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Processo n.º 1077/07
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A fls. 2127 foi preferida a seguinte DECISÃO SUMÁRIA:
A REN - Rede Eléctrica Nacional pretende, ao abrigo do disposto na alínea b) do
n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), impugnar no
Tribunal Constitucional o acórdão de 18 de Setembro de 2007 da 1ª Secção do
Supremo Tribunal Administrativo, pelo qual não foi admitido, com fundamento no
artigo 150º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o recurso
interposto pela recorrente do acórdão proferido em 11 de Julho de 2007 no
Tribunal Central Administrativo Sul que concedeu provimento ao recurso
jurisdicional interposto pela Freguesia de Monte Abraão, revogou a sentença
emitida em 16 de Março de 2007 no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, e
ordenou a suspensão de eficácia do despacho do Director-Geral de Geologia e
Energia que deferira o pedido de licenciamento do projecto 'Linha
Fanhões-Trajouce, a 220 kv, no troço compreendido entre o apoio n.º 46 e a
subestação de Trajouce'.
Sustenta que o aludido artigo 150º do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, entendido num sentido que não permita 'discutir no quadro do
recurso de revista uma questão de direito que tenha como pressuposto necessário
matéria de facto não aceite no acórdão recorrido' – tal como terá sido
interpretado e aplicado na decisão recorrida – comprime intoleravelmente o
direito a uma tutela jurisdicional efectiva, violando por isso o n.º 1 do artigo
20º e o n.º 4 do artigo 268º, ambos da Constituição.
Ora, independentemente de saber se ocorrem no caso os requisitos que condicionam
a admissibilidade do recurso, o certo é que, assim colocada, a questão comporta
uma solução 'simples' (cfr. n.º 1 do artigo 78-A da LTC), por já ter sido
repetidamente objecto de decisões anteriores do Tribunal.
Com efeito, a solução do problema que é concretamente aqui equacionado passa por
se saber se a Constituição impõe (designadamente através dos seus artigos 20º
n.º 1 e 268º n.º 4) que a recorrente beneficie de dois graus de recurso
jurisdicional, discutindo a causa de que é parte em três instâncias.
Todavia, conforme tem sido entendimento firme e constante deste Tribunal, a
Constituição não impõe que o legislador ordinário garanta sempre aos
interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus
direitos.
No Acórdão nº 149/99, de 9 de Março (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt) disse-se:
«De resto e já em termos gerais, na interpretação do disposto no artigo 20º, nº
1 da C.R.P., o Tribunal Constitucional vem reiteradamente entendendo que a
Constituição não consagra um direito geral de recurso das decisões judiciais,
afora aquelas de natureza criminal condenatória e, aqui, por força do artigo
32º, nº 1 da Lei Fundamental (cfr., por todos, Acórdão nº 673/95 in DR, II
Série, de 20/3/96); e no mesmo sentido aponta a maioria da doutrina (cfr.
Ribeiro Mendes “Direito Processual Civil” AAFDL, vol. III pp. 124 e 125 e Vieira
de Andrade “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976” pp. 332
e 333)».
E, entre muitos outros, no Acórdão nº 431/02 de 22 de Outubro de 2002,
disponível no mesmo sitio, reitera-se:
'De facto, é jurisprudência firme deste Tribunal que a Constituição, maxime, o
direito de acesso aos tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta
sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa
dos seus direitos, destacando-se os Pareceres da Comissão Constitucional nºs.
8/78 (5º vol.) e 9/82 (19º vol.) e o Acórdão nº 65/88, de 23 de Março, in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 653 a 670.'
Em suma, uma vez que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador
ordinário que garanta aos interessados o acesso a três diferentes graus de
jurisdição para defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos,
antes lhe assiste uma ampla margem de liberdade na conformação do direito ao
recurso, importa, reafirmando a jurisprudência acima referida, concluir pela não
inconstitucionalidade da norma sindicada.
É, por isso, possível desde já adoptar o julgamento de que o artigo 150º do
Código de Processo nos Tribunais Administrativos, entendido no sentido que não
admitir o recurso 'excepcional' de revista para análise de questões de direito
que apresentem 'como pressuposto necessário matéria de facto não aceite no
acórdão recorrido', não ofende a Constituição.
Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, julga-se,
sumariamente, o recurso improcedente.
Inconformada, a recorrente reclama desta decisão, dizendo:
1.º A decisão sumária ora reclamada é nula.
2.º O artigo 668º/1 d) do CPC, aplicável ex vi do artigo 67º da LTC determina
que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que
devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
3.º A alínea c) do mesmo artigo 668.º/1 do CPC tem por nula a sentença em que a
decisão colida com os fundamentos em que se baseia.
4.º O Venerando Juiz Conselheiro Relator não podia tomar conhecimento de um
problema que não foi colocado pela recorrente: “saber se a Constituição impõe
(designadamente através dos seus artigos 20º n.º 1 e 268º n.º 4) que a
recorrente beneficie de dois graus de recurso jurisdicional, discutindo a causa
de que é parte em três instâncias” (cf. fls. 2 da douta decisão sumária ora
reclamada).
5.º E deixou por conhecer a questão que lhe foi colocada que era a de saber,
como de resto se regista na parte introdutória da douta decisão sob censura, se
“o artigo 150º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, entendido
num sentido que não permita «discutir no quadro do recurso de revista uma
questão de direito que tenha como pressuposto necessário matéria de facto não
aceite no acórdão recorrido» — tal como terá sido interpretado e aplicado na
decisão recorrida — comprime intoleravelmente o direito a uma tutela
jurisdicional efectiva, violando por isso o n.º 1 do artigo 20.º e n.º 4 do
artigo 268.º, ambos da Constituição” (Cf. fls. 1 da douta decisão sumária).
6º Acresce que, tendo-se sustentado a decisão na jurisprudência (pacífica, de
resto) de que o direito de recurso não exige, à luz da Constituição, a
existência de três instâncias jurisdicionais, concluiu algo que manifestamente
não tem que ver com essa premissa, isto é, decidiu “adoptar o julgamento de que
o artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, entendido no
sentido que não admitir o recurso «excepcional» de revista para análise de
questões de direito que apresentem «como pressuposto necessário matéria de facto
não aceite no acórdão recorrido» não ofende a Constituição”
A questão que a decisão ilegalmente conheceu
7º Considerou o Venerando Juiz Conselheiro Relator que a questão era “simples”
porque recondutível à jurisprudência estável deste Tribunal Constitucional no
sentido de que não é condição de cumprimento do princípio invocado pela
recorrente a existência de três instâncias.
8º Nessa base, considerou que tal questão, por ser “simples” e se poder apoiar
em jurisprudência firme e constante do Tribunal, admitia, à luz do artigo
78º-A/1 da LTC, a decisão sumária que foi prolactada.
9º Porém, basta ler os termos da petição de recurso e a resposta da aqui
reclamante ao douto despacho prolactado nestes autos pelo Ilustre Conselheiro
Relator em 26 de Novembro de 2007, para imediatamente se perceber que não foi
este o fundamento da impugnação da decisão do STA.
10.º Nem o poderia ter sido na medida em que a existência de uma terceira
instância não é algo que a recorrente reivindique por apelo à Constituição; é,
neste caso, uma realidade inequivocamente consagrada na lei!
11.º Na verdade, o artigo 150º do CPTA prevê expressamente a existência de uma
segunda instância de recurso, ainda que restrito e excepcional, pelo que não
poderia a ora reclamante solicitar a este Colendo Tribunal que sob a luz da
Constituição achasse na lei aquilo que a lei expressamente consagra!
12.º Não se questionou por isso, ao invés do que se extrai da douta decisão ora
censurada, que o STA julgou em desconformidade com a Constituição porque
entendeu que a Constituição “não consagra um direito geral de recurso das
decisões judiciais” e nessa medida — ressalvado o devido respeito, que é muito —
carece de sentido a chamada à colação o Acórdão nº 149/99, de 9 de Março para
motivação da decisão sob censura.
13.º Como também não se pediu a este Venerando Tribunal que contrariasse o
entendimento, por ser desconforme com o princípio que se desprende v.g. dos
artigos 200/1 e 2680/4 da Constituição, segundo o qual “o direito de acesso aos
tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados
o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos”, pelo
que exorbita do objecto do presente recurso, e conduz a uma conclusão
jurisdicional nula a invocação da doutrina do Acórdão no 431/02, de 22 de
Outubro.
14.º Ora, como decorre do disposto no artigo 660.º/2 do CPC, e constitui
princípio aplicável a todos os processos, são os termos e fundamentos do recurso
que delimitam objectivamente o thema decidendum, não podendo o julgador
“ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes”, salvo no caso de a lei
permitir ou obrigar ao conhecimento oficioso de outras questões.
A questão que o Tribunal ilegalmente deixou por conhecer
15.º A aqui reclamante, não se conformando com o douto acórdão do Tribunal
Central Administrativo Sul que revogou a decisão de 1.ª instância que houvera
recusado uma providência cautelar no sentido de suspender os efeitos de acto de
licenciamento de uma linha de transporte de electricidade em muito alta tensão,
adoptando providência de efeito equivalente, dele interpôs recurso de revista ao
abrigo do artigo 150.º do CPTA.
16.º Nesse recurso, consciente do carácter excepcional da intervenção do STA, a
ora reclamante alegou e procurou comprovar a verificação dos critérios de que a
lei faz depender a sua admissão.
17.º Compulsando os autos do recurso de revista, imediatamente se percebe que a
REN, face ao impacto que o decretado desligamento da linha, ainda que
provisório, poderia vir a ter nas famílias, nas empresas, nas instituições de
interesse geral primário (como são hospitais, centros de saúde, transportes
públicos de massas movidos a electricidade, sedes de instituições públicas...)
de uma zona vastamente povoada como o é a área ocidental da Grande Lisboa
(abrangendo parte da Cidade de Lisboa e os Concelhos de Oeiras, Sintra e
Cascais), tornava a questão trazida ao conhecimento do STA por esta via, numa
questão que pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância
fundamental (Cf. 1500/1 do CPTA).
18.º A Ilustre formação de julgamento do STA, constituída nos termos e para os
efeitos do artigo 150º/5 do CPTA, decidiu-se pela não admissão do recurso, por
entender, em essência, que “se não pode discutir no quadro do recurso de revista
uma questão de direito que tenha pressuposto necessário matéria de facto não
aceite no acórdão recorrido” (Cf. Ac. de 18 de Setembro do STA, proferido n.º
718/07-11, a fls...).
19.º Entendimento que renovou na decisão que recaiu sobre a Reclamação para a
Conferência deduzida pela aqui reclamante contra aquele acórdão, proferida em 25
de Outubro, a fls. … do Pº 718/07-11.
20.º Ora, foi esta dimensão normativa dada pela Ilustre Formação de Julgamento
do STA ao artigo 150.º/1 do CPTA, rectius aos critérios de que a lei faz
depender a admissão do recurso excepcional de revista, que a reclamante REN
considerou, e continua convictamente a considerar desconforme com princípio
basilar da nossa ordem jurídica, consagrado nos artigos 20.º/1 e 268.º/4 da Lei
Fundamental.
21.º É que, como se alegou perante o STA para demonstrar o erro de julgamento e
a infracção ao princípio da tutela jurisdicional efectiva em que a sua decisão
incorre, para além de serem muito poucas as situações em que a boa aplicação de
lei substantiva não obrigue o Julgador a olhar para as concretas circunstâncias
de facto de modo a verificar a sua inclusão no Tatbestand da norma — pois é
nisso que consistem as operações intelectuais de interpretação e aplicação do
Direito —, um dos pressupostos da admissibilidade do recurso de revista apela
claramente ao conhecimento pelo STA de matéria de facto — quando em causa esteja
questão de importância fundamental de relevância social.
22.º Alegou-se ainda que, face à lei interpretada à luz dos princípios da tutela
jurisdicional efectiva e pro accione, não é pensável aquilatar da
fundamentalidade e da essencialidade de uma “questão social” sem descer ao plano
dos factos, sem verificar os impactos que o julgado nas instâncias tem na
sociedade.
23.º E recordou-se aí o sábio ensinamento do Professor Antunes Varela sobre esta
matéria, palavras que se ajustam ao propósito de demonstrar a desconformidade da
decisão baseada na premissa em que se baseou:
“Há que distinguir nesses juízos de facto (juízos de valor sobre matéria de
facto) entre aqueles cuja emissão ou formulação se há-de apoiar em simples
critérios próprios do bom pai de família, do homo prudens, do homem comum e
aqueles que, pelo contrário, na sua formulação apelam essencialmente para a
sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador.
Os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto e a última
palavra acerca deles, por isso mesmo, deve caber à Relação. Os segundos estão
mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei
e, por isso, o Supremo pode e deve, como tribunal de revista, controlar a sua
aplicação” (Destacado nosso. Cfr. Anotação ao Acórdão do STJ de 8 de Outubro de
1984, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122.º, n.º 3784, p. 220).
24.º Tudo para concluir que a correcta interpretação do artigo 150.º/1, aferida
à luz da Constituição, deveria levar os Venerandos Conselheiros do STA a
julgarem que a qualificação da questão como de importância fundamental e de
essencial relevância social, é inquestionavelmente uma questão de direito, ainda
que implique aferir da ponderação dos factos realizada (ou omitida) pelo
Tribunal Central Administrativo, chamando à colação acórdãos daquele tribunal
superior em que esse julgamento foi assim feito.
25.º Já na petição de recurso por inconstitucionalidade a aqui reclamante
desenvolveu a argumentação visando demonstrar a violação, pela decisão
confirmada pelo acórdão que pôs termo à reclamação para a conferência, do
princípio ínsito nos artigos 20º/1 e 268º/4 da Constituição.
26º Com efeito, nesse requerimento alegou-se e concluiu-se em síntese o
seguinte:
“(A) A fiscalização concreta da constitucionalidade da interpretação feita pela
Ilustre Formação do STA que proferiu a decisão de rejeitar o recurso de revista
é meio indispensável para salvaguardar a inviolabilidade, no caso concreto, dos
artigos 20.º e 268.º n.º 4 da Constituição.
(B) O presente recurso da inconstitucionalidade é ainda o único meio processual
para, atenta a importância fundamental das questões que motivam o recurso de
revista, sindicar a legalidade e constitucionalidade do acórdão do TCA Sul que,
ao revogar a decisão da 1. instância, determinou a suspensão da eficácia de
decisão que licenciou à aqui recorrente uma linha de transporte em muito alta
tensão de energia eléctrica, essencial para garantir a segurança e continuidade
do abastecimento da electricidade a uma parte da região de Lisboa.
(C) Ao entender que o recurso de revista apelava ao julgamento de matéria de
facto, considerando vedado ao STA esse julgamento no recurso de revista, a douta
decisão recorrida ofende o principio da tutela jurisdicional efectiva consagrado
nos artigos 20.º n.º 1 e 268.º n.º 4 da Constituição por reduzir
intoleravelmente face a este princípio o alcance do artigo 150.º n.º 1 do CPTA.
(D) A recorrente e ora requerente sustenta o presente recurso no artigo 70.º n.º
1 al. a) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro e o presente requerimento preenche
os demais requisitos de admissibilidade previstos no artigo 75.º -A da mesma
lei.
(E) A recorrente e ora requerente suscitou expressamente a questão da
inconstitucionalidade na Reclamação para a Conferência que deduziu da decisão de
rejeição, em sede de análise preliminar, do recurso de revista.
(F) Para o caso — improvável mas que aqui se hipotisa por cautela de patrocínio
— de se ver rejeitada a Reclamação para a Conferência, deve considerar-se
oportuna a alegação de inconstitucionalidade feita no presente requerimento por
ser logicamente impossível à recorrente invocar, com anterioridade, a
desconformidade da interpretação e aplicação do artigo 150.º n.º 1 do CPTA com
os citados princípio e normas da Constituição, vez que a decisão ora impugnada
tem o carácter de uma decisão-surpresa, encontrando-se outrossim esgotado o
poder jurisdicional no âmbito da jurisdição administrativa” (a fls. ...).
27.º Pese embora o facto de o STA ter sustentado as suas decisões, admitiu o
presente recurso de inconstitucionalidade, fazendo-o subir a este Venerando
Tribunal Constitucional.
28.º Nesta instância, teve a ora reclamante oportunidade de voltar a colocar a
questão da inconstitucionalidade nos precisos termos que motivam o presente
recurso, desta feita em resposta ao despacho do Ex.mo Juiz Conselheiro Relator
que, por despacho de 26 de Novembro p.p. prolactado ao abrigo do artigo 75-A/5
do LTC, convidou a REN a “enunciar o exacto sentido da interpretação normativa
cuja conformidade constitucionalidade pretende questionar, indicando a peça
processual em que suscitou a questão da inconstitucionalidade” (a fls. ...).
29.º Assim, em resposta, a aqui reclamante esclareceu que:
(i) A Ilustre Formação de Julgamento do STA que decidiu rejeitar o recurso de
revista fundou esta decisão com base num pretenso axioma, assente na
interpretação do artigo 150.º/1 do CPTA, segundo a qual “não se pode discutir no
quadro do recurso de revista uma questão de direito que tenha como pressuposto
necessário matéria de facto não aceite no acórdão recorrido”.
(ii) É esta dimensão dada à norma do artigo 150.º/1 do CPTA que se considera não
tolerável pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva, coevo do princípio do
Estado de Direito, e expressamente consagrado pelas normas do n.º 4 do artigo
268.º e n.º 1 do artigo 20.º da Lei Fundamental.
30.º A despeito de sempre ter sido esta a questão da inconstitucionalidade
colocada nos autos e reiterada na resposta ao despacho do Venerando Conselheiro
Relator, a decisão sumária de que ora se reclama para a Conferência não lhe
corresponde, dando resposta a questão distinta como é a de saber se vigora ou
não obrigação constitucional de existência, em geral, de três instâncias de
apreciação jurisdicional.
31.º Certo é que, a REN, ainda que consciente da excepcionalidade do recurso de
revista, não pode aceitar que a interpretação feita na decisão recorrida dos
conceitos abertos do artigo 150.º/1 do CPTA que funcionam como critérios de
admissão das decisões de 2.ª instância se conformem com o princípio afirmado
pelos artigos 20.º/1 e 268.º/4 da Lei Fundamental.
32.º Aí se afirma o princípio pro accione que deve orientar o legislador, mas
também o Julgador na integração e aplicação ao caso concreto de conceitos
indeterminados como são os que constam do artigo 150.º/1 do CTPA.
33.º Apesar de o direito de acesso aos tribunais e à justiça implicar clareza e
certeza no modo da sua efectiva concretização legal (Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 6.ª ed., 2002, p. 493) não se
questiona a constitucionalidade da utilização pelo legislador desses conceitos
abertos que fazem apelo a discricionariedade prudente do Julgador, com a
garantia de o Julgador ser aqui um Colectivo constituído por Juízes Conselheiros
experientes e sabedores de acordo com o n.º 5 do artigo 150.º do CPTA.
34.º Mas a constitucionalidade in concreto só será assegurada se o preenchimento
desses conceitos for feita com respeito pelos princípios da proporcionalidade
(Cf. Miguel Crespo, O Recurso de Revista no Contencioso Administrativo, Coimbra,
2007, pp. 233 e ss), e pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva.
35.º Em especial este último princípio implica, tal como se alegou, que na
aplicação dos critérios de admissão do recurso de revista não prevaleça uma
formulação que contrarie a dimensão constitucional do direito de acesso à
justiça.
36.º Ora, julgar-se que o artigo 150.º/1 do CPTA veda ao STA o conhecimento de
matéria de facto não é, como se pretende, concretizar a excepcionalidade deste
tipo de recurso; é reduzir a intensidade do direito que o artigo 150.º/1
consagra de sindicar as decisões de 2 instância quando em causa estejam questões
fundamentais decorrentes da sua relevância jurídica ou social.
37.º Para a ora reclamante, a questão da justa ponderação de interesses
presentes na providência cautelar é, em si mesma, uma questão de relevância
jurídica evidente e quase intuitiva porquanto essa ponderação mais não é do que
o cumprimento do princípio da proporcionalidade nas suas diferentes vertentes.
38.º Mas mesmo que assim não se entendesse, é evidente que a questão tem na sua
base algo cuja relevância social é manifesta, para não dizer, pública e notória:
as implicações na sociedade (nas famílias, nas empresas, nas instituições, no
funcionamento da economia, na qualidade de vida das pessoas) do desligamento de
uma linha que transporta energia eléctrica, em sede de acção cautelar.
39.º Se uma questão deste jaez e com estas potenciais implicações não tem
relevância social para os efeitos do artigo 150.º/1 do CPTA, dificilmente se
adivinha qual é a questão que a possa ter...
40.º Porque, pela natureza das coisas, aquilatar da importância fundamental pela
relevância social de uma questão, obriga necessariamente a sindicar a ponderação
que dos factos foi feita na instância recorrida.
41.º Sob pena de se anular parte do alcance e utilidade do instituto consagrado
no artigo 150º/1 do CPTA.
42.º Ora, é esta dimensão normativa, restritiva do alcance da revista, que se
entende manifestamente contrária aos princípios que se extraem dos invocados
artigos da Lei Fundamental.
43.º Como escreve Miguel Crespo num notável trabalho monográfico sobre este meio
de impugnação “a efectividade da tutela jurisdicional traduz-se numa
materialidade da garantia de que emana uma prevalência da justiça material sobre
a formal apresentando dois âmbitos diversos de aplicação: em primeiro lugar
dirige-se ao legislador processual, com a capacidade de cominar com
inconstitucionalidade as normas que, por exemplo, comportassem limitações
desproporcionadas aos poderes de cognição do tribunal; depois, num outro
patamar, essa garantia foi consubstanciada como uma “directiva constitucional
sobre o juiz” por via da imposição de uma interpretação das normas jurídicas
processuais preferentes à pronúncia de uma decisão de mérito” (Cf. O Recurso de
Revista no Contencioso Administrativo, Coimbra, 2007, p. 240).
44.º Ora, foi neste âmbito que a questão da constitucionalidade da decisão do
STA foi colocada e tem de ser neste âmbito que a mesma deve ser julgada por este
Venerando Tribunal, como o não foi na decisão sumária de que ora se reclama.
Da contradição entre os fundamentos e a decisão
45.º Ao que antecede, acresce que a conclusão a que se chegou na decisão sumária
ora reclamada não é coerente com as premissas de que partiu.
46º Partiu-se da premissa de que a decisão era “simples” porque correspondia a
saber se sim ou se não, o direito de acesso aos tribunais exige a existência de
uma tripla instância de conhecimento jurisdicional.
47.º E chegou-se à conclusão que nada tem que ver com aquele ponto de partida —
e cita-se com a devida vénia — segundo a qual “o artigo 150º do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos, entendido no sentido de não admitir o
recurso “excepcional” de revista para análise de questões de direito que
apresentem “como pressuposto necessário matéria de facto não aceite no acórdão
recorrido” não ofende a Constituição” (fls. 3 da douta decisão aqui reclamada).
48.º A sentença — toda a sentença — tem de consubstanciar um silogismo lógico, e
é por isso que o artigo 668º/1 c) do CPC comina de nulidade aquelas em que, como
no presente caso, os fundamentos estejam em contradição com as conclusões.
Termos em que, e nos demais de Direito que resultem do muito douto e sábio
suprimento de V.Ex.as Venerandos Conselheiros, se deve conceder provimento à
presente reclamação, julgando nula a decisão sumária de 13 de Dezembro de 2007,
substituindo-a por outra que conceda provimento ao recurso de
inconstitucionalidade.
A recorrida respondeu, entendendo que deverá manter-se a decisão reclamada.
2. Cumpre decidir.
Recorde-se que o recurso interposto pela reclamante tem natureza puramente
normativa, pelo que não é possível, através dele, sindicar directamente a
decisão recorrida ou os juízos jurisdicionais nela contidos.
A questão colocada ao Tribunal deverá, por isso, traduzir-se na acusação de
inconstitucionalidade de norma efectivamente aplicada como ratio decidendi na
decisão recorrida, o que implica, desde logo, que haja um nexo de identidade
formal entre a determinação legal e a norma que dela é retirada e definida pelo
recorrente como objecto do seu recurso.
Ora, salta à vista que ao enunciar como norma pretensamente retirada do artigo
150º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 'um sentido que não
permita discutir no quadro do recurso de revista uma questão de direito que
tenha como pressuposto necessário matéria de facto não aceite no acórdão
recorrido', a reclamante está a pretender questionar outra realidade, que não
uma regra jurídica contida no aludido preceito que, literalmente, afirma o
seguinte:
Artigo 150º
Recurso de revista
1 — Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central
Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal
Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua
relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a
admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do
direito.
2 — A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou
processual.
3 — Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista
aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.
4 — O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa
não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa
de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a
força de determinado meio de prova.
5 — A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os
pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser
objecto de apreciação preliminar sumária, a cargo da formação de três juízes à
qual caiba o julgamento da revista.
Com efeito, a reclamação vem relaçar que a reclamante pretende, essencialmente,
contestar a solução que o Supremo Tribunal Administrativo adoptou no âmbito do
recurso previsto pela norma, ao julgar que o regime do recurso previsto no
aludido artigo 150º não permite discutir no quadro do recurso de revista uma
questão de direito que tenha como pressuposto necessário matéria de facto não
aceite no acórdão recorrido. Ou seja: aquilo a que a reclamante erradamente
chama 'dimensão normativa' adoptada pelo Tribunal recorrido é, e sem sombra de
dúvida, a própria decisão recorrida, que, no entender da interessada, padece de
'erro de julgamento' por infringir o 'princípio da tutela jurisdicional
efectiva'. E acrescenta: 'face à lei interpretada à luz dos princípios da tutela
jurisdicional efectiva e pro accione, não é pensável aquilatar da
fundamentalidade e da essencialidade de uma “questão social” sem descer ao plano
dos factos, sem verificar os impactos que o julgado nas instâncias tem na
sociedade', razão pela qual alega que 'a correcta interpretação do artigo
150.º/1, aferida à luz da Constituição, deveria levar os Venerandos Conselheiros
do STA a julgarem que a qualificação da questão como de importância fundamental
e de essencial relevância social, é inquestionavelmente uma questão de direito,
ainda que implique aferir da ponderação dos factos realizada (ou omitida) pelo
Tribunal Central Administrativo, chamando à colação acórdãos daquele tribunal
superior em que esse julgamento foi assim feito.'
Ora, ciente de que não é possível ao Tribunal, no âmbito do recurso previsto na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, sindicar o julgamento do tribunal
recorrido, apurando se ele é de molde a infringir a Constituição, a decisão
sumária em análise entendeu desvalorizar essa pretensão claramente proibida pela
citada disposição legal, procurando todavia descortinar um possível entendimento
normativo, condizente – por manifesta deficiência de enunciação de qualquer
outra com igual natureza – com o sentido literal da norma. Também por isso se
afirmou, no exercício de uma prática pouco inclinada a tentar demonstrar aquilo
que é óbvio, que 'independentemente de saber se ocorrem no caso os requisitos
que condicionam a admissibilidade do recurso, o certo é que, assim colocada, a
questão comporta uma solução 'simples' (cfr. n.º 1 do artigo 78º-A da LTC), por
já ter sido repetidamente objecto de decisões anteriores do Tribunal'. Com
efeito, a discussão do problema numa base puramente normativa sempre passaria
'por se saber se a Constituição impõe (designadamente através dos seus artigos
20º n.º 1 e 268º n.º 4) que a recorrente beneficie de dois graus de recurso
jurisdicional, discutindo a causa de que é parte em três instâncias', solução
repetidamente afastada pelo Tribunal.
É, por isso, inexistente o vício apontado à decisão sumária.
3. Decide-se, por isso, indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando a taxa de justiça em 25 UC.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2008
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão