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Processo n.º 7/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do
art.º 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), da
decisão do relator que decidiu não conhecer do recurso de constitucionalidade.
2 – O articulado da reclamação tem o seguinte teor:
«A., arguido recorrente nos autos supra id., vem RECLAMAR para a Conferência, ao
abrigo do art. 78º-A – 3 da Lei 13-A/98 de 26/Fev., com os argumentos aduzidos
ipsis verbis no requerimento de recurso, maxime entre outros:
7- Os factos pelos quais agora se encontra preso não foram dados a conhecer ao
arguido: apenas foi notificado da Acusação em Língua Alemã, o que traduz
NULIDADE do PROCESSADO: artigo 6º – 3 – a) e e) da CONVENÇAO EUROPEIA DIREITOS
HOMEM e art. 92º do C.P.P.
10- O processado é NULO por omissão da notificação em Língua Portuguesa da
Acusação emitida pelas Autoridades Alemãs – arts. 6º – 3 – a) e e) – Convenção
Europeia dos Direitos do Homem e 92º do CPP.
Acresce que o art. 7º da Lei 65/2003 proíbe a perseguição criminal por factos
anteriores e diferentes o que foi suscitado na Conclusão 8ª:
8- O arguido foi condenado e EXPULSO pelas Autoridades Alemãs pelo que
RENUNCIARAM a persegui-lo por processos – factos anteriores: o Princípio da
Especialidade ínsito ao art. 7º da Lei 65/2003 PROIBE a perseguição criminal por
factos anteriores e diferentes.
A expulsão do recorrente pelas Autoridades Alemãs implica RENUNCIA ao
procedimento criminal o que, salvo o devido respeito, não foi acautelado na
Decisão Sumária proferida em 15 Janeiro 2008!!!!».
3 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
respondeu sustentando ser a reclamação “manifestamente improcedente”, porque a
“argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão reclamada,
no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do recurso interposto”.
4 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal
Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua redacção actual (“LTC”), pretendendo ver
apreciada a “inconstitucionalidade do art. 92.º do Código de Processo Penal por
violação do art. 6.º-3-A) e E) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem face
à ausência de tradução da Acusação que foi notificada em Língua Alemã e não na
Língua Portuguesa”.
2 – Integrando-se o caso sub judicio sob a alçada normativa do
disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, e atento o preceituado no artigo 76.º,
n.º 3, do mesmo diploma, passa a decidir-se com base nos seguintes fundamentos.
3 – Previamente ao presente recurso de constitucionalidade, o
recorrente interpôs, junto do Supremo Tribunal de Justiça, recurso do Acórdão do
Tribunal da Relação de Coimbra que deferira a execução do Mandado de Detenção
Europeu e ordenou a entrega do recorrente às autoridades alemãs.
3.1 – Nesse recurso, o arguido formulou as seguintes conclusões:
«1- O recorrente foi condenado a 2 anos e 4 meses pelo Tribunal de IKLS – Proc.
15/02- 593JS306008 101: cumpriu 1 ano de prisão entre MARÇO/2002 e
DEZEMBRO/2003.
2- E foi condenado a EXPULSÃO pelo Tribunal de HAMBURGO – Proc. 624 KLS
14/046500 JS 57/04: cumpriu 2 anos e 6 meses de prisão.
3- 0 Tribunal de Hamburgo determinou a EXPULSÃO do recorrente da Alemanha em
8-10-2006 e este deslocou-se para PORTUGAL.
4- 0 SR. PROCURADOR DE LUBECK confirmou in totum 0 teor das Decisões
Condenatórias e a EXPULSÃO mas não explicitou em concreto qual o alegado PERIGO
de FUGA perante a EXPULSÃO
5 – O arguido é considerado persona non grata na Alemanha.
6 – O arguido foi julgado e condenado na Alemanha em 2 processos.
7 – Cumpriu dois anos e meio de prisão e foi expulso para Portugal.
8 – A Alemanha expulsou o extraditando em 8 de Outubro 2006.
9 – E reclama agora a “re-entrega” para “novo” processo anterior aos factos
pelos quais foi julgado e expulso!
6 – O arguido não confia na Justiça da Alemanha e tem sérias razões para se
sentir INJUSTIÇADO pois está INOCENTE. Na verdade,
7- Os factos pelos quais agora se encontra preso não foram dados a conhecer ao
arguido: apenas foi notificado da Acusação em Língua Alemã, 0 que traduz
NULIDADE do PROCESSADO: artigo 6° - 3 - a) e e) da CONVENÇÃO EUROPEIA DIREITOS
HOMEM e art. 92 do C.P.P.
8- O arguido foi condenado e EXPULSO pelas Autoridades Alemãs pelo que
RENUNCIARAM a persegui-lo por processos -factos anteriores: 0 Principio da
Especialidade ínsito ao art. 7° da Lei 65/2003 PROISE a perseguição criminal por
factos anteriores e diferentes.
9- O arguido tem a vida estabilizada em Portugal: casou em 14 Fevereiro 2007 com
B. na Conservat6ria do Registo Civil de Tomar, trabalhava na fabrica de cozinhas
'…' em Leiria e contraiu empréstimo hipotecário para aquisição de casa, pelo que
solicitou a aplicação da LEI 144/99 de 31/8 – artigos 79 e ss.
10- O processado é NULO por omissão da notificação em Língua Portuguesa da
Acusação emitida pelas Autoridades Alemãs artºs 6° – 3 a) e e) – Convenção
Europeia dos Direitos do Homem e 92 do CPP.
11- A expulsão pela Alemanha em 8 Outubro 2006 implica RENÚNCIA ao procedimento
criminal por factos anteriores.
12- O arguido sente-se INJUSTIÇADO pela Alemanha, perseguido por factos que
desconhece e que não lhe foram dados a conhecer!!!
13- O arguido tem a vida estabilizada em Portugal e solicitou a delegação do
procedimento Alemão nas Autoridades Judiciarias Portuguesas – artºs 79 e ss. da
LEI 144/99 de 31 Agosto.
14- Os factos pelos quais a Alemanha solicita a detenção estão numa relação de
continuação com os factos pelos quais foi condenado.
15- A Veneranda Decisão viola os arts. 3°, 4° e 7° da Lei 65/2003 e não contem
em concreto a Acusação nem os factos pelos quais o recorrente deve ser
extraditado pelo que estes artigos violam os arts. 18-2 e 32 da Lei Fundamental
sendo NULO o M.D.E.»
3.2 – Ponderando o alegado, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu,
por Acórdão de 20 de Dezembro de 2007, negar provimento ao recurso com base
seguintes fundamentos:
«(…)
De acordo com a motivação e conclusões apresentadas pelo recorrente, onde se
retomam, aliás, temas abordados na oposição a que acima se aludiu, são as
seguintes as questões levantadas e que cumpre conhecer:
a) Recusa de execução do M.D.E., designadamente a luz da al. b) do art. 11°
da Lei n.º 65/2003 de 23 de Agosto.
b) Nulidade resultante da violação do art. 92° do C.P.P. e art. 6° nº 3 al.
a) e e) da convenção Europeia dos Direitos do Homem (C.E.D.H.).
c) Violação do princípio da especialidade.
d) Delegação do procedimento criminal nas autoridades portuguesas.
a) Recusa de execução do M.D.E.
Embora o recorrente o não invoque no seu recurso, explicitamente, a abordagem
das questões por si suscitadas reclama que nos pronunciemos, ainda que
oficiosamente, sobre eventual violação do principio 'ne bis in idem'. Para que
fique bem claro que essa violação não existiu, e só poderia assentar no facto de
o arguido já ter sido julgado definitivamente pelas ocorrências que presidem à
emissão do presente M.D.E.. A resposta a tal questão surge ate como previa a
discussão das outras.
Antes do mais, importa lembrar que o M.D.E. surgiu como instrumento de
cooperação judiciária internacional, em matéria penal, que se quis dotado de
particular funcionalidade. Tal funcionalidade deriva de uma muito maior rapidez
de execução e de uma patente simplificação de procedimentos, em que avultam os
contactos directos entre as autoridades judiciárias.
A exigência de maior funcionalidade responde a uma diferente conjuntura no
espaço europeu, de que se destaca, para o que nos interessa, uma livre
circulação, potenciada pelo desaparecimento, como regra, de controlo fronteiriço
no espaço Schengen. Portugal e Alemanha, e, entre estes dois países, por
exemplo, Espanha e França, integram o espaço Schengen. Já se tem afirmado que
importa ultrapassar a discrepância existente entre uma circulação livre de
pessoas, incluindo delinquentes, de pais para pais, e as implicações da
preservação das soberanias nacionais ao nível da repressão penal. Nesta linha, o
procedimento extradicional clássico mostrou-se cada vez mais imprestável, e dai
a emergência do M.D.E. como instrumento de cooperação reforçada e simplificada.
Quanto ao concreto M.D.E. em apreço, não se nos apresenta falho de requisitos
formais, de molde a reclamar a respectiva rejeição.
De seguida, debrucemo-nos sobre a factualidade em confronto, tendo em mente o
princípio 'ne bis in idem'.
Subjacentes a emissão do M.D.E. figuram:
- 32 casos, em que, de forma continuada, o recorrente vendeu a diversas pessoas
entre 20 a 50 gramas de cocaína de cada vez, auferindo um lucro de 22.400,00€;
- 2 outros casos, em que o requerido, com outro indivíduo, compraram 2 kg de
cocaína, cortaram alguma e depois a venderam;
- Uma outra situação, em que o arguido e outros dois indivíduos, conseguiram
forma de 'importar', usando um correio, 4 a 5 kg de cocaína da América do SUL
com destino à Alemanha, não concretizando integralmente este ultimo desígnio do
plano.
- Quanto aos locais de actuação fala-se de SIEK, BREMEN e HAMBURGO e outros
lugares.
- Em matéria de datas, diz-se os factos ocorreram entre meados de 2000 e Agosto
de 2003.
Quanto aos factos pelos quais o requerente já foi condenado, retém-se que,
No tribunal de Kiel (Processo I Kls 15/02 - 593 Js 12906/02), foi sentenciado na
pena de 2 anos e 4 meses de prisão, por dois crimes de tráfico ilícito de
estupefacientes, em quantidades significativas, pela venda de 100g e de mais 1
Kg de cocaína.
- Os factos foram cometidos, respectivamente, em 21 de Fevereiro de 2002 e 07 de
Março de 2002.
- O local foi Kaltenkirchen.
No Tribunal de Hamburgo (Processo 624 Kls 14/04 - 6500 J s 57/04), foi condenado
na pena de 3 anos e 11 meses de prisão, por dois crimes de trafico ilícito de
estupefacientes em quantidades expressivas, relativos a importação da América do
Sul, de 1 Kg e 100 Kg de cocaína.
- A actuação do recorrente, que incluiu, entre o mais, uma viagem a Santiago do
Chile para fazer os contactos e pagamentos que permitiriam trazer a droga para a
Alemanha, ocorreu no período compreendido entre Fevereiro de 2004 e 31 de Agosto
de 2004, data esta em que se verificou a detenção do requerido e dos outros
co-arguidos. Destaca-se, desde logo, que os factos do presente M.D.E. se
reportam todos ao ano de 2003 e anos anteriores.
Em face desta factualidade não é pois difícil afastar a coincidência entre os
factos que presidiram a emissão de M.D.E. e os que explicam as condenações
sofridas pelo recorrente. Por se não vislumbrar qualquer violação do princípio
'ne bis in idem', fica também precludida a possibilidade de recusa do M D.E., à
luz da al. b) do art. 11°, da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.
Aliás, o recorrente não chega a invocar essa coincidência de factos,
limitando-se a falar de continuação criminosa, relacionando as novas ocorrências
com as que estiveram por detrás das anteriores condenações. Concretamente, das
que o recorrente identificou nestes autos (o recorrente conta no seu passado
criminal com inúmeras outras condenações, na Alemanha, como se pode ver a
fls.282).
Ora, mesmo que a totalidade dos factos atrás relacionados se encontre integrada
numa continuação criminosa, nunca a essa possibilidade prejudicaria a execução
do mandado ora em apreciação. Na verdade, também a jurisprudência alemã (que não
o Código Penal), conhece a figura do crime continuado, a qual, quando
concretizada, leva ao afastamento da aplicação do § 54 do C.P. alemão
(epigrafado 'Aplicação de uma pena conjunta'). Como requisitos de aplicação da
figura, têm sido apontados: a homogeneidade da forma de comissão, a violação do
mesmo bem jurídico, o carácter unitário do dolo, falando-se de um 'dolo global'
ou de um 'dolo continuado' caracterizado como 'fracasso psíquico, sempre
homogéneo, do autor, na mesma situação fáctica' (cf. Jescheck, in 'Derecho Penal
- Parte General', pág. 769, ou Maurach, Gossel e Zipf, in 'Derecho Penal - Parte
General', I vol. Pág. 535).
Seja como for, não compete à entidade requisitada, a autoridade judiciária
portuguesa, avaliar do significado jurídico-penal dos factos que justificaram a
emissão do M.D.E., em termos de crime continuado. E isto à luz da lei alemã,
que, neste particular, até pode ser considerada mais exigente que a nossa.
Dir-se-á, no entanto, que sempre a punição por crime continuado arranca de um
juízo global, que assenta na diminuição da culpa do agente, importando ainda
considerar preenchidos os outros requisitos. Por último, mesmo que a continuação
criminosa fosse um facto, não se pode excluir a hipótese de a pena a aplicar ser
modificada, com base na pena parcelar por um dos crimes que integram a
continuação, crime que fosse de conhecimento novo.
Não tem pois qualquer relevância, para efeitos de execução deste M.D.E., a
invocação de uma possível continuação criminosa da responsabilidade do arguido.
b) Nulidade resultante da violação do art. 92° do C.P.P. e art. 6° nº 3 al. a)
e e) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (C.E.D.H.).
Pretende o recorrente que os factos pelos quais foi preso, em virtude do M.D.E.,
lhe não foram dados a conhecer, por só ter recebido uma acusação em alemão e não
saber a que e que tal acusação se reporta. Anote-se a margem que o recorrente
estava a viver na Alemanha pelo menos desde 1988 (fls. 281), sendo impensável
que não tivesse conhecimentos de língua alemã atenta a actividade ai
desenvolvida. Talvez por isso mesmo tenha comunicado, nos autos, que os novos
factos se encontram com os das condenações sofridas numa relação de continuação
criminosa. Mas o recorrente não fez chegar a estes autos qualquer acusação,
traduzida ou não, nem solicitou que a mesma fosse pedida às autoridades alemãs.
Seja como for, a execução do presente mandado não depende da existência dessa
eventual acusação, do conhecimento que dela é dado ao recorrente, e muito menos
de ser traduzida para português. Nada disto é exigido pela lei.
O M.D.E. enuncia sinteticamente os factos relevantes, e foi devidamente
traduzido. O nº 5 do art. 18°, da Lei 65/2003 citada, manda apenas que o juiz
relator elucide o arguido sobre 'a existência e o conteúdo do mandado de
detenção europeu'. E não há nenhuma dúvida de que tal teve lugar e originou a
oposição do arguido.
Se o recorrente considera dever receber uma acusação traduzida, a omissão desta
operação deve ser feita valer perante as autoridades judiciarias alemãs, no
processo de que a tal acusação e oriunda, e invocando o C.P.P. alemão.
Sem mais delongas, dir-se-á inexistir, a este propósito, qualquer vício do
mandado, improcedendo nesta parte o recurso.
c) Violação do princípio da especialidade
Também neste particular se não vislumbra qual é a pretensão do recorrente. De
acordo com o art. 7° da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, a garantia aí consagrada
consiste em o requerido não poder ser alvo de procedimento criminal por factos
diferentes daqueles que presidiram à emissão do M.D.E., salvo se forem
praticados depois da entrega do requerido. Não há mínima noticia de que o
recorrente venha a ser perseguido por factos diferentes daqueles que estão no
mandado e cometidos antes da entrega.
Quanto à expulsão para Portugal na sequência das condenações sofridas, tal não
significa minimamente uma renúncia ao julgamento pelos factos ora base do
M.D.E.. Quanto mais não fosse porque poderiam não ser do conhecimento de quem
decretou a expulsão.
Também inexiste qualquer 're-entrega' as autoridades alemãs. Nunca houve uma
primeira entrega. O recorrente vivia na Alemanha quando teve que responder
perante a justiça alemã.
Assim, e a este propósito, nenhuma razão tem o recorrente.
d) Delegação do procedimento criminal nas autoridades portuguesas.
Diz-nos o arguido que 'solicitou a delegação do procedimento Alemão nas
Autoridades Judiciárias Portuguesas - art°s 79 e segs. da Lei 144/99 de 31
Agosto'.
Também se não percebe onde e que quer chegar com esta afirmação.
- Nestes autos não fez nenhuma prova da solicitação em questão.
- Trata-se de um mecanismo de cooperação judiciária que depende da livre
iniciativa do Estado que transfere o procedimento.
- Não há a mínima notícia de que a Alemanha tenha pretendido transmitir o
processo penal em questão.
- Faltaria ainda provar que o recorrente não poderá ser extraditado para a
Alemanha, porque tal é condição 'sine qua non' de aplicação do instituto (al. a)
do n° 1 do art. 80° da lei 144/99 de 31 de Agosto).
O que, convenhamos, se nos não afigura fácil.
Mais uma vez falece de razão o recorrente.
(…)».
4 – Como se disse, o presente recurso vem interposto ao abrigo do disposto no
artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
O objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade aí previsto
há-de traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s)
previamente suscitada perante o Tribunal a quo e de que a decisão recorrida haja
feito efectiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí
decidido.
4.1 – Concretizando aspectos do seu regime, cumpre, acentuar que,
sendo o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade
constituído por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios
constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a
decisão judicial em sim própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de
preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correcção, no
plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma
chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente
determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto
(correcção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos
para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de
normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da
Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub
species constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais
tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação
(directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este
Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in
concreto pelo tribunal a quo.
A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correcção jurídica
do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das
normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo ao recorrente, como se disse,
nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, o ónus
de suscitar o problema de constitucionalidade normativa num momento anterior ao
da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional [cf. Acórdão n.º
199/88, publicado no Diário da República II Série, de 28 de Março de 1989;
Acórdão n.º 618/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para
jurisprudência anterior (por exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no
Diário da República II Série, de 21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9,
inéditos e o Acórdão n.º 269/94, publicado no Diário da República II Série, de
18 de Junho de 1994)].
4.2 – Por outro lado, deve referir-se ainda que decorre dos
referidos preceitos que a questão de inconstitucionalidade tenha de ser
suscitada em termos adequados, claros e perceptíveis, durante o processo, de
modo que o tribunal a quo ainda possa conhecer dela antes de esgotado o poder
jurisdicional do juiz sobre tal matéria e que desse ónus de suscitar
adequadamente a questão de inconstitucionalidade em termos do tribunal a quo
ficar obrigado ao seu conhecimento decorre a exigência de se dever confrontar a
norma sindicanda com os parâmetros constitucionais que se têm por violados, só
assim se possibilitando uma razoável intervenção dos tribunais no domínio da
fiscalização da constitucionalidade dos actos normativos.
É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o
tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que
convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional,
que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma posição de
substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de
constitucionalidade fora da via de recurso.
É por isso que se entende que não constituem já momentos
processualmente idóneos aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição
de nulidades, pedidos de aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a
obtenção de decisão com aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento
ou modificação, com base em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia
ter pronunciado (cf., entre outros, os acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário
da República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 33º vol., pp. 663; n.º 374/00, publicado no Diário da República
II Série, de 13 de Julho de 2000, BMJ 499º, pp. 77, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 47º vol., pp.713; n.º 674/99, publicado no Diário da República
II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, BMJ 492º, pp. 62, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 45º vol., pp.559; n.º 155/00, publicado no Diário da República
II Série, de 9 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º
vol., pp. 821, e n.º 364/00, inédito).
Por outro lado, importa reconhecer que não basta que se indique a
norma que se tem por inconstitucional, sendo, antes, necessário que se
problematize a questão de validade constitucional da norma (dimensão normativa)
através da alegação de um juízo de antítese entre a norma/dimensão normativa e
o(s) parâmetro(s) constitucional(ais), indicando-se, pelo menos, as normas ou
princípios constitucionais que a norma sindicanda viola ou afronta.
Tais exigências têm sido deveras reiteradas pela nossa jurisdição
constitucional.
De forma contínua e sistemática, tem este Tribunal estabelecido que «“Suscitar a
inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal
perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de
constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que
(...) tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um
segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem
suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte
o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a
norma ou princípio constitucional infringido. ”Impugnar a constitucionalidade de
uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao
acto de aplicação do Direito – concretizado num acto de administração ou numa
decisão dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa
determinada interpretação que enformou tal acto ou decisão (cf. Acórdãos nºs
37/97, 680/96, 663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II Série,
de 15-05-1996). [§]É certo que não existem fórmulas sacramentais para formulação
dos pedidos, nem sequer para suscitação da questão de constitucionalidade.
[§]Esta tem, porém, de ocorrer de forma que deixe claro que se põe em causa a
conformidade à Constituição de uma norma ou de uma sua interpretação (...) – cf.
o referido Acórdão n.º 618/98 e os acórdãos para os quais remete.
4.3 – Ora, projectando estes criteria no caso decidendo, constata-se que o
recorrente não suscitou perante o tribunal recorrido a constitucionalidade do
artigo 92.º do Código de Processo Penal em termos que vinculassem aquela
instância ao conhecimento de tal questão.
De facto, perante o Supremo Tribunal de Justiça e em referência à norma
sindicanda, o recorrente limitou-se a alegar que “o processado é nulo por
omissão da notificação em Língua Portuguesa da Acusação emitida pelas
Autoridades Alemãs – arts. 6.º -3 –a) e e) da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem e 92.º do CPP”.
Ora, tal proposição não logra, no mínimo que seja, traduzir a suscitação
adequada de um problema de constitucionalidade.
Desde logo e em rigor, o recorrente nem sequer indica aí qual a disposição
constitucional que considera violada e à luz da qual deva realizar-se o controlo
de constitucionalidade, sendo que a mera referência ao artigo 6.º da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem não é susceptível de cumprir tal desiderato.
Em todo o caso, mesmo a admitir-se, por esse prisma e apenas
circunstancialmente, a adequação do invocado parâmetro, a verdade é que o
recorrente, ao questionar a nulidade do processado, não controverte a validade
“constitucional” da norma do artigo 92.º do Código de Processo Penal, mas sim a
eventual violação desse preceito em sede decisória, matéria que, pelos motivos
expostos, se encontra subtraída à esfera de competência deste Tribunal.
Por último, perscrutando na parte relevante o Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, verifica-se ainda que o artigo 92.º do Código de Processo Penal não foi
aplicado, a se, como ratio decidendi determinante do juízo recorrido, uma vez
que, nessa parte, o Supremo acabou por estribar a sua decisão nas disposições
pertinentes da Lei n.º 65/2003 para concluir que “seja como for, a execução do
presente mandado não depende da existência dessa eventual acusação, do
conhecimento que dela é dado ao recorrente, e muito menos de ser traduzida para
português”, relevando igualmente que, in casu, o «M.D.E. enuncia sinteticamente
os factos relevantes, e foi devidamente traduzido. O n.º 5 do art°18°, da Lei
65/2003 citada, manda apenas que o juiz relator elucide o arguido sobre 'a
existência e o conteúdo do mandado de detenção europeu'».
Pode assim concluir-se que o juízo relativamente à aplicação do disposto no
artigo 92.º suportou-se na autónoma aplicação dos critérios relativos às
condições de execução do M.D.E., sendo que, não se encontrando estes aqui
impugnados, qualquer que fosse a decisão deste Tribunal, a mesma não seria
susceptível de determinar a reforma do decidido pelo Supremo.
5 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar
conhecimento do objecto do presente recurso.
Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 8 (oito) UCs».
B – Fundamentação
5 – No seu discurso de reclamação, o reclamante em nada refuta a
correcção ou bondade do juízo feito pelo relator quanto à falta dos pressupostos
do recurso de constitucionalidade, limitando-se a repetir argumentação
dispendida no requerimento de interposição de recurso.
As afirmações tecidas pelo reclamante poderiam ter algum sentido no
âmbito de um recurso de instância, de reexame do mérito da decisão recorrida,
dirigido à aplicação do direito infraconstitucional, mas já não no que importa à
verificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade que constituiu a
questão decidida pela decisão reclamada.
Ora, porque os fundamentos expendidos na decisão reclamada são de
acolher, não pode a reclamação deixar de ser indeferida.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2008
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos