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Processo n.º 986/07
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1.
A., interpôs ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC) recurso
para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação de Lisboa que, “nos termos
do disposto no artigo 420.º, n.º1 do Código de Processo Penal” rejeitou o
recurso do despacho que lhe indeferira o pedido de concessão de protecção
jurídica.
No requerimento de interposição solicitou a apreciação da “inconstitucionalidade
interpretativa das normas contidas no artigo 399.º do Código de Processo Penal,
e no n.º 1 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, conjugada
concomitantemente com os seus artigos 27.º e 29º e ainda com o artigo 9.º, n.º 2
do Código Civil, na interpretação emergente do doutíssimo acórdão recorrido no
sentido de que não cabe recurso para o Tribunal da Relação da decisão judicial
tirada sobre impugnação da decisão administrativa que indefere o requerimento de
Protecção Jurídica (…). No seu entender, “Uma tal interpretação dessas
conjugadas normas legais viola os princípios do acesso ao direito e aos
tribunais e do direito ao recurso, imperativos do artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, do
artigo 32.º, n.ºs 1 e 7, do artigo 202.º, n.º 2, e do artigo 203.º, todos da
Constituição da República Portuguesa”.
A fls. 167 e ss. foi proferida decisão sumária com o seguinte teor:
“(…)
2.
O objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º
da LTC circunscreve-se à norma – alegadamente inconstitucional – aplicada como
ratio decidendi da decisão recorrida.
No presente recurso visa o recorrente impugnar uma decisão que lhe teria vedado
o 'acesso ao direito e aos tribunais e do direito ao recurso', razão pela qual
invoca a desconformidade constitucional de um bloco normativo composto pelo
artigo 399º do Código de Processo Penal, o n.º 1 do artigo 28º da Lei n.º
34/2004 de 29 de Julho, conjugada com os seus artigos 27º e 29º e ainda com o
artigo 9º n.º 2 do Código Civil.
Todavia, apesar das considerações que o aresto recorrido tece a propósito da
irrecorribilidade da decisão proferida no tribunal de comarca que mantém a
decisão da autoridade administrativa de indeferimento do pedido de apoio
judiciário, o certo é que a Relação de Lisboa julgou o recurso manifestamente
improcedente, rejeitando-o 'nos termos do artigo 420º n.º 1 do Código de
Processo Penal', o que formalmente significa que o recurso foi objecto de
julgamento.
Por esta razão, não podem figurar como objecto do presente recurso de
constitucionalidade as normas que, no entender do recorrente, teriam impedido a
Relação de julgar o recurso – o artigo 399º do Código de Processo Penal, o n.º 1
do artigo 28º da Lei n.º 34/2004 de 29 de Julho, conjugada com os seus artigos
27º e 29º e ainda com o artigo 9º n.º 2 do Código Civil.
Com este fundamento, isto é, por as normas identificadas como objecto do recurso
não terem sido aplicadas como razão de decidir da decisão impugnada, o Tribunal
não toma conhecimento do recurso.
3.
Todavia, se fosse possível ao Tribunal conhecer do objecto do recurso com o
âmbito que o recorrente pretende fixar no presente caso, seria de fazer notar
que o Tribunal Constitucional se pronunciou recentemente sobre a questão nos
seus Acórdãos n.ºs 427/07 e 500/07 (www.tribunalconstitucional.pt) e que – aliás
na esteira da jurisprudência anterior relativa ao regime constitucional do duplo
grau de jurisdição ou do direito ao recurso de decisões judiciais – neles
afirmou que o legislador ordinário não está vinculado a admitir em todos os
casos um duplo grau de jurisdição, orientação que mantém plena validade quando
se reporta à decisão judicial tirada sobre impugnação da decisão administrativa
que indefere o requerimento de protecção jurídica.
4.
Nestes termos, e face ao disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal
Constitucional, profere-se a presente decisão sumária de não conhecimento do
objecto do recurso.
2.
Vem agora o recorrente reclamar (fls. 172 e ss.) dessa decisão, argumentando nos
seguintes termos:
“(…)
Em decisão sumária vem decidido [não] tomar conhecimento do objecto do presente
recurso por um lado por as normas identificadas como objecto ao recurso não
terem sido aplicadas como razão para decidir na deliberação impugnada e, por
outro, com sucinto fundamento em vasta e uniforme jurisprudência deste Tribunal
no sentido de que o legislador ordinário não está vinculado a admitir em todos
os casos um duplo grau de jurisdição, matéria válida quando se remete para o
instituto de protecção jurídica.
Ora, uma tal decisão enferma, salvo o devido respeito e mais douta opinião, de
grave deficiência de leitura e percepção da douta decisão recorrida na justa
medida em que ela se apoia expressamente nos art.ºs 27.º e 28.º da Lei n.º
34/2004, de 29 de Julho, para concluir pela intervenção única do tribunal de
comarca, como se alcança do § 1.º da sua folha n.º 5, como também se reporta ao
art.º 29.º do mesmo diploma legal no § seguinte para estabelecer interpretação
conceptual da sua epigrafe “Alcance da decisão final”.
Como se havia debruçado sobre a forma de interpretar a lei, apreciando
concretamente a regra do art. 9.º do Código Civil, no § último da folha 4 com
expressiva nota de rodapé n.º 4.
Pelo que não parecem poder existir dúvidas de qualquer espécie quanto à
fundamentação da decisão recorrida nas normas arguidas de inconstitucionalidade
interpretativa no presente recurso.
Já no que tange à questão levantada quanto à ausência de obrigação
constitucional de assegurar um duplo grau de jurisdição sempre terá o recorrente
que, com a devida vénia, fazer reparo a que a vexata quaestio não se conforma à
consistência constitucional da previsão de um verdadeiro duplo grau
jurisdicional antes comporta-se in casu, em bom rigor, com uma única apreciação
jurisdicional recursiva uma vez que a impugnação judicial da decisão
administrativa não configura um qualquer recurso na verdadeira concepção
jurídica, antes é esta impugnação o primeiro acto judicial praticado no
processado tirado sobre o requerimento de protecção jurídica, logo o recurso
para o Tribunal da Relação o primeiro e afinal único grau jurisdicional de
facto.
Nesse sentido aponta, na modesta opinião do recorrente, a simples confrontação
desta tramitação, que o sábio legislador quis subtrair ao método do procedimento
administrativo, em franca desvantagem com qualquer outro acto administrativo
sujeito a essa jurisdição que, nessa fase, comporta dois graus — a reclamação
para o autor do acto e o recurso hierárquico — antes de chegar à dignidade do
recurso contencioso, jurisdicional, onde pode ter consoante as suas
características especificas mais dois graus de jurisdição, afinal num total de
quatro se assim fossem consideradas as instâncias meramente procedimentais
administrativas.
Transformar-se-ia, pois, este basilar instituto de relevância extrema a montante
da lide judiciária e condicionante dela para o cidadão economicamente
desfavorecido de menor importância no edifício dos direitos tutelados pelos
tribunais que uma qualquer bagatela de foro meramente administrativo.
Porém, a questão trazida a este Tribunal Constitucional é a da interpretação das
normas no sentido de ter que se conformar a uma correspondência mínima com o seu
texto e o certo é que a Lei n.º 34/2004, ao contrário da que a antecedeu nesta
matéria e das alterações que o novel texto lhe introduz para vigência num futuro
já próximo, não prevê a irrecorribilidade da decisão judicial que venha tirada
da impugnação da administrativa que indeferira o instituto de protecção
jurídica.
E não estando expressamente prevista a irrecorribilidade dessa decisão cabe
recurso segundo a regra geral do art.º 399.º do Código de Processo Penal.
Nada obstando, por tudo isso, na modesta perspectiva do reclamante, à apreciação
do mérito do presente recurso, sob pena de, em concretização de summum jus,
summa injuria, se estar violando direitos fundamentais de acesso ao direito e
aos tribunais e de recurso, reconhecidos ao cidadão, segundo os tratados e
convenções internacionais ratificados pelo Estado Português, mormente os art.ºs
6.º, n.º 1, 13.º e 14.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do
Homem e das Liberdades Fundamentais que saem, também eles, violados (…)”.
O representante do Ministério Público neste Tribunal, em resposta, considera a
reclamação “manifestamente improcedente”.
Cumpre decidir.
3.
O presente recurso, sendo interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, tem como pressuposto, entre outros requisitos, o de que a norma ou
normas impugnadas pelo recorrente constituam o fundamento normativo da decisão
proferida pelo tribunal a quo.
O que se procurou evidenciar na decisão sumária reclamada, em trecho que o
reclamante acomete imputando-lhe 'grave deficiência de leitura e percepção da
douta decisão recorrida', é que a dita decisão recorrida concluiu – sem qualquer
oportuna reacção do interessado ora reclamante –, com expresso fundamento no
artigo 420.º n.º 1 do Código de Processo Penal, que 'a improcedência do recurso
é manifesta', o que só pode querer significar (pesem embora as eventuais
incongruências de fundamentação que o reclamante erradamente aponta à decisão
sumária) que o Tribunal recorrido não deu por verificada qualquer 'causa que
deveria ter determinado a não admissão do recurso', conforme se dizia, ao tempo,
no aludido preceito, e hoje se consagra na disjunção exposta nas alíneas a) e b)
do n.º 1 do artigo 420º do mesmo Código: ou seja, não considerou irrecorrível a
decisão da 1ª instância. É, assim, de devolver ao reclamante a invocada
'deficiência', por não ter percebido que a parte dispositiva do acórdão
recorrido (erradamente ou não, o Tribunal Constitucional não podendo sindicar
directamente as decisões judiciais recorridas, deve aceitá-las nos seus precisos
termos) invalidava totalmente a possibilidade de um recurso de
inconstitucionalidade com fundamento em norma restritiva da oportunidade de
recorrer.
Além disso, sempre seria inaceitável que o recorrente venha apontar, como
objecto do recurso, a norma do artigo 399.º do Código de Processo Penal,
associada ao 9.º do Código Civil, preceitos que se mobilizam na lógica que
preside à construção da decisão recorrida, mas que não representam a ratio
decidendi dessa decisão.
Apesar disso, o Tribunal adiantou um juízo de mérito da pretensão do reclamante,
caso fosse possível dela conhecer – juízo que, aliás, é inteiramente de manter –
ao expor a orientação que tem seguido nesta matéria; na verdade, se por hipótese
fosse possível admitir que, afinal, o Tribunal recorrido aplicara as normas
27.º, 28.º e 29.º da Lei n.º 34/2004 de 29 de Julho com o significado
questionado pelo recorrente, o certo é que a jurisprudência do Tribunal
(designadamente a consagrada nos recentes Acórdãos n.ºs 427/07 e 500/07 in
www.tribunalconstitucional.pt) aceita que, também no domínio da decisão judicial
tirada sobre impugnação da decisão administrativa que indefere o requerimento de
protecção jurídica, o legislador não está vinculado a admitir um outro grau de
jurisdição, para além do recurso interposto para o tribunal de 1ª instância.
Tal é o suficiente para que se considere que, em nada tendo sido abalado este
entendimento com os argumentos invocados pelo reclamante, sempre seria de manter
o mesmo entendimento.
4.
Termos em que se decide indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2008
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão