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Processo n.º 170/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
I- Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
do despacho (proferido em audiência de julgamento do processo comum, com
intervenção do Tribunal Colectivo que, sob o n.º 81/07.6GCFAR, corre termos pelo
2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro) constante da acta de 26 de
Novembro de 2007, que desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, a
norma do artigo 359.º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto.
2. O despacho recorrido é do seguinte teor:
«O arguido A. está acusado, entre o mais, da prática de factos susceptíveis de
integrar a prática, pelo mesmo, de um crime de furto, previsto e punível pelo
artigo 203º, nº 1 do Código Penal (conjunto de factos identificados na acusação
sob nº 1205/06. 6PBFAR).
Do depoimento da testemunha B. resultam indícios de que o arguido, para furtar o
motociclo, arrancou o canhão da fechadura da garagem comum do prédio
identificado na acusação e descarnou os fios da fechadura eléctrica, tendo após,
acedido ao interior da garagem e de lá retirado e levado consigo o motociclo.
Esta nova factualidade consubstancia a prática de um crime de furto qualificado,
previsto e punível pelo pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº 1,
204º, nº 2, alínea e) e 202º, alínea d) todos do Código Penal.
Este crime é punível com uma penalidade mais gravosa nos seus limites mínimo e
máximo do que a penalidade prevista para o crime de furto de que o arguido está
acusado.
Como tal, a alteração de factos anunciada consiste numa alteração substancial
dos factos.
Assim, comunica-se ao arguido a falada alteração para que o mesmo diga se se
opõe à mesma ou se autoriza a que o Tribunal conheça dos novos factos.
Coloca-se, porém, uma questão prévia.
Dispunha o artigo 359º do Código de Processo Penal na sua redacção originária
que
1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia,
se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de
condenação no processo em curso; mas a comunicação da alteração ao Ministério
Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos.
2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério
Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do
julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do
tribunal.
3 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a
requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com
o consequente adiamento da audiência, se necessário.
O regime legal assim estabelecido visava conseguidamente evitar que o Tribunal,
unilateralmente, pudesse alterar o objecto do processo, passando a conhecer de
factos que não tinham sido levados à acusação ou à pronúncia e que conduziam à
condenação do arguido por crime punível com pena mais gravosa. Perante uma
situação destas, uma de duas: ou os sujeitos processuais da instância criminal
autorizavam a que o Tribunal conhecesse da nova factualidade no mesmo processo –
e este prosseguiria tendo em conta a nova factualidade indiciada; ou os mesmos
sujeitos processuais não manifestavam o acordo no sentido de o Tribunal poder
conhecer da nova factualidade e iniciar-se-ia um novo processo, já que a
comunicação da alteração substancial dos factos equivalia a denúncia pelos
mesmos.
Dispõe o artigo 359º do Código de Processo Penal na redacção que lhe foi dada
pela [Lei n.º] 48/2007
1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia
não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no
processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale
como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem
autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério
Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do
julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do
tribunal.
O novo texto do inciso legal que se acaba de reproduzir introduz uma importante
alteração em relação ao texto originário. No caso de a nova factualidade não ser
autonomizável em relação ao objecto do processo e uma vez que a instância não
pode ser extinta nem dela o Tribunal pode conhecer (salvo acordo do MP, arguido
e assistente), deixa a conduta indiciada e provada de ser punível.
Vejamos, pois, como proceder nestes casos, isto é, nos casos de alteração
substancial de factos não autonomizáveis em que o arguido não dê o seu acordo a
que o Tribunal conheça dos factos no próprio processo.
Assim, se alguém está acusado de factos que consubstanciam um crime de furto
previsto no artigo 203º, nº 1 do Código Penal e se vem a demonstrar, para além
dos factos já imputados ao arguido que ele usou, como meio de conseguir o seu
intuito, uma arma de fogo (o que consubstancia um crime de roubo agravado), não
pode o Tribunal apreciar a sua conduta nem nesse processo nem em processo
autónomo.
O mesmo se pode passar relativamente a crimes de outra natureza, tais como o
crime de ofensa á integridade física e homicídio; entre homicídio privilegiado e
qualificado, etc.
Nestes casos, os direitos, liberdades e garantias fundamentais das pessoas
deixam de ter tutela, não porque assim é opção do legislador (rectius: da lei),
mas sim por meras contingências processuais que não são controláveis e que se
podem ficar a dever a mero lapso.
Ao nível dos direitos liberdades e garantias, tal como o direito à vida, o texto
constitucional vincula o próprio Estado a não produzir normas que os
desprotejam, incluindo no âmbito do Direito Penal.
Cremos que ninguém ousaria, nos dias de hoje, defender que a revogação pura e
simples das normas que tipificam criminalmente os crimes de homicídio é
aceitável do ponto de vista constitucional: a norma revogatória violaria o
disposto no artigo 24º da CRP, o artigo 18º do mesmo diploma e ainda o princípio
do Estado de direito democrático. Com efeito, a par de muita legislação que vise
proteger a vida humana, a punição do homicídio impõe-se por exigência
constitucional já que traduz uma reacção do Estado ao comportamento daquele que
conhecendo a proibição, a viola, lesando direitos fundamentais que estão já
reconhecidos na constituição.
O mesmo se passa, mutatis mutandis, relativamente a outros direitos, liberdades
e garantias fundamentais, tais como a integridade pessoal e outros previstos nos
artigos 25° e seguinte da CRP.
De entre as obrigações do Estado de proibir e reagir criminalmente contra quem
atente contra direitos fundamentais se conta, por força do que se dispõe no
artigo 17º e 18º da CRP ao direito de propriedade privada, previsto no artigo
62º da CRP, o qual contempla o direito de ninguém ser privado do direito de
propriedade sobre as suas coisas. Cumpre, pois, ao Estado legislador o dever de
produzir normas que regulem o direito de propriedade em conformidade com a
constituição e de promover, também pela via legislativa, o dever de impor erga
omnes o respeito pela propriedade alheia sob pena de, pelo menos nos
comportamentos mais gravosos, serem perseguidos criminalmente.
É o que ocorre, claramente, nos comportamentos que a própria lei define como
sendo altamente censuráveis e que revelam um grande carácter anti-jurídico, como
é o caso dos crimes de furto qualificado, previstos e puníveis pelos artigos
203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e) do Código Penal.
O Código Penal cumpre, na perspectiva que se vem referindo, a sua missão.
Todavia, tal missão é fortemente atropelada pelo Código de Processo Penal: uma
circunstância processual incontrolável (lapso do Ministério Público, ignorância
de um determinado meio de prova, falha momentânea de uma testemunha ou OPC) pode
determinar que uma pessoa seja acusada de um crime, quando, na verdade se vem a
apurar que cometeu, naquelas circunstâncias de tempo, lugar e no âmbito do mesmo
fenómeno histórico, um crime mais grave. Neste caso, a conduta do agente nunca
poderá ser perseguida criminalmente, apesar de, no julgamento se ter provado o
crime mais grave e de serem dadas ao arguido todas as garantias de defesa.
A recusa do Estado em punir uma conduta que está obrigado a perseguir
criminalmente através de um mecanismo processual que não tem qualquer
justificação não pode deixar de traduzir uma violação dos supra citados
preceitos constitucionais.
A questão da inconstitucionalidade da norma em causa não se queda por aqui.
Resulta ele ainda da circunstância de a qualificação de um dado comportamento
criminoso ficar dependente de uma decisão unilateral de um órgão do Estado (o
Ministério Público) ou, o que é particularmente grave, do mero acaso. Fazendo-se
do acaso um legislador e julgador, o Código de Processo Penal não observa o que
a CRP impõe ao Estado, já que apenas permite que o direito à vida, à integridade
física, à reserva da vida privada, à propriedade privada sejam tutelados
criminalmente se... assim calhar.
Não é tutela suficiente dos direitos fundamentais.
O absurdo da solução que se pretendeu introduzir com o novo texto legal vai mais
longe: obriga os Tribunais a condenarem o arguido pelos factos de que já estava
acusado. Uma eventual circunstância especial agravante ou um novo facto típico
passam a poder ser considerados na sentença apenas com o valor de circunstância
geral agravante.
Esta solução pode conduzir a soluções chocantes.
Tal como acima se referiu, um furto, punível com pena de prisão até 3 anos ou
multa, pode “transformar-se” num roubo agravado, punível com pena mínima de 3
anos de prisão e máxima até 15 anos de prisão, bastando que na subtracção da
coisa alheia o agente use uma arma.
Em casos como este, como determinar a espécie e medida da pena:
a) um agente primário deverá ser punido com pena de multa, se o crime
efectivamente cometido (e fora os casos de atenuação especial da pena) não
admite multa (como pena principal ou de substituição)?
b) será legítimo, em face do que se disse, pura e simplesmente, aplicar a pena
máxima de prisão prevista para o crime de furto?
c) A resposta positiva à questão anterior não violará o princípio da culpa como
limite da pena?
d) A aferição do grau de lesão do bem jurídico protegida pela norma penal
incriminadora afere-se pelo crime pelo qual o arguido é condenado ou pelo crime
que ele efectivamente cometeu?
e) As exigências de prevenção (especial e geral) são aferidas pelo crime
efectivamente cometido ou pelo crime pelo qual o arguido irá ser condenado?
A resposta a todas estas questões, de acordo com o novo texto do Código de
Processo Penal, só pode ser uma: no exemplo citado, o arguido só pode ser
responsabilizado pelo crime de furto e não por roubo. A culpa, as exigências de
prevenção aferem-se tendo tal por referência. Os tribunais deverão, pois,
aplicar uma pena por crime que o arguido não cometeu ou, dito de outra forma, os
tribunais devem aplicar uma pena injusta.
Esta solução nem traz vantagens para o papel do Estado como primeiro grande
promotor dos direitos, liberdades e garantias fundamentais das pessoas, nem para
a aplicação justa do direito penal.
A solução do artigo 359º do Código de Processo Penal na sua versão originária,
além de conferir aquelas vantagens, garante, na íntegra, os direitos de defesa
do arguido.
Pense-se agora, no outro caso já enunciado, em que o limite máximo da pena
aplicável ao crime de que o arguido está acusado não é igual ou limite mínimo do
crime que o arguido efectivamente cometeu. Pense-se, por exemplo, no caso de um
arguido estar acusado de um crime de homicídio privilegiado (punível com pena de
prisão até 5 anos) e se ter demonstrado que o crime efectivamente cometido é um
crime de homicídio qualificado, a que corresponde uma penalidade cujo limite
mínimo é mais do dobro do limite máximo do crime de que está acusado (12 anos de
prisão) sendo o limite máximo igual ao quíntuplo (25 anos de prisão).
Em casos destes, como responder às questões enunciadas supra nas 5 alíneas? Como
dizer que fica garantida a obrigação do estado em garantir o direito à vida?
Como se pode afirmar que a pena a aplicar é justa? Como defender que a aplicação
do artigo 359º do Código de Processo Penal na redacção de 2007 não é
inconstitucional?
Em face de todo o exposto, julga-se inconstitucional o artigo 359º do Código de
Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela 48/2007 e em consequência, a
comunicação da alteração substancial dos factos feita ao arguido A. é feita ao
abrigo da redacção originária daquele preceito legal.»
3. O arguido opôs-se à continuação do julgamento pelos novos factos.
4. Admitido o recurso e notificadas as partes para alegações, apenas o
Ministério Público alegou tendo concluído do seguinte modo:
«1. Não é inconstitucional a norma do artigo 359º do Código de Processo Penal,
na redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que estabelece
que a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público
apenas vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes
forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
2.Termos em que deverá proceder o presente recurso.»
II- Fundamentos
5. Convém, para imediata percepção do problema de processo penal que
o despacho recorrido resolveu e, concomitantemente, melhor delimitação do
objecto do recurso, pôr em evidência a evolução legislativa que imediatamente
lhe está na génese.
Dispunha o artigo 359.º do Código de Processo Penal, na redacção
anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto:
“Artigo 359.º
(Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia,
se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de
condenação no processo em curso; mas a comunicação da alteração ao Ministério
Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos.
2. Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério
Público, o arguido e o assistente estiveram de acordo com a continuação do
julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do
tribunal.
3. Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a
requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com
o consequente adiamento da audiência, se necessário.”
Na redacção emergente da Lei n.º 48/2007, o mesmo preceito passou a
dispor:
“Artigo 359.º
(Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia
não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no
processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2. A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale
como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem
autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
3. Ressalvam-se do disposto no n.º 1 os casos em que o Ministério Público, o
arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos
novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
4. Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a
requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com
o consequente adiamento da audiência, se necessário.”
Apesar de a decisão recorrida não enunciar expressamente a dimensão
em que desaplicou o novo regime de modificação do objecto do processo penal em
fase de julgamento, parece evidente, face ao teor da decisão, que apenas está em
causa a norma extraída dos n.ºs 1 e 2 do artigo 359.º, enquanto prevê que, no
caso de se verificar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação
ou na pronúncia, por virtude de factos novos que não sejam autonomizáveis em
relação ao objecto do processo, e que não possa ser tida em conta pelo tribunal
para efeito de condenação no processo em curso, por não haver o acordo a que se
reporta o n.º 3 do preceito, não pode o tribunal comunicar a alteração ao
Ministério Público para que proceda pela totalidade dos factos e extinguir a
instância em curso. Ou seja, o que verdadeiramente se questiona é a imposição de
proferir decisão de mérito (de absolvição ou de condenação), vinculada aos
factos descritos na acusação ou na pronúncia, com definitiva desconsideração do
efeito agravativo da responsabilidade criminal que resultaria dos novos factos
provados (recte indiciados) em fase de julgamento, quando estes não sejam
autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
6. O Tribunal Constitucional ainda não apreciou esta concreta
questão, que emerge da mais recente alteração do Código de Processo Penal. Mas
já decidiu, no acórdão n.º 237/2007, publicado no Diário da República, II Série,
de 24 de Maio de 2007, no sentido da não inconstitucionalidade da norma do
artigo 359.º, na redacção anterior, enquanto interpretada no sentido de
permitir, nas situações em que os novos factos não eram autonomizáveis em
relação ao objecto do processo, a absolvição da instância e a comunicação ao
Ministério Público para que este procedesse pela totalidade dos factos.
Apesar de a questão que no presente recurso se coloca ser, de algum modo, de
sentido inverso da então apreciada – o despacho recorrido repudiou a solução
(ter que ser proferida sentença de mérito relativamente ao objecto do processo
definido pela acusação, com a consequente desconsideração do significado
agravativo específico dos factos novos não autonomizáveis) que o recorrente no
processo em que foi proferido o referido acórdão defendia como a única que seria
compatível com a Constituição –, é útil recordar passagens essenciais desse
acórdão, que contém um resumo detalhado da jurisprudência constitucional mais
relevante a propósito do regime da alteração do objecto do processo penal, em
fase de julgamento, no Código de Processo Penal de 1987.
Assim, disse-se no referido acórdão n.º 237/2007:
“2.1. A possibilidade de, em audiência de julgamento, se atender a factos não
referidos na acusação pareceria, à primeira vista, pouco compatível com a
estrutura acusatória do processo criminal. Como se referiu no Acórdão n.º 130/98
(com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt, tal como todos
os outros adiante citados):
“Os factos descritos na acusação normativamente entendidos, isto é, em
articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também
obrigatoriamente indicadas na peça acusatória, definem e fixam o objecto do
processo, que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal.
Segundo Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, p.
145) é a este efeito que se chama vinculação temática do tribunal e é nele que
se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e
da consunção do objecto do processo penal, ou seja, os princípios segundo os
quais o objecto do processo deve manter‑se o mesmo, da acusação ao trânsito em
julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e
indivisivelmente); e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar‑se
irrepetivelmente decidido.
Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a
plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a
acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no
processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do
objecto do processo, uma vez definido este pela acusação.”
Porém, este princípio não deve ser rigidamente entendido. Como o citado
Acórdão n.º 130/98 logo acrescentava:
“O processo penal admite, porém, que, sendo a descrição dos factos da acusação
uma narração sintética, nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas
ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a
discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos.
A este respeito os artigos 358.º e 359.º do CPP, que regulam esta matéria,
distinguem entre «alteração substancial» e «alteração não substancial ou
simples» dos factos descritos na acusação ou pronúncia, fazendo, assim, apelo à
definição constante do artigo 1.º, n.º 1, alínea f), do CPP. Neste preceito se
estabelece que, para efeitos do disposto no presente Código, «(...) considera‑se
alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao
arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções
aplicáveis».
O artigo 359.º rege para esta alteração substancial, determinando que uma tal
alteração da factualidade descrita na acusação não pode ser tomada em conta pelo
tribunal, para efeito de condenação no processo em curso (n.º 1), salvo se,
havendo acordo entre o Ministério Público, o arguido e o assistente na
continuação do julgamento e o conhecimento dos factos novos não acarretar a
incompetência do tribunal (n.º 2), concedendo‑se então ao arguido, sob
requerimento, um prazo para preparação da defesa (n.º 3).
Ao invés, se a alteração dos factos for simples ou não substancial, isto é, tal
que não determine uma alteração do objecto do processo, então o tribunal pode
investigar e integrar no processo factos que não constem da acusação e que
tenham relevo para a decisão do processo. A lei exige apenas, como condição de
admissibilidade, que ao arguido seja comunicada, oficiosamente ou a
requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo
estritamente necessário para a preparação da defesa (artigo 358.º, n.º 1, parte
final).
Assim, é uma exigência do princípio da plenitude das garantias de defesa do
arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos factos constantes
da acusação; porém, se, durante a audiência, surgirem factos relevantes para a
decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação
dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de
defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados ex novo e,
se se vierem a provar, integrá‑los no processo, sem violação do preceituado no
artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição.”
Consequentemente, o citado Acórdão entendeu que não violava os direitos de
defesa nem o princípio do contraditório a norma do artigo 358.º do CPP, na parte
em que directamente confere ao juiz poderes para oficiosamente seleccionar novos
factos surgidos na audiência de julgamento, que não implicavam uma alteração
substancial da acusação, desde que, como no caso ocorrera, tenha sido dada aos
arguidos a oportunidade processual de organizarem a sua defesa quanto a esses
factos então especificados.
O juízo de não inconstitucionalidade da referida norma foi reiterado no Acórdão
n.º 442/99, que, após reproduzir a fundamentação do Acórdão n.º 130/98, encarou
a questão – suscitada nos autos em que foi proferido – da violação do princípio
da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da CRP,
julgando‑a, porém, improcedente, já que este princípio, apesar de não ser fácil
determinar o seu exacto sentido constitucional (Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p.
203), “não tem, como pretende o recorrente, o alcance de impedir que se
considerem na decisão factos revelados em audiência que, não configurando uma
alteração substancial dos descritos na acusação, sejam relevantes para a boa
decisão da causa”, acrescentando que “a consideração de tais factos não só não
viola o princípio de presunção da inocência como é, pelo contrário, exigida pelo
princípio da verdade material”, reconhecendo razão ao Ministério Público quando
refere que o princípio da presunção da inocência “não é obviamente susceptível
de «apagar» a realidade dos factos, demonstrada efectivamente em audiência,
processada com todas as garantias de defesa do arguido”, bem como quando alega
que “a circunstância de o tribunal se aperceber de tais factos no decurso da
audiência e exercer o poder‑dever de os valorar em nada contende com o princípio
da independência e imparcialidade do julgador”.
A problemática dos limites da alteração do objecto do processo penal foi de novo
apreciada no Acórdão n.º 463/2004, agora pondo em contraste as diferenças de
regime dos artigos 358.º e 359.º do CPP, preceitos que “não pretendem mais do
que expressar os limites da alteração temática do processo penal
constitucionalmente admissíveis à face destes princípios do asseguramento de
todas as garantias de defesa, da estrutura acusatória do processo e do
contraditório, distinguindo as situações de alteração não substancial dos factos
descritos na acusação ou na pronúncia da alteração substancial, e, ainda,
enunciar os instrumentos jurídicos cuja realização pretende fazer corresponder
ao nível de concretização da normatividade constitucional decorrente de tais
princípios, em cada uma dessas diferentes situações”. Este Acórdão julgou
inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, a norma
constante do artigo 359.º do CPP, “quando interpretada no sentido de, em
situação em que o tribunal de julgamento comunica ao arguido estar‑se perante
uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, quando a
situação é de alteração substancial da acusação, pode o silêncio do arguido ser
havido como acordo com a continuação do julgamento”. Para tanto, após
salientar serem muito diferentes a extensão e intensidade com que os referidos
princípios constitucionais sairiam afectados nas duas situações de alteração
temática do processo configuradas nos artigos 358.º e 359.º do CPP, bem como
diferentes teriam que ser, e são, as exigências da sua admissibilidade,
prossegue:
“Tratando‑se de alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou
na pronúncia, que tenha relevo para a decisão da causa, nela se incluindo a mera
alteração jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, permite o
artigo 358.º do CPP que essa alteração temática do processo possa ser tida em
conta pelo tribunal do julgamento no apuramento e na definição da
responsabilidade criminal do arguido. No entanto, por mor do respeito devido aos
referidos princípios, o preceito impõe que se comunique ao arguido essa
alteração e que se lhe conceda o tempo estritamente necessário para a
preparação da defesa. A comunicação da alteração temática havida e a concessão
do tempo necessário para a preparação da defesa, dispensada por razões
evidentes de desnecessidade quando a alteração derive de posição tomada pela
própria defesa, apresentam‑se como modos que procuram dar cabal satisfação às
exigências postuladas pelos princípios examinados.
Já no caso de se tratar de alteração substancial dos factos descritos na
acusação ou na pronúncia, o n.º 1 do artigo 359.º do CPP impede que ela possa
ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em
curso. É um simples postulado dos princípios da estrutura acusatória do
processo penal e da sua consequente vinculação temática, do contraditório e do
asseguramento das garantias de defesa. Contra o respeito por um tal resultado
não valem apenas por si, em tal hipótese, os argumentos do interesse público de
celeridade na reparação do mal do crime e do aproveitamento da actividade
desenvolvida pelos sujeitos processuais e pelo tribunal que são invocados, na
outra situação, para justificar a continuação do julgamento no caso de alteração
não substancial dos factos. A situação ofende em tão elevado grau e intensidade
aqueles princípios que o legislador, movendo‑se dentro dos critérios dos n.ºs 2
e 3 do artigo 18.º da Constituição, não poderia optar por outra solução. Mas
existe uma excepção, prevista no n.º 2 daquele artigo 359.º do CPP – a dos
«casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo
com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a
incompetência do tribunal», sendo que nestes casos «o presidente concede ao
arguido, a requerimento deste, prazo para a preparação da defesa não superior a
dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário». Note‑se, no
entanto, que, sendo exigido o acordo de todos os titulares dos interesses
contrapostos que se digladiam em processo penal para que o julgamento possa
prosseguir com o novo thema, a situação continua a ser de inteiro respeito pelos
direitos e garantias constitucionais de cada um.
Vale isto por dizer que os preceitos dos artigos 358.º e 359.º do CPP surgem
como disposições referentes ao estatuto substantivo do arguido em processo
penal, na fase de julgamento, demandando o enquadramento da situação em um ou em
outro desses preceitos por parte do tribunal a satisfação de diferentes
exigências cuja configuração está informada directamente pela axiologia
transportada pelos referidos princípios e o exercício de diferentes direitos de
defesa.
Sendo assim, a comunicação ao arguido de que a alteração temática do processo
tem a natureza de alteração não substancial quando, em boa verdade, ela tem a
natureza de substancial corresponde a dar‑lhe conhecimento de um estatuto
substantivo diferente relativo à sua posição processual de arguido em uma tal
situação, estatuto esse que comporta, mesmo à face do direito
infra‑constitucional, uma diminuição dos seus direitos de defesa e,
consequentemente, não pode deixar de considerar‑se como violando o n.º 1 do
artigo 32.º da CRP. Na verdade, o estatuto comunicado não exige que o julgamento
apenas possa continuar se ele der o seu acordo a essa continuação e o mesmo
fizerem o Ministério Público e o assistente. Por outro lado, são também
diferentes as condições de que o arguido goza para poder preparar a sua defesa:
enquanto no caso do artigo 358.º do CPP, ele apenas dispõe do tempo que o juiz
considerar estritamente necessário, no caso do artigo 359.º do CPP, ele poderá
reclamar um prazo até 10 dias.”
7. Da redacção anterior do artigo 359.º do Código de Processo Penal
resultava, com suficiente clareza, o procedimento a adoptar quando se
verificasse consenso no sentido da continuação do julgamento pelos novos factos
revelados em audiência, ou seja, acordo para a reformulação ou redefinição do
objecto do processo. Mas já o mesmo não ocorria quando se verificasse falta de
acordo, designadamente por oposição do arguido. A falta de explícita previsão
legislativa quanto ao procedimento a adoptar nesta última hipótese, sobretudo
quando os factos que impliquem a modificação não sejam, por si, susceptíveis de
qualificação criminal autónoma ou formem com os constantes da acusação (ou da
pronúncia) uma unidade de sentido que não permita a sua autonomização, deu lugar
a diferenciadas soluções doutrinais e jurisprudenciais (cf. frederico isaasca,
Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português,
págs. 194-210; teresa pizarro beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal,
III Vol., AAFDL, 1995, págs. 102 -106; marques ferreira, Da Alteração
Substancial dos Factos Objecto do Processo Penal, in Revista Portuguesa de
Ciência Criminal, Ano I, n.º 2, pág. 234-237; António Quirino Duarte Soares,
“Convolações”, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de
Justiça, ano II, 1994, tomo III, pp. 13‑28, em especial p. 26).
Retomando as indicações do acórdão n.º 237/2007, como exemplo dessas posições
contrastantes (e sem considerar a possibilidade de o Ministério Público
reformular ou complementar o acto acusatório que, de jure condendo e com alguma
semelhança com o direito italiano, também era sugerida, designadamente por
MARQUES FERREIRA, “Da Alteração dos Factos Objecto do Processo Penal”, Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, Ano I, n.º 2, pag. 239) podem referir-se:
– o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 28 de Novembro
de 1990, proc. n.º 40 909 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 401, p. 443, e
Colectânea de Jurisprudência, ano XV, 1990, tomo V, p. 12), que decidiu que,
encerrada a discussão da causa, tem que ser proferida sentença (nomeadamente,
absolutória ou condenatória) relativamente ao objecto da acusação, mesmo que
anteriormente o tribunal tenha verificado situação de alteração substancial dos
factos descritos na acusação e a haja comunicado ao arguido, desde que este se
tenha oposto à continuação do julgamento pelos factos novos;
– o acórdão do STJ, de 28 de Janeiro de 1993, proc. n.º 43 395
(Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I,
1993, tomo I, p. 178), que decidiu que, comunicada ao arguido alteração
substancial dos factos e opondo‑se este à continuação do julgamento pelos
factos novos, o tribunal deve proceder à comunicação desses factos ao Ministério
Público para abertura de inquérito quanto a todos os factos (e não somente
quanto aos factos novos), e não havendo lugar a prolação de sentença quanto ao
facto por que o arguido estava acusado, devendo ser declarada a suspensão (e não
a extinção) da instância;
– o acórdão do STJ, de 17 de Dezembro de 1997, proc. n.º 1347/97
(Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano V,
1997, tomo III, p. 257), que decidiu que, no caso de oposição, pelo arguido, ao
prosseguimento pelo julgamento depois de indiciada alteração substancial dos
factos da acusação, nos termos do n.º 1 do artigo 359.º do CPP, deve o tribunal
determinar a extracção de certidão de todo o processado para remessa ao
Ministério Público e ordenar o arquivamento do processo em curso, por se tratar
de “situação inequivocamente configuradora de excepção dilatória inominada”,
sendo “óbvio que a posição, legitimamente assumida pelo arguido, de não aceitar
a continuação do julgamento pelos novos factos, impossibilitaria – como
impossibilita – o julgamento imediato não só no que concerne aos factos novos
como também quanto aos da actual acusação, por estes serem elementos essenciais
comuns a ambos os tipos de crimes, que se apresentam deste modo numa relação de
interferência”; mais acrescentando o mesmo acórdão que esta solução não
beliscava os direitos do arguido constitucionalmente garantidos, pois ela “não
corresponde a recusa de decisão, mas tão‑só a protelamento da decisão final
(sobre a factualidade que vier a ser definitivamente apurada e que poderá
eventualmente coincidir com os factos da actual acusação); e este protelamento
tem em vista, como é de todo evidente, tão‑só a real eficácia das garantias de
defesa do arguido, possibilitando‑lhe exercer cabalmente os seus direitos de
defesa”.
Foi esta última solução, de extinção da instância no processo em
curso sem pronúncia de mérito sobre os factos pelos quais o arguido vinha
acusado e extracção de certidão para que o Ministério Público possa proceder
pela totalidade dos factos (os constantes da acusação e os factos novos não
autonomizáveis), que o acórdão n.º 237/2007 julgou não violar o princípio ne bis
in idem, nem o princípio do acusatório ou o direito a um processo equitativo.
Entendeu-se que a sujeição a 'novo julgamento', recaindo quer sobre os 'factos
novos' quer sobre os já constantes da acusação, não violaria o princípio ne bis
in idem desde logo por não ter chegado a ser proferida decisão sobre o mérito
(absolutória ou condenatória) e muito menos definitiva, estando necessariamente
aberta a possibilidade de os mesmos factos acabarem por ser julgados não
provados. E entendeu-se que, não questionando o então recorrente a
constitucionalidade da possibilidade de o tribunal estender o seu poder de
cognição a factos que resultem da prova produzida em audiência, mesmo que não
constantes da acusação ou da defesa, a solução que consiste em determinar a
abertura de inquérito pelos factos novos a cargo do Ministério Público que, a
final, deduzirá, ou não, acusação, respeitava integralmente o princípio do
acusatório, com diferenciação das entidades acusadora e julgadora.
Foi esta a solução que, repristinando o regime anterior na sequência
da desaplicação do actual, o despacho recorrido perfilhou.
8. A Lei n.º 48/2007 pretendeu resolver expressamente este “problema
prático crucial” do destino do processo quando em audiência se indiciam factos
novos que alterem substancialmente a acusação, mas que não sejam autonomizáveis
em relação aos da acusação ou da pronúncia. Rejeitou – pelo menos é essa a
interpretação que o despacho recorrido confere aos n.ºs 1 e 2 do artigo 359.º –
a solução da absolvição da instância ou outra de efeito similar que não consista
no conhecimento de mérito com base na vinculação temática aos factos da acusação
ou da pronúncia (Cf., tb. neste sentido, Paulo Pinto de albuquerque, Comentário
do Código de Processo Penal, pag. 897 e segs).
Como já acontecia no regime anterior, na falta de acordo dos
sujeitos processuais, o juiz não pode ter em conta factos que impliquem
alteração substancial dos factos descritos na acusação e na pronúncia. Mas agora
passou a ser-lhe também vedada qualquer solução de “extinção da instância”.
Assim, não podendo os factos novos dar origem a novo processo se não forem
susceptíveis de relevância criminal autónoma (cfr. n.º 2 do artigo 359.º), tem
de aceitar-se que o legislador optou por admitir a impunidade (pelo menos a não
consideração da sua qualificação criminal típica ou relevância qualificativa
específica; faz-se esta ressalva porque o despacho recorrido admitiu que esses
factos possam ser valorados na sentença “com o valor de circunstância geral
agravante”, aspecto que não cumpre aqui apreciar) de factos que podem ter por
efeito, segundo a noção legal de “alteração substancial dos factos”, a imputação
ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das penas
aplicáveis (cfr. alínea f) do artigo 1.º do CPP).
As razões desta opção do legislador pelo prosseguimento do julgamento, com a
vinculação temática resultante da acusação (ou da pronúncia) e consequente
sacrifício parcial do conhecimento da verdade material, são expostas na
exposição de motivos da proposta de Lei n.º 109/X, elaborada pela Unidade de
Missão, ao consignar que: «[n]o âmbito da alteração substancial de factos,
introduz-se a distinção entre factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis,
estipulando-se que só os primeiros originam a abertura de novo processo (artigo
359º). Trata-se de uma decorrência dos princípios non bis in idem e do
acusatório, que impõem, no caso de factos novos não autonomizáveis, a
continuação do processo sem alteração do respectivo objecto …».
Posto isto, vejamos a questão de constitucionalidade colocada.
9. O despacho recorrido não tratou de identificar o parâmetro
constitucional com que confrontou o novo regime jurídico a que recusou
aplicação, isto é, a fundamentação da recusa não contém uma precisa referência
às disposições da Constituição ou aos princípios nela consignados que se
consideraram violados. No despacho mobiliza-se um discurso globalizante que,
quanto aos bens jurídicos supostamente desprotegidos pelo novo regime legal (v.
gr. o direito à vida, à integridade física, à reserva da vida privada), excede
manifestamente o âmbito de aplicação da norma à situação processual concreta, em
que somente entra em crise a qualificação de um crime contra o património.
Com efeito, o arguido A. estava acusado, entre o mais, da prática de
factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de furto, previsto e
punível pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal (conjunto de factos
identificados na acusação sob nº 1205/06. 6PBFAR). Em audiência, de acordo com o
despacho recorrido, terão surgido indícios de que, para furtar o motociclo, o
arguido arrancou o canhão da fechadura da garagem e descarnou os fios da
fechadura eléctrica, tendo acedido ao interior da garagem e da lá retirado e
levado consigo o motociclo. Esta nova factualidade conduziria a que a conduta do
arguido consubstanciasse, segundo o mesmo despacho, a prática de um crime de
furto qualificado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos
203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, alínea e) e 202.º, alínea d) todos do Código Penal,
crime punível com uma penalidade mais gravosa, nos seus limites mínimo e máximo
do que a pena prevista para o crime de furto de que o arguido estava acusado.
Consequentemente – sempre de acordo com a apreciação dos factos e do
direito ordinário constante do despacho recorrido, matéria em que não cabe a
este Tribunal interferir – o que estava em causa era uma acusação por crime de
furto simples (punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa) que,
por virtude da alteração substancial dos factos ocorrida em audiência de
julgamento, poderia ser reconduzida a uma situação de furto qualificado (punível
com pena de prisão de 2 a 8 anos).
É esta realidade ou dimensão aplicativa concreta - e apenas ela -
que se terá em consideração na ponderação subsequente.
10. Como as referências contidas na transcrição do acórdão n.º
237/2007 deixam entrever, o problema da alteração, em fase de julgamento, dos
factos descritos na acusação ou na pronúncia é um ponto de convergência e tensão
entre os princípios do acusatório e do contraditório, por um lado, e os
princípios da legalidade da acção penal, da verdade material e da celeridade
processual, por outro. Mediante o novo regime, o legislador optou por conferir
mais intensa realização ao princípio do acusatório, com possível sacrifício da
verdade material e da legalidade. Factos que, se incluídos no objecto do
processo, teriam como consequência a agravação da responsabilidade do arguido,
mas que não constam da acusação ou da pronúncia, ficam definitivamente excluídos
de perseguição penal, pelo menos quanto à sua relevância criminal específica de
agravação abstracta dos limites da pena.
Não pode, todavia, dizer-se que isso conduza à desprotecção penal
dos correspondentes bens jurídicos. Por definição, não se trata de factos
susceptíveis, por si só, de fundamentar um incriminação autónoma em face do
objecto do processo. Pelo contrário, estes factos que ficarão definitivamente
impunes formam com os constantes da acusação (ou da pronúncia, quando a houver)
uma tal unidade de sentido que não permitiria a sua autonomização. Dito de outro
modo, o que fica fora do âmbito de consideração na sentença e, por essa via,
escapa definitivamente à sanção penal, são circunstâncias modificativas
especiais que nunca teriam relevância suficiente para sustentar um processo à
parte. O que só pode significar que o bem jurídico nuclear susceptível de
justificar a incriminação encontra ainda o mínimo de protecção penal, sendo
apenas escamoteados alguns concretos factores de intensificação dessa protecção.
Ora, no Estado de direito democrático, a busca da verdade material e
a realização do programa punitivo constante das normas incriminadoras só pode
ter lugar com respeito pelas regras e princípios do processo penal. Mesmo que se
entenda, como no acórdão n.º 237/2007 se entendeu, que ainda seria compatível
com as exigências constitucionais decorrentes do princípio do acusatório e da
proibição do princípio ne bis in idem uma solução normativa que, perante o
impasse decorrente da oposição do arguido à extensão do objecto do processo aos
factos novos não autonomizáveis, permitisse a extinção da instância e o retomar
do processo, de modo a possibilitar a submissão do arguido a julgamento pela
totalidade da conduta penalmente relevante, sempre caberá na discricionariedade
legislativa a opção pela solução mais exigente para a acusação ou mais
protectora da segurança ou da paz jurídica do arguido, que é também aquela que
realiza de modo mais intenso os princípios inscritos no n.º 5 do artigo 29.º e
no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição.
Efectivamente, o problema central do objecto do processo penal é o
da procura do equilíbrio entre o interesse público da aplicação do direito
criminal, mediante a eficaz perseguição dos delitos cometidos, e o direito
impostergável do arguido a um processo penal que assegure todas as garantias de
defesa. Assim, “a identidade do objecto do processo não poderá definir-se tão
rígida e estreitamente que impeça um esclarecimento suficientemente amplo e
adequado da infracção imputada e da correlativa responsabilidade, mas não deverá
também ter limites tão largos ou tão indeterminados que anule a garantia
implicada pelo princípio acusatório e que a definição do objecto do processo se
propõe justamente realizar” (castanheira neves, Sumários Criminais, apud M.
simas santos e m. leal henriques, Código de Processo Penal, II vol., pag. 413).
Ora, ao privilegiar as máximas da identidade (o objecto do processo deve
manter-se idêntico da acusação à sentença definitiva) e da consunção (a decisão
sobre o objecto do processo deve considerar-se como tendo definido
jurídico-criminalmente a situação em tudo o que podia e devia ser conhecido) e a
celeridade, sobrelevando a segurança e a paz jurídica do arguido relativamente à
busca da verdade material, o legislador ordinário não rompeu de modo manifesto
esse equilíbrio, movendo-se no espaço de discricionariedade legislativa
constitucionalmente consentido.
Aliás, importa notar que só poderia colocar-se de modo sustentável a
hipótese de a norma em causa ser censurada por violação das normas
constitucionais invocadas no despacho recorrido, designadamente dos artigos
17.º, 18.º e 62.º da Constituição, se da Constituição decorresse, não só uma
imposição de criminalização que tutele penalmente o direito de propriedade, mas
também uma imposição de assegurar a punição agravada em função das
circunstâncias qualificativas do ilícito correspondente. Violação ainda assim
indirecta, pois que a desprotecção não resultaria do direito substantivo mas do
regime processual relativo a anomalias ou vicissitudes que conduzam à não
realização integral do programa punitivo por aquele definido.
Ora, mesmo para quem entenda que, do princípio do Estado de direito
ou, mais imediatamente, do dever de protecção dos direitos e liberdades
fundamentais como tarefa fundamental do Estado [alínea b) do artigo 9.º da
Constituição], pode decorrer a imposição de criminalização daquelas condutas que
atentem contra os valores essenciais à ordem comunitária constitucionalmente
estabelecida, sempre haverá uma ampla margem de liberdade na concretização dessa
tutela penal pelo legislador e na conformação dos instrumentos processuais para
lhe assegurar efectividade. O âmbito da legitimidade criminalizadora e o de
imposição de criminalização, embora sendo questões relacionadas e tendo que
decorrer dos mesmos princípios constitucionais, não se sobrepõem. Os deveres de
protecção são sempre mediatizados pela lei, tendo o legislador uma larga margem
de liberdade de avaliação, de modo que só casos de 'más avaliações patentes'
podem ser alvo de censura pelos tribunais (Maria conceição ferreira da cunha,
«Constituição e Crime» - Uma Perspectiva da Criminalização e da
Descriminalização, pág. 299). E, como salienta o Ministério Público, no contexto
da decisão recorrida não poderá dizer-se que a norma recusada implicaria
ausência total de tutela penal do direito de propriedade uma vez que sempre
subsistiria a possibilidade de condenação pela prática do furto simples, forma
menos grave mas mesmo assim protectora do aludido direito.
Por outro lado, também não pode afirmar-se que, com a solução
normativa em causa, a “qualificação de um dado comportamento criminoso fica
dependente de uma decisão unilateral de um órgão do Estado (o Ministério
Público) ou, o que é particularmente grave, do mero acaso”. Pelo menos, essa
será uma contingência inerente ao sistema processual penal que não se vê que
normas ou princípios constitucionais viole.
A circunstância de os factos novos não autonomizáveis surgirem para
o processo apenas na fase de julgamento tanto poderá resultar de opção ou de
incúria do titular da acção penal ou dos órgãos de polícia criminal, como de
vicissitudes da investigação que estes não tenham podido dominar (confissão do
arguido, novas declarações de testemunhas ou do ofendido, meios de prova até
então desconhecidos, etc.). O inexorável sacrifício parcial do conhecimento da
verdade material que daí decorre é consequência comportável – embora não
necessária ou inevitável – da 'orientação para a defesa' do processo penal e da
posição diferenciada dos sujeitos processuais, designadamente a que decorre da
estrutura acusatória do processo. Que o consequente deficit de realização do
direito penal substantivo seja o resultado de opções ou contingências da
actuação do Ministério Público (e dos órgãos de polícia criminal na fase em que
o Ministério Público dirige o processo) é inerente ao modelo de processo penal e
de separação funcional das magistraturas que decorre da Constituição. É certo
que em audiência se revelarão factos, relevantes sob a perspectiva da
prossecução das finalidades do processo penal da verdade material e da defesa
dos interesses colectivos, cuja desconsideração definitiva poderá comportar
desvio objectivo ao princípio da legalidade da promoção da acção penal. Mas só
um repudiado modelo inquisitório, que deixasse até ao último momento em aberto o
objecto do processo, seria eficaz para evitar totalmente esse risco. No processo
de estrutura acusatória, as funções de acusador e de julgador haverão de ser
exercidas por órgãos diferenciados e autónomos, e o julgador, nos quadros da
dialéctica processual decorrente do próprio princípio do acusatório, sempre
haverá de estar confinado ao solucionamento da questão penal tal como ela lhe é
proposta pelo Ministério Público ou pela parte acusadora privada. A opção do
legislador que está em análise, ainda que não fosse a única compatível com a
Constituição (recorde-se o acórdão n.º 237/2007), coaduna-se com a qualidade do
Ministério Público como titular da acção penal, ao qual compete deduzir a
pretensão punitiva do Estado e assumir a correspondente responsabilidade
funcional pelos termos desse exercício (artigo 219.º, n.º1, da Constituição).
Improcedem, pois, tendo em conta o objecto do recurso tal como foi
delimitado, os fundamentos com base nos quais o despacho recorrido recusou a
aplicação da norma em causa, pelo que se conclui pela não inconstitucionalidade
da norma do artigo 359.º do Código e Processo Penal, na redacção resultante da
Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, interpretada no sentido de que, perante uma
alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia,
resultante de factos novos que não sejam autonomizáveis em relação ao objecto do
processo – opondo-se o arguido à continuação do julgamento pelos novos factos –,
o tribunal não pode proferir decisão de extinção da instância em curso e
determinar a comunicação ao Ministério Público para que este proceda pela
totalidade dos factos.
III- Decisão
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo a
decisão recorrida ser reformada de acordo com o juízo de não
inconstitucionalidade agora formulado.
Sem custas.
Lisboa, 21 de Abril de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral (com declaração)
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei a decisão, embora com dúvidas só supríveis por um melhor estudo que a
pressão do tempo me impediu de realizar.
Tenho, antes do mais, dúvidas quanto a metodologia seguida na delimitação do
objecto do recurso.
Diz‑se, a este propósito, que o despacho recorrido não tratou de identificar o
parâmetro constitucional com que confrontou o novo regime jurídico (…)
[mobilizando antes] um discurso globalizante (…) quanto aos bens jurídicos
supostamente desprotegidos pelo novo regime legal” pelo que excedeu – quanto à
invocação do mesmo parâmetro – “manifestamente o âmbito de aplicação da norma à
situação processual concreta, em que somente entra em crise a qualificação de um
crime contra o património”.
Esta delimitação do objecto do recurso é determinante para a obtenção do juízo
visto que ele surge fundado, como também se diz, apenas “na realidade ou
dimensão aplicativa concreta” do parâmetro a aplicar.
Duvido, porém, que ainda aqui se esteja perante uma delimitação do objecto do
recurso. Que tal delimitação deva operar sobre o objecto do juízo é
evidentemente inquestionável; mas o que me parece de questionar é que se entenda
que ela pode (também e ainda) abranger o parâmetro do juízo, de modo a que o
Tribunal possa reduzir tal parâmetro à sua “realidade ou dimensão aplicativa
concreta”.
A Constituição é só uma e é sempre a mesma, tanto em fiscalização concreta
quanto em fiscalização abstracta; e o Tribunal existe para a interpretar, ou
seja, para administrar a justiça em matérias jurídico‑constitucionais. Como
compatibilizar a unidade da Constituição (e a integridade do seu sistema de
normas) com uma metodologia de delimitação do objecto do recurso que inclui
também a redução do parâmetro de juízo à “sua dimensão aplicativa concreta”?
2. Depois, tenho dúvidas quanto ao juízo de não inconstitucionalidade que foi
proferido.
É certo que a pergunta que a decisão recorrida colocava ao Tribunal – por vaga e
imprecisa que fosse a sua formulação – dizia respeito ao deficit de protecção de
direitos e liberdades pessoais. Pretendia‑se saber, afinal, se a norma
processual em juízo assegurava suficientemente a protecção necessária de bens
jurídicos constitucionalmente tutelados.
Creio, porém, que além deste problema (cuja complexidade é reduzida pela
delimitação do objecto do recurso) se colocava ainda um outro, com ele conexo.
A doutrina aborda este segundo problema quando fala de um “mandado
[constitucional] de esgotante apreciação de toda a matéria tipicamente ilícita
submetida à cognição do Tribunal num certo processo penal”, mandado esse
decorrente do princípio ne bis in idem, que torna afinal decisiva a determinação
do que seja “o mesmo crime” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte
Geral, Tomo I, 2ª ed., p. 978).
Tenho pois dúvidas quanto à questão – central – de saber se, no caso, se cumpriu
este mandado constitucional.
Maria Lúcia Amaral