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Processo n.º 163/07
Plenário
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
(Conselheiro Benjamim Rodrigues)
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, em
que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., S.A., foi interposto
recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, ao abrigo da alínea a)
do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional (LTC), da sentença proferida por aquele Tribunal, com
fundamento na recusa da aplicação, por inconstitucionalidade, da norma constante
do artigo 98.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas
Colectivas (CIRC).
2. Dos autos emergem as seguintes ocorrências processuais, com relevância para a
presente decisão:
a) No Serviço de Finanças Loulé-1 foi instaurado contra A., S.A., um
processo de contra-ordenação por falta de entrega do pagamento por conta,
previsto no artigo 96.º, n.º 1, alínea a), do CIRC, sancionado nos termos dos
artigos 114.º, n.ºs 2 e 5, alínea f), e 26.º, n.º 4, do RGIT. [cfr. doc. fls. 5
dos autos.]
b) Por despacho do Director da Direcção de Finanças de Faro, de
02.06.2006, foi aplicada à arguida a coima de € 30.000,00, com fundamento na
violação do artigo 96.º, n.º 1, alínea a), do CIRC (falta de entrega de
pagamento por conta). [cfr. doc. fls. 68/70.]
c) Por despacho do Chefe de Finanças de Loulé, de 06.06.2006, foi determinado o
seguinte:
«A fls. 5 vem A., S.A., devidamente identificada, apresentar defesa no presente
processo de Contra-Ordenação n.º 1082200506007465, alegando em resumo que não há
lugar ao pagamento por conta, uma vez que apresentou em 08 de Julho de 2003 a
declaração de limitações aos pagamentos por conta prevista no artigo 96.º do
C.I.R.C.
Na verdade, dispõe o art. 99.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Colectivas (C.I.R.C.), que se o contribuinte verificar, pelos elementos
de que disponha, que o montante do pagamento por conta já efectuado é igual ou
superior ao imposto que será devido com base na matéria colectável do exercício,
pode deixar d e efectuar novo pagamento por conta…
Isto significa que tendo enquadramento no artigo 96.º do C.I.R.C., o primeiro
pagamento por conta é sempre devido, pelo que não tem qualquer eficácia a
referida declaração apresentada.
Nestes termos, foi aplicado pelo Sr. Director de Finanças de Faro, conforme
parte final da alínea b) do art. 52.º do R.G.I.T., a coima no valor de €
30.000,00 (trinta mil Euros).
Vigora o princípio da proibição da “reformatio in pejus”.
Custas pela infractora, nos termos do Capítulo IX do Decreto-Lei n.º 433/82, de
27/10, aplicável “ex vi” do art. 66.º do Regime Geral das Infracções Tributárias
(R.G.I.T.).
Notifique-se para pagamento das importâncias devidas, ficando ciente que, se não
for interposto recurso judicial ou efectuado o respectivo pagamento, no prazo de
20 (vinte) dias a contar da notificação, proceder-se-à à emissão da certidão de
dívida.» [cfr. doc. fls. 110 dos autos.]
d) A A., S.A., intentou, ao abrigo do artigo 80.º do RGIT, recurso judicial da
decisão de aplicação de coima, no qual conclui, nomeadamente, o seguinte:
«(…) A) Ao contrário do que considera a Administração Fiscal, a Recorrente não
se encontrava obrigada a efectuar o primeiro pagamento por conta em sede de IRC
relativo ao exercício de 2003 no valor reclamado;
B) Porquanto a Recorrente apresentou, em tempo, a necessária declaração de
limitação de pagamentos por conta;
C) Não se verificando, assim, a prática de contra-ordenação prevista e punida
nos termos do art. 114.º, n.ºs 2 e 5, alínea f) do RGIT, por violação ao
disposto no artigo 96.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRC, como lhe pretende
imputar a Administração Fiscal (…)». [cfr. doc. fls. 97/104.]
e) O recurso judicial foi julgado procedente e, em consequência, anulada a
decisão recorrida, por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé de
09.10.2006.
3. Essa sentença, ora recorrida, tem o seguinte teor, no que agora releva:
«(…) «1. Factos provados.
O Director de Finanças de Faro aplicou uma coima à sociedade A., S.A., no valor
de € 30.000,00, por ter considerado que ela não efectuou o primeiro pagamento
especial por conta do IRC de 2003 (Julho de 2003), cujo prazo terminou em
31-07-2003.
Foi ali considerado que essa conduta infringiu a norma do art. 98.º do CIRC e
que era punível pelos arts. 114.º, n.º 2 e 5, alínea f) e 26.º, n.º 4, do RGIT.
E foi essa a decisão que lhe foi notificada.
(…)
5. O mérito do recurso
Salvaguardando o respeito devido pela opinião da Arguida, cremos que a
Administração Fiscal interpretou adequadamente a lei ao considerar sempre
exigível o primeiro pagamento especial por conta.
Na verdade, o n.º 1 do art. 98.º do CIRC reza assim:
“Sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 96º, os sujeitos
passivos aí mencionados, excepto os abrangidos pelo regime simplificado previsto
no artigo 53º, ficam sujeitos a um pagamento especial por conta, a efectuar
durante o mês de Março ou, em duas prestações, durante os meses de Março e
Outubro do ano a que respeita ou, no caso de adoptarem um período de tributação
não coincidente com o ano civil, no 3º mês e no 10º mês do período de tributação
respectivo.”
Por sua vez, o n.º 1 do preceito legal que se lhe segue diz-nos o seguinte:
“Se o contribuinte verificar, pelos elementos de que disponha, que o montante do
pagamento por conta já efectuado é igual ou superior ao imposto que será devido
com base na matéria colectável do exercício, pode deixar de efectuar novo
pagamento por conta, mas deve remeter à direcção de finanças da área da sede,
direcção efectiva ou estabelecimento estável onde estiver centralizada a
contabilidade uma declaração de limitação de pagamento por conta, de modelo
oficial, devidamente assinada e datada, até ao termo do prazo para o respectivo
pagamento.”
Deste modo, se é verdade que os sujeitos passivos podem pedir a limitação dos
pagamentos por conta conforme diz o n.º 1 do artigo 99.º do CIRC, também é
seguro que, á luz do n.º 1 do art. 99.º do mesmo diploma legal, se terá que
concluir que tal só é possível depois de se ter efectuado o primeiro pagamento
por conta (foi esta também a opinião perfilhada por Vítor Monteiro, a qual pode
ser vista em http://pwp.netcabo.pt/0163251501/PCePEC.htm).
E porque assim é, não pode acolher-se a tese da Arguida/Recorrente.
Pese embora isso, a decisão não pode manter-se, ainda que pelas razões que
abaixo se vão alinhar.
***
Dispõe o n.º 1 do art. 98.º do CIRC (Redacção do Decreto-Lei n.º 198/2001- 3 de
Julho) que:
“Sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 96.º, os sujeitos
passivos aí mencionados, excepto os abrangidos pelo regime simplificado previsto
no artigo 53.º, ficam sujeitos a um pagamento especial por conta, a efectuar
durante o mês de Março ou, em duas prestações, durante os meses de Março e
Outubro do ano a que respeita ou, no caso de adoptarem um período de tributação
não coincidente com o ano civil, no 3.º mês e no 10.º mês do período de
tributação respectivo.”
E do art. 33.º da LGT consta a seguinte comando:
“As entregas pecuniárias antecipadas que sejam efectuadas pêlos sujeitos
passivos no período de formação do facto tributário constituem pagamento por
conta do imposto devido a final.”
Por seu turno, o art. 114.º do RGITT diz-nos o seguinte:
“1. A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período
superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da
prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável
entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o
limite máximo abstractamente estabelecido.
2. Se a conduta prevista no número anterior for imputável a título de
negligência, e ainda que o período da não entrega ultrapasse os 90 dias, será
aplicável coima variável entre 10% e metade do imposto em falta, sem que possa
ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
5. Para efeitos contra-ordenacionais são puníveis como falta de entrega da
prestação tributária:
(…)
f) A falta de pagamento, total ou parcial, da prestação tributária devida a
título de pagamento por conta do imposto devido a final, incluindo as situações
de pagamento especial por conta.
(…).”
E a seu tempo o n.º 5 do art.º 27.º da Lei n.º 32-B/2002 de 30 de Dezembro
estatui o que segue:
“O incumprimento do disposto no artigo 98.º do Código do IRC é punido, nos
termos da alínea f) do n.º 5 do artigo 114.º do Regime Geral das Infracções
Tributárias, com coima variável entre 50% e o valor da prestação tributária em
falta, no caso de negligência, e com coima variável entre o valor e o triplo da
prestação tributária em falta, quando a infracção for cometida dolosamente.”
Também é sabido que no, n.º 4 do art. 26.º do RGIT estabeleceu-se esta norma:
“Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, os limites estabelecidos nos
números anteriores, os limites mínimo e máximo das coimas previstas nos
diferentes tipos legais de contra-ordenação, são elevados para o dobro sempre
que sejam aplicadas a uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente
constituída, ou outra entidade fiscalmente equiparada.”
Sendo as coisas assim e uma vez que a Arguida deixou de entregar nos cofres do
Estado o pagamento especial por conta a que a citada norma do art. 98.º, n.º 1,
do CIRC refere, naturalmente que a conclusão a retirar dessa situação seria a
que a Administração Fiscal retirou, a saber, o cometimento negligente da
contra-ordenação prevista e punível pelos demais normativos atrás referidos.
Acontece, porém, que o n.º 2 do art.º 104.º da Constituição da República
Portuguesa reza assim: “A tributação das empresas incide fundamentalmente sobre
o seu rendimento real.»
E ainda relevante se mostra o que, ao tempo, dispunha o n.º 2 do art.º 98.º do
CIRC (na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 107-B/2003, de 31 de Dezembro e
que vigorou até à entrada em vigor da Lei n.º 60-A/2005, de 30/12, que lhe deu a
actual redacção):
“O montante do pagamento especial por conta é igual a 1% do volume de negócios
relativo ao exercício anterior, com o limite mínimo de (euro) 1250, e, quando
superior, será igual a este limite acrescido de 20% da parte excedente, com o
limite máximo de (euro) 40000.”
Discorrendo sobre o citado comando constitucional, refere o Prof. Saldanha
Sanches (em Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, página 263 e seguinte), que:
“A proclamação constitucional do direito subjectivo do contribuinte a ser
tributado de acordo com o seu lucro real é uma particularidade do ordenamento
jurídico-tributário português. O legislador constitucional optou pela
consagração expressa desse direito.
(…)
Pode mesmo fazer-se um contraste entre a liberdade de conformação que tem o
legislador ordinário quanto à escolha do objecto de tributação e à escolha do
nível das taxas com a obtenção da igualdade na distribuição dos encargos
tributários que a Constituição lhe impõe: uma vez legalmente decidida a
tributação das empresas o modo como é distribuída a carga tributária entre elas
tem que respeitar o princípio da igualdade.
E isso conduz-nos às regras de determinação do valor ou da quantificação do
imposto: uma zona onde uma obrigação de resultado, a distribuição justa dos
encargos tributários, incide sobre o legislador ordinário.
E essa especifica concretização do princípio da igualdade vai exigir uma
tributação segundo o rendimento líquido objectivo o que por sua vez se vai
decompor num conjunto de sub-princípios …”
Daí que as dúvidas que sobre a questão assaltaram o Prof. Casalta Nabais (em
Direito Fiscal, 2.ª edição, 3.ª reimpressão da edição de 2003, página 263 e
seguinte), as quais abaixo se sintetizam:
“Introduzido em 1998, o pagamento especial por conta foi objecto de profundas
alterações na LOE/2003. Nos termos daquele artigo na redacção dada por esta Lei,
este pagamento é igual à diferença entre o valor correspondente a l % dos
respectivos proveitos ou ganhos do ano anterior, com o limite mínimo de € 1.250
e máximo de € 200.000 e o montante dos pagamentos por conta efectuados no ano
anterior. O pagamento especial por conta, diferentemente do que acontece com os
pagamentos por conta normais (que segundo o art.º 96.° dão lugar ao imediato
reembolso caso sejam superiores ao imposto devido), será deduzido, nos termos do
art. 87.°, ao montante apurado na declaração periódica de rendimentos do próprio
exercício a que respeita ou, se insuficiente, até exercício seguinte.
O que torna o pagamento especial por conta num empréstimo forçado ou mesmo num
imposto (na medida em que não venha a ser deduzido nos quatro exercícios
seguintes) de discutível constitucionalidade.”
Note-se que nessa mesma linha seguiram Leite de Campos, Silva Rodrigues e Lopes
de Sousa, em Lei Geral Tributária – Comentada e Anotada, 3.ª edição, página 163
(em anotação ao citado art. 33.º da LGT), como se pode ver deste passo dali
retirado:
“As entregas em causa são qualificadas de pagamento por conta do imposto; sem se
indicar o seu regime jurídico, do qual tudo depende.
As entregas pecuniárias antecipadas poderão ser entendidas em termos de
pagamentos fraccionados do imposto sujeitos às condições resultantes da
existência e do montante deste.
Contra esta caracterização invocar-se-á, porventura, o princípio da capacidade
contributiva. Antes de verificado (completamente) o facto tributário não se sabe
sequer se há lugar a imposto. É certo que tais prestações assentam em
rendimentos passados que se presume manterem-se. Mas não se pode considerar como
facto tributário algo que não se prende com rendimentos, riqueza ou despesa
actuais.
Tais prestações antecipadas poderão ser configuradas como meros financiamentos
ao Estado. Cria-se uma conta devedora do Estado que será compensada com o
imposto a pagar.
Estaríamos, pois, nesta perspectiva perante empréstimos forçados, não se lhes
aplicando as normas dos impostos.
Na tese oposta, dir-se-á que são prestações antecipadas do imposto devido a
final. Assim, aplicar-se-lhes-iam as normas dos impostos.”
Mais definitivo se mostrou João de Avillez Ogando (em estudo que vimos no sítio
web da Ordem dos Advogados, de onde seguimos o link para a página
http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=16885&idsc=16886&ida=16888),
o qual, inter alia, referiu o seguinte:
“No que em particular diz respeito à tributação das pessoas colectivas, a
Constituição da República Portuguesa adoptou, como critério aferidor da
capacidade contributiva das empresas, o seu lucro real, ao proclamar que “a
tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento
real”(19), o que demonstra claramente que a tributação das empresas deve
basear-se fundamentalmente na sua contabilidade, o que foi aliás adoptado pelo
legislador ordinário ao consagrar que “o lucro tributável (...) é constituído
pela soma algébrica do resultado líquido do exercício e das variações positivas
e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado,
determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos
deste Código.”(20).
A determinação do lucro com base na contabilidade foi adoptada como critério de
aferição do rendimento real das empresas por ser a forma mais rigorosa de
determinar a imagem fiel do património, da situação financeira e dos resultados
das empresas, e por essa via, de apurar em atenção à sua capacidade
contributiva, a sua medida de oneração fiscal.
(…)
Até à reforma operada pelo Orçamento de Estado para 2003, não existia qualquer
dúvida de que como vimos, o pagamento especial por conta pago, com a
configuração que lhe era dada pela Lei n.° 30-G/ 2000 de 29 de Dezembro,
tinha-se transformado num verdadeiro e próprio imposto mínimo, dada a
impossibilidade de reembolso em caso de insuficiência de colecta, excepto em
situações de cessação de actividade. A verdade é que dada a sua baixa expressão
na contabilidade das empresas, o pagamento especial por conta encontrava-se
integrado no IRC, e era este que conferia legitimidade para a imposição do
pagamento especial por conta e não o contrário, sendo que quando constituía um
tributo não era contestado pela generalidade dos agentes económicos.
Ora, não temos hoje qualquer razão para sustentar entendimento diferente, pelo
que o actual regime do pagamento especial por conta continua a apresentá-lo como
um verdadeiro imposto sobre as vendas, e agora sobre os proveitos e ganhos.
Mais: com a actual configuração do pagamento especial por conta, quer no que diz
respeito à ampliação da sua base de incidência, quer no que diz respeito ao
aumento dos seus limites mínimo e máximo o método de cálculo do IRC passa a
definir-se como um conjunto de normas unicamente dirigidas à Administração
Tributária como segundo critério na cobrança de impostos sobre o rendimento das
pessoas colectivas. A utilidade das regras sobre tributação do lucro esgota-se
na questão de saber se a excepção se verifica, ou seja, se o pagamento especial
por conta foi insuficiente para cobrir uma outra colecta possível. Como segundo
critério na cobrança de impostos, o IRC passou apenas a ser uma forma de
legitimação da nova fórmula de tributação das empresas: a de um imposto
subsidiário sobre os proveitos e ganhos, pago em caso de insuficiência do lucro
tributável.
(…)
O pagamento especial por conta viola o princípio da tributação na medida da
capacidade contributiva, na sua função solidarista, ao não ter em linha de conta
— por ser calculado com a medida de uma taxa única sobre os proveitos (23) — as
diferenças económicas entre empresas, designadamente de que diferentes sectores
de actividade apresentam diferentes rácios de rentabilidade, e, por conseguinte
uma diferente capacidade para pagar imposto. Além disso, apresenta o efeito
perverso a que atrás se faz referência, de permitir às empresas que apresentem
volumes anuais de proveitos e ganhos superiores a e 20.000.000,00, de apresentar
inferiores rentabilidades dos proveitos e ganhos antes de impostos. É do
conhecimento geral, não apenas dos estudiosos das matérias económico
financeiras, que as vendas são um indicador que pode ser altamente falacioso
atenta a diversidade de actividades empresariais, uma vez que há negócios pouco
interessantes com elevadas rentabilidades de vendas mas com baixa rotação do
activo, podendo o inverso também ser verdadeiro. Quando ainda se acrescentam
outros proveitos e ganhos, sem distinção, ainda se agrava a sua iniquidade (24).
Viola ainda o princípio da capacidade contributiva na sua função garantística,
por duas vias: pois pagam em termos iguais os que podem e os que não podem
pagar, por não apresentarem rendimentos, sejam quais forem os seus proveitos —
pois que sempre os terão ainda que não tenham lucro —, e ainda por afastar
arbitrariamente possibilidade de reembolso às empresas que sejam susceptíveis de
ser abrangidas pelo regime simplificado de tributação (25), o que é
incompreensível.
Finalmente e no âmbito do princípio da igualdade tributária, o pagamento
especial por conta viola outro seu corolário formal que é o princípio da
uniformidade na tributação, uma vez que a sua taxa é proporcional e não
progressiva (26), o que é indutor de maior desigualdade entre os contribuintes.
Como atrás se fez referência, caso se revele a insuficiência da colecta apurada
no ano a que se refere o pagamento especial por conta, o contribuinte pode
proceder à sua dedução até ao quarto exercício seguinte (27). Nesta
circunstância, o pagamento especial por conta perde a sua característica de
pagamento por conta passando a afirmar-se como uma entrega antecipada de imposto
de anos vindouros. Isto decorre aliás do disposto no artigo 33.° da Lei Geral
Tributária (28), que reforça esta ideia ao referir que os pagamentos por conta
do imposto devido a final são “entregas pecuniárias antecipadas que sejam
efectuadas pelos sujeitos passivos no período de formação do facto tributário”.
E isto viola o princípio da capacidade contributiva, pois esta não é levada em
consideração — como aliás não poderia em qualquer caso sê-lo por tratar-se do
pagamento por conta — e na medida em que a capacidade contributiva de anos
vindouros não existe, por ser indeterminada e indeterminável (29).”
Diremos, por fim, que a violação do mencionado princípio constitucional da
capacidade contributiva resulta patente na seguinte circunstância (assinalada
pelo jornal Diário Económico, edição de 27-01-2006, a propósito da última
alteração introduzida no pagamento especial por conta, vista no sítio Web
daquele periódico, a saber,
http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diario_economico/ edicion_impresa
/impostos/ pt/ desarrollo/612881.html):
“Outra alteração importante a esta matéria tem ver com o facto de, pela primeira
vez desde a criação do pagamento especial por conta em 1998, pelo Decreto-Lei
n.º 44/98, de 3 de Março, o Governo Português ter tomado uma posição em relação
ao pagamento especial por conta devido pelos sujeitos passivos que apenas
aufiram rendimentos isentos de IRC.
(…) com esta alteração fica claro que o pagamento especial por conta, que até
agora era entendido como um adiantamento por conta do imposto devido a final,
também abrange os sujeitos passivos que tenham apenas rendimentos isentos de IRC
e que, de facto, podem não ter qualquer imposto devido a final.”
Ora, sendo as coisas assim e considerando que, de acordo com o disposto no n.º 3
do art. 103.º da Constituição da República Portuguesa, “ninguém pode ser
obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição,
que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos
termos da lei”, impõe-se concluir que a decisão que aplicou a coima à Arguida
violou o nosso texto legislativo fundamental e por isso se não pode manter.
(…)».
4. Notificado para alegar, o representante do Ministério Público junto deste
Tribunal manifestou-se pela procedência do recurso, concluindo que:
«1°
A norma constante do nº 1 do artigo 98° do CIRC, enquanto vincula as empresas ao
pagamento especial por conta, aí previsto, aplicável no âmbito de um processo de
natureza contraordenacional — resultante da qualificação como contraordenação,
sendo sancionada com coima pela Administração Fiscal a omissão de tais
pagamentos, com fundamento nos artigos 114°, nº 2 e 5, alínea f), e 26°, nº 4,
do RGIT — não viola qualquer preceito ou princípio constitucional.
2°
Na verdade, o estabelecimento de uma presunção de estabilidade dos lucros
auferidos em anteriores exercícios — susceptível de oportuna ilisão pelo
contribuinte, quer no momento em que apresenta a respectiva declaração de
rendimentos, quer pela via da imediata formulação de um pedido de limitação dos
pagamentos por conta, quando já se mostre excedido o imposto devido com base na
matéria colectável do exercício — e a exigência de um pagamento parcelar
“antecipado”, durante a formação do facto tributário e com uma função de
garantia da prestação devida a final, não violam o princípio constitucional da
tributação do rendimento real das empresas, expresso no nº 2, do artigo 104° da
Constituição da República Portuguesa.
3°
Termos em que deverá proceder o presente recurso».
5. Por decisão do Presidente do Tribunal Constitucional, tomada com a prévia
concordância deste Tribunal, foi determinado que o julgamento se fizesse com
intervenção do plenário, nos termos do artigo 79.º-A da LTC.
6. Discutido o memorando apresentado pelo relator, decidiu o plenário lavrar o
acórdão n.º 22/2008, nos termos do qual foram as partes notificadas para se
pronunciar sobre a eventualidade de não conhecimento do objecto do recurso, por
«a decisão recorrida não ter recusado, com fundamento em inconstitucionalidade,
a aplicação da norma identificada no requerimento de interposição do recurso».
7. O representante do Ministério Público neste Tribunal pronunciou-se nos termos
seguintes:
«1º
Embora os termos em que se mostra lavrada a decisão recorrida se configurem como
peculiares quanto à forma de fundamentação (por mera adesão a diversas opiniões
ou artigos doutrinários), considerou-se que dela resultará, em termos bastantes,
uma recusa de aplicação da norma constante do preceito legal especificado pelo
Ministério Público.
2º
Na verdade, tal decisão:
- começa por concordar inteiramente com a interpretação que a Administração
Fiscal fez da norma do artigo 98.º, n.º 1, do CIRC;
- de seguida, objecta, em contraponto a tal entendimento, com o princípio
constitucional constante do artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República
Portuguesa, enquanto estabelece que “a tributação das empresas incide
fundamentalmente sobre o seu rendimento real” (p.127);
- e passa a sustentar em vários opiniões e artigos a tese de que o regime legal
em vigor quanto ao pagamento especial por conta seria “de discutível
constitucionalidade” ou violaria mesmo o referido princípio da capacidade
contributiva (p. 127/131);
- parecendo concluir que o dito regime legal estaria em colisão com “o disposto
no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (p.132).
3º
Ou seja: uma interpretação adequada dos termos da decisão recorrida, parece
ter-se entendido que o regime plasmado na norma objecto de recurso violaria os
princípios da legalidade fiscal e da capacidade contributiva, embora se
expresse, na parte final, em termos pouco precisos, ao concluir que a “decisão”
que aplicou a coima teria violado “o nosso texto legislativo fundamental”.
4º
Tratando-se, porém, de recurso fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º, a
circunstância de o juiz imputar a inconstitucionalidade a uma decisão
administrativa não precludirá o objecto “normativo” do recurso, se do teor da
decisão recorrida, devidamente interpretada, se puder identificar, ainda que em
termos implícitos, qual é a “norma” cuja aplicação é, em termos substanciais,
recusada.
5º
Estas as razões que nos levaram a tomar a posição sobre o mérito da questão, na
alegação apresentada.»
8. Apresentado e novamente discutido o memorando em Plenário e tendo ocorrido
mudança de relator, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
9. Sendo inquestionável que não cabe na competência do Tribunal Constitucional
pronunciar-se sobre a aplicação do direito infraconstitucional pelas instâncias
para tal legitimadas, não pode deixar de se notar, no caso em apreço, que a
decisão recorrida, quer na parte da matéria de facto, quer nas considerações de
direito, labora no erro de considerar que está em causa o incumprimento da
obrigação de efectuar o pagamento especial por conta previsto no artigo 98.º do
CIRC. Na realidade, tal não acontece, pois, quer o processo de contra-ordenação
levantado contra a empresa em causa, quer a decisão da Administração Fiscal que
lhe aplicou a coima, quer o recurso judicial que aquela interpôs desta decisão,
têm sempre por objecto o incumprimento do pagamento por conta, previsto no
artigo 96.º, n.º 1, alínea a), do CIRC. É esta a norma que a Administração
Fiscal considera violada, tendo, em consequência, dado por verificada a prática
da contra-ordenação prevista e punida no artigo 114.º, n.ºs 2 e 5, alínea f), do
RGIT.
Não tendo o Tribunal Constitucional – repete-se - competência para se pronunciar
sobre a regularidade ou ausência de vícios da sentença recorrida − nessa
matéria, um dado inalterável −, e considerando o objecto do presente recurso de
inconstitucionalidade, tal como se encontra delimitado no requerimento de
interposição, impõe-se começar por decidir a questão de eventual não
conhecimento do objecto do recurso.
Como fundamentação, a decisão recorrida, dispensando-se de qualquer arrazoado
argumentativo próprio, limitou-se a proceder a uma colagem, em termos algo
desconexos, de textos doutrinários em que se lançam dúvidas sobre a
constitucionalidade de certos pontos do regime do pagamento especial por conta,
previsto no artigo 98.º, n.º 1, do CIRC, ou se sustenta, mesmo, que eles estão
feridos de inconstitucionalidade.
No termo desse somatório de citações, a parte propriamente decisória da sentença
vem formulada do seguinte jeito:
«Ora, sendo as coisas assim e considerando que, de acordo com o disposto no n.º
3 do art. 103.º da Constituição da República Portuguesa, “ninguém pode ser
obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição,
que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação ou cobrança se não façam nos
termos da lei”, impõe-se concluir que a decisão que aplicou a coima à Arguida
violou o nosso texto legislativo fundamental e por isso se não pode manter.»
Não se conformando com esta decisão, o Ministério Público interpôs recurso para
o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, indicando como norma desaplicada o artigo 98.º, n.º 1, do Código do
IRC.
Em face destes dados, constantes dos autos, levanta-se, com total pertinência, a
dúvida quanto ao preenchimento dos pressupostos deste tipo de recurso de
constitucionalidade.
Dúvida que nasce, desde logo, pelo facto de a sentença imputar a
inconstitucionalidade directamente à decisão administrativa, como resulta,
expressis verbis, do trecho acima transcrito. Referenciando essa decisão, em si
mesma, como violadora da Constituição, a decisão judicial recorrida não parece
situar a questão de constitucionalidade no plano normativo, como se impunha para
estar assegurada a idoneidade do objecto do recurso. Não transparece dessa
decisão qualquer confronto entre uma norma de direito ordinário e uma regra ou
princípio constitucionais, em termos fundamentadores da desconformidade da
primeira em face dos segundos. Nessa medida, o recurso não terá por objecto uma
questão de constitucionalidade “normativa”, o que leva à preclusão do seu
conhecimento.
Poder-se-á dizer, em contrário, que o juízo formulado pela sentença quanto à
decisão administrativa assenta necessariamente numa precedente valoração como
inconstitucional da base normativa em que esta se apoia. Nessa linha,
admitir-se-á que, ainda que formulada “em termos pouco precisos”, como reconhece
o Ministério Público, a decisão deve ser interpretada como contendo um juízo de
inconstitucionalidade da norma fiscal que criou para a arguida a obrigação de
proceder aos pagamentos especiais por conta, ou seja, do n.º 1 do artigo 98.º do
CIRC.
Mas é, no mínimo, muito duvidoso que, no âmbito do direito estrito, como é o que
regula os pressupostos de admissão dos recursos de constitucionalidade, caiba ao
Tribunal Constitucional proceder àquela tarefa reconstrutiva, nos termos
propugnados. Tarefa que, em casos como o sub judice, se revestiria de especial
complexidade e se rodearia de particular incerteza, pois não se pode olvidar que
a decisão administrativa impugnada tem carácter sancionatório, resultando de um
processo de natureza contra-ordenacional, pelo que só num segundo momento de um
percurso ascendente se poderia eventualmente identificar uma norma-fundamento de
direito fiscal material. E a falibilidade dessa análise retrospectiva fica bem a
descoberto em casos como o presente, em que o dever infringido e a norma que o
impõe – fundamentos últimos da aplicação da coima — não foram os considerados na
decisão recorrida.
Para além deste primeiro obstáculo ao conhecimento do recurso, depara-se-nos um
segundo, verdadeiramente intransponível.
Tem ele a ver com a exigência de que a norma que constitui objecto de recurso
tenha sido efectivamente desaplicada pelo tribunal a quo. Na verdade, o
pressuposto do recurso só ficará preenchido se, no termo daquele esforço
interpretativo, se puder afirmar, com segurança, que houve recusa de aplicação
de uma norma ou normas, com fundamento em inconstitucionalidade, e que a(s)
norma(s) em causa coincide(m) com a(s) apontada(s) pelo recorrente, no seu
recurso.
O Ministério Público, no requerimento de interposição do recurso, especificou
como preceito legal desaplicado o artigo 98.º, n.º 1, do Código do IRC. Todavia,
percorrendo a decisão recorrida, em momento algum nela se equaciona a
inconstitucionalidade da norma constante desse artigo. A disposição apenas é
referida na matéria de facto dada como provada e na parte inicial da
fundamentação de direito, em articulação com o artigo 99.º, n.º 1, para
sustentar que o pedido de limitação dos pagamentos por conta, ao abrigo deste
último preceito, não exoneraria a arguida de efectuar o primeiro pagamento,
contrariamente à sua pretensão.
Consciente, porventura, deste facto, o Ministério Público, como já fizera no
processo decidido pelo Acórdão n.º 241/2007 – processo em tudo idêntico ao
presente e que correu termos no mesmo tribunal −, vem, na resposta à questão
suscitada, levantar a hipótese de uma recusa implícita de aplicação do artigo
98.º, n.º 1.
E, na verdade, essa via hermenêutica não é estranha aos critérios decisórios
deste Tribunal, tendo sido considerada nalguns arestos (cfr., entre outros, os
Acórdãos n.º 605/99, n.º 399/89 e n.º 16/96). Mas sempre, diga-se, com um
elevado grau de exigência quanto à concludência dos dados de onde se poderá
inferir uma rejeição de aplicação. Importa, pois, averiguar se estão
preenchidas, neste caso, as condições que justificam essa conclusão.
O artigo 98.º, n.º 1, do CIRC contém a norma instituidora dos pagamentos
especiais por conta, servindo, digamos assim, de “porta de entrada” a esse
instituto, no ordenamento fiscal português. Para além da previsão da obrigação,
limita-se a estabelecer o número das prestações tributárias e o calendário da
sua efectivação, silenciando, por inteiro, qualquer outro aspecto do regime.
Isto dito, resultando a decisão recorrida da impugnação de uma coima pelo não
cumprimento dessa obrigação, ressalta à evidência que o predito artigo 98.º, n.º
1, “tem a ver” com a matéria nela tratada e decidida, integrando-se, com
destaque, no campo normativo que emoldura a decisão sancionatória.
Mas isso está muito longe de bastar para que, de imediato, se possa estabelecer
uma relação de mútua implicação entre a anulação da decisão condenatória em
coima e a recusa de aplicação do artigo 98.º, n.º 1. Para que assim seja,
imperioso se torna dar por assente que uma coisa não subsiste sem a outra, que a
decisão recorrida não poderia ter sido proferida com o sentido e alcance que lhe
foram conferidos sem, simultaneamente, se denegar validade constitucional àquele
preceito, com a consequente desaplicação. Será esse o caso dos autos?
Para o valorarmos e decidirmos, há que articular as magras considerações
decisórias, acima transcritas, com os excertos doutrinários que pretendidamente
lhes servem de fundamento. O que deles sobressai é a contestação e crítica de
alguns pontos do regime dos pagamentos especiais por conta, mormente os que se
relacionam com a fixação da base de incidência — o volume de negócios e não os
lucros —, com uma taxa única não progressiva, e a extrema dificuldade de
reembolso, em caso de insuficiência das colectas a considerar para a dedução,
dado o apertado condicionalismo que o rodeia. São esses aspectos da disciplina
da figura que são confrontados com parâmetros constitucionais, designadamente
com o princípio da capacidade contributiva e o princípio da tributação das
empresas sobre o seu rendimento real (artigo 104.º, n.º 2, da CRP).
E a selecção desses textos e dos pontos neles focados não foi arbitrária, tendo
em conta a configuração, em concreto, do caso em juízo e o interesse que moveu
ao recurso judicial. Na verdade, o que sobremodo inquietou o contribuinte foi a
possibilidade de ficar exposto a pagamentos por conta, no exercício de 2003,
cada um deles muito superior ao imposto liquidado a final, dada a disparidade de
resultados económicos e de montantes da colecta, entre esse ano e o anterior.
Ora, nenhum desses aspectos particulares (ainda que não marginais, reconheça-se)
do regime dos pagamentos especiais por conta vem regulado no artigo 98.º, n.º 1.
Eles representam opções legislativas autonomamente tomadas no quadro de outros
preceitos: o artigo 98.º, n.º 2 e n.º 4, do CIRC, quanto à taxa e base de
incidência, o artigo 83.º, n.º 2, alínea f), quanto à dedução à colecta do
exercício a que respeita, ou, se insuficiente, até ao quarto exercício seguinte
(artigo 87.º, n.º 1, do CIRC), e ainda o artigo 87.º, n.º 3, do mesmo diploma,
quanto aos requisitos de reembolso da parte não deduzida. Estas soluções não vêm
necessariamente na decorrência da decisão “primária” de impor prestações
antecipadas “por conta”, nem corporizam um ponto de vista valorativo único que a
todas inspire. Tanto assim é que, sem mudar uma vírgula ao enunciado normativo
do artigo 98.º, n.º 1, tal como está formulado, e sem pôr minimamente em causa a
sua conformidade constitucional, o mesmo é dizer, a conformidade constitucional
da previsão de entregas antecipadas, em certas datas do período de formação do
facto tributário (mais não diz o preceito…), a disciplina das questões reguladas
naquelas normas poderia ser outra, sem oferecer o flanco a objecções de
constitucionalidade. Ou, visto na perspectiva da decisão: pode ser dado, como
foi, provimento ao recurso de contra-ordenação, sem que isso passe pela
desaplicação, por inconstitucionalidade, do artigo 98.º, n.º 1.
Tanto basta para que se conclua que, não só não se detecta na decisão recorrida
qualquer elemento sinalizador de uma recusa implícita de aplicação deste artigo
– assim decidiu, de igual modo, o Acórdão n.º 241/2007 −, como, mais ainda, dela
transparecem dados que contrariam uma tal inferência. A pretexto de se tratar da
norma de previsão dos pagamentos especiais por conta, não pode, na verdade, o
recorrente transferir para o âmbito do artigo 98.º, n.º 1, questões de
constitucionalidade que essa norma, em si, não suscita nem suscitou, como se ela
fosse o habitáculo qualificado, em bloco e concentradamente, do regime fiscal
cuja aplicação justificaria a coima.
III – DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide não conhecer do objecto do
presente recurso de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 11 de Março de 2008
Joaquim de Sousa Ribeiro
Gil Galvão
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Benjamim Rodrigues (vencido nos termos da declaração anexa)
João Cura Mariano (vencido, nos termos da declaração que anexo)
Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
José Borges Soeiro (vencido, acompanhando o voto formulado pelo Exmo.
Conselheiro Benjamim Rodrigues).
Maria Lúcia Amaral (vencido, pelas razões expressas na declaração de voto do
Exmo. Conselheiro Benjamim Rodrigues)
Carlos Fernandes Cadilha (vencido pelas razões constantes da declaração de voto
do Exmo. Conselheiro Mário Torres)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Votei vencido quanto à questão prévia do não conhecimento do recurso.
Na verdade,como primitivo relator propus o seu conhecimento.
2 – A tese que fez vencimento obnubilou que sob recurso
constitucional está apenas a sentença judicial que conheceu da impugnação
judicial da decisão administrativa de aplicação de coima e que lhe cabe apenas a
ela definir o âmbito da impugnação deduzida, valendo essa definição como um dado
para o Tribunal Constitucional, para todos os efeitos, como, por exemplo, para
aferir da utilidade do conhecimento do recurso constitucional, em face da
natureza instrumental deste.
Por outro lado, o acórdão ignorou completamente que nessa
impugnação vale o princípio da oficiosidade do conhecimento do direito,
traduzido pelo velho brocardo latino jus novit curia, e que o tribunal a quo não
estava assim vinculado à qualificação jurídica efectuada pela autoridade
administrativa da conduta contravencional imputada à arguida.
Nesta medida, torna-se irrelevante que a entidade administrativa que
aplicou a coima tenha indicado “como norma infringida o art.º 96.º, n.º 1,
alínea a), do CIRC e como normas punitivas os art.ºs 114.º, n.º 2, alínea f), e
26.º, n.º 4, do RGIT”, como discreteia o acórdão.
O que se afigura relevante e decisivo é que a sentença sob recurso
considerou, como resulta logo da sua primeira parte, transcrita, que a
administração aplicara o art.º 98.º, n.º 1, do CIRC (que depois a mesma sentença
veio a desaplicar) para exigir o primeiro pagamento especial por conta cuja
falta constituía elemento constitutivo da infracção imputada.
3 – A argumentação no sentido de que o recurso não coloca qualquer
questão de constitucionalidade normativa mas antes de constitucionalidade da
decisão (administrativa) assenta, essencialmente, sobre o facto de sentença
recorrida rematar o seu discurso de fundamentação do modo acima transcrito e que
importa aqui relembrar:
“Ora, sendo as coisas assim e considerando que, de acordo com o
disposto no n.º 3 do art. 103.º da Constituição da República Portuguesa,
«ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos
termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e
cobrança se não façam nos termos da lei», impõe-se concluir que a decisão que
aplicou a coima à Arguida violou o nosso texto legislativo fundamental e por
isso se não pode manter.”.
Neste passo do discurso, a sentença recorrida limita-se, porém, a
projectar sobre o caso concreto, cuja apreciação lhe fora colocada no recurso de
impugnação da coima, com vista a ditar a sorte do mesmo, o juízo de
inconstitucionalidade antes firmado pelo tribunal a quo sobre as normas legais
que a autoridade administrativa aplicara como fundamento jurídico do decidido.
Ao dizer que “impõe-se concluir que a decisão que aplicou a coima
violou o nosso texto legislativo fundamental e por isso se não pode manter”, o
trecho do discurso não está a fazer mais do que a fixar a conclusão a tirar, no
plano da aplicação ao objecto do recurso judicial (a impugnação administrativa
de aplicação de uma coima), do resultado (juízo de inconstitucionalidade) do
juízo de subsunção ao quadro jurídico-constitucional, anteriormente definido, da
norma legal que constituiu o fundamento normativo da decisão administrativa
impugnada.
Pode sintetizar-se a estrutura racional da decisão na seguinte
consequenciação temática: ao contrário do defendido pela arguida, o pedido de
limitação dos pagamentos por conta [que fez à administração] apenas poderá ser
efectuado depois de realizado o primeiro pagamento por conta, pelo que o
primeiro é sempre devido, nos termos do art.º 98.º, n.º 1, do CIRC, como
considerara a decisão administrativa impugnada; todavia, esta norma, com o
conteúdo que lhe é emprestado pelas demais que conformam o regime do instrumento
fiscal, é inconstitucional em face do princípio constitucional da tributação do
rendimento real consagrado no n.º 2 do art.º 104.º da CRP como é demonstrado nos
excertos doutrinários que transcreve; sendo assim, estamos perante um
instrumento fiscal cujo regime afronta o disposto no art.º 103.º, n.º 3, da CRP;
consequentemente, ao fazer aplicação de uma norma inconstitucional (aquele art.º
98.º, n.º 1, do CIRC), a decisão administrativa “violou o texto legislativo
fundamental”.
Embora, como refere o Ministério Público, “os termos em que se
mostra lavrada a decisão recorrida se configurem como peculiares quanto à
fundamentação (por mera adesão a diversas opiniões ou artigos doutrinários)”,
não deixa de ser claro que a interpretação adequada dos termos da sentença
recorrida são aqueles que se deixam condensados.
Em ponto algum da sentença recorrida vemos estabelecido qualquer
confronto dialéctico entre as normas ou princípios constitucionais, assumidos
como parâmetros, e a decisão administrativa impugnada, de aplicação da coima.
O diálogo está construído directamente em torno da conformidade
constitucional do instrumento normativo fiscal do pagamento especial por conta,
tal como este se encontra conformado nas normas de direito infraconstitucional.
Afigura-se claro que a sentença recorrida anulou a decisão
administrativa que aplicou a coima por entender que esta, para decidir como
decidira, aplicou o art.º 98.º, n.º 1, do CIRC, mas que este preceito é
inconstitucional por violar as normas e princípios constitucionais conforme
entendeu estar demonstrado na argumentação doutrinária que deixou transcrita e
em cuja bondade se reviu.
Foi, pois, oficiosamente, colocada uma questão de
constitucionalidade normativa relativa ao instituto do pagamento especial por
conta, tal como o mesmo se achava conformado na lei, e decidida a mesma enquanto
questão de dilucidação necessariamente prejudicial (por atinente à validade
constitucional da lei) da resposta a dar quanto ao fundo da causa (objecto do
recurso judicial).
4 – Sustenta ainda o acórdão que o art.º 98.º, n.º 1, do CIRC se
limita a proceder à instituição, através da enunciação dos respectivos
pressupostos, da obrigação de pagamento especial em causa e da sua
periodicidade, mas que o seu regime jurídico (global) consta também de outras
normas, pelo que não se poderá conhecer da questão de constitucionalidade na
medida que a mesma se reporte ao respectivo regime quando derivado de outras
normas.
Entende-se, porém, que esta objecção não tem consistência. O
recorrente interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no
art.º 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, “restrito à questão de constitucionalidade
decidida na sentença, a qual recusou a aplicação da norma contida no art.º 98.º,
n.º 1, do Código do IRC, aprovado pelo DL n.º 442-B/88 de 30/11, com a redacção
introduzida pelo DL n.º 198/2001 de 03/07, norma cuja inconstitucionalidade se
pretende que seja apreciada pelo Tribunal Constitucional”.
Ora, antes de mais, verifica-se que a decisão recorrida leu o artigo
98.º, n.º 1, do CIRC, com o sentido de que é o próprio instrumento normativo
fiscal, conformativo da obrigação de pagamento do contribuinte que nele é
definida, que está em causa, pese embora o respectivo regime seja desenvolvido
ainda em outros preceitos.
O que a decisão recorrida relevou como norma inconstitucional foi o
instrumento normativo-fiscal criado no art.º 98.º, n.º 1, do CIRC, em si
próprio, ou seja, enquanto obrigação fiscal do contribuinte de pagamento ao
título aí estabelecido, com tudo o que legalmente o caracteriza.
Donde, se tem de considerar que em causa está tudo o que
normativamente corresponda a elemento de identificação do instrumento fiscal em
causa.
De resto, estando constitucionalmente impugnado certo e determinado
instrumento normativo-fiscal de arrecadação de receitas, sempre se teriam de
ponderar os termos em que o mesmo se acha regulado ou que lhe dêem corpo
jurídico, para aferir da sua constitucionalidade.
Mesmo que se considere que o art.º 98.º, n.º 1, do CIRC, se limita a
prever a existência da obrigação de pagamento especial por conta e a definir
alguns dos seus pressupostos, não pode deixar de relevar-se o regime que decorra
de outros preceitos legais, para apurar se o meio normativo aí instituído é
conforme ou não à Lei fundamental.
5 – Por fim, haverá de ter-se em conta que a questão do conhecimento
do recurso nas situações abrangidas pela alínea a) do n.º 1 do art.º 70.º da LTC
se coloca em termos diferentes dos que são demandados pela alínea b) do mesmo
número e artigo.
No caso da alínea a) a previsão do recurso encontra o seu fundamento
essencial no “princípio da presunção de constitucionalidade das leis (e actos
com valor equivalente) (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria
da Constituição, 6.ª edição, p. 986).
A Constituição torna obrigatório o recurso para o Ministério Público
(art.º 280.º, n.º 3) para que o Tribunal Constitucional controle a correcção do
juízo feito pela decisão recorrida no sentido da desaplicação da norma de
direito infraconstitucional e da aplicação da Constituição.
Deste modo, desde que haja um juízo judicial de afastamento da
aplicação, ao caso concreto, de uma norma, sob fundamento de
inconstitucionalidade, impõe-se que esse juízo seja reapreciado pelo Tribunal
Constitucional.
O decisivo, neste campo, é que o Tribunal tenha recusado a aplicação
de certa norma na regulação da concreta questão que foi objecto da sua decisão.
Já no que importa ao recurso a que se refere a alínea b) este visa
propiciar ao recorrente, dentro de uma lógica de respeito pelo princípio da
autonomia e da auto-responsabilidade processuais, a faculdade deste poder
controlar a correcção do juízo feito pela decisão recorrida sobre a validade
constitucional de um certo e determinado critério normativo que foi usado como
fundamento da decisão.
Tratando-se de um controlo motivado pelo recorrente relativo a norma
infraconstitucional, que foi aplicada por ter sido considerada conforme com a
Constituição, compreende-se que a intervenção do Tribunal Constitucional esteja
sujeita a especiais exigências de recorribilidade conexionadas com o exercício
dessa faculdade da parte.
Ora a situação em análise integra-se naquela primeira hipótese.
6 – Finalmente, haverá ainda de dizer-se que, não deixando o acórdão
de admitir a existência de dúvidas relativamente aos analisados pressupostos do
recurso constitucional, deveria ter concluído, em congruência, no sentido
sugerido pelo princípio do favor actionis que se distrai da garantia
constitucional do acesso aos tribunais, concedida no art.º 20.º da CRP, na
medida em que o mesmo dá tradução ao princípio da maior eficácia dos direitos e
garantias fundamentais.
Também por esta via deveria ter conhecido do recurso constitucional.
Benjamim Rodrigues
VOTO DE VENCIDO
Votei vencido por, contrariamente à posição maioritária, entender que a sentença
recorrida se apoiou na recusa da aplicação do artigo 98.º, do CIRC, com
fundamento na sua inconstitucionalidade, pelo que, nos termos do artigo 70.º,
n.º 1, a), da LTC, deveria conhecer-se o mérito do recurso interposto pelo
Ministério Público.
A sentença recorrida, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé,
julgou procedente recurso da decisão do Director de Finanças de Faro que aplicou
uma coima no valor de €. 30.000, por a arguida não ter efectuado o primeiro
pagamento especial por conta do IRC de 2003.
Da leitura integral e atenta daquela peça resulta, para nós sem equívocos, que a
mesma, socorrendo-se da opinião de vários fiscalistas, confrontou o disposto no
artigo 98.º, do CIRC, que prevê o denominado “pagamento especial por conta”, com
o princípio constitucional tributário enunciado no artigo 104.º, n.º 2, da
C.R.P., concluindo pela inconstitucionalidade da previsão normativa daquele
pagamento.
E, com esse único fundamento, julgou procedente o recurso.
É certo que na conclusão da fundamentação se escreveu que se considerava que “a
decisão que havia aplicado a coima” violava “o texto legislativo fundamental”,
mas a incorrecção desta referência não pode servir de pretexto para não se
reconhecer na argumentação da sentença um claro juízo de desaplicação normativa,
com fundamento em inconstitucionalidade, até porque o Tribunal Constitucional
tem sustentado o conhecimento do recurso de simples recusas implícitas de
aplicação de normas.
Saber se a declarada inconstitucionalidade deveria recair sobre a previsão do
pagamento especial por conta ou sobre outros normas que estabelecem o seu regime
já respeita ao mérito do recurso, importando apenas para o seu conhecimento que
o preceito desaplicado pela sentença recorrida foi, na nossa leitura, o artigo
98.º do CIRC, pelo que nada obstava à apreciação de fundo do recurso interposto
pelo Ministério Público.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que, no caso, se verificavam
todos os requisitos necessários e suficientes ao conhecimento do mérito do
presente recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei
n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC).
1. Esse específico tipo de recurso – que cabe das
decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento
em inconstitucionalidade, a interpor imediata e directamente para o Tribunal
Constitucional (sem necessidade de prévia exaustão dos recursos ordinários no
caso cabíveis) e que é obrigatório para o Ministério Público quando a norma cuja
aplicação haja sido recusada conste, designadamente, de acto legislativo (como
no caso se verifica) – visa fundamentalmente impor a intervenção do Tribunal
Constitucional sempre que ocorra um “conflito” entre o poder judicial e o poder
legislativo, recusando aquele a aplicação de um acto deste, com base em alegada
violação da Constituição. Por isso, sempre se entendeu que para a
admissibilidade deste tipo de recurso basta que a recusa judicial de aplicação
de norma constante de acto legislativo seja implícita, não se exigindo (ao
invés do que se passa, por exemplo, com os recursos previstos na alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC, em que se impõe à parte a suscitação da questão da
inconstitucionalidade da norma em causa, “de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer” – artigo 72.º, n.º 2, da LTC) uma recusa explícita de
aplicação da norma com fundamento em inconstitucionalidade.
No presente caso, resulta – a meu ver, claramente – do
discurso argumentativo desenvolvido pela decisão recorrida que ela reputou
inconstitucional o regime jurídico do pagamento especial por conta – do qual
constitui preceito central o do artigo 98.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o
Rendimento das Pessoas Colectivas, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 442‑B/88, de 30
de Novembro, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho
(CIRC) –, por violação dos princípios constitucionais da capacidade
contributiva, da igualdade tributária e da tributação do rendimento real das
empresas.
É certo que, na formulação final da decisão recorrida se
alicerça a anulação judicial da decisão administrativa que aplicou a coima à
arguida na constatação de que esta decisão “violou o nosso texto legislativo
fundamental”. Mas afigura‑se‑me inteiramente abusivo extrair desta formulação a
conclusão de que, no caso, a violação da Constituição foi imputada directamente
à decisão administrativa, em si mesma considerada, e que, por isso, não
estaríamos perante uma questão de inconstitucionalidade normativa. A decisão
judicial recorrida não imputa ao acto administrativo em causa qualquer vício
próprio que o torne, qua tale, violador da Constituição. Ele viola a
Constituição, não por força de um qualquer seu elemento específico, mas, única e
simplesmente, porque aplicou um regime jurídico inconstitucional. Assim, o
juízo de inconstitucionalidade das normas que prevêem e regulam o pagamento
especial por conta constitui pressuposto lógico necessário do juízo de
inconstitucionalidade do acto administrativo que a decisão ora recorrida, por
esse exclusivo motivo, anulou. A sentença não aponta ao acto administrativo
anulado qualquer outra violação da Constituição que não seja a que deriva de ter
aplicado normas inconstitucionais.
É, assim, a meu ver, patente que a decisão judicial ora
recorrida tem como ratio decidendi a recusa inequívoca da aplicação de normas
constantes de acto legislativo com fundamento em inconstitucionalidade, pelo que
o presente recurso, obrigatoriamente interposto pelo Ministério Público, devia
ter sido considerado admissível e o Tribunal devia ter conhecido do seu mérito.
A solução que fez vencimento, ao admitir que basta que,
na formulação escolhida pela decisão judicial recorrida para rematar o seu
discurso argumentativo, se acabe por referir que o acto administrativo impugnado
é inconstitucional para por isso concluir que inexiste recusa de aplicação de
normas com fundamento em inconstitucionalidade, quando é patente que pressuposto
lógico necessário do juízo de inconstitucionalidade do acto administrativo é o
juízo de inconstitucionalidade do regime jurídico por esse acto aplicado, abre a
porta à defraudação da finalidade constitucional deste tipo de recurso,
inicialmente salientada: fazer intervir obrigatoriamente o Tribunal
Constitucional sempre que um órgão do poder judicial recuse aplicar um acto do
poder legislativo. Para evitar esta intervenção constitucionalmente relevante
do Tribunal Constitucional bastará, na esteira do agora decidido, que os
tribunais, após reputarem inconstitucional determinado regime legal, terminem
as suas decisões utilizando formulações em que a violação da Constituição seja
reportada ao acto administrativo aplicador desse regime legal. É esta uma
solução que, de todo em todo, não posso subscrever.
2. Igualmente discordei do precedente acórdão na parte
relativa à adequação do preceito legal seleccionado pelo recorrente para
reportar o regime jurídico cuja inconstitucionalidade foi afirmada pela decisão
recorrida.
A meu ver, essa selecção é minimamente adequada, pois o
artigo 98.º, n.º 1, do CIRC, na redacção do Decreto‑Lei n.º 198/2001, é a norma
instituidora do regime do pagamento especial por conta, assumindo, por isso,
uma posição central nesse regime. É certo que o juízo de inconstitucionalidade
desse regime resulta, designadamente, da consideração de outros preceitos, mas
constitui prática corrente – e correcta – deste Tribunal tomar em conta, para a
aferição da conformidade constitucional de determinada norma, as soluções
vigentes na ordem jurídica portuguesa, com ela conexas, mesmo que derivadas de
outros preceitos legais.
O juízo de inconstitucionalidade, constante da decisão
recorrida, do regime do pagamento especial por conta, instituído pelo artigo
98.º, n.º 1, do CIRC, teve naturalmente em consideração o modo concreto como
esse regime se encontra regulado no mesmo diploma. Salvo o devido respeito, é
descabido – para aferir da adequação da identificação da norma objecto do
presente recurso – afirmar‑se que aquele artigo 98.º, n.º 1, ao limitar‑se a
estabelecer quais os sujeitos passivos do pagamento especial por conta e qual a
periodicidade deste pagamento, seria compatível com a consagração de um regime
que não padecesse das violações dos princípios constitucionais detectadas na
decisão recorrida. Na verdade, é irrelevante saber se noutras ordens jurídicas e
noutras épocas coexistiram ou coexistem, com norma idêntica à do artigo 98.º,
n.º 1, do CIRC, regimes jurídicos relativamente aos quais não seriam aplicáveis
os juízos de inconstitucionalidade constantes da sentença recorrida. A norma do
artigo 98.º, n.º 1, do CIRC tem de ser apreciada em si mesma e na sua
circunstância – a sua circunstância realmente existente aqui e agora, e não uma
circunstância eventual ou imaginária. Por isso, considero absolutamente
irrelevante a afirmação de que “sem mudar uma vírgula ao enunciado normativo do
artigo 98.º, n.º 1, tal como está formulado”, “a disciplina das questões
reguladas naquelas normas [artigos 83.º, n.º 2, 87.º, n.ºs 1 e 3, e 98.º, n.ºs 2
e 4, do CIRC] poderia ser outra, sem oferecer o flanco a objecções de
constitucionalidade”: é evidente que a disciplina podia ser outra, mas o que
interessa é que, de facto, não o é, e é em face da disciplina que existe (e não
da que podia existir) que a questão de constitucionalidade tem de ser
identificada e apreciada. Contrariamente ao que se refere no precedente acórdão,
para o presente efeito não existe autonomia (ou separabilidade) entre o artigo
98.º, n.º 1, do CIRC e as normas que pormenorizam o regime de pagamento especial
por conta por esse preceito instituído: se se viesse a julgar inconstitucional a
norma do artigo 98.º, n.º 1, do CIRC, consequencialmente cairiam as normas dos
artigos 83.º, n.º 2, 87.º, n.ºs 1 e 3, ou 98.º, n.ºs 2 e 4, do CIRC, sendo, de
todo em todo, insustentável que estas continuariam a ser aplicáveis depois de se
fulminar com um juízo de inconstitucionalidade o preceito central do instituto
em causa.
3. Por último, considerei descabida a crítica à decisão
da matéria de facto apurada pela decisão recorrida, a que se procedeu nos n.ºs
2 e 9 do precedente acórdão.
Bem ou mal, a sentença recorrida incluiu entre os factos
provados os de que o Director de Finanças de Faro aplicou à arguida uma coima de
€ 30 000 por ter considerado que ela não efectuou o primeiro pagamento especial
por conta do IRC de 2003, constituindo esta conduta infracção da norma do artigo
98.º do CIRC. As partes no processo, podendo tê‑lo feito, não requereram a
reforma da sentença, designadamente com fundamento em erro manifesto, por
constarem dos autos elementos que imporiam a constatação de que estava em causa
um pagamento por conta e que a decisão sancionatória teria considerado
infringido o artigo 96.º, n.º 1, alínea a), do CIRC. Assim sendo, a verdade
processual – que o Tribunal Constitucional tinha de aceitar como um dado da
questão, não lhe sendo lícito criticar oficiosamente a decisão da matéria de
facto feita pelas instâncias – é a de que a arguida foi punida por ter
infringido o artigo 98.º, n.º 1, do CIRC, pelo que tinha toda a pertinência
apreciar, como a sentença recorrida fez, a conformidade constitucional desta
norma.
Mário José de Araújo Torres