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Processo n.º 60/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional
Relatório
Por apenso ao processo de oposição a execução fiscal n.º 15/2000, que correu os
seus termos no Tribunal Tributário de Primeira Instância de Coimbra e que depois
transitou para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, A. veio requerer a
revisão da sentença ali proferida e já transitada em julgado, ao abrigo do
disposto no artigo 293.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário de
1999.
A referida pretensão foi liminarmente indeferida por decisão do Juiz do
Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.
O Requerente interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal Central
Administrativo Norte, tendo este tribunal superior decidido não conhecer da
totalidade do respectivo objecto.
Inconformado com a referida decisão de segunda instância, o Requerente viria
ainda a interpor recurso da mesma para o Supremo Tribunal Administrativo, não
tendo este recurso sido admitido pelo Juiz Desembargador relator do Tribunal
Central Administrativo Norte, desta feita com fundamento na aplicação do
disposto no artigo 120.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais,
aprovado pelo DL n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção introduzida pelo DL n.º
229/96, de 29 de Novembro.
Igualmente insatisfeito com esta decisão, o Requerente deduziu reclamação contra
a mesma para o Senhor Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, o qual,
mediante despacho datado de 27 de Novembro de 2007, entendeu igualmente que o
pretendido recurso para o Supremo Tribunal Administrativo não era legalmente
admissível e desatendeu a reclamação, reproduzindo, no essencial, a
fundamentação da decisão reclamada.
O Requerente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional desta última
decisão judicial, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º,
da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(LTC), pedindo a fiscalização concreta da constitucionalidade da norma constante
do artigo 120.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado
pelo DL n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção introduzida pelo DL n.º 229/96,
de 29 de Novembro.
Na óptica do Recorrente, tal norma encontra-se ferida de inconstitucionalidade
material, por violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa (CRP).
Em 30-1-2008 foi proferida decisão sumária que julgou manifestamente
improcedente o recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
“O Recorrente requer a apreciação da constitucionalidade da norma constante do
artigo 120.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo
DL n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção introduzida pelo DL n.º 229/96, de 29
de Novembro, que veio pôr termo à solução normativa da existência de um terceiro
grau de jurisdição em sede de contencioso tributário.
A constitucionalidade da referida norma já foi apreciada em diversas ocasiões
pelo Tribunal Constitucional, o qual concluiu, invariavelmente, pela
conformidade da referida norma com as regras e princípios constitucionais.
Contudo, não deixará de se equacionar sucintamente os dados da questão e
relembrar a resposta dada pela justiça constitucional.
O artigo 120.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF),
aprovado pelo DL n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção introduzida pelo DL n.º
229/96, de 29 de Novembro, vigente desde 15 de Setembro de 1997, apresenta a
seguinte redacção:
“A extinção do anterior 3.º grau de jurisdição no contencioso tributário operada
pelo presente diploma apenas produz efeitos relativamente aos processos
instaurados após a sua entrada em vigor”.
Por seu turno, o n.º 1, do art. 20.º, da C.R.P., prescreve que:
“A todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus
direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada
por insuficiência de meios económicos”.
Dispõe ainda o n.º 2, do art. 202.º, da C.R.P., que:
“Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação
da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e
privados”.
Com incidência na área específica da justiça administrativa – e ainda que não
tenha sido invocado pelo Recorrente –, concretiza o n.º 4, do art. 268.º, da
C.R.P. que:
“É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos
ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento
desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos
que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de
actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares
adequadas”.
Movendo-se no quadro normativo acabado de enunciar, o Senhor Presidente do
Supremo Tribunal Administrativo decidiu, no âmbito de uma reclamação –
concretamente apresentada em sede de recurso extraordinário de revisão requerido
por referência a uma sentença transitada em julgado num processo de oposição a
execução fiscal –, confirmar a decisão de não admissão de recurso interposto de
acórdão proferido, em recurso, pelo Tribunal Central Administrativo.
O Recorrente entende que a referida norma constante do ETAF, que nega a
possibilidade da existência de um terceiro grau de jurisdição em matéria de
contencioso tributário, viola o direito fundamental de acesso ao Direito e aos
tribunais, bem como a norma constitucional que delimita a reserva de competência
jurisdicional.
A propósito da pretensa violação do direito fundamental de acesso ao Direito e
aos tribunais, o recentíssimo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 40/2008
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), fez um excurso pela anterior
jurisprudência e relembrou que:
“Ora, relativamente ao direito de acesso aos tribunais, constitui
reiterado entendimento deste Tribunal o de que do artigo 20.º, n.º 1, da CRP
não decorre um direito geral a um duplo grau de jurisdição, como já se
explicitou nos atrás parcialmente transcritos Acórdãos n.ºs 489/95 e 1124/96.
Como se referiu no Acórdão n.º 638/98 (na senda do já exposto, entre outros, nos
Acórdãos n.ºs 210/92, 346/92, 403/94, 475/94, 95/95, 270/95, 336/95, 715/96,
328/97, 234/98 e 276/98, e explicitando orientação posteriormente reiterada em
numerosos arestos, designadamente nos Acórdãos n.ºs 202/99, 373/99, 415/2001,
261/2002, 302/2005, 689/2005, 399/2007 e 500/2007):
“7. O artigo 20.º, n.º 1, da Constituição assegura a todos «o acesso ao direito
e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente
protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios
económicos».
Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei
aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência,
e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz
respeito à defesa dos respectivos pontos de vista (designadamente sem que a
insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Ao fim e
ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes
direitos e interesses legalmente protegidos.
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo‑se nele
também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso
para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil;
e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei
Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo 32.º, a
menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando,
aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a
qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na
medida (mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo
essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo 32.º.
Para além disso, algumas vozes têm considerado como constitucionalmente
incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de
decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente
garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este respeito, as declarações de
voto dos Conselheiros Vital Moreira e António Vitorino, respectivamente no
Acórdão n.º 65/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, p. 653, e no
Acórdão n.º 202/90, id., vol. 16.º, p. 505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir
ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A.
Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III – Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982,
p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais
(com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria
do Tribunal Constitucional – artigo 210.º), terá de admitir‑se que «o
legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os
próprios recursos» (cf., a este propósito, Acórdãos n.º 31/87, Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 9.º, p. 463, e n.º 340/90, id., vol. 17.º, p.
349).
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode
concluir‑se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a
faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática.
Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a
existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cf. os citados
Acórdãos n.ºs 31/87 e 65/88, e ainda n.º 178/88 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol.. 12.º, p. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional,
ainda Acórdãos n.º 359/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8.º, p.
605), n.º 24/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, p. 525) e n.º
450/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13.º, p. 1307).
O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das decisões penais
condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer decisões que
tenham como efeito afectar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente
reconhecidos. Quanto aos restantes casos, goza de ampla margem de manobra na
conformação concreta do direito ao recurso, desde que não suprima em globo a
faculdade de recorrer.»
Em conformidade com esta posição, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão
n.º 520/2007 (publicado no DR, II Série, de 5 de Dezembro de 2007), já se tinha
pronunciado pela constitucionalidade do art. 120.º, do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais, aprovado pelo DL n.º 129/84, de 27 de Abril, na
redacção introduzida pelo DL n.º 229/96, de 29 de Novembro, na interpretação
segundo a qual a abolição de um terceiro grau de jurisdição no contencioso
tributário torna inadmissível o recurso da decisão proferida em segunda
instância, pelo Tribunal Central Administrativo, mesmo que o fundamento do
recurso seja a incompetência em razão da hierarquia deste tribunal, deixando
então bem claro, e com igual relevância para o presente recurso de
constitucionalidade, que:
“(…) este direito [de acesso aos tribunais] não foi de modo algum negado à
recorrente, que impugnou judicialmente uma liquidação de imposto efectuada pelo
fisco, tendo obtido uma primeira decisão jurisdicional que julgou a sua
pretensão, a qual foi ainda objecto de uma segunda apreciação, em recurso, por
tribunal superior.
Mostram-se, pois, observadas as exigências constitucionais do direito ao acesso
aos tribunais e à tutela jurisdicional, contidas nos artigos 20.º, n.º 1, e
268.º, n.º 4, da CRP”.
Não existe qualquer razão válida para divergir da aludida jurisprudência
constitucional, a qual é inteiramente transponível para o caso concreto e com as
mesmas consequências.
Sendo, pois, manifestamente improcedente o recurso, deve ser proferida decisão
sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
O recorrente reclamou desta decisão com os seguintes fundamentos:
“Justifica a sua reclamação no facto da questão por si levantada, ser
pertinente, em seu entender, porquanto não houve imparcialidade por parte do
órgão decisor, violando, assim, o preceituado no art.º 20.º nº 1, da
Constituição.
Por outro lado, o recentíssimo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 40/2008,
até vem em defesa da tese defendida pelo recorrente, quando releva as vozes que
têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de
Direito Democrático, o direito ao recurso de decisões que afectem direitos,
(como é o caso nos presentes autos), liberdades e garantias (no caso, de
imparcialidade do órgão decisor e que não se verificou, até, em 2.º grau de
jurisdição), mesmo fora do âmbito penal, (Cfr. Vital Moreira e António Vitorino,
nos actos referidos no próprio Acórdão que vimos citando).
Mas o Acórdão diz, ainda, que, nos restantes casos, todavia, o legislador apenas
não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer o que,
em nosso entender, faz no caso em apreço, coarctando, assim, a possibilidade de
recurso.
Por fim e ainda com base no Acórdão referido, o mesmo diz-nos que, “Como a Lei
Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o
legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer
em todo e qualquer caso ou de a inviabilizar na prática (sublinhado é nosso)”.
Ora, no caso em análise, é, justamente, o que se verifica, daí a pertinência do
recurso e da presente reclamação, uma vez que o legislador terá de assegurar o
recurso de quaisquer decisões que afectem direitos, liberdades e garantias,
constitucionalmente reconhecidas.
Entendemos, pois, que deve ser provida a presente reclamação e o recorrente
notificado para apresentar alegações, nos termos do nº 5, do mesmo normativo
supra citado.”
A Fazenda Pública, respondeu a esta reclamação nos seguintes termos:
“A decisão sumária reclamada não merece qualquer censura.
Ela corresponde à jurisprudência dominante desse Tribunal em matéria do acesso
aos tribunais e direito ao recurso.
Acresce que, no caso em apreço, não foi totalmente inviabilizada ou suprimida a
faculdade de recorrer.
Pelo contrário, foi possibilitado o recurso da sentença de 1ª instância para o
TCAN e o acórdão proferido por este último tribunal era susceptível de recurso
por oposição de acórdãos, nos termos do art. 284.º do C.P.P.T.
Não assiste, pois, a menor razão ao reclamante pelo que a presente reclamação só
pode ser indeferida.”
*
Fundamentação
A decisão reclamada reflecte uma posição consolidada do Tribunal Constitucional
relativamente à inexigência de um terceiro grau de jurisdição.
E a doutrina do citado acórdão n.º 40/2008 em nada altera essa posição.
Quando nele se diz que a decisão que viole direitos fundamentais é
necessariamente recorrível reporta-se apenas aquelas decisões que por si mesmas,
afectem, de forma directa, um direito fundamental de um cidadão, o que não
sucede no presente caso em que a decisão considerada irrecorrível pertenceu a um
tribunal de 2ª instância que se limitou a apreciar um recurso interposto de
sentença proferida por um tribunal da 1ª instância que julgou improcedente um
pedido de revisão.
E quando no mesmo acórdão se refere que o legislador ordinário está impedido de
suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer reporta-se a um
primeiro recurso e não à extinção de um segundo grau de recurso, o qual não é
garantido por nenhum parâmetro constitucional.
O recurso interposto revela-se, pois, manifestamente improcedente, pelo que a
reclamação deve ser indeferida.
*
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão sumária
proferida nestes autos em 30-1-2008.
*
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do D.L. n.º 303/98,
de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 4 de Março de 2008
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos