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Processo n.º 882/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Relatório
A., Lda. impugnou judicialmente as liquidações da Contribuição Especial
relativas ao ano de 1997, sustentando a inconstitucionalidade desse imposto,
pelos seus efeitos retroactivos, no ponto em que permitia tributar as
mais-valias verificadas antes da entrada em vigor do diploma legal que as prevê
(Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de Março), e também por violação do princípio da
capacidade contributiva.
A impugnação foi julgada improcedente por sentença do Tribunal Administrativo e
Fiscal de Almada (a fls. 45 e seguintes), pelo que a impugnante interpôs recurso
para o Tribunal Central Administrativo Sul (fls. 58), em que invoca a
inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de Março, por violação do
princípio da capacidade contributiva e do princípio da irretroactividade das
normas fiscais, e, bem assim, a violação, pela sentença recorrida, dos artigos
65º e 103º, n.º 3, da Constituição da República.
Por acórdão de 3 de Maio de 2007 (fls. 100 e seguintes), o Tribunal Central
Administrativo Sul negou provimento ao recurso, tendo considerado, em síntese, o
seguinte: (a) a contribuição especial não assume natureza retroactiva e não
viola o disposto no artigo 103º, n.º 3, da CRP, porquanto o facto gerador da
contribuição é a emissão da licença, conforme resulta do artigo 3º do
Decreto-Lei n.º 51/95”; (b) não se verifica qualquer violação do princípio da
capacidade contributiva, pois que “apenas nos casos em que se verifique a
diferença de valor dos prédios, depois de corrigido pelo coeficiente de
desvalorização monetária, e apenas nessa medida, é que são tributados”; (c) não
ocorre a invocada violação do artigo 65º da Constituição, pois que esta norma,
ao consagrar o direito à habitação, é meramente programática.
Deste acórdão interpôs A., Lda. recurso para o Tribunal Constitucional (a fls.
116 e seguinte), ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, alegando que naquele acórdão se fizera uma
interpretação desconforme com o artigo 103º, n.º 3, da Constituição do artigo 2º
do Regulamento da Contribuição Especial anexo ao Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de
Março, “ao entender-se que não era o mesmo materialmente inconstitucional por
ser um imposto de efeitos retroactivos por pretender tributar mais-valias
verificadas antes da sua entrada em vigor”, e que o acórdão recorrido
interpretara o mesmo preceito de modo contrário ao disposto no artigo 65º da
Constituição, que consagra o direito à habitação.
O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho de fls. 118 e, na
sequência do despacho de aperfeiçoamento do ora relator (a fls. 137), veio a
recorrente esclarecer (cfr. 139 e seguinte), que considerava inconstitucionais
e, portanto, pretendia a apreciação pelo Tribunal Constitucional das duas
seguintes interpretações normativas:
a) A interpretação do artigo 2º do Regulamento da Contribuição Especial anexo ao
Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de Março (que a recorrente considera
inconstitucional por violação do artigo 103º, n.º 3, da Constituição e do
princípio da segurança jurídica), segundo a qual tal preceito se aplica a
mais-valias verificadas antes da sua entrada em vigor por os alvarás de
construção terem sido obtidos antes do início de vigência do diploma;
b) A interpretação do artigo 2º do Regulamento da Contribuição Especial anexo ao
Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de Março (que a recorrente considera
inconstitucional por violação do artigo 65º da Constituição, que consagra o
direito à habitação), segundo a qual tal preceito permite a tributação de
mais-valias obtidas pela venda de imóveis destinados à habitação.
Por decisão sumária proferida ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do
Tribunal Constitucional não se conheceu, porém, do objecto do recurso de
constitucionalidade, pelos seguintes fundamentos:
Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto
processual a suscitação, durante o processo, da questão da inconstitucionalidade
da norma ou interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende
que este Tribunal aprecie (cfr. também o artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei).
Decorre da resposta ao despacho de aperfeiçoamento que a recorrente pretende a
apreciação de duas interpretações normativas reportadas ao artigo 2º do
Regulamento da Contribuição Especial anexo ao Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de
Março.
Sucede, porém, que perante o tribunal recorrido a recorrente não imputou
qualquer inconstitucionalidade à primeira interpretação normativa que identifica
perante o Tribunal Constitucional: a interpretação segundo a qual o mencionado
artigo 2º se aplica a mais-valias verificadas antes da sua entrada em vigor por
os alvarás de construção terem sido obtidos antes do início de vigência do
correspondente diploma.
Na verdade, a recorrente sempre imputou a violação da Constituição a outras
realidades: ou à própria contribuição especial, ou ao Regulamento da
Contribuição Especial no seu conjunto, ou à própria sentença então recorrida.
E mesmo que se concluísse que, perante o tribunal recorrido, ainda foi suscitada
uma questão de inconstitucionalidade normativa referida ao artigo 2º do
Regulamento da Contribuição Especial anexo ao Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de
Março, sempre haveria de reconhecer-se que a concreta interpretação normativa
agora submetida ao Tribunal Constitucional – caracterizada pela circunstância de
os alvarás de construção terem sido obtidos antes do início de vigência do
diploma em apreço - não foi, durante o processo, questionada quanto à sua
conformidade constitucional.
Não cumpriu, assim, a recorrente o ónus de suscitação da questão de
inconstitucionalidade a que aludem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º
2, da Lei do Tribunal Constitucional, por não ter colocado, perante o tribunal
recorrido, e de modo processualmente adequado, a questão da
inconstitucionalidade da interpretação normativa que agora pretende ver
apreciada.
Não pode portanto conhecer-se do objecto do presente recurso de
constitucionalidade, por falta de preenchimento de um dos seus pressupostos
processuais.
O que igualmente sucede em relação à segunda interpretação normativa
identificada no requerimento de interposição de recurso (integrado pelo
subsequente esclarecimento).
Perante o tribunal recorrido não suscitou a recorrente a questão da
inconstitucionalidade da interpretação do artigo 2º do Regulamento da
Contribuição Especial anexo ao Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de Março, na
vertente em que permite a tributação de mais-valias obtidas pela venda de
imóveis destinados à habitação: a recorrente apenas sustentou, perante esse
tribunal, que a contribuição especial em causa violava o artigo 65º da
Constituição, o que é algo de substancialmente diverso.
Não cumpriu, assim, a recorrente - também em relação à segunda interpretação
normativa que identifica - o ónus de suscitação a que aludem os artigos 70º, n.º
1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que também
nesta parte se não pode conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade.
Notificada da referida decisão sumária, dela veio A., Lda. reclamar para a
conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, concluindo nos seguintes termos:
a) Entendeu-se na decisão sumária que a recorrente não havia suscitado no
decurso do processo as questões de constitucionalidade que agora pretendia ver
apreciadas.
b) Em relação à primeira uma vez que teria imputado a violação da Constituição à
própria Contribuição Especial, ao seu Regulamento em conjunto, ou à própria
sentença recorrida, e em relação à segunda porquanto a recorrente havia
sustentado que a Contribuição Especial violava o artigo 65° da Constituição e
não que o artigo 2° do Regulamento seria inconstitucional na interpretação feita
em relação à vertente que permite a tributação de mais-valias obtidas pela venda
de imóveis destinados à habitação, o que seriam coisas diferentes.
c) Em relação quer à primeira quer à segunda invocação de
(in)constitucionalidade feitas a recorrente, desde a 1ª instância, tem vindo a
sustentar a questão da conformidade constitucional da Contribuição Especial em
causa tendo suscitado, em complemento, a questão da sua legalidade atento o
facto de se admitir que a dita Contribuição incida em relação situações em que
os alvarás de construção haviam caducado.
d) Ou seja, a recorrente sempre abordou a presente situação numa dupla vertente,
a saber:
1) A questão da constitucionalidade da tributação das mais-valias verificadas
antes da entrada em vigor do DL que consagrou a Contribuição Especial por os
respectivos alvarás de construção terem sido emitidos antes;
II) A questão da legalidade da tributação nos casos em que os alvarás haviam
caducado sem lhes ter sido dado qualquer uso.
e) E quanto àquela primeira fê-lo por adesão ã tese do Professor Casalta Nabais
vertida in Direito Fiscal (2ª Edição) que citou então pelo que não é exactamente
certeiro afirmar-se que a recorrente não suscitou de forma adequada a primeira
questão de (in)constitucionalidade.
f) Acresce que entende a recorrente, quando se suscitam questões de
constitucionalidade, e sendo a Lei Fundamental a “mãe” de todas as leis, e se
pretende chamar o Tribunal Constitucional a pronunciar-se sobre as mesmas, este
Alto Tribunal não se pode apegar a um cunho rigorosamente formal para se omitir
de decidir
g) Quer-se com isto dizer que sendo a invocação de inconstitucionalidade feita
ainda que de forma não inteiramente clara ou explícita mas depreendendo-se o que
a recorrente quis questionar em termos de constitucionalidade o recurso deverá
ser admitido.
h) E a recorrente suscitou tais questões em ambas as instâncias tributárias,
logo quando ainda não se havia esgotado o poder jurisdicional destas.
i) Acresce que este entendimento da recorrente busca conforto em algumas
decisões do próprio Tribunal Constitucional supracitadas.
j) A tudo isto acresce, e naquilo que a recorrente entende como sendo o abono da
sua posição, que o artigo 79°-C da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, pretende
traduzir uma verdadeira válvula de escape para uma tutela judicial efectiva em
respeito pelo artigo 20° da própria CRP.
k) Isto uma vez que se permite ao Tribunal Constitucional apreciar a questão de
inconstitucionalidade com base na violação de normas ou princípios
constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada pelo
recorrente.
1) A tudo isto acresce, ainda, que em relação a uma questão em tudo paralela à
presente já o Tribunal Constitucional se pronunciou (acórdão também supracitado)
no sentido da não conformidade constitucional da norma em causa pelo que entende
a recorrente que, impondo-se o abandono de um cunho meramente formal para se dar
primazia a uma jurisprudência de valores, não deverá ser qualquer entrave
causado pelo privilégio da forma sobre a substância que impeça a prossecução do
presente recurso.
Nestes termos e nos melhores de Direito deverá a decisão sumária ser revogada e
substituída a mesma por uma outra que faça avançar o processo para conhecimento
de meritis, tudo o mais com as consequências legais.
Não houve resposta do representante da Fazenda Pública.
2. Fundamentação
Considerou-se na decisão sumária ora reclamada que não podia tomar-se
conhecimento das duas interpretações normativas cuja apreciação a recorrente
solicitava ao Tribunal Constitucional - a interpretação do artigo 2º do
Regulamento da Contribuição Especial anexo ao Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de
Março, segundo a qual tal preceito se aplica a mais-valias verificadas antes da
sua entrada em vigor por os alvarás de construção terem sido obtidos antes do
início de vigência do diploma e, bem assim, interpretação do mesmo artigo 2º,
segundo a qual tal preceito permite a tributação de mais-valias obtidas pela
venda de imóveis destinados à habitação -, uma vez que a respectiva
inconstitucionalidade não havia sido suscitada durante o processo.
Isto é, entendeu-se, nessa decisão sumária, que o ónus de suscitação da questão
de inconstitucionalidade, a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e
72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, não se encontrava cumprido, pois
que, perante o tribunal recorrido, a inconstitucionalidade dessas concretas
interpretações normativas não fora colocada.
Assim sendo, a presente reclamação só poderia proceder se a reclamante
demonstrasse que, contrariamente ao que se disse na decisão sumária, havia, de
facto, imputado a violação de alguma norma ou princípio constitucional às
referidas interpretações normativas.
A reclamante, porém, não o faz: na verdade, admite que, durante o processo,
imputou a inconstitucionalidade à própria contribuição especial ou à tributação
das mais-valias em causa, o que significa que, não se confundindo obviamente a
contribuição especial, em si mesma considerada, com as interpretações normativas
que constituem o objecto do presente recurso, a reclamante admite que não
imputou qualquer inconstitucionalidade a essas interpretações normativas.
Segundo a reclamante, esta seria uma visão formalista do ónus de suscitação da
questão de inconstitucionalidade.
Mas não é assim. Com efeito, o que se verifica no presente processo não é uma
mera diferença entre a formulação da questão de inconstitucionalidade perante o
tribunal recorrido e a formulação dessa mesma questão perante o Tribunal
Constitucional, caso em que – reconhece-se - nenhum obstáculo haveria ao
conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, pois que a questão de
inconstitucionalidade seria ainda a mesma, apenas variando o modo da sua
apresentação em juízo (por exemplo, a terminologia adoptada pela parte).
O que ocorre no caso dos autos é algo de substancialmente diverso: trata-se de
questões de inconstitucionalidade diferentes, atendendo a que o quid a que se
imputou a inconstitucionalidade durante o processo (a própria contribuição
especial) não corresponde ao quid a que se imputa a inconstitucionalidade
perante o Tribunal Constitucional (certa interpretação, ou melhor, certas
interpretações do artigo 2º do Regulamento da Contribuição Especial anexo ao
Decreto-Lei n.º 51/95, de 20 de Março).
Tanto basta para concluir que não foi cumprido o ónus de suscitação a que aludem
os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional, pois que o tribunal recorrido não teve, na verdade, a
oportunidade de apreciar as concretas questões de inconstitucionalidade que a
recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie (que são questões de
inconstitucionalidade reportadas a certas interpretações do mencionado artigo 2º
e não questões de inconstitucionalidade reportadas à própria contribuição
especial, ou a certo diploma legal, ou à sentença recorrida).
Por último, saliente-se que nenhuma relevância tem para a decisão da presente
reclamação – e, consequentemente, para a questão do conhecimento do objecto do
presente recurso de constitucionalidade – a invocação do artigo 79º-C da Lei do
Tribunal Constitucional. Isso porque essa referida disposição, definindo o
âmbito dos poderes de cognição do Tribunal, possibilita que o Tribunal julgue
inconstitucional norma que a decisão recorrida tenha aplicado com fundamento
diverso daquele que foi invocado pelo recorrente, mas não permite suprir a falta
de cumprimento do ónus da suscitação da questão de constitucionalidade.
Dito de outro modo: a razão pela qual, na decisão sumária reclamada, não se
conheceu do objecto do recurso de constitucionalidade foi a de que, durante o
processo, não fora imputada qualquer inconstitucionalidade às interpretações
normativas que a reclamante pretendia ver apreciadas; não foi a de que, perante
o tribunal recorrido, foram invocadas normas ou princípios constitucionais
diferentes daqueles que foram invocados perante o Tribunal Constitucional.
Termos em que, por infundada, tem de improceder a presente reclamação.
3. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação,
mantendo-se a decisão sumária reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão