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Processo n.º 1220/07
1ª Secção
Relator: Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.
1.1. O representante do Ministério Público no 2º Juízo do Tribunal de Pequena
Instância Criminal do Porto deduziu reclamação para o Tribunal Constitucional,
ao abrigo do artigo 77.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o
despacho do juiz daquele Tribunal, de 14 de Novembro de 2007, que lhe não
admitiu o recurso que pretendia interpor para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, de um outro despacho, de 29
de Outubro de 2007, que teria recusado a aplicação, com fundamento em
inconstitucionalidade, da norma do artigo 389.º, n.º 2 do Código de Processo
Penal (CPP).
1.2. O processo de que emerge a presente reclamação teve origem em “auto de
notícia por detenção”, instaurado pela PSP a A., por condução de veículo
automóvel sem habilitação legal. O sujeito foi constituído arguido e notificado,
nos termos do artigo 385.º, n.º 3, CPP, para comparecer perante o representante
do Ministério Público, do Tribunal de turno do Porto, em 27 de Outubro de 2007,
pelas 10h00, para ser submetido a audiência de julgamento, em processo sumário.
Recebida a participação, o representante do Ministério Público naquele Tribunal
exarou, com data de 27 de Outubro de 2007, o seguinte despacho:
“Apresente o expediente ao M.mo Juiz de turno, para os efeitos do artigo 387.º,
n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, atento o disposto no artigo 60.º,
n.º 1, alínea a), do Decreto‑Lei n.º 186‑A/99”.
Os autos foram apresentados a um juiz que proferiu, na mesma data, o seguinte
despacho:
“Neste Tribunal não existe qualquer sala de audiências que permita a realização
do julgamento sumário, com observância do formalismo legal.
Importa, por igual, frisar que o edifício onde se encontra instalado é de acesso
reservado ao público, o que impede o cumprimento do artigo 387.º, n.º 1, do CPP.
Verifica‑se, assim, a impossibilidade da realização de audiência imediata,
referida no artigo 387.º do CPP.
Nestes termos, determino que o arguido seja notificado para comparecer no
próximo dia 29 de Outubro de 2007, pelas 10 horas, no Tribunal competente, a fim
de aí ser julgado em processo sumário – artigo 387.º, n.º 2, alínea a), do CPP.”
2.
2.1. Foi o processo distribuído ao 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância
Criminal do Porto, tendo, ainda nesse dia 29 de Outubro, o Juiz desse 2º Juízo
exarado o seguinte despacho (fls. 13 e ss.):
“Do auto de notícia elaborado pela autoridade policial resulta que o arguido foi
detido em flagrante delito e depois restituído à liberdade, tendo sido
notificado para comparecer perante o M.P. junto do Tribunal de turno.
Resulta também dos autos, que não foi deduzida verdadeira acusação escrita
contra o arguido.
O M.P. apresentou apenas o expediente ao juiz de turno para os efeitos do art.
387º n.º 2 ali, a) do C.P.P., pretensão que foi deferida, adiando-se
simplesmente o início da audiência de julgamento.
Aberta vista à Digna Magistrada do M.P., pela mesma foi referido que aguardará o
início da audiência, para aí requerer a substituição da apresentação da acusação
pela leitura do auto de notícia da autoridade que procedeu à detenção.
E certo que no auto de notícia constam alguns factos.
Todavia, tais factos, por si só, não constituem qualquer crime.
E de ter em conta que a consciência e a vontade de praticar tais factos típicos,
bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei — o dolo— constitui
elemento típico dos ilícitos criminais, e designadamente do perfunctoriamente
indiciado no auto de notícia.
O mesmo sucede quanto à negligência, nos termos do disposto nos artºs. 13º e 15º
do C.P.
Tal elemento subjectivo deverá constar da acusação e/ou do auto de notícia — cfr
os artºs 243.º e 283.º, n.º 3 ali. b) do C.P.P., e ainda sobre o tema, entre
outros, o AC do TRG de 7/04/2003, in CJ. tomo II, pág. 29 1-294.
Qualquer acusação em que se omita este facto — falta dos factos integradores do
dolo ou da negligência—deve ser rejeitada, por se encontrar manifestamente
infundada, com base no artº 311.º,3, ali. d) do C.P.P.— quando os demais
elementos típicos do crime se encontrarem nela descritos.
Do expediente ora em análise não consta qualquer um desses elementos (dolo ou
negligência).
De tal expediente também não se retira a indicação das disposições legais
aplicáveis, a chamada qualificação jurídica dos factos, o que é relevante e
implica até a rejeição da acusação, nos termos do citado art. 311. nº 3 ali. c)
do C.P.P.
Dado o teor do auto de notícia, mesmo com a sua leitura em audiência nada mais
se acrescenta ao que aí consta.
E condição da realização de julgamento em processo sumário e desta forma de
processo especial a existência de um crime concreto e devidamente identificado,
com indicação dos respectivos factos integradores (objectivos e subjectivos) e
de todas as disposições legais aplicáveis. Só assim se podem apreciar os
apertados requisitos de admissibilidade do professo sumário, bem como a
competência do tribunal.
Está em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de
defesa do arguido e o princípio a vinculação temática do tribunal.
Afigura-se-nos, pois, que não se verificam os requisitos que justificam o
julgamento em processo sumário, nos termos do disposto no artº 381.º do C.P.P.,
na redacção da lei 48/07 de 29/08.
Assim sendo, e por razões de economia processual, e ainda nos termos dos artºs.
381.º, e 390.º, ali, a) do C.P.P., na actual redacção, determino a remessa dos
presentes autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma
processual”.
2.2. Na convicção de que este despacho desaplicara, com fundamento em
inconstitucionalidade normativa, o n.º 2 do art. 389.º do código de Processo
Penal, o representante do Ministério Público pretendeu interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC,
através de requerimento com o seguinte teor:
“(…)
Por douto/a despacho/decisão, proferido/a no p. p. dia 19 do transacto mês de
Outubro do corrente ano 2007 e exarado/a a fls. 1 e 12, dos autos à margem
identificados, o/a Mmo/a Juiz, nos termos e com os fundamentos de facto e de
direito daquele/a constantes, tendo consignado, além do mais, “Está em causa a
natureza acusatória do processo penal, além das garantias de defesa do arguido e
o principio da vinculação temática do tribunal.” (sic), a final, decidiu
“.../...nos termos dos art.s 381º, e 390º, ali. a,) do C.P.P., na actual
redacção, determino a remessa dos autos ao Ministério Público para tramitação
sob outra forma processual.” (sic), recusando, dessa forma, a aplicação da norma
constante do art. 389.º, n.º 2, do CPP, expressamente requerida pelo MP, por
reputar a mesma inconstitucional, por violação dos invocados princípios
constitucionais das garantias de defesa do arguido e da estrutura acusatória do
processo penal — art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP — e/ou ilegal, por violação do
referido princípio da vinculação temática do tribunal —- art.ºs 358º, 359º e
379º, n.º 1, al. b), do CPP -.
Tendo sido, nos termos supra expostos, a aplicação da norma em referência, n.º
2, do art. 389º, do CPP, constante de acto legislativo — L. 48/2007, de 29 de
Agosto – 15.º Alteração ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 78/87, de 17 de Fevereiro —, recusada, por inconstitucionalidade e/ou
ilegalidade — vem o MP, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 280.º,
n.ºs 1, al. a), 2, al. a) e 3, da CRP, 70º, n.º 1, al.s a) e/ou c), 71º, n.º 1,
72º, n.ºs 1, al. a) e 3, 75º, n.º 1, 75º-A, n.º 1 e 78º, n.º 4, da Lei 28/82, de
15 de Novembro — Organização, funcionamento e processo do Tribunal
Constitucional —, ao abrigo das citadas al.s a) e/ou c), do n.º 1, do respectivo
art.º 70º, interpor recurso, obrigatório, para o Tribunal Constitucional, — a
subir nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos do disposto no
citado art. 78.º, n.º 4, da Lei em referência —, requerendo a apreciação da
constitucionalidade e legalidade da norma constante do n.º 2 do art. 389.º do
CPP.”
2.3. Porém, o recurso não foi admitido pelo despacho de 14 de Novembro (fls. 21
e ss.), do seguinte teor:
“(…)
Estabelece o art. 76º, nº 1 da Lei 28/82 de 15 de Novembro “Compete ao Tribunal
que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo
recurso; estabelece igualmente o nº 2 do mesmo artº “O requerimento de recurso
deve ser indeferido quando a decisão o não admita, quando haja sido interposto
fora do prazo, quando o requerente careça de legitimidade ou ainda, no caso dos
recursos previstos nas alíneas b) e e) do nº 1 do art. 70.º, quando forem
manifestamente infundados”.
Ora a Digna Magistrada do M.P. vem recorrer da decisão proferida a fls. 11
destes autos, em que o tribunal, nos termos do art. 390.º ali. a) do C.P.P.
remete os autos para outra forma processual, atendendo a que entendeu não ter
sido fixado o objecto do processo, não podendo assim realizar-se o julgamento
sob a forma sumária.
Estabelece o artº 70.º da Lei 28/82 de 15 de Novembro: (Decisões de que pode
recorrer‑se): nº 1 — Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das
decisões dos Tribunais;
a) Que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade;
b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo;
c) Que recusem a aplicação de norma constante de diploma regional, com
fundamento na sua ilegalidade, violação do estatuto da região autónoma ou de lei
geral da República:
d) Que recusem a aplicação de norma emanada de um órgão de soberania, com
fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto de uma região autónoma;
e) Que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo,
com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c) e d);
f) Que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo
próprio Tribunal Constitucional;
g) Que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional pela Comissão
Constitucional, nos termos em que seja requerida a sua apreciação ao tribunal
constitucional.
nº 2 - Os recursos previstos nas alíneas b) e e) do número anterior apenas cabem
de decisões que admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já
haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam.
Ora da análise dos preceitos em causa, não se vislumbra que a decisão em causa
nos autos, admita recurso para o Tribunal Constitucional, atendendo a que não se
subsume a qualquer das alíneas supra referidas.
Requisito de admissibilidade do recurso, nos termos do art. 70.º ali a), é a da
existência da recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua
inconstitucionalidade. Ora, isso não acontece, nem explicita nem implicitamente
no despacho em causa nos autos, no mesmo sentido Acórdãos do Tribunal
Constitucional disponíveis na página /site do Tribunal Constitucional, com o nº
convencional ACTC00000118, ACTC00004871 e ACTC00000019.
Assim sendo, indefiro o requerimento de recurso, por entender que a decisão o
não admite (…)”.
3.
3.1. É contra este despacho que vem deduzida a presente reclamação, na qual o
magistrado reclamante alega:
“ (…) da leitura integral do douto despacho judicial recorrido e da respectiva
integração na antecedente tramitação processual que conduziu à prolação do
mesmo, parece-nos inegável que consubstancia este, de facto, a recusa de
aplicação da norma constante do n.º 2, do art. 389º, do CPP, — constante de acto
legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto — 15. Alteração ao Código de Processo
Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/8 7, de 17 de Fevereiro) —, por
inconstitucionalidade e/ou ilegalidade.
De facto, tendo o MP, nos termos do douto despacho exarado a fls. 5, verificados
que se mostravam os pressupostos dos art.ºs 381º, n.º 1, al. a), e 387º, n.º 1,
do CPP, determinado, nos termos do disposto na 2.ª parte, do n.º 2, do art.
382º, do CPP, a apresentação do “.../... expediente, ao M.º Juiz de Turno para
os efeitos do art.. 387.º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, … /...”
(sic) e tendo este — Mmo/a Juiz de turno —, com os fundamentos de facto e de
direito que constam do douto despacho judicial de fls. 6 determinado “…./... que
o arguido seja notificado para comparecer no próximo dia 29/10/2007, pelas 10
horas, no Tribunal competente afim de aí ser julgado em processo sumário, art.
387.º nº 2, alínea a) do C.P.P.” (sic) e tendo ainda o MP, entretanto e atento o
despacho judicial de fls. 9 — “Atento a promoção e o despacho meramente formal
de adiamento proferido no TIC, (artº 387º, nº 2, alínea a) do C.P.P.) vão os
autos ao MP, para os fins tidos por convenientes, respectivamente apresentação
da acusação.” (sic) —, nos termos consignados a fls. 10, reservado para o início
da audiência de discussão e julgamento, o eventual uso da faculdade prevista no
n.º 2. do art. 389º, do CPP, a decisão judicial entretanto recorrida, ao decidir
“.../... determino a remessa dos presentes autos ao Ministério Público para
tramitação sob outra forma processual.” (sic), não só nega a aplicação daquela
disposição legal, expressamente invocada pelo MP, (ou antes, a possibilidade do
exercício, pelo MP, da faculdade p. na mesma), como fundamenta tal posição,
alegando, além do mais que, “E certo que no auto de notícia constam alguns
factos.
Todavia, tais factos, por si só não constituem qualquer crime, …/... — o dolo —
constitui elemento típico dos ilícitos criminais, …/... O mesmo sucede quanto à
negligência, … /… .
Tal elemento subjectivo deverá constar da acusação e/ou do auto de notícia —
…./... .
Do expediente ora em análise não consta qualquer um desses elementos (dolo ou
negligência).
De tal expediente também não se retira a indicação das disposições legais
aplicáveis a chamada qualificação jurídica dos factos, …/…” (sic), concluindo
com a alegação de que “Está em causa a natureza acusatória do processo penal,
além das garantias de defesa do arguido e o princípio da vinculação temática do
tribunal.” (sic).
Ora, não sendo obviamente de exigir fórmulas sacramentais para afirmar
princípios, parece-nos que outra coisa não fez o/a Mmo/a Juiz a quo que não
tenha sido recusar a aplicação, in casu, da norma legal expressamente invocada
pelo MP, (n.º 2, do art. 389.º, do CPP), por entender que tal aplicação,
faltando no auto de notícia, “o elemento subjectivo” e “a chamada qualificação
jurídica dos factos”, seria inconstitucional, por violação dos, aliás
expressamente citados e assim invocados, princípios constitucionais da
estrutura/natureza acusatória do processo penal e das garantias de defesa do
arguido — art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP — e/ou ilegal, por violação do,
igualmente expressamente citado e invocado, princípio da vinculação temática do
tribunal — art.ºs 358º, 359º e 379º, n.º 1, al. b), do CPP.
Mais alega o/a Mmo/a Juiz a quo no douto despacho ora reclamado, “Requisito de
admissibilidade do recurso, nos termos do art. 70.º ali a), é a da existência da
recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Ora, isso não acontece, nem explicita nem implicitamente no despacho em causa
nos autos, …/... .”.
De facto, nos termos da citada al. a), do n.º 1, do art. 70.º, da Lei 28/82, de
15 de Novembro, ao abrigo da qual, também, mas não só, foi interposto o recurso
ora indeferido, o requisito de admissibilidade do recurso é efectivamente a
existência de recusa de aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade.
Contudo, nos termos da al. c), do n.º 1, do mesmo preceito legal, ao abrigo da
qual foi ainda, interposto o recurso em causa, o requisito de admissibilidade do
recurso é a existência de recusa de aplicação de norma constante de acto
legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado.
Ora, a expressa invocação, no despacho recorrido, dos supra referenciados
princípios constitucionais da estrutura/natureza acusatória do processo penal e
das garantias de defesa do arguido e do princípio legal da vinculação temática
do tribunal, resulta inequívoca e inegavelmente do respectivo texto, supra
transcrito, mormente do supra citado segmento da respectiva parte final —“Está
em causa a natureza acusatória do processo penal, além das garantias de defesa
do arguido e o princípio da vinculação temática do tribunal.” (sic, com
sublinhado nosso).
Face ao exposto, não pode naturalmente concordar-se com a, além de
infundamentada, estranha conclusão, constante do despacho em reclamação, no
sentido de que, no mesmo “.../... não acontece, nem explicita nem
implicitamente…/ /...” (sic) a recusa de aplicação de uma norma com fundamento
na sua inconstitucionalidade, pois que, manifestamente tal acontece,
relativamente à norma constante do n.º 2, do art. 389.º, do CPP, com fundamento,
aliás explícito, e portanto, claro e inegável, na respectiva
inconstitucionalidade e/ou, na respectiva ilegalidade, por violação dos
princípios citados, o que, sendo certo que a norma em referência consta de acto
legislativo, também pode fundamentar a admissibilidade do recurso, ora
indeferido.
Assim sendo, parece-nos forçoso concluir que a decisão em referência não só
admite recurso, para o Tribunal Constitucional, nos termos das supra citadas
al.s a) e/ou c). do n.º 1, do art. 70.º, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, como é
o mesmo, aliás, para o MP, atento o prescrito no n.º 3, do art. 72º, da citada
Lei, até obrigatório, por a norma cuja aplicação se mostra recusada, constar de
acto legislativo (L. 48/2007, de 29 de Agosto, conforme supra já referido).
Concluindo, o que o/a Mmo/a Juiz fez, no/a douto/a despacho/decisão recorrido/a,
ao decidir “.../..., determino a remessa dos presentes autos ao Ministério
Público para tramitação sob outra forma processual.” (sic), não realizando o
requerido pelo MP, nos termos legais e aliás, anteriormente, judicialmente
determinado, — tendo sido o/a arguido/a e o/ais agente/s autuante/s de tal
despacho notificado/a/s (cfr. fls. 7) — julgamento do/a arguido/a, em processo
sumário e nem sequer iniciando a audiência, cujo início, note-se, havia sido,
oportuna e anteriormente, judicialmente adiado, nos termos do disposto na al.
a), do n.º 2, do art. 387.º, do CPP, — sem cuidar aqui sequer da questão da
eventual violação do princípio do caso julgado formal, na medida em que se
pronunciou o/a Mmo/a juiz a quo, sobre questão já ultrapassada/processualmente
precludida e relativamente à qual se encontrava esgotado o poder jurisdicional
com a prolacção do anterior despacho judicial, supra citado, que procedeu ao
adiamento do início da audiência de julgamento em processo sumário — foi
manifestamente recusar a aplicação da norma constante do n.º 2, do art. 389.º,
do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade e/ou na sua ilegalidade, por
permitir a realização do julgamento em processo sumário, nos casos em que o MP,
não tendo deduzido acusação, reserva para o início da audiência, a faculdade de
substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da
autoridade que tiver procedido à detenção, quando deste “…/… não consta qualquer
um desse elementos (dolo ou negligência,).” (sic) e “…/... não se retira a
indicação das disposições legais aplicáveis, a chamada qualificação jurídica dos
factos, /....” (sic).
Face ao exposto, o interposto recurso, requerendo a apreciação da
constitucionalidade e legalidade da norma constante do n.º 2 do art. 389º, do
CPP, deveria ter sido admitido (…)”.
3.2. Notificado da apresentação desta reclamação, o arguido respondeu (fls. 40
e ss.), preconizando o seu indeferimento, porquanto:
1.º
O Mmo/a Juiz a quo, no Despacho de fls. 11 e 12 dos autos, não se recusa aplicar
o nº 2 do art. 389º do C.P.P.
2.º
Nem põe em causa a constitucionalidade desse preceito;
3.º
Nem a sua legalidade;
4.º
Tão-só convida o Reclamante a fixar o objecto do processo.
5.º
Uma vez que do Auto de Notícia não consta um elemento constitutivo do crime — o
elemento subjectivo;
6.º
Nem constam as disposições legais aplicáveis, ou seja, a qualificação jurídica
dos factos;
7.º
Não se recusa a aplicação de uma norma com fundamento em inconstitucionalidade
e, portanto,
8.º
Não haverá lugar à aplicação da al. a) do nº 1 do art. 70.º da Lei 28/82, de
15/11;
9.º
Nem se aplicará aqui a al. c) do n.º 1 do art. 70.º da Lei 28/82, de 15/11, uma
vez que o Mmo/a Juiz não considera ilegal o art. 389.º do C.P.P., por hipotética
violação de lei com valor reforçado (a Constituição da República Portuguesa)
10.º
O Mmo/a Juiz não invoca, nem explicita nem implicitamente, os princípios
constitucionais das garantias de defesa do arguido e/ou a estrutura acusatória
do processo penal;
11º
Não se poderá subsumir a decisão recorrida às alíneas a) e/ou c) do n.º 1 do
art. 70.º da já citada Lei:
12º
O Mmo Juiz a quo, ao decidir a remessa dos autos ao Reclamante para tramitação
sob outra forma processual, não está a pôr em causa o Douto Despacho do Mmo.
Juiz de turno;
13º
O Mmo. Juiz a quo está apenas a aplicar o art. 311.º, n.º 3, al. d) do C.P.P.
que prevê um dos casos em considera manifestamente infundada (…)”.
3.3. Neste Tribunal, o representante do Ministério Público emitiu o seguinte
parecer:
“Importa notar liminarmente que — sendo o recurso, interposto pelo Ministério
Público e rejeitado no Tribunal “a quo”, — exclusivamente fundado na alínea a)
do nº 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, apenas poderá reportar-se à recusa de
aplicação da norma identificada no respectivo requerimento de interposição — e
não a quaisquer outros preceitos legais, eventualmente aplicados no despacho
reclamado, já que tal implicaria a ampliação do respectivo objecto de modo a
incluir estes últimos, bem como a invocação, como base recursória, da alínea b)
daquele artigo 70.º, nº 1, o que se afigura inviável face à regra de que a
delimitação do objecto do recurso decorre irremediavelmente (no que se refere ao
seu máximo âmbito) do teor daquele requerimento.
A sorte da presente reclamação dependerá, deste modo, da determinação da
existência de uma “verdadeira” recusa de aplicação normativa, reportada ao
artigo 389º, nº 2, do Código de Processo Penal fundada em violação dos
princípios constitucionais da estrutura acusatória do processo penal e das
garantias de defesa.
Qual a interpretação normativa feita pelo juiz “a quo” de tal preceito legal?
A nosso ver, considerou-se ser inviável a substituição da apresentação de
acusação pelo Ministério Público em processo sumário pela simples leitura do
auto de noticia, no início da audiência, sem qualquer “aditamento”, num caso em
que o referido auto omitiria elementos essenciais a qualquer acusação, nos
planos fáctico (estruturantes do elemento subjectivo do crime imputado ao
arguido), da qualificação jurídica (especificação das disposições legais
aplicáveis) e probatório (indicação das provas que fundamentam tal imputação ao
arguido).
É feita, no despacho reclamado, a seguinte leitura da norma constante do artigo
389º, nº 2, do Código de Processo Penal:
Em processo sumário, pode o Ministério Público substituir a apresentação da
acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à
detenção, salvo se de tal auto não constarem todos os elementos — fácticos, de
qualificação jurídica e probatório — que obrigatoriamente — por força das
disposições gerais — devem constar de qualquer acusação.
Ou seja: não se considerou inviável, de modo genérico, a actuação processual ali
consentida ao Ministério Público, procedendo-se antes a uma leitura conjugada de
tal preceito legal com as disposições que regulam os requisitos da acusação, só
consentindo a “substituição” da acusação pela leitura do auto quando este
satisfaça minimamente tais requisitos gerais.
Procedeu, deste modo, o despacho recorrido a uma leitura conjugada da norma que
integra o objecto do presente recurso (a do artigo 389º, nº 2, do Código de
Processo Penal) com outras disposições que regem sobre os requisitos da acusação
(artigo 283º, nº 3, e 311.º, nº 2 e 3 do Código de Processo Penal) para concluir
que a possibilidade de mera leitura do auto de notícia, no início da audiência,
pressupõe a suficiência deste, na óptica das exigências formuladas por aqueles
preceitos legais.
Sendo duvidosa a definição da precisa “linha de fronteira” entre a verdadeira
“recusa de aplicação” normativa, enquadrável na alínea a) do nº 1 do artigo 70.º
da Lei do Tribunal Constitucional, e a mera interpretação de preceitos legais
“em conformidade com a Constituição” (cf., v.g., os Acórdãos n.ºs 170/85,
425/89, 137/89, 636/94 e 1020/96) afigura-se que — no caso dos autos — o juízo
de inaplicabilidade de certa interpretação que — a ser feito — violaria
determinados princípios constitucionais se não fundou “única ou primacialmente”
(para utilizar a expressão de Rui Medeiros — A Decisão de Inconstitucionalidade,
pg. 331 e segs) no princípio da interpretação conforme à Lei Fundamental, mas
não desempenhando “o apelo à Constituição (princípio do acusatório e das
garantias de defesa) em sede hermenêutica, uma função de apoio ou de confirmação
de um sentido da norma já sugerido pelos restantes elementos de interpretação”
(cf. ainda o Acórdão nº 285/02)
Assim, por se afigurar que o Tribunal “a quo”, no despacho recorrido, se limitou
a proceder a uma leitura conjugada de diversos regimes processuais penais,
referentes aos requisitos da acusação, articulando-os com a possibilidade de
mera “leitura” pelo Ministério Público do auto de notícia no início da audiência
em processo sumário, não será a circunstância de se considerar que a
imperatividade de tal aplicação conjugada dos regimes legais decorre dos
princípios constitucionais do acusatório e das garantias de defesa que traduz a
ocorrência de uma verdadeira “recusa de aplicação normativa”, enquadrável no
tipo recursório previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70.º da Lei 28/82. “
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir:
II.
Fundamentação
4. A presente reclamação tem como objecto o despacho que não admitiu o recurso
de constitucionalidade interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea
a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, com fundamento na não verificação de um dos
seus requisitos, a recusa de aplicação de norma por violação da Constituição. No
caso, por se ter entendido que não ocorrera desaplicação, expressa ou implícita,
do artigo 389º nº 2 do Código de Processo Penal.
Em autos em tudo idênticos aos presentes, o Tribunal Constitucional decidiu
indeferir a reclamação (Acórdão nº 8/2008, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), com os fundamentos seguintes:
«(…) resulta da leitura da decisão recorrida que o elemento primordial e
determinante do entendimento da inadmissibilidade, no caso, de o Ministério
Público “substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia
da autoridade que tiver procedido à detenção”, prevista no n.º 2 do artigo 389.º
do CPP, resultou da leitura conjugada desse preceito com as disposições dos
artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) a d), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alíneas
b), c) e d), do mesmo Código, que, respectivamente, determinam que a acusação do
Ministério Público, sob pena de nulidade, deve conter a narração dos factos, a
indicação das disposições legais aplicáveis e a prova, e que o presidente do
tribunal, se o processo tiver sido remetido para julgamento, sem ter havido
instrução, deve rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada,
sendo tida como tal a acusação que não contenha a narração dos factos, a
indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas que a fundamentam, ou
se os factos não constituírem crime.
Isto é: foi com base na interpretação do direito ordinário que a decisão
recorrida entendeu só ser admissível a substituição da acusação pela leitura do
auto de notícia quando este auto contenha todos os elementos legalmente
exigíveis para a validade de qualquer acusação.
A posterior referência a que violaria a estrutura acusatória do processo
criminal e poria em causa as garantias de defesa do arguido a realização da
audiência, em processo sumário, tendo por acusação apenas o que consta de um
auto de notícia, que não possibilitava ao arguido a conhecimento da totalidade
dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua qualificação
jurídica e a prova, constituiu um mero argumento de conforto da justeza do
entendimento a que anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por
correcta, ao nível da interpretação do direito ordinário aplicável, da
possibilidade de substituição da acusação pelo Ministério Público pela leitura
do auto de notícia.
Só existiria recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade se o tribunal tivesse interpretado o artigo 389.º, n.º 2,
do CPP no sentido de permitir essa substituição mesmo quando o auto de notícia
não contivesse os elementos exigidos para a validade da acusação, e, depois,
sustentasse que, assim interpretada, tal norma violaria princípios
constitucionais. Mas não foi esse, como se evidenciou, o caminho seguido pela
decisão recorrida.
Não encerrando esta, sequer implicitamente, uma recusa de aplicação de norma com
fundamento em inconstitucionalidade, o presente recurso surge como inadmissível,
sendo de todo irrelevante, para o efeito, a menção a eventual violação de caso
julgado».
Também no Acórdão n.º 48/2008 o Tribunal tomou idêntica posição, jurisprudência
a que se adere no caso presente, razão pela qual se decide indeferir a
reclamação formulada.
III. Decisão
5. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2008
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão