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Processo n.º 784/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O representante do Ministério Público no Tribunal Central Administrativo Norte
(TCAN) interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a)
do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra
o acórdão do referido Tribunal, de 21 de Junho de 2007, “em que foi recusada a
aplicação do preceituado no artigo 5.º, n.º 1, da Portaria n.º 52/91, de 18 de
Janeiro, por julgada materialmente inconstitucional, por violação do princípio
constitucional da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da
República Portuguesa, quando interpretada no sentido de restringir os meios de
prova apresentados ao abrigo do artigo 5.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 335/90,
exclusivamente aos de natureza documental”.
O acórdão recorrido concedeu provimento ao recurso jurisdicional interposto por
A. contra a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, de 6 de
Dezembro de 2006 (que negara provimento ao recurso contencioso em que pedia a
anulação do despacho de 14 de Maio de 2001 do Chefe de Repartição do Centro
Regional de Segurança Social do Norte – Serviço Sub‑Regional de Braga, que lhe
indeferiu requerimento com vista ao reconhecimento do período contributivo
efectuado na ex‑colónia de Angola), revogou a sentença recorrida, concedeu
provimento ao recurso contencioso e anulou o acto impugnado.
O acórdão ora recorrido assentou na seguinte fundamentação jurídica:
“II. O recorrente contencioso pediu ao tribunal a anulação do acto que lhe
indeferiu a pretensão de reconhecimento do período contributivo efectuado na
ex‑colónia de Angola (província de Huambo), apontando‑lhe, para tal, violação
dos artigos 5.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 335/90, de 29 de Outubro, e 5.º, n.º
1, in fine, da Portaria n.º 52/91, de 18 de Janeiro.
O tribunal negou‑lhe razão, por entender, fundamentalmente, que ele não
comprovou ter feito quaisquer contribuições (artigo 5.º, n.º 2, do Decreto‑Lei
n.º 335/90), e ser impossível à Segurança Social proceder, agora, ao
conhecimento oficioso das mesmas (artigo 5.º, n.º 1, in fine, da Portaria n.º
52/91).
Inconformado com o assim decidido, o recorrente alega que a falta de prova dos
períodos contributivos não o deve prejudicar, sob pena de violação do princípio
constitucional da igualdade (artigo 13.º da CRP), e que o seu pedido de
reconhecimento do período contributivo não deveria ter sido indeferido sem que
a Segurança Social diligenciasse, oficiosamente, pela sua comprovação, sob pena
de violação do artigo 5.º, n.º 1, in fine, da Portaria n.º 52/91, de 18 de
Janeiro.
III. Na sequência do processo de descolonização, aqueles que tinham trabalhado
nas nossas ex‑colónias, e que aí tinham efectuado contribuições para
instituições de previdência, ficaram numa situação injusta no regresso a
Portugal: apesar dessas contribuições, poderia acontecer não só não terem
direito ao pagamento de qualquer pensão de invalidez, velhice ou sobrevivência,
mas também não serem reembolsados dos quantitativos que, a esse título, tinham
pago naqueles territórios – ver preâmbulo do diploma referido de seguida.
Foi esta situação de injustiça que o legislador reconheceu, e mediante o
Decreto‑Lei n.º 335/90, de 29 de Outubro, pretendeu reparar (este diploma foi
sendo alterado pelos Decretos‑Leis n.ºs 45/93, de 20 de Fevereiro, 401/93, de 3
de Dezembro, 278/98, de 11 de Setembro, e 465/99, de 5 de Novembro).
Assim, este diploma veio reconhecer, no âmbito do sistema de segurança social
português, os períodos contributivos verificados nas caixas de previdência de
inscrição obrigatória dos territórios das ex‑colónias até à independência desses
territórios às pessoas que preenchessem cumulativamente os seguintes
requisitos: a) Tenham exercido nos territórios das ex‑colónias portuguesas
actividade profissional por conta de outrem ou por conta própria; b) Não recebam
dos novos Estados de expressão oficial portuguesa a protecção social
correspondente aos períodos contributivos verificados; c) Residam em Portugal
(alínea alterada pelo Decreto‑Lei n.º 465/99 para «residam ou não em Portugal»);
d) Não sejam pensionistas de qualquer regime de protecção social de inscrição
obrigatória – artigo 1.º, n.º 1.
No tocante à prova desses períodos contributivos, estipula o referido diploma
que a abertura do processo para o reconhecimento dos períodos contributivos em
questão depende da apresentação de requerimento do interessado instruído com: a)
Documentos que constituam meio de prova legal da sua identificação e residência
(alínea alterada pelo Decreto‑Lei n.º 465/99 para «documentos que constituam
meio de prova legal da sua identificação»); b) Documento que constitua meio de
prova dos períodos contributivos cujo reconhecimento se pretende e de que não
está a ser atribuída a protecção social correspondente à carreira contributiva
verificada nas ex‑colónias; c) Documento que constitua meio de prova de que a
atribuição de pensões integrava o esquema de benefícios da caixa de previdência
de inscrição obrigatória em causa – artigo 3.º.
Quanto ao meio de prova exigido por esta última alínea b), o mesmo diploma
prescreve o seguinte no seu artigo 5.º:
«1 – Constitui documento comprovativo referido na alínea b) do artigo 3.º a
certidão emitida pela instituição de previdência que abrangeu o interessado ou
instituição que lhe tenha sucedido, donde conste o correspondente registo de
salários, bem como a indicação de não lhe estar a ser concedida a correspondente
protecção social.
2 – Na falta do meio de prova indicado no n.º 1, poderão ser aceites quaisquer
outros que indiquem claramente os períodos contributivos verificados, bem como
a correspondente situação de desprotecção.
3 – Os meios de prova a que se refere o número anterior são apreciados pela
instituição de segurança social competente, em processo administrativo, cujos
termos são objecto de regulamentação por portaria do membro do Governo
responsável pela área da Segurança Social.»
No cumprimento da última parte deste n.º 3, foi publicada a Portaria n.º 52/91,
de 18 de Janeiro, visando estabelecer os termos desse processo administrativo
para apreciação dos meios de prova apresentados pelos requerentes do
reconhecimento, sempre que não disponham do meio de prova específico indicado
no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 335/90.
Nela (Portaria), sobre a natureza e características desses meios de prova,
prescreve‑se que devem ter natureza documental, nomeadamente certidões,
certificados ou declarações escritas dimanadas de pessoas ou entidades que, por
dever funcional, estivessem em situação que lhes permitisse ter conhecimento
directo da situação contributiva do requerente, sendo que do conjunto desses
elementos deve resultar claramente a comprovação dos períodos de contribuição –
artigo 2.º, n.ºs 1 e 2. Acrescenta que a situação de desprotecção social
relativamente aos períodos contributivos invocados bem como ao facto de não ter
havido lugar ao reembolso das contribuições pagas deve constar desses elementos
documentais, ou, se assim não for, deve ser declarada sob compromisso de honra
em documento a subscrever pelo requerente – artigo 2.º, n.º 3.
Sempre que os requerentes não instruam o requerimento com tais meios de prova,
devem as instituições proceder ao seu recebimento e notificar os requerentes
para os apresentarem, no prazo máximo de 60 dias, sob pena de o processo ser
arquivado, sem prejuízo de eventual reabertura – artigo 3.º da Portaria.
E quando, em resultado de apreciação no seio da instituição competente, os
meios de prova forem considerados insuficientes ou inadequados, deve o
requerente ser de novo notificado para, no prazo máximo de 60 dias, apresentar
outros meios de prova de que eventualmente disponha ou que possa obter, sob pena
de o seu pedido de reconhecimento vir a ser indeferido, salvo quando a
instituição os possua ou deles possa ter conhecimento oficioso – artigo 5.º, n.º
1, da Portaria.
Da ponderação destas pertinentes normas legais, verifica‑se que dominou a pena
do legislador um desígnio de justiça social e uma preocupação de rigor
probatório.
Justiça social porque se pretendeu que os retornados das ex‑colónias não vissem
desvalorizadas as contribuições que haviam feito naqueles territórios para as
instituições de previdência ali existentes, e, por isso, não sentissem que as
mesmas tinham sido em vão. Este reconhecimento dos períodos contributivos
feitos nas ex‑colónias significava, pois, e muito justamente, que os mesmos
deveriam ser considerados como se tivessem acontecido no Portugal europeu.
Rigor probatório porque o legislador do Decreto‑Lei n.º 335/90 sublinha a
exigência de prova que indique claramente os períodos contributivos verificados,
bem como a correspondente situação de desprotecção (artigo 5.º, n.º 2), dando
clara primazia aos meios de prova de natureza documental (artigo 3.º), enquanto
o legislador da Portaria n.º 52/91 acaba por restringir a prova dos períodos
contributivos aos meios de prova de natureza documental (artigo 2.º, n.º 1),
apenas permitindo que, caso ela não exista, a situação de desprotecção social
relativamente aos períodos contributivos invocados, bem como o facto de não ter
havido reembolso das contribuições pagas, seja declarada sob compromisso de
honra em documento a subscrever pelo requerente (artigo 2.º, n.º 3).
Ora, é precisamente a esta restrição da prova dos pertinentes períodos
contributivos aos meios de prova de natureza documental que o recorrente reage,
alegando que a mesma viola o princípio constitucional da igualdade, pois que,
esgrimindo o seu caso concreto, ele não pode ser prejudicado por não dispor, sem
culpa sua, da documentação que lhe é exigida e que lhe é impossível obter
porque desaparecida no turbilhão da guerra civil angolana.
IV. O princípio da igualdade, segundo o qual todos os cidadãos têm a mesma
dignidade social e são iguais perante a lei (artigo 13.º, n.º 1, da CRP), é aqui
invocado pelo recorrente como constituindo um limite à discricionariedade
legislativa.
Conforme a jurisprudência tem vindo a afirmar repetidamente, o princípio da
igualdade, como limite da discricionariedade legislativa, não exige o tratamento
igual de todas as situações, mas implica, antes, que sejam tratados igualmente
os que se encontram em situações iguais e tratados desigualmente os que se
encontram em situações desiguais, de maneira a não serem criadas discriminações
arbitrárias e irrazoáveis, porque carecidas de fundamento material bastante. O
princípio da igualdade não proíbe que se estabeleçam distinções, mas sim
distinções desprovidas de justificação objectiva e racional – ver, entre muitos
outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 468/96, de 14 de Março de 1996,
Processo n.º 87/95; n.º 1057/96, de 16 de Outubro de 1996, Processo n.º 347/91;
n.º 128/99, de 3 de Março de 1999, Processo n.º 140/97; n.º 254/2000, de 23 de
Maio de 2000; e n.º 426/2001, de 16 de Novembro de 2001.
Detectada, na lei, uma situação geradora de desigualdade, tudo está em saber se
essa desigualdade se revela como discriminatória e arbitrária, por desprovida de
fundamento material bastante, atenta a natureza e especificidade da situação, os
efeitos tidos em vista pelo legislador, e o conjunto de valores e fins
constitucionais.
Tudo consiste em saber, no nosso caso, por conseguinte, se ocorre efectivamente
uma restrição da prova dos períodos contributivos aos meios de prova documental,
e se, a ocorrer, redunda numa violação do princípio constitucional da
igualdade.
É nossa convicção que tal restrição não ocorre no âmbito do preceituado no
Decreto‑Lei n.º 335/90, mas ocorre, sim, na regulamentação do seu artigo 5.º,
n.º 3, realizada pela Portaria n.º 52/91.
Como é sabido, na interpretação da lei não basta atender à sua letra, se bem que
esta seja sempre limite da mesma, mas dever‑se‑á ter em conta também a unidade
do sistema jurídico, e, entre outros factores, as condições em que a lei foi
elaborada (artigo 9.º do Código Civil), sendo que a sua razão de ser, o seu
elemento racional e teleológico, constitui um subsídio da maior importância para
determinar o sentido da norma – ver Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao
Discurso Legitimador, Almedina, 2006, 15.ª reimpressão, páginas 182 e 183.
No presente caso, conhecendo como conhecemos o desígnio de justiça social
prosseguido pelo Decreto‑Lei n.º 335/90, e devendo presumir‑se que nele o
legislador adoptou o regime probatório mais adequado à sua concretização,
dificilmente se compreenderia que tivessem sido adoptadas restrições de meios de
prova que, na prática, acabariam por inviabilizar, em muitos casos, a prova dos
pressupostos do direito ao reconhecimento dos períodos contributivos
efectuados. Seria, de algum modo, dar com uma mão o que se tira com a outra.
Assim, é com este sentido que deverá ser interpretado o artigo 5.º, n.º 2, do
Decreto‑Lei n.º 335/90: na falta do meio de prova documental (a que o legislador
dá clara preferência, desde logo pela certeza e pormenor que dele emana), poderá
o interessado fazer prova dos períodos contributivos cujo reconhecimento
pretende por quaisquer outros meios de prova, nomeadamente testemunhal, desde
que os mesmos demonstrem claramente os períodos contributivos verificados.
É este o sentido que, tendo suporte na letra da lei, está de acordo com as
exigências de igualdade decorrentes do artigo 13.º da CRP, e de acordo com a
possibilidade de utilização de todos os meios de prova consagrada, no âmbito da
instrução do procedimento administrativo, no artigo 87.º, n.º 1, do CPA.
A verdade é que ao falar, nessa norma (artigo 5.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º
335/90), em quaisquer outros meios de prova, o legislador não distingue se está
a falar dentro do âmbito da prova documental ou fora dele, pelo que deveremos
entender que nela não se contém qualquer restrição a determinado meio de prova.
De facto, e em princípio, quando a lei não distingue também o intérprete não
deve distinguir, a não ser que haja razões sérias que justifiquem uma distinção
– Antunes Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 123.º, página
30, e ano 124.º, página 39.
Nem se diga que a prova testemunhal, pela sua falibilidade, se mostra pouco
adequada a gerar convicções relativas a pormenores sobre montantes de salários e
respectivos descontos efectuados. É que, no caso, o mais importante é conseguir
provar os períodos contributivos verificados, pois mesmo que o requerente não
consiga provar em pormenor os registos de salários e descontos realizados, de
modo a servir de base de cálculo do montante da pensão, desde que aquele período
de garantia esteja determinado a lei prevê que lhe sejam atribuídos os mínimos
do regime geral de segurança social (artigo 10.º da Portaria n.º 52/91).
Temos, portanto, que não é correcto concluir que o legislador do Decreto‑Lei n.º
335/90, de 29 de Outubro, restringiu a prova dos períodos contributivos
efectuados nas ex‑colónias portuguesas ao meio de prova documental.
Mas o mesmo não se poderá afirmar da Portaria n.º 52/91, de 18 de Janeiro. Esta,
ao estabelecer os procedimentos necessários para apreciar os meios de prova
apresentados ao abrigo do artigo 5.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 335/90, acaba
por considerá‑los como sendo exclusivamente de natureza documental,
restringindo, dessa forma, o naipe de elementos probatórios que podem ser
objecto de apreciação no âmbito do respectivo procedimento administrativo: os
elementos que podem ser objecto de apreciação e constituir meios de prova dos
períodos contributivos cujo reconhecimento é pretendido pelo requerente devem
ter natureza documental, nomeadamente certidões, certificados ou declarações
escritas dimanadas de pessoas ou entidades que, por dever funcional, estivessem
em situação que lhes permitisse ter conhecimento directo da situação
contributiva do requerente – artigo 5.º, n.º 1, da Portaria.
Como vem sendo sublinhado pela jurisprudência, o preceituado no artigo 13.º, n.º
1, da CRP convive mal com este tipo de restrição dos meios de prova no âmbito do
procedimento administrativo – ver, a respeito, Acórdãos do STA (Pleno), de 18 de
Maio de 2004, Recurso n.º 48 397, e de 5 de Julho de 2005, Recurso n.º 164/04.
Temos, pois, que, ao restringir os meios de prova dos períodos contributivos
aos de natureza documental, o referido artigo 5.º, n.º 1, da Portaria n.º
52/91, de 18 de Janeiro, acaba por desfavorecer, injustificadamente, todos
aqueles que, por motivos que não lhes são imputáveis, não dispõem dos exigidos
documentos por a eles já não poderem ter acesso.
Nessa medida, o artigo 5.º, n.º 1, da Portaria n.º 52/91, de 18 de Janeiro,
apresenta‑se como materialmente inconstitucional, por violar o princípio da
igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, sendo que, com este fundamento,
deverá ser recusada a sua aplicação neste caso concreto.
Daqui decorre que a instituição de segurança social competente deverá permitir
ao recorrente provar o invocado período contributivo (alegadamente realizado
entre 25 de Janeiro de 1962 e 9 de Janeiro de 1975) através de outros meios
probatórios, nomeadamente através das testemunhas por ele arroladas, cujos
depoimentos deverão permitir que se conclua claramente os períodos contributivos
verificados.
Deve, pois, ser dada razão ao recorrente no tocante às suas conclusões 1 a 8.
Mas não assim, quanto às restantes.
De facto, quando na parte final do artigo 5.º, n.º 1, da Portaria n.º 52/91 se
impede a instituição de segurança social competente de indeferir o pedido de
reconhecimento com base na insuficiência dos elementos de prova do período
contributivo quando possua ou possa ter conhecimento oficioso desses elementos,
não se está a inverter o ónus da prova dos pressupostos do direito ao
reconhecimento, nem a atribuir à instituição de segurança social em causa um
amplo dever de investigação.
Trata‑se apenas, e à semelhança do que preceitua o artigo 87.º, n.º 2, do CPA,
de dispensar o requerente de provar aqueles factos de que a segurança social já
tenha conhecimento por outros meios que não os por ele trazidos ao respectivo
procedimento administrativo – segundo o artigo 87.º, n.º 2, do CPA, não carecem
de prova os factos notórios, bem como os factos de que o órgão competente tenha
conhecimento em virtude do exercício das suas funções.
Isto é, e no dizer de Alberto dos Reis, dispensa‑se a prova pelo particular mas
não se dispensa a prova pelo órgão – Código de Processo Civil Anotado, III
volume, páginas 264 e 265.
Ressuma do exposto que, sendo inaplicável, por materialmente inconstitucional,
a restrição de meios probatórios fixada no artigo 5.º, n.º 1, da Portaria n.º
52/91, de 18 de Janeiro, deveria ter sido permitido ao recorrente provar o
respectivo período contributivo mediante a pretendida prova testemunhal, ao
abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 335/90, de 29 de
Outubro.
Na medida em que assim não entenderam, a sentença recorrida deve ser revogada,
na parte pertinente, e o recurso contencioso julgado procedente, sendo anulado o
despacho administrativo nele impugnado com fundamento na violação do artigo 5.º,
n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 335/90, de 29 de Outubro.”
No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público apresentou
alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1.º – A norma constante do artigo 5.º, n.º 1, da Portaria n.º 52/91, de 18 de
Janeiro, interpretada em termos de estabelecer uma limitação absoluta à prova
documental a apresentar por parte do interessado que pretende obter o
reconhecimento dos períodos contributivos para a previdência no território das
ex‑colónias, mesmo nos casos em que esteja comprovada a impossibilidade
objectiva de obter os documentos necessários pelo onerado com tal prova, envolve
restrição ou limitação substancial ao direito cujo reconhecimento se pretende
efectivar, conexionado com o princípio constitucional da contribuição de todo o
tempo de trabalho para o cálculo das pensões (artigo 63.º, n.º 4, da
Constituição).
2.º – Tal restrição – para além de desproporcionada e injustificada (e, nessa
medida, violadora dos artigos 13.º e 18.º da Constituição) – nunca poderia
decorrer de mera norma regulamentar.
3.º – Termos em que deverá confirmar‑se o julgamento de inconstitucionalidade
feito pela decisão recorrida.”
O recorrido contra‑alegou, aduzindo:
“1 – A., recorrido nos autos de recurso supra identificados, tendo sido
notificado para, querendo, contra‑alegar, vem dizer que secunda inteiramente e
aplaude o teor da douta alegação apresentada pelo Digníssimo Procurador
Geral‑Adjunto que pugna pela confirmação do julgamento de inconstitucionalidade
feita pela decisão recorrida da norma regulamentar constante no artigo 5.º, n.º
1, da Portaria n.º 52/91, de 18 de Janeiro, na medida em que restringe os meios
probatórios a apresentar por parte do interessado que pretende obter o
reconhecimento dos períodos contributivos efectuados para a previdência no
território das ex‑colónias à prova documental, mesmo nos casos de comprovada
impossibilidade objectiva por parte do onerado com tal prova de obter os
respectivos documentos.
2 – Tal restrição é materialmente inconstitucional, uma vez que limita
substancialmente a tutela efectiva do direito ao reconhecimento dos referidos
períodos contributivos, em total arrepio aos princípios constitucionais de
justiça social, da contribuição de todo o tempo de trabalho para o cálculo das
pensões, da legalidade, da proporcionalidade e adequação que dominam o
Decreto‑Lei n.º 335/90, de 29 de Outubro – cf. artigos 13.º, 18.º, 63.º, n.º 4,
e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. O Decreto‑Lei n.º 335/90, de 29 de Outubro, veio proclamar, no n.º 1 do seu
artigo 1.º, que: “Têm direito ao reconhecimento, no âmbito do sistema de
segurança social português, dos períodos contributivos verificados nas caixas de
previdência de inscrição obrigatória dos territórios das ex‑colónias
portuguesas até à independência desses territórios as pessoas que preencham
cumulativamente os seguintes requisitos: a) Tenham exercido nos territórios das
ex‑colónias portuguesas actividade profissional por conta de outrem ou por conta
própria; b) Não recebam dos novos Estados de expressão oficial portuguesa a
protecção social correspondente aos períodos contributivos verificados; c)
Residam em Portugal; d) Não sejam pensionistas de qualquer regime de protecção
social de inscrição obrigatória”, esclarecendo o n.º 2 que “O direito a que se
refere o número anterior apenas engloba os períodos contributivos verificados em
caixas de previdência de inscrição obrigatória, cujo esquema de benefícios
incluísse a atribuição de pensões e em relação aos quais não se tenha verificado
reembolso de contribuições”.
A justificação para o reconhecimento deste direito consta do preâmbulo do
diploma, onde se salienta que:
“O sistema de previdência social português vigente até à Constituição da
República de 1976 não incluía no seu âmbito os territórios das ex‑colónias que
constituíam o então chamado ultramar.
Por outro lado, nos referidos territórios não chegaram a ser criados
verdadeiros sistemas de protecção social organizados, não obstante a existência
de algumas instituições com as características que então tinham as caixas de
previdência.
Com a descolonização e consequente independência dos novos Estados de expressão
oficial portuguesa, procurou o sistema de segurança social enquadrar de forma
adequada a generalidade das situações dos desalojados.
Para além de diversas formas de apoio ao retorno e à integração social de
nacionais residentes nas antigas colónias, foi criado o regime especial de
protecção social dos desalojados. O respectivo diploma (Decreto‑Lei n.º 259/77,
de 21 de Junho) deixou de vigorar por força do Decreto‑Lei n.º 351/81, de 26 de
Dezembro, já que os mecanismos instituídos permitiram que os interessados
adquirissem um estatuto análogo ao da restante população portuguesa,
circunstância que determinou a sua integração no regime geral de segurança
social.
É certo que, pelas limitações daquele diploma, muitas pessoas ficaram sem
protecção social adequada ao período de actividade profissional exercida nas
ex‑colónias.
Deste modo, justificou‑se a elaboração de um projecto de diploma que visa
permitir o pagamento retroactivo de contribuições às pessoas que, tendo exercido
actividade profissional naqueles territórios, não puderam contribuir para
quaisquer instituições.
No entanto, casos houve em que de facto ocorreram descontos obrigatórios para
caixas de previdência, mas em que, por força das vicissitudes do processo de
descolonização, os interessados estão impossibilitados de fazer valer os seus
direitos.
Para colmatar as lacunas de protecção social daí decorrentes importa legislar em
conformidade, já que os outros dispositivos legais são inadequados para o
efeito.
Independentemente da forma de protecção aos beneficiários dessas instituições
por parte dos novos Estados e dos termos a desenvolver pelas tarefas de
cooperação, verificam‑se situações em que se fixaram relações jurídicas de
seguro social obrigatório, sem a correspondente contrapartida em prestações.
Assim, não estando presentemente, através de convenção bilateral de segurança
social, assegurados os direitos emergentes desse quadro jurídico, considera‑se
justificado atender as situações de beneficiários que, abrangidos por aquelas
instituições de previdência, das mesmas não recebem qualquer protecção nem foram
reembolsados dos quantitativos pagos a título de contribuições.
Por conseguinte, o Estado Português não deverá deixar de solver os seus
compromissos e procurar garantir expectativas legitimamente formadas e que, ao
tempo, eram enquadráveis de direito.”
O artigo 2.º deste diploma apontava como objectivos do reconhecimento dos
períodos contributivos “o preenchimento dos prazos de garantia necessários para
concessão de pensões de invalidez, velhice e sobrevivência” e “o registo de
contribuições na carreira do beneficiário, por forma a completá‑la, no sentido
da melhoria quantitativa das prestações que, de futuro, lhe venham a ser
atribuídas no âmbito do sistema de segurança social português”.
Nos termos do artigo 3.º, “a abertura do processo para o reconhecimento dos
períodos contributivos em questão depende da apresentação de requerimento do
interessado instruído com: a) Documentos que constituam meio de prova legal da
sua identificação e residência; b) Documento que constitua meio de prova dos
períodos contributivos cujo reconhecimento se pretende e de que não lhe está a
ser atribuída a protecção social correspondente à carreira contributiva
verificada nas ex‑colónias; c) Documento que constitua meio de prova de que a
atribuição de pensões integrava o esquema de benefícios da caixa de previdência
de inscrição obrigatória em causa”.
Relativamente à prova dos períodos contributivos, dispunha o artigo 5.º:
“1 – Constitui documento comprovativo referido na alínea b) do artigo 3.º a
certidão emitida pela instituição de previdência que abrangeu o interessado ou
instituição que lhe tenha sucedido, donde conste o correspondente registo de
salários, bem como a indicação de não lhe estar a ser concedida a correspondente
protecção social.
2 – Na falta de meio de prova indicado no n.º 1, poderão ser aceites quaisquer
outros que indiquem claramente os períodos contributivos verificados, bem como
a correspondente situação de desprotecção.
3 – Os meios de prova a que se refere o número anterior são apreciados pela
instituição de segurança social competente, em processo administrativo, cujos
termos são objecto de regulamentação por portaria do membro do Governo
responsável pela área da Segurança Social.”
Com o objectivo (proclamado no seu n.º 1.º) de “estabelecer os termos do
processo administrativo para apreciação dos meios de prova apresentados pelos
requerentes de reconhecimento de períodos contributivos verificados nas caixas
de previdência de inscrição obrigatória dos territórios das ex‑colónias
portuguesas, a que se refere o Decreto-Lei n.º 335/90, de 29 de Outubro, quando
os mesmos não disponham do meio de prova específico indicado no n.º 1 do artigo
5.º do mesmo decreto‑lei”, veio a Portaria n.º 52/91, de 18 de Janeiro, estatuir
no seu n.º 2.º, sob a epígrafe “Natureza e características dos meios de prova”:
“1 – Os elementos que podem ser objecto de apreciação e constituir meios de
prova dos períodos contributivos cujo reconhecimento é pretendido pelo
requerente devem ser de natureza documental, nomeadamente certidões,
certificados ou declarações escritas dimanadas de pessoas ou entidades que, por
dever funcional, estivessem em situação que lhes permitisse ter conhecimento
directo da situação contributiva do requerente.
2 – Do conjunto de elementos a que se refere o número anterior deve resultar
claramente a comprovação dos períodos de contribuição.
3 – A situação de desprotecção social relativamente aos períodos contributivos
invocados bem como o facto de não ter havido lugar ao reembolso das
contribuições pagas deve constar dos documentos referidos no n.º 1 ou, se assim
não for, deve ser declarada sob compromisso de honra em documento a subscrever
pelo requerente.”
O subsequente n.º 3.º previa a notificação dos interessados para apresentarem,
no prazo máximo de 60 dias, sob pena de o processo ser arquivado, sem prejuízo
de eventual reabertura, os meios de prova que deviam ter acompanhado o
requerimento inicial, e o n.º 4.º que a apreciação desses elementos devia ser
feita, no seio da instituição competente, no prazo máximo de 60 dias, por um
conjunto de três funcionários da instituição, dispondo seguidamente o n.º 5,
sob a epígrafe Insuficiência ou inadequação dos meios de prova:
“1 – Quando, em resultado da apreciação a que se refere o número anterior,
forem considerados insuficientes ou inadequados os meios de prova, deve esta
conclusão, devidamente fundamentada, ser comunicada ao requerente, que será
notificado para, no prazo máximo de 60 dias, apresentar outros meios de prova de
que eventualmente disponha ou que possa obter, sob pena de o seu pedido de
reconhecimento vir a ser indeferido, salvo quando a instituição os possua ou
deles possa ter conhecimento oficioso.
2 – Apresentados pelo requerente outros documentos comprovativos, há novo prazo
de 60 dias para se proceder à sua apreciação.”
Na interpretação feita pela decisão ora recorrida – interpretação cuja correcção
não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar, devendo aceitá‑la como um dado da
questão de constitucionalidade que lhe cumpre apreciar –, enquanto o Decreto‑Lei
n.º 335/90, apesar de dar primazia à prova documental (seu artigo 3.º), admitia
que, quanto à prova dos “períodos contributivos”, na falta da “certidão emitida
pela instituição de previdência que abrangeu o interessado ou instituição que
lhe tenha sucedido, donde conste o correspondente registo de salários” (n.º 1 do
artigo 5.º), pudessem ser aceites “quaisquer outros [meios de prova] que
indiquem claramente os períodos contributivos verificados” (n.º 2 do artigo
5.º), nomeadamente prova testemunhal, já a Portaria n.º 52/91, no seu n.º 2.º,
restringiu os meios de prova admissíveis aos de natureza documental (só
admitindo a sua substituição por declaração do requerente prestada sob
compromisso de honra relativamente à prova da existência de situação de
desprotecção social e do facto de não ter havido lugar ao reembolso das
contribuições pagas, mas já não para prova dos períodos contributivos).
Acontece, porém, que, por óbvio lapso de escrita, a decisão recorrida por vezes
refere‑se ao n.º 2.º da Portaria n.º 52/91 como se fosse o seu “artigo 5.º”,
erro que, por manifestamente revelado pelo próprio contexto da decisão, cumpre
oficiosamente corrigir. Na verdade, no 13.º parágrafo da sua parte IV, a seguir
à transcrição, em itálico, do teor do n.º 2.º, n.º 1, da Portaria n.º 52/91, a
sentença insere “– artigo 5.º, n.º 1, da Portaria”. E a evidência do erro mais
se patenteia quando, após ter concluído pela inconstitucionalidade material do
(erradamente referido) “artigo 5.º, n.º 1, da Portaria”, considera que já não
assiste razão ao requerente quanto às demais questões suscitadas, a primeira das
quais respeita justamente ao (agora acertadamente referido) “artigo 5.º, n.º 1,
da Portaria n.º 52/91”, em cuja parte final, segundo o requerente, se impediria
a instituição de segurança social competente de indeferir o pedido de
reconhecimento com base na insuficiência dos elementos de prova do período
contributivo quando possuísse ou pudesse ter conhecimento oficioso desses
elementos.
Cumpre, pois, corrigir oficiosamente o manifesto erro material na identificação
do n.º do preceito da Portaria a que se reporta a norma cuja aplicação foi
recusada com fundamento em inconstitucionalidade – erro que contagiou o
requerimento de interposição de recurso e as alegações de recorrente e recorrido
–, uma vez que o mesmo se evidencia pelo próprio contexto da decisão e não se
suscitam quaisquer dúvidas quanto à identificação da norma desaplicada.
Assinale‑se, ainda, que embora da decisão recorrida resulte ter‑se entendido que
essa norma da Portaria representava a adopção de critério diverso do consagrado
no decreto‑lei que ela visou regulamentar, a razão explícita da recusa de
aplicação da norma consistiu num juízo de inconstitucionalidade, que não num
juízo de ilegalidade.
Constitui, assim, objecto do presente recurso a questão da
inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2.º, n.º 1, da Portaria n.º
52/91, de 18 de Janeiro, que restringe aos de natureza documental os meios de
prova utilizáveis para o reconhecimento, no âmbito do sistema de segurança
social português, dos períodos contributivos verificados nas caixas de
previdência de inscrição obrigatória dos territórios das ex‑colónias portuguesas
até à independência desses territórios.
2.2. O direito à tutela jurisdicional efectiva para defesa dos direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no
artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente no âmbito do contencioso administrativo,
no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica,
como já se assinalou no Acórdão n.º 86/88 e posteriormente foi repetidamente
reafirmado na jurisprudência deste Tribunal, “um direito a uma solução jurídica
dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de
garantias de imparcialidade e independência, possibilitando‑se, designadamente,
um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma
das partes poder «deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as
suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e
resultados de umas e outras» (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de
Processo Civil, I, Coimbra, 1961, p. 364)”.
Este direito à prova, integrante do direito à tutela jurisdicionalmente
efectiva, tem necessariamente de valer também no âmbito do procedimento
administrativo, quando – como no presente caso ocorre –, o acesso aos tribunais
administrativos está legalmente condicionado à prévia provocação de uma
decisão administrativa sobre a pretensão do interessado. Competindo, neste
contexto, aos tribunais administrativos a fiscalização da legalidade dos actos
emanados pelas autoridades administrativas, é óbvio que a restrição legal dos
meios de prova utilizáveis pelo interessados no decurso do procedimento
administrativo se repercute necessariamente na efectividade da defesa judicial
da pretensão substantiva em causa.
Mas o direito à prova, como este Tribunal por diversas vezes recordou, não
implica a total postergação de determinadas limitações legais aos meios de prova
utilizáveis, desde que essas limitações se mostrem materialmente justificadas e
respeitadoras do princípio da proporcionalidade.
Neste sentido, pode citar‑se, designadamente, o Acórdão n.º 395/89, que não
julgou inconstitucionais as normas constantes da Base III, n.º 1, da Lei n.º
7/70, de 9 de Junho, e do artigo 7.º, n.º 1, do Decreto n.º 562/70, de 18 de
Novembro, que exigiam dos requerentes de assistência judiciária (que não
gozassem de qualquer presunção legal de insuficiência económica) que provassem
a sua insuficiência económica mediante certidão de deliberação da junta de
freguesia ou da câmara municipal das suas residências, por considerar que esta
exigência, por um lado, se justificava pela consideração de que tal meio de
prova era “mais seguro e adequado à descoberta da verdade, conhecida que é a
falibilidade da prova testemunhal”, e, por outro lado, não tornava o acesso aos
tribunais “particularmente oneroso, uma vez que quem não tinha meios económicos
bastantes para custear as despesas normais do pleito não tinha especial
dificuldade na obtenção dos documentos exigidos”.
Também o Acórdão n.º 209/95 – que não julgou inconstitucional a norma do artigo
73.º, n.º 2, do Código das Expropriações de 1976, que apenas admitia a produção
de prova testemunhal no processo especial de expropriação litigiosa quando tal
fosse considerado indispensável pelo juiz de 1.ª instância, enquanto tribunal
de recurso de arbitragem, juízo este reproduzido nos Acórdãos n.ºs 604/95,
744/95, 606/96, 607/96 e 131/97 – expendeu as seguintes considerações sobre o
“direito à produção de prova”:
“15. Importa acentuar que o direito de acesso à justiça comporta
indiscutivelmente o direito à produção de prova (cf. M. Teixeira de Sousa, As
Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, págs. 228 e
seguintes). Tal não significa, porém, que o direito subjectivo à prova implique
a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, em qualquer tipo de
processo e relativamente a qualquer objecto do litígio, ou que não sejam
possíveis limitações quantitativas na produção de certos meios de prova (por
exemplo, limitação a um número máximo de testemunhas arroladas por cada parte).
Bastará percorrer as normas de direito probatório constantes do Código Civil ou
do Código de Processo Civil para verificar que há diversas proibições de
utilização de certos meios de prova cuja constitucionalidade nunca foi posta em
causa. Assim, quanto à prova confessória, há casos em que a lei a considera
insuficiente para provar certos factos (por exemplo, um negócio jurídico solene
em que sejam exigidas formalidades ad substantiam) ou inadmissível (por exemplo,
por recair sobre facto cujo reconhecimento ou investigação a lei proíba ou sobre
factos respeitantes a direitos indisponíveis – artigo 354.º do Código Civil).
Também quanto à prova testemunhal, a mesma é considerada inadmissível quando a
declaração negocial tiver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada
por escrito, ou ainda quando o facto probando estiver «plenamente provado por
documento ou outro meio com força probatória plena» (artigo 393.º, n.º 2, do
Código Civil; vejam‑se, porém, os artigos 393.º, n.º 3, e 394.º do mesmo
diploma). Especialmente impressivo é o caso da prova do acordo simulatório e do
negócio simulado: a prova testemunhal só é admissível se for um terceiro a
arguir a simulação, mas já não é admissível quando esse acordo ou o negócio
simulado forem invocados pelos próprios simuladores (artigo 394.º, n.ºs 2 e 3,
do Código Civil).
Em muitos destes casos, a inadmissibilidade, estabelecida pela lei, de prova
testemunhal tem como fundamento o juízo do legislador sobre as graves
consequências de um testemunho inverídico, dada a especial falibilidade desse
meio probatório. Tais casos de inadmissibilidade têm, porém, natureza
excepcional e hão‑de ter uma justificação racional.
Ora, no processo expropriativo, o legislador entende que, havendo uma decisão
arbitral que fixa o valor da indemnização, no recurso dela interposto a
impugnação do quantum indemnizatório implicará uma prova pericial exigente.
Estando em causa a fixação do valor do bem ou direito expropriados – fixação que
começou por ser feita na fase arbitral –, o juiz há‑de valorar em especial a
prova pericial, visto que os peritos são encarregados pelo tribunal de
transmitir a este informações que devem colher, nomeadamente utilizando certos
conhecimentos de natureza técnica (artigo 388.º do Código Civil). Sabendo‑se
que as testemunhas transmitem conhecimentos casualmente adquiridos, bem se
compreende a enorme falibilidade do respectivo testemunho, nomeadamente quando
está em causa a transmissão ao tribunal de informações sobre valores do mercado
imobiliário, devendo a prova desses valores assentar, por regra, em documentos
autênticos (como as alienações dos bens imóveis estão sujeitas a escritura
pública, os valores dos preços constam desses documentos; só quanto aos
contratos preliminares falta, em regra, a publicidade registral, podendo
admitir‑se a vantagem de produção de prova testemunhal, anda que muito falível,
dado o carácter reservado, ou mesmo confidencial, da celebração de muitos
contratos‑promessa).
A opção do legislador constante da norma impugnada não se afigura arbitrária ou
irrazoável. Como a fixação do valor de avaliação do bem expropriado, necessária
para a atribuição do quantum indemnizatório, na fase de recurso há‑de ser feita
pelo juiz, que assim vai apreciar criticamente o outro valor a que se chegou no
juízo arbitral, entendeu o legislador que os meios probatórios especialmente
atendíveis deveriam ser a perícia, os documentos e a própria inspecção judicial.
No que toca à prova pericial, o legislador entendeu que, em vez da opinião do
«homem comum» ou a do «bom pai de família» – opiniões expressas em depoimentos
de testemunhas – importava privilegiar a intervenção de peritos, por estes
disporem de conhecimentos especiais que os julgadores não possuem por regra. Mas
deixou, sempre, ao critério do juiz a audição de prova testemunhal.
Acrescente‑se que a prova testemunhal sobre o valor de mercado de um bem não
será susceptível, no comum dos casos, de esclarecer cabalmente o julgador,
atentos os outros meios probatórios a que pode recorrer (prova documental,
prova pericial e inspecção judicial). Seja como for, a lei não veda em absoluto
a prova testemunhal no processo expropriativo. Na verdade, a lei confere um
poder discricionário para ouvir o depoimento de pessoas que não sejam peritos,
sempre que o repute indispensável, podendo valorar livremente esses depoimentos,
tal como os laudos periciais (artigo 389.º do Código Civil).
Globalmente considerada a regulamentação dos meios probatórios no processo de
expropriação, afigura‑se que não é desproporcionada ou arbitrária a solução
limitativa constante do n.º 2 do artigo 73.º do Código das Expropriações de
1976, porque tem justificação material, atendendo à natureza do litígio em causa
e à fase processual de recurso em que ocorre a mesma limitação.”
No Acórdão n.º 452/2003 – que não julgou inconstitucionais as normas do artigo
7.º, n.ºs 4 e 5, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares,
na redacção anterior à Lei n.º 30‑G/2000, de 29 de Dezembro, interpretadas no
sentido de que, no âmbito de um processo de impugnação da liquidação tributária,
é vedado o recurso a meios de prova diversos dos que aí se deixam taxativamente
elencados –, após se considerar que o conjunto de meios probatórios à disposição
do contribuinte admitidos no n.º 5 do preceito (decisão judicial, acto
administrativo, declaração do Banco de Portugal, reconhecimento pela
Direcção‑Geral dos Impostos), para ilidir a presunção estabelecida no n.º 4
(presunção de que foram feitos a título de lucros ou adiantamentos os
lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas
sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de
mútuos, de prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais), era
“suficientemente amplo para que se não possa falar numa restrição
desproporcionada ou irrazoável de instrumentos de prova, susceptível de, na
prática, converter uma presunção juris tantum numa presunção juris et de jure”,
sublinhou‑se que “a garantia de acesso ao direito e aos tribunais prevista no
artigo 20.º da Constituição não contempla a possibilidade de utilização
irrestrita de todos os meios de prova em qualquer processo judicial (no caso,
num processo de impugnação da liquidação tributária), nem proíbe o legislador de
restringir o uso de certos instrumentos probatórios, desde que tal restrição
não se configure como desproporcionada ou irrazoável”.
Mais recentemente, no Acórdão n.º 646/2006 – que julgou inconstitucional, por
violação do artigo 20.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 1, da CRP,
a norma constante da parte final do n.º 3 do artigo 146.º‑B do Código de
Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 433/99, de
26 de Outubro, quando aplicável por força do disposto no n.º 8 do artigo 89.º‑A
da Lei Geral Tributária, na medida em que exclui em absoluto a produção de prova
testemunhal, nos casos em que esta é, em geral, admissível (juízo de
inconstitucionalidade reiterado no Acórdão n.º 24/2008) –, expendeu‑se o
seguinte:
“3.2. (…) partindo agora da premissa que o direito de acesso à justiça integra,
inter alia, o direito de o interessado produzir demonstração dos factos que, na
sua óptica, suportam o «direito» ou o «interesse» que visa defender pelo recurso
aos tribunais, o problema que se põe há‑de residir na formulação de um juízo que
pondere se o legislador, ao editar a norma em análise, respeitou, proporcionada
e racionalmente, aquele direito na vertente em questão, em termos de conduzir a
que, para a generalidade de situações, o interessado se não veja constrito à
impossibilidade de uma real defesa dos seus direitos ou interesses em conflito.
(…)
Ora, são cogitáveis situações em que, no que ora importa, a demonstração de que
as «manifestações de fortuna» não produziram rendimentos diversos daqueles que
foram trazidos às declarações se não alcança unicamente (ou, mais propriamente,
não se pode alguma vez atingir) através de meios documentais, carecendo‑se de
prova testemunhal e, obviamente, nos casos em que esta seja admissível nos
termos gerais de direito.
Nessas situações, perante a determinação ínsita na norma em causa, o
interessado, perante uma, então, manifesta e, quiçá, insuperável, dificuldade
em alcançar o objecto probandi, ver‑se‑ia postado numa impossibilidade de
demonstrar os factos que suportavam os seus direitos ou interesses.
Essa limitação, que, em tais situações, redunda numa absoluta constrição de
quanto à utilização desse específico meio de prova, não se revela ponderada e
adequada em face do direito fundamental que deflui do n.º 1 do artigo 20.º da
Constituição.
O direito à tutela judicial efectiva, como vincam Gomes Canotilho e Vital
Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, p. 164), «sob
o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar‑se‑á, sobretudo,
quando a não observância … de princípios gerais de processo acarreta a
impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar [e,
acrescentar‑se‑á agora, de provar], daí resultando prejuízos efectivos para os
seus interesses».
Também Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, p.
190) referem que, muito embora disponha o legislador de uma ampla margem de
liberdade na concreta modelação do processo, não sendo incompatível com a tutela
jurisdicional a imposição de determinados ónus processuais às «partes», o que é
certo é que o direito ao processo inculca que «os regimes adjectivos devem
revelar‑se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar‑se com o
princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado,
nos termos dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, a criar obstáculos que
dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o
direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva».
Neste circunstancialismo, e perante situações em que, face ao normativamente
consagrado, a demonstração dos factos – que, no entendimento da «parte»,
conduzam à defesa do seu direito ou interesse legalmente protegido – não é
possível, de todo, deixar de fazer‑se através de prova testemunhal, desde que,
repete‑se, essa seja, nos termos gerais, legalmente admissível, claramente que
vai ficar afectada aquela defesa, porventura tornando inviável ou inexequível o
direito de acesso aos tribunais.
E, nesse contexto, a solução legislativa que isso consagre não pode deixar de
considerar‑se como desproporcionada e afectadora do direito consagrado no n.º 1
do artigo 20.º da Lei Fundamental, pois que totalmente preclude uma apreciação e
valoração dos factos invocados como consubstanciadores da pretensão deduzida em
juízo.”
Por último, na mesma linha do Acórdão precedentemente citado, cumpre invocar o
Acórdão n.º 681/2006 – que julgou inconstitucional, por violação do direito de
acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP, em conjugação
com o princípio da proporcionalidade, o artigo 146.º‑B, n.º 3, do Código de
Procedimento e de Processo Tributário, na parte em que veda em qualquer caso a
possibilidade de o contribuinte produzir prova testemunhal no recurso da decisão
da administração tributária que determina o acesso à informação bancária que lhe
diz respeito –, do qual consta:
“Ora, importa justamente começar por salientar que, na averiguação da
conformidade constitucional da solução limitativa consagrada na norma em apreço,
o que está em causa não é a constitucionalidade da previsão de um acesso
directo, isto é, sem prévia autorização judicial, da administração tributária à
informação bancária para fins fiscais (…). Está apenas em causa a eventual
inconstitucionalidade da solução normativa que se traduz na inadmissibilidade
de o contribuinte produzir prova testemunhal no recurso da decisão da
administração tributária que determina o acesso à informação bancária que lhe
diz respeito.
Em particular, pergunta‑se se tal substancial limitação probatória terá
justificação razoável nos poderes atribuídos à administração tributária como
concretização do interesse geral do acesso à informação bancária para fins
fiscais. Ou, ainda, na especial falibilidade da prova testemunhal e no carácter
mais exigente e seguro da prova documental, ou na respectiva ratio legis no
carácter urgente do recurso interposto pelo contribuinte (artigo 146.º‑D do
CPPT).
Entende‑se que a limitação em causa da norma em apreço importa uma lesão do
direito à produção de prova ou do «direito constitucional à prova» (J. J. Gomes
Canotilho, «O ónus da prova na jurisdição das liberdades – Para uma teoria do
direito constitucional à prova», Estudos sobre direitos fundamentais, Coimbra
Editora, 2004, p. 170), ínsito na garantia de acesso aos tribunais e «entendido
como poder de uma parte (pessoa individual ou pessoa jurídica ‘representar ao
juiz a realidade dos factos que lhe é favorável’ e de ‘exibir os meios
representativos desta realidade’».
Recorde‑se que, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, a restrição
de uma garantia fundamental exige que se encontre na própria Constituição (pelo
menos noutros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos) base para
a limitação do direito em causa, bem como que esta se limite «ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» (não
podendo, por outro lado, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, «diminuir a
extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais»).
Ora, como vimos, existe a possibilidade de o legislador introduzir limites ao
direito à produção de prova, ínsito no direito de acesso aos tribunais,
consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, que podem ir até à exclusão
de um meio de prova (não «pré‑constituída») como é o depoimento de testemunhas.
Mas é assim apenas desde que tal medida não exceda o necessário para a
salvaguarda do interesse geral do acesso à informação bancária para fins
fiscais, mantendo‑se dentro do equilíbrio entre os poderes da administração
tributária e os direitos dos contribuintes, sem impedir desnecessariamente o
exercício de qualquer um deles.
É certo haver quem saliente (José Casalta Nabais, «Estado fiscal, cidadania
fiscal e alguns dos seus problemas», Separata do Boletim de Ciências
Económicas, vol. 45, 2002, pp. 611 e 609) que «o futuro provavelmente não nos
reserva outro caminho senão o da crescente abertura da informação bancária às
administrações tributárias dos Estados», dizendo‑se também (J. Silva Lopes, in
«Acesso do Fisco a informações protegidas pelo sigilo bancário», Forum
Iustitiae – Direito e Sociedade, ano II, n.º 15, Setembro de 2000, p. 13) que «o
direito à privacidade não deve ser utilizado para que uns contribuintes
pratiquem, ao abrigo do sigilo bancário, delitos fiscais que, indirectamente,
prejudicarão os demais contribuintes. É, por essa razão, que em quase todos os
países da OCDE – a maioria dos quais com tradições democráticas bem mais sólidas
do que Portugal – o direito à privacidade não impede as autoridades de terem
amplo acesso às informações cobertas pelo sigilo bancário».
No entanto, a abertura do segredo bancário – cuja constitucionalidade,
repete‑se, não está, enquanto tal, agora em causa – há‑de respeitar a
possibilidade da sua impugnação, e de produção de prova nesta impugnação,
estando, como está, em causa a comprovação e/ou valoração dos factos que
presidiram à emanação de um acto da administração tributária que contende com o
segredo bancário dos contribuintes, e devendo rejeitar‑se, por outro lado, a
suficiência, para tal, de uma mera presunção de legalidade do acto
administrativo, bem como um entendimento favorável à ampliação, na fase da
instrução procedimental, dos poderes da administração tributária. Note‑se,
aliás, que o próprio artigo 87.º, n.º 1, do Código do Procedimento
Administrativo, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, afirma
que «o órgão competente deve procurar averiguar todos os factos cujo
conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento,
podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos em
direito».
De harmonia com o disposto no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição, «os órgãos e
agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem
actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da
igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé».
Destes princípios decorre, para o nosso caso, que a prova a praticar, desde logo
no procedimento administrativo, é, em regra (apenas, mas toda), aquela que
contribua para aclarar os factos relevantes, de forma a saber se a administração
excedeu, ou não, os limites de legalidade e constitucionalidade a que se
encontra vinculada.
A garantia de um «processo leal», da qual decorre a igualdade de armas –
aplicável também ao processo especial de derrogação do dever do sigilo bancário
previsto nos artigos 146.º‑A a 146.º‑D do CPPT (bem como a todo o procedimento
e processo tributários), como exigência que é do princípio do Estado de Direito,
como este Tribunal teve ocasião de afirmar –, implica um quadro razoável de
equilíbrio entre os poderes da administração tributária e os direitos dos
contribuintes, sem aniquilação no caso concreto destes últimos. Daí o sistema
de garantias dos contribuintes e os princípios do procedimento tributário
estabelecidos na Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto‑Lei n.º
398/98, de 17 de Dezembro.
Este Tribunal tem reconhecido a liberdade de conformação do legislador no
estabelecimento das regras sobre recursos em cada ramo processual, e tem
admitido, por exemplo, o encurtamento de prazos processuais com fundamento em
objectivos de eficácia, celeridade e economia processual. Compreende‑se, por
isso, a natureza urgente do recurso interposto pelo contribuinte ao abrigo do
disposto no artigo 146.º‑B do CPPT, o qual tem efeito suspensivo nas situações
previstas no n.º 3 do artigo 63.º‑B da LGT (artigo 63.º‑B, n.º 5, da mesma LGT),
o que ocasiona uma paralisação temporária dos efeitos jurídicos da decisão de
acesso à informação bancária para fins fiscais, prolongando um estado de
incerteza que importa seja o mais breve possível, quer no interesse da
administração tributária, quer no dos contribuintes (dada a exigência ditada
pelo artigo 20.º, n.º 5, da CRP, de que «para defesa dos direitos, liberdades e
garantais pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais
caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter a tutela efectiva
e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos»).
5. Já, porém, a impossibilidade decretada pela norma em sindicância –
concretamente, a impossibilidade de, em qualquer caso, o contribuinte contestar
através de prova testemunhal a veracidade da prova recolhida pela administração
tributária, e independentemente de se reconhecer a esta uma certa liberdade de
decisão sobre a pertinência de tal meio de prova apresentado pelo contribuinte
– não se encontra suficientemente ancorada com os referidos objectivos de
eficácia, celeridade e economia processual, afectando de forma
constitucionalmente censurável o direito à produção de prova, ínsito no direito
de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, em
conjugação com o princípio da proporcionalidade.
Na verdade, a norma em apreciação assenta na ideia de que, em sede de recurso de
decisão da administração tributária que determina o acesso directo à informação
bancária que diz respeito ao contribuinte, admitir‑se ou valorar‑se a prova
testemunhal permitiria que a verdade fosse atraiçoada, pela própria
falibilidade da prova, ou que o processo se protelasse excessivamente.
Todavia, não consentir o uso de prova testemunhal não é sempre o mesmo que
sugerir o(s) meio(s) de prova mais oportuno(s) ou idóneo(s) sem exclusão dos
demais meios de prova no caso concreto, significando antes vedar em abstracto um
meio de prova que, em concreto, se pode revelar adequado à aclaração dos factos
que fazem parte do objecto do processo especial de derrogação do dever de
sigilo bancário, e que pode mesmo ser o único meio de prova disponível. Esta
exclusão abstracta excede manifestamente o necessário para a prossecução dos
interesses que o levantamento do sigilo bancário visa prosseguir, cerceando uma
dimensão que pode ser essencial (o direito à produção de prova) da garantia de
acesso ao direito e aos tribunais.
Tendo de operar‑se uma ponderação de interesses contrapostos
constitucionalmente reconhecidos, há que tomar em consideração que o princípio
da proporcionalidade implicará uma solução que admita a produção de prova
testemunhal, pelo menos quando esta na situação concreta não se revele contrária
às finalidades tidas em vista, competindo então ao juiz avaliar e decidir sobre
a oportunidade de admissão de tal meio de prova no caso concreto, considerando,
também, os casos em que o recurso à prova testemunhal seja mesmo (como acontece
no presente caso) o único meio de conhecer e/ou de comprovar factos e elementos
materiais dos quais dependa a subsistência da pretensão da administração
tributária de derrogação do dever de sigilo bancário. Noutros casos – pode
admitir‑se – será já, possivelmente, de recusar fundadamente a prova
testemunhal apresentada pelo contribuinte, quando a considere impertinente ou
desnecessária à luz do interesse público que lhe compete prosseguir. Mas
tratar‑se‑á, sempre, de uma limitação em concreto, e não de uma exclusão
absoluta, e em abstracto, de um meio de prova que, repisa‑se, pode bem ser o
único de que é possível lançar mão no caso concreto para concretização da
garantia constitucional de acesso ao direito e aos tribunais. Aliás, a eventual
falibilidade da prova testemunhal pode ser considerada no âmbito da livre
valoração consentida ao julgador.
A norma em apreço, na medida em que prevê uma proibição absoluta, e em
abstracto, de o contribuinte produzir prova testemunhal no recurso da decisão
da administração tributária que determina o acesso à informação bancária que lhe
diz respeito, e em que, portanto, não permite em qualquer caso a autorização
dessa prova pelo juiz quando ela se revele indispensável, é, portanto,
inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, em
conjugação com o princípio da proporcionalidade.”
2.3. Recordada, sem pretensões de exaustão, a jurisprudência deste Tribunal
sobre o “direito à produção de prova”, impõe‑se concluir que, no caso presente,
se justifica a emissão de um juízo de inconstitucionalidade, tal como foi feito
nos últimos dois Acórdãos citados.
Não se questiona a conformidade constitucional da primazia dada à prova
documental pelo artigo 3.º do Decreto‑Lei n.º 357/90, quer atendendo à
reconhecida menor fiabilidade da prova testemunhal, quer, sobretudo, tendo em
conta a natureza dos factos que se pretendiam provar: a duração dos períodos
contributivos e o registo de salários (cf. n.º 1 do artigo 5.º).
Mas o que surge como constitucionalmente intolerável é o radical afastamento, em
abstracto, feito pelo n.º 2.º, n.º 1, da Portaria n.º 52/91, na interpretação
que lhe foi dada pela decisão recorrida, da possibilidade de recurso a outros
meios de prova para além da documental, meios que, em concreto, se podem revelar
como os únicos disponíveis quer por parte do interessado, quer oficiosamente por
parte da Administração, de acordo quer com o princípio geral constante do artigo
87.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (“O órgão competente deve
procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a
justa e rápida decisão do procedimento, podendo, para o efeito, recorrer a todos
os meios de prova admitidos em direito”), quer com o dever específico
consagrado, para este especial procedimento, na parte final do n.º 5.º, n.º 1,
da citada Portaria.
Esta indisponibilidade de meios de prova documentais foi, aliás, expressamente
reconhecida, no caso, pela entidade contenciosamente recorrida, na sua resposta
ao recurso contencioso (n.º 30, a fls. 20 destes autos), atenta a extinção da
instituição de previdência (Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e
Indústria da Província de Angola do Huambo – SNECIPA) para a qual o interessado
terá efectuada contribuições, e o compreensível desaparecimento dos
correspondentes arquivos, atentas as convulsões associadas ao processo de
independência e de guerra civil vividas nesse território.
A admissibilidade de meios de prova não documental e designadamente
testemunhal, neste domínio, não afasta, como é evidente, o poder da
Administração de valorar a sua fiabilidade e suficiência para o apuramento dos
factos em causa. Mesmo que se considere, à partida, de especial dificuldade a
aferição, por prova testemunhal, dos concretos salários recebidos e descontos
feitos pelo interessado durante o período contributivo em causa, cumpre não
esquecer que, nos termos do n.º 9.º da Portaria n.º 52/91, “o reconhecimento de
períodos contributivos baseado nos meios de prova, a que se refere a presente
portaria, produz efeitos apenas para o preenchimento dos períodos de garantia e
para a formação da taxa global de pensões de invalidez, velhice e sobrevivência
do regime geral de segurança social”, e que o subsequente n.º 10.º prevê que,
“quando, à data da atribuição dos benefícios referidos no número anterior, o
beneficiário não apresente registo de remunerações efectivo que possa servir de
base de cálculo e justificar a atribuição de pensões de montante superior, os
valores das pensões a conceder com recurso ao reconhecimento dos períodos
contributivos invocados são, desde que o respectivo prazo de garantia se
encontre preenchido, os mínimos do regime geral de segurança social”.
Conclui‑se, assim, que a exclusão total e abstracta da admissibilidade de meios
de prova não documental não se mostra imposta pela necessidade de prossecução de
interesses constitucionalmente relevantes e, pelo contrário, surge como
susceptível de afectar desproporcionadamente a efectividade da tutela
jurisdicional de um direito constitucionalmente consagrado – o de ver relevar,
para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, todo o tempo de trabalho,
independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado (artigo
63.º, n.º 4, da CRP) –, que comunga da fundamentalidade do direito à segurança
social.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional
efectiva e do princípio da proporcionalidade (artigos 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4,
e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), a norma constante do
n.º 2.º, n.º 1, da Portaria n.º 52/91, de 18 de Janeiro, interpretada no sentido
de restringir aos de natureza documental os meios de prova utilizáveis para o
reconhecimento, no âmbito do sistema de segurança social português, dos períodos
contributivos verificados nas caixas de previdência de inscrição obrigatória
dos territórios das ex‑colónias portuguesas até à independência desses
territórios; e, consequentemente,
b) Confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 4 de Março de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos