º, 119.º 266º da CRP, suscitando a inconstitucionalidade formal e material das
normas constantes do Regulamento do PDM de Lisboa (v. Jorge Miranda, Manual de
Direito Constitucional, 3 ed., 1996, 11/342 e segs.).
Acresce que a ora reclamante fundamentou sucintamente a inconstitucionalidade
das referidas normas, de acordo com o sentido em que foram interpretadas no
douto aresto recorrido, na violação dos princípios da confiança, da segurança
jurídica, igualdade, proporcionalidade, da justiça, propriedade privada e
respeito pelos interesses legalmente protegidos (v. Ac. TC 71/03, de 12 de
Fevereiro, Proc. 592/02, Cons. Mário Torres, www.tribunalconstitucional.t).
4.4. Finalmente, a referência genérica feita às normas constantes do Regulamento
do PDM de Lisboa — arts. 69º e 70º — tem que ser entendida à luz do quadro
jurídico-material subjacente à decisão recorrida, ao despacho da Senhora
Vereadora Margarida Magalhães, de 1999.06.28, à informação do Senhor Director do
DMPGU, de 1999.06.02 e à proposta de indeferimento do Senhor Arquitecto Jorge
Contreiras, de 1999.02.05.
[...]
Ora, dado que o indeferimento da pretensão da ora reclamante foi sustentado à
luz do Regulamento do PDM de Lisboa e na aplicação genérica dos arts. 69º e 70.º
daquele instrumento de gestão territorial, sem ter sido individualizada em
concreto ou explicitadas as razões jurídicas, face às “estatuições plurimas”
emergentes das referidas normas para o indeferimento dos pedidos de
licenciamento apresentados pela recorrente, é manifesto que a ora reclamante
nunca poderia proceder a tal individualização, desconsiderando a interpretação e
aplicação feitas no caso concreto pelas referidas entidades e serviços e
substituindo-se na fundamentação das respectivas decisões e informações (v. art.
268º/3 da CRP e arts. 124º e 125º do CPA).
É pois manifesto que, contrariamente ao decidido na douta decisão reclamada, a
reclamante cumpriu o ónus de definição das normas jurídicas julgadas
inconstitucionais, pois enunciou e definiu — como lhe competia e de acordo com
os elementos de que dispõem — as normas jurídicas julgadas inconstitucionais.
A não se entender assim, teríamos de concluir que não seriam objecto de tutela
judicial efectiva (v. art. 20.º da CRP) os casos em que, por razões aparentes
imputáveis a entidades administrativas e órgãos judiciais, nunca fosse
identificada — como não foi no caso sub judice — a “estatuição” secreta, obscura
e não publicada de determinado norma do referido instrumento de gestão
territorial, apesar de tal norma ter sido aplicada e determinado a lesão dos
direitos e interesses da ora requerente, que integram precisamente o objecto de
presente processo (v. art. 268º/4 da CRP).
5. Do exposto resulta assim que o douto aresto recorrido aplicou as normas do
Regulamento do PDM de Lisboa e a ora recorrente invocou questões de
constitucionalidade relativamente às normas dos arts. 69.º e 70.º do referido
instrumento de gestão territorial, no sentido e com a dimensão normativa que lhe
foram atribuídas in casu, pelo que é manifesta a admissibilidade do presente
recurso (v. art. 70º/1/b) da LTC).
Nestes termos, deverá ser julgada procedente a presente reclamação, revogando-se
a decisão reclamada, admitindo-se o recurso interposto pela ora reclamante e
prosseguindo o presente processo os seus ulteriores termos, com as consequências
legais.
3.
A entidade administrativa foi ouvida, pronunciando-se contra o deferimento da
reclamação.
Fundamentos
4.
Na decisão sumária em análise foram explicadas, detalhadamente, as razões pelas
quais se não pode conhecer do objecto do presente recurso, interposto ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
A reclamante visa questionar o entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal
Administrativo quando interpretou as disposições contidas nos artigos 69.º e
70.º do Regulamento do PDM de Lisboa, considerando-as 'aplicáveis a pedido de
licenciamento apresentado na sequência de diversos actos administrativos
constitutivos de direitos anteriores à publicação e entrada em vigor daquele
instrumento de gestão territorial, não salvaguardando os efeitos produzidos por
aqueles actos que o antecederam' e, ainda, considerando 'que consagram
restrições urbanísticas de carácter preventivo que não estariam sujeitas a
qualquer prazo de caducidade'.
Alega a recorrida que tal entendimento é desconforme com a Constituição. Mas, na
verdade, a crítica está apontada à decisão, cujo resultado seria infractor da
Constituição, e não às ditas normas.
Vejamos:
É manifesto que o Supremo Tribunal Administrativo não interpretou as referidas
normas com o questionado sentido de serem 'aplicáveis a pedido de licenciamento
apresentado na sequência de diversos actos administrativos constitutivos de
direitos anteriores à publicação e entrada em vigor daquele instrumento de
gestão territorial, não salvaguardando os efeitos produzidos por aqueles actos
que o antecederam'. E não as aplicou com este sentido porque não aceitou a tese
sufragada pela recorrente de que se tinham sedimentado na ordem jurídica, antes
da entrada em vigor do mencionado Regulamento camarário, 'actos administrativos
constitutivos de direitos'.
É certo que a recorrente entende que não é legítimo não qualificar a actividade
que desenvolveu com a Câmara Municipal de Lisboa, assim recusando a existência
de actos constitutivos de direitos fixados na sua esfera jurídica; mas o certo é
que ao pretender questionar tal entendimento, a recorrente está a atacar a
decisão jurídica perfilhada, a valoração jurídica dos factos, e não as normas
que ela aplicou para adoptar uma tal solução. Ou seja: para poder concluir-se,
no sentido proposto pela recorrente, que as apontadas normas são infractoras da
Constituição seria necessário previamente adoptar um outro julgamento, diverso
daquele que o Tribunal recorrido perfilhou, quanto ao significado da mencionada
actividade administrativa. A errada perspectiva com que a recorrente coloca a
questão de inconstitucionalidade no presente recurso, cifra-se, ainda na
constatação de que as normas questionadas não foram, como já se disse, aplicadas
na decisão recorrida com o sentido impugnado.
De igual forma, ao questionar a conformidade constitucional das mesmas normas,
interpretadas no sentido de que 'que consagram restrições urbanísticas de
carácter preventivo que não estariam sujeitas a qualquer prazo de caducidade', a
recorrente está, na verdade, a atacar a decisão por, em seu entender, dela
resultar que as medidas provisórias previstas nestes preceitos regulamentares
conduzirem a 'restrições urbanísticas de carácter preventivo que não estariam
sujeitas a qualquer prazo de caducidade' e que assim afectariam, por tempo
indeterminado, a capacidade construtiva do prédio. Mas também aqui a crítica se
desloca para a decisão, que não para as normas. Na verdade, também nesta parte o
Tribunal recorrido aplicou estes preceitos de forma diversa, considerando que 'o
citado artigo 70.º do RPM não consubstancia alguma norma temporária, antes sim
estatuições (regras supletivos, como ali são denominadas, mas nunca de carácter
temporalmente efémero) de ordenamento urbanístico que na área em causa e na
falta dos aludidos planos apenas consentem as obras ali enunciadas'.
Para além de tudo isto, cumpre reafirmar que não seria possível julgar
inconstitucionais normas definidas genericamente como sendo 'os artigos 69º e
70º do RPM de Lisboa', preceitos que integram uma pluralidade de normas, sem uma
rigorosa identificação da norma efectivamente aplicada, o que, ao contrário do
que pretende a reclamante, constitui tarefa do recorrente, cabendo-lhe fazer
corresponder o sentido da norma impugnada ao enunciado de um preceito jurídico
concreto. O que, no caso, manifestamente não acontece.
Não procede, enfim, a reclamação apresentada.
Decisão
5.
Em face do exposto, decide-se indeferir a reclamação e confirmar a decisão
sumária de não conhecimento do recurso. Custas pela reclamante, fixando-se a
taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2008
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão