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Processo n.º 1183/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
Nuns autos de processo sumário por prática de crime de condução de veículo em
estado de embriaguez, veio o Ministério Público, em requerimento de fls. 38,
referir que reservava “para o início da audiência de julgamento o poder de
substituir a apresentação de acusação pela leitura do auto de notícia elaborado
pelo Órgão de Polícia Criminal (OPC) detentor”.
Por despacho de 29 de Outubro de 2007 do juiz do 1º Juízo do Tribunal de Pequena
Instância Criminal do Porto, a fls. 39, foi determinada a remessa dos autos ao
Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) do Porto para tramitação sob
outra forma processual, nos seguintes termos:
Não foi deduzida, até ao momento, acusação no processo, sendo certo que o Digno
Procurador Adjunto, no douto requerimento que antecede, se limita a referir que
reserva “para o início da audiência de julgamento o poder de substituir a
apresentação de acusação pela leitura do auto de noticia elaborado pelo OPC
detentor”.
Ora, se é certo que o auto de notícia contém factos susceptíveis de integrarem o
elemento objectivo do crime de condução em estado de embriaguez, o mesmo é, no
entanto, totalmente omisso quanto:
- aos factos susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo do mesmo crime, ou
seja, a culpa na forma de dolo ou negligência, sendo certo que a jurisprudência
é unânime no entendimento de que tais factos devem constar da acusação (vd., por
todos, o Ac. da Relação de Guimarães de 07.04.2003, in CJ, tomo II, págs.
291-294);
- às disposições legais aplicáveis, já que se refere apenas “Tipificação: Crimes
contra a segurança das comunicações”;
- às provas que fundamentam a acusação;
Conclui-se, assim, que pretendendo o Ministério Público substituir a
apresentação da acusação pela simples leitura do auto de notícia, sem qualquer
“aditamento” que o complete nos aspectos supra referidos, deve a acusação ser
rejeitada por não conter a narração completa dos factos que integram a prática
do crime, não indicar as disposições legais aplicáveis nem as provas que a
fundamentam (cfr. artigos 283°, n.° 3, alíneas b) a d) e 311°, n.° s 2, alínea
a) e 3, alíneas b), c) e d) do CPP).
Realizar a audiência de julgamento, em processo sumário, tendo por acusação
apenas o que consta do auto de notícia, violaria o princípio constitucional da
estrutura acusatória do processo criminal e poria em causa as garantias de
defesa do arguido, que desconheceria, face à mera leitura daquele auto, a
totalidade dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua
qualificação jurídica e a prova.
Pelo exposto, determino a remessa dos presentes autos ao DIAP do Porto para
tramitação sob outra forma processual (artigo 390°, alínea a) do Cód. de
Processo Penal).
[…].
Deste despacho recorreu o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de
Pequena Instância Criminal do Porto para o Tribunal Constitucional, nos
seguintes termos (fls. 42 e seguinte):
O magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado da douta
decisão judicial proferida nos autos à margem referenciados, datada de 29 de
Outubro de 2007, vem, nos termos da alínea a), do n.° 1 do artigo 280°, da
Constituição da República Portuguesa, do n.° 1, do artigo 75-A, e, ainda, da
alínea a), do n.° 1, do artigo 70°, estes da Lei do Tribunal Constitucional (Lei
n.° 28/82, de 15 de Novembro, alterada pelas Leis n.° 143/85, de 26 de Novembro;
85/89, de 07 de Setembro; 88/95, de 01 de Setembro; e 13/A/98, de 26 de
Fevereiro), interpor recurso directo para o Tribunal Constitucional, pois que a
decisão de que ora se recorre, que não admite recurso ordinário – cfr., artigo
391.º do Código de Processo Penal –, ao recusar a aplicação do artigo 389.°, n.°
2, do mesmo diploma legal, com os fundamentos que sustentou e remetendo os autos
para o DIAP, fez uma inconstitucional interpretação quer dos preceitos legais
que aplicou, quer do que se recusou a aplicar, na medida em que com essa sua
concreta actuação violou o princípio do caso julgado formal uma vez que voltou a
pronunciar-se acerca de uma questão já ultrapassada (leia-se, processualmente
precludida), no sentido de que relativamente a ela se encontrava já esgotado o
poder jurisdicional com o proferimento do anterior despacho judicial que
procedeu ao adiamento do início da audiência de julgamento em processo sumário,
sendo certo que, a acolher-se a argumentação expendida no despacho judicial ora
recorrido, o que parcialmente se tenderia a conceder, deveria ter-se enveredado
por trilhar caminho diverso, iniciando a audiência e fazendo oportuno uso dos
mecanismos da alteração (substancial, parece-nos, porque a questão, na certeira
óptica da Mma. Juiz a quo, colocar-se-ia entre factos que, por serem
insuficientes, não integrariam qualquer crime, e factos que, se acrescentados de
outros, preencheriam já um tipo legal de crime) dos factos, o que, se nos
afigura que seria suficiente para, dando guarida aos propósitos de celeridade
subjacentes ao processo especial sumário, não deixar de salvaguardar ainda as
garantias de defesa do arguido.
[…].
O recurso de constitucionalidade não foi, porém, admitido, pelos seguintes
fundamentos (fls. 45):
O Digno Procurador Adjunto interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do
despacho de fls. 19, que ordenou a remessa dos presentes autos de processo
sumário ao DIAP do Porto, para tramitação sob outra forma processual, nos termos
do artigo 390º, alínea a), do Código de Processo Penal, por se ter entendido que
a acusação por mera remissão para o auto de notícia deveria ser rejeitada, nos
termos dos artigos 283°, n.° 3, alíneas b) a d), e 311°, n.º s 2, alínea a), e
3, alíneas b), c) e d), do Código de Processo Penal, já que o auto em causa,
contendo embora factos susceptíveis de integrarem o elemento objectivo do crime
de condução em estado de embriaguez, é totalmente omisso quanto aos factos
susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo do mesmo crime, às disposições
legais aplicáveis e às provas que fundamentam a acusação.
Cabe a este tribunal, nos termos do artigo 76°, n.º s 1 e 2, da Lei n.º 28/84,
de 15/11, na sua actual redacção, decidir sobre a admissibilidade do recurso,
sendo certo que este deve ser indeferido quando a decisão o não admita.
O recurso foi interposto nos termos dos artigos 280°, n.° 1, alínea a), da
Constituição da República Portuguesa e 70°, n.° 1, alínea a), da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82,
de 15/11, na sua actual redacção).
De acordo com tais preceitos, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das
decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento
em inconstitucionalidade.
Ora, salvo melhor opinião, o despacho recorrido não recusa, expressa ou
implicitamente, a aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime jurídico
de qualquer norma jurídica e, muito menos, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, sendo certo que apenas esta recusa com este específico
fundamento, abriria a via de recurso para o Tribunal Constitucional.
Pelo exposto, indefiro o requerimento de recurso de fls. 22 , nos termos do
artigo 76°, n.° 2, da Lei n.º 28/82, por entender que a decisão em causa o não
admite.
[…].
O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Pequena Instância
Criminal do Porto reclamou para o Tribunal Constitucional desta decisão que lhe
indeferiu o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, ao
abrigo do artigo 77º da Lei do Tribunal Constitucional, pelos seguintes
fundamentos (fls. 2 e seguintes):
[…]
Reclama-se do despacho judicial que indeferiu o requerimento de recurso
oportunamente apresentado pelo Ministério Público, fundamentando que «(...),
salvo melhor opinião, o despacho recorrido não recusa, expressa ou
implicitamente, a aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime jurídico
de qualquer norma jurídica e, muito menos, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, sendo certo que apenas esta recusa com este específico
fundamento, abriria a via de recurso para o Tribunal Constitucional».
Ousando discordar do teor desta afirmação, quer-nos parecer que tendo o
Ministério Público - na sequência do despacho da Mma. Juiz a quo que ordenou a
conclusão dos autos ao Ministério Público «uma vez que no tribunal de turno foi
apenas requerido o adiamento do início da audiência, nos termos do artigo 387°,
n.° 2, alínea a), do CPP, não tendo sido deduzida acusação» - reservado para o
início da audiência de julgamento o uso da faculdade concedida pelo artigo 389.°
n.° 2, do Código de Processo Penal, a posterior decisão judicial que recaiu
sobre essa posição do Ministério Público não só nega a aplicação concreta da
disposição legal por este invocada (melhor, a faculdade que se protestou exercer
em devido tempo ao abrigo dessa disposição legal) como fundamenta essa não
aplicação no facto de que «realizar a audiência de julgamento, em processo
sumário, tendo por acusação apenas o que consta do auto de notícia, violaria o
princípio constitucional da estrutura acusatória do processo criminal e poria em
causa as garantias de defesa do arguido, que desconheceria, face à mera leitura
daquele auto, a totalidade dos factos necessários ao preenchimento do tipo
legal, a sua qualificação jurídica e a prova».
Não sendo de exigir fórmulas sacramentais para dizer as coisas, quer-nos parecer
que outra coisa não fez a Mma. Juiz que não tenha sido recusar a aplicação
concreta da norma em que o Ministério Público se baseou para reservar o
exercício da faculdade invocada, fundamentando mesmo essa recusa no facto de que
a aplicação de tal norma não só seria inconstitucional por violar o princípio
constitucional da estrutura acusatória do processo criminal como poria em causa
as garantias de defesa do arguido.
Parece-nos claro que quer pela leitura integral do despacho judicial recorrido,
quer pelos antecedentes que ao mesmo conduziram, será forçoso concluir que, em
rigor, o que a Mma Juiz a quo fez foi declarar que recusava, por
inconstitucional, a aplicação daquela norma quando literalmente interpretada no
sentido de permitir a realização de julgamento em processo sumário nos casos em
que o Ministério Público não tenha deduzido acusação e se reserve para o início
da audiência de julgamento em processo sumário o poder de substituir a acusação
pela leitura do auto de notícia elaborado pelo OPC revelando-se este auto de
notícia insuficiente na medida em que se mostre omisso quanto aos factos
susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo do crime em causa, quanto às
disposições legais aplicáveis e quanto às provas que fundamentam a acusação.
[…].
O despacho reclamado foi mantido, por despacho de fls. 6.
Na resposta à reclamação do Ministério Público, sustentou o arguido, A., que na
situação dos autos “nunca esteve em causa a recusa de aplicação de qualquer
norma (nomeadamente a norma constante do n.º 2 do artigo 389º do CPP, como
defende o MP) e muito menos com fundamento na sua inconstitucionalidade” -
apenas se tendo verificado uma recusa de substituição da acusação pelo auto de
notícia, em virtude de o mesmo não satisfazer as exigências legais de qualquer
acusação -, pelo que o recurso de constitucionalidade não devia ser admitido
(fls. 14 e seguintes).
Já no Tribunal Constitucional, emitiu o Exmo. Procurador-Geral Adjunto o
seguinte parecer (fls. 50 e seguintes):
Importa notar liminarmente que – sendo o recurso, interposto pelo Ministério
Público e rejeitado no Tribunal “a quo”, – exclusivamente fundado na alínea a)
do n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82, apenas poderá reportar-se à recusa de
aplicação da norma identificada no respectivo requerimento de interposição – e
não a quaisquer outros preceitos legais, eventualmente aplicados no despacho
reclamado, já que tal implicaria a ampliação do respectivo objecto de modo a
incluir estes últimos, bem como a invocação, como base recursória, da alínea b)
daquele artigo 70º, nº 1, o que se afigura inviável face à regra de que a
delimitação do objecto do recurso decorre irremediavelmente (no que se refere ao
seu máximo âmbito) do teor daquele requerimento.
A sorte da presente reclamação dependerá, deste modo, da determinação da
existência de uma “verdadeira” recusa de aplicação normativa, reportada ao
artigo 389º, n.º 2, do Código de Processo Penal fundada em violação dos
princípios constitucionais da estrutura acusatória do processo penal e das
garantias de defesa.
Qual a interpretação normativa feita pelo juiz “a quo” de tal preceito legal?
A nosso ver, considerou-se ser inviável a substituição da apresentação de
acusação pelo Ministério Público em processo sumário pela simples leitura do
auto de notícia, no início da audiência, sem qualquer “aditamento”, num caso em
que o referido auto omitiria elementos essenciais a qualquer acusação, nos
planos fáctico (estruturantes do elemento subjectivo do crime imputado ao
arguido), da qualificação jurídica (especificação das disposições legais
aplicáveis) e probatório (indicação das provas que fundamentam tal imputação ao
arguido).
É feita, no despacho reclamado, a seguinte leitura da norma constante do artigo
389º, n.º 2, do Código de Processo Penal:
Em processo sumário, pode o Ministério Público substituir a apresentação da
acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à
detenção, salvo se de tal auto não constarem todos os elementos – fácticos, de
qualificação jurídica e probatório – que obrigatoriamente – por força das
disposições gerais – devem constar de qualquer acusação.
Ou seja: não se considerou inviável, de modo genérico, a actuação processual ali
consentida ao Ministério Público, procedendo-se antes a uma leitura conjugada de
tal preceito legal com as disposições que regulam os requisitos da acusação, só
consentindo a “substituição” da acusação pela leitura do auto quando este
satisfaça minimamente tais requisitos gerais.
Procedeu, deste modo, o despacho recorrido a uma leitura conjugada da norma que
integra o objecto do presente recurso (a do artigo 389º, n.º 2, do Código de
Processo Penal) com outras disposições que regem sobre os requisitos da acusação
(artigo 283º, n.º 3, e 311º, n.º 2 e 3, do Código de Processo Penal) para
concluir que a possibilidade de mera leitura do auto de notícia, no início da
audiência, pressupõe a suficiência deste, na óptica das exigências formuladas
por aqueles preceitos legais.
Sendo duvidosa a definição da precisa “linha de fronteira” entre a verdadeira
“recusa de aplicação” normativa, enquadrável na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º
da Lei do Tribunal Constitucional, e a mera interpretação de preceitos legais
“em conformidade com a Constituição” (cf., v.g., os Acórdãos n.ºs 170/85,
425/89, 137/89, 636/94 e 1020/96), afigura-se que – no caso dos autos – o juízo
de inaplicabilidade de certa interpretação que – a ser feito – violaria
determinados princípios constitucionais se não fundou “única ou primacialmente”
(para utilizar a expressão de Rui Medeiros – A Decisão de Inconstitucionalidade,
pg. 331 e segs.) no princípio da interpretação conforme à Lei Fundamental, mais
não desempenhando “o apelo à Constituição (princípio do acusatório e das
garantias de defesa) em sede hermenêutica, uma função de apoio ou de confirmação
de um sentido da norma já sugerido pelos restantes elementos de interpretação”
(cf. ainda o Acórdão n.º 285/02)
Assim, por se afigurar que o Tribunal “a quo”, no despacho recorrido, se limitou
a proceder a uma leitura conjugada de diversos regimes processuais penais,
referentes aos requisitos da acusação, articulando-os com a possibilidade de
mera “leitura” pelo Ministério Público do auto de notícia no início da audiência
em processo sumário, não será a circunstância de se considerar que a
imperatividade de tal aplicação conjugada dos regimes legais decorre dos
princípios constitucionais do acusatório e das garantias de defesa que traduz a
ocorrência de uma verdadeira “recusa de aplicação normativa”, enquadrável no
tipo recursório previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82”.
II. Fundamentação
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre questões idênticas às que vêm
colocadas na reclamação que agora cumpre apreciar: concretamente, no Acórdão n.º
8/2008, de 10 de Janeiro, proferido no Processo n.º 1187/07, este também muito
semelhante – nomeadamente quanto ao teor das peças processuais aí apresentadas e
dos despachos aí proferidos – ao presente processo.
É a seguinte a fundamentação do Acórdão n.º 8/2008:
[…] Face ao teor do requerimento de interposição de recurso, o respectivo
objecto era integrado por alegada decisão de recusa de aplicação da norma do
artigo 389.º, n.º 2, do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade.
Tem este Tribunal entendido que a recusa de aplicação de norma com fundamento
em inconstitucionalidade, para abrir via ao recurso previsto na alínea a) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC, tanto pode consistir numa recusa explícita, como numa
recusa implícita, e que são equiparáveis a recusas determinadas decisões de
aplicação da norma interpretada em conformidade com a Constituição, “sempre que
se esteja perante uma clara rejeição de certa interpretação, mormente da
interpretação literal ou «natural», com fundamento na sua inconstitucionalidade”
(José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª
edição revista e actualizada, Coimbra, 2007, p. 73, nota 93). Necessário é
sempre, porém, que o juízo de inconstitucionalidade (ou de desconformidade
constitucional) constitua uma verdadeira ratio decidendi, e não um mero obiter
dictum, da decisão recorrida.
No presente caso, resulta da leitura da decisão recorrida que o elemento
primordial e determinante do entendimento da inadmissibilidade, no caso, de o
Ministério Público “substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto
de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção”, prevista no n.º 2 do
artigo 389.º do CPP, resultou da leitura conjugada desse preceito com as
disposições dos artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) a d), e 311.º, n.ºs 2, alínea
a), e 3, alíneas b), c) e d), do mesmo Código, que, respectivamente,
determinam que a acusação do Ministério Público, sob pena de nulidade, deve
conter a narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis e a
prova, e que o presidente do tribunal, se o processo tiver sido remetido para
julgamento, sem ter havido instrução, deve rejeitar a acusação se a considerar
manifestamente infundada, sendo tida como tal a acusação que não contenha a
narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas
que a fundamentam, ou se os factos não constituírem crime.
Isto é: foi com base na interpretação do direito ordinário que a decisão
recorrida entendeu só ser admissível a substituição da acusação pela leitura do
auto de notícia quando este auto contenha todos os elementos legalmente
exigíveis para a validade de qualquer acusação.
A posterior referência a que violaria a estrutura acusatória do processo
criminal e poria em causa as garantias de defesa do arguido a realização da
audiência, em processo sumário, tendo por acusação apenas o que consta de um
auto de notícia, que não possibilitava ao arguido o conhecimento da totalidade
dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua qualificação
jurídica e a prova, constituiu um mero argumento de conforto da justeza do
entendimento a que anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por
correcta, ao nível da interpretação do direito ordinário aplicável, da
possibilidade de substituição da acusação pelo Ministério Público pela leitura
do auto de notícia.
Só existiria recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade se o tribunal tivesse interpretado o artigo 389.º, n.º 2,
do CPP no sentido de permitir essa substituição mesmo quando o auto de notícia
não contivesse os elementos exigidos para a validade da acusação, e, depois,
sustentasse que, assim interpretada, tal norma violaria princípios
constitucionais. Mas não foi esse, como se evidenciou, o caminho seguido pela
decisão recorrida.
Não encerrando esta, sequer implicitamente, uma recusa de aplicação de norma com
fundamento em inconstitucionalidade, o presente recurso surge como inadmissível,
sendo de todo irrelevante, para o efeito, a menção a eventual violação de caso
julgado.
Esta fundamentação é plenamente transponível para a decisão da presente
reclamação, pelo que, a ela aderindo e para ela remetendo, cumpre julgar
infundada a reclamação e, consequentemente, inadmissível o recurso de
constitucionalidade que o reclamante pretendeu interpor.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão