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Processo nº 1068/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. A., Lda., vem, a fls. 600 e segs., reclamar para a conferência da decisão
sumária de fls. 587 e segs., que decidiu não tomar conhecimento do recurso de
constitucionalidade por aquela interposto após ter sido notificada do acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de fls. 553 e segs. Pode ler-se na fundamentação da
decisão ora reclamada:
3. Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que
admitiu o recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 76.º da Lei do Tribunal
Constitucional, entende-se não se poder conhecer do objecto do mesmo, sendo caso
de proferir decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo
diploma.
4. Com efeito, tratando-se de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, são pressupostos para se
poder tomar conhecimento deste tipo de recurso, além da aplicação como ratio
decidendi, pelo tribunal recorrido, da norma cuja constitucionalidade se impugna
e do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, que a
inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo.
Este último pressuposto, como o Tribunal tem vindo repetidamente a decidir, e se
diz, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94 (publicado no Diário da República [DR],
II série, de 6 de Setembro de 1994), deve ser entendido, “não num sentido
meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à
extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que essa
invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda
pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz
sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”. É, na
verdade, este o sentido que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal
Constitucional em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma
questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado – ver, por exemplo,
o Acórdão n.º 560/94, publicado no DR, II série, de 10 de Janeiro de 1995, onde
se escreveu que “a exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação
atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é,
pois, [...] uma ‘mera questão de forma secundária’. É uma exigência formal, sim,
mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão
de constitucionalidade para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de
recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão”
(assim, também, por exemplo, o Acórdão n.º 155/95, publicado no DR, II série, de
20 de Junho de 1995).
Os pedidos de aclaração e reforma de uma decisão, ou a arguição da sua nulidade,
enquanto incidentes pós-decisórios, não são já momentos adequados para,
atempadamente, suscitar uma questão de constitucionalidade normativa, em termos
de ela poder vir a ser decidida pelo tribunal a quo, e de provocar a intervenção
do Tribunal Constitucional para reapreciação, em recurso de constitucionalidade
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional. Como se salientou no citado Acórdão n.º 352/94, “porque o poder
jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a
eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material,
não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura e ambígua,
há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a
reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados
para suscitar a questão de inconstitucionalidade” (v. também já, por exemplo, o
Acórdão n.º 62/85, DR, II série, de 31 de Maio de 1985).
Esta orientação quanto ao ónus de suscitação da questão de constitucionalidade
(como também se salientou no referido Acórdão n.º 352/94) sofre restrições
apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais não se pode exigir ao
interessado que suscitasse a questão de constitucionalidade antes de proferida a
decisão final, designadamente, por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação
de todo em todo insólita e imprevisível da norma impugnada. Este Tribunal tem,
porém, repetidamente afirmado, como se disse no Acórdão n.º 479/89 (DR, II
Série, de 24 de Abril de 1992) que:
(...) não pode deixar de recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem
as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem
socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais
(por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual
adequada). E isso também logo mostra como a simples ‘surpresa’ com a
interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos,
certamente, em princípio) a configurar uma dessas “situações excepcionais” em
que seria justificado dispensar os interessados da exigência da invocação da
inconstitucionalidade antes de se esgotar o poder jurisdicional do tribunal a
quo sobre a questão para cuja resolução é relevante a norma impugnada.
(...) Mas, se alguma vez tal for de admitir, então haverá de sê-lo apenas numa
hipótese em que a interpretação judicial seja tão insólita e imprevisível que
seria de todo desrazoável dever a parte contar (também) com ela.
(E vejam-se também já, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 94/88 e 90/85, publicados
no DR, II Série, respectivamente de 22 de Agosto de 1988 e de 11 de Julho de
1985, bem como, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 565/96 e 660/96, onde se afirma
que não existe “surpresa” relevante na interpretação perfilhada na decisão
recorrida quando a doutrina e a jurisprudência se dividem quanto à interpretação
da norma impugnada).
5. No presente caso, o recurso de constitucionalidade tem por objecto, nos
termos do respectivo requerimento, a apreciação da inconstitucionalidade do
artigo 732.º-A do Código de Processo Civil, numa “interpretação/aplicação” não
expressamente enunciada, mas que a recorrente considera violadora do disposto no
n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Pela remissão para o requerimento de arguição de nulidade e da consulta da
fundamentação do acórdão recorrido extrai-se que a questão em causa se prende
essencialmente com o problema de saber se deveria ter sido aplicado no caso dos
autos o artigo 732.º-A do Código de Processo Civil, por se verificarem os
fundamentos enunciados nesta disposição.
Tal pretensão, dizendo respeito à determinação das normas de direito
infraconstitucional aplicáveis pelo Supremo Tribunal de Justiça na decisão do
recurso que lhe havia sido submetido, excede obviamente a competência do
Tribunal Constitucional, que, no tipo de recurso de constitucionalidade
interposto, se limita à apreciação da conformidade constitucional das normas
efectivamente aplicadas pelo tribunal a quo na decisão recorrida.
Como decorre do que acaba de se referir, a norma do artigo 732.º-A do Código de
Processo Civil não foi aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça e não cabe ao
Tribunal Constitucional decidir se estavam ou não verificados no caso os
pressupostos de que tal disposição faz depender o julgamento ampliado da
revista.
6. Acresce que a recorrente jamais suscitou durante o processo a questão da
inconstitucionalidade do artigo 732.º-A do Código de Processo Civil, na dimensão
normativa que pretende ver apreciada por este Tribunal, só tendo suscitado tal
questão no requerimento de arguição de nulidade do acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça, de 5 de Julho de 2007.
Ora, à data das suas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
não podia deixar de considerar-se exigível, à recorrente, numa estratégia
processual cautelosa, antecipando a eventualidade de o Supremo Tribunal de
Justiça vir a optar pela tese mais desfavorável ao seu interesse e ponderando os
sentidos possíveis ou plausíveis do artigo 732.º-A do Código de Processo Civil,
face às orientações doutrinárias e correntes jurisprudenciais conhecidas, que
suscitasse a questão de constitucionalidade antes de esgotado o poder
jurisdicional do tribunal a quo ou requeresse, ela mesma, o julgamento ampliado
de revista.
Em face das circunstâncias do processo e considerando a jurisprudência do
Tribunal Constitucional neste domínio, tal não corresponde a qualquer exigência
de onerosidade desproporcionada, tratando-se, muito simplesmente, do ónus, que
este Tribunal tem afirmado repetidamente na sua jurisprudência e que recai sobre
as partes, de estas “analisarem as diversas possibilidades interpretativas
susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão e utilizarem as
necessárias precauções, de modo a poderem, em conformidade com a orientação
processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos”
(cfr., nesse sentido, o Acórdão n.º 22/2002).
Não tendo a recorrente suscitado durante o processo a inconstitucionalidade da
norma que pretende submeter à apreciação sub specie constitutionis, não pode
agora o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do presente recurso.
2. A reclamante diz o seguinte na sua reclamação:
Decidiu a Meritíssima Juíza Relatora não tomar conhecimento do recurso
interposto pela Recorrente, ora Reclamante, sustentando tal decisão, por um
lado, no facto da inconstitucionalidade normativa não ter sido alegadamente
suscitada durante o processo, e, por outro lado, no facto de considerar dever
extrair-se do requerimento de arguição de nulidade e da consulta do acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça recorrido, estar em causa a apreciação da
conformidade constitucional de uma norma não efectivamente aplicada.
A Recorrente não se conforma com uma tal decisão, razão pela qual vem requerer
que sobre a admissibilidade/inadmissibilidade do recurso se pronuncie, em
conferência, o Tribunal Constitucional.
Com efeito, está a Recorrente convicta que se impõe a prossecução do recurso por
si tempestivamente interposto, sob pena de patente – e não sancionada –
violação, quer do princípio da confiança, que do acesso ao direito,
constitucionalmente consagrado.
Começando pela falta de alegação da inconstitucionalidade durante o processo,
não se pode deixar de questionar – ressalvado o devido respeito – como poderia a
parte – in casu, a Recorrente –, ter suscitado a questão da
inconstitucionalidade antes mesmo dessa questão se ter verificado no processo?!
Na verdade, importa ter em atenção que foi tão só com a prolação, pela 4ª Secção
do Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão que decidiu a causa – com
“afastamento”, pois, da intervenção do pleno das secções cíveis, ao arrepio de
quanto, em contrário, dispõe o artigo 732°-A do Código de Processo Civil –, que
“nasceu” a questão da inconstitucionalidade.
Pretender exigir da Recorrente – como parece resultar da douta decisão reclamada
– que esta, com anterioridade à decisão do Supremo Tribunal de Justiça, tivesse
que – em nome de uma alegada “exigível (...) estratégia processual cautelosa”
(?!) – antecipar a eventualidade do Supremo Tribunal de Justiça vir a suprimir
uma garantia processual, constitucionalmente consagrada, corresponde a exigir da
parte uma conduta “desconfiada”, de contínua invocação de potencial (e futura)
inconstitucionalidade. Se é que não equivale mesmo a exigir da parte um poder,
quase “sobrenatural”, para adivinhar qual o entendimento que irá ser adoptado
pelo julgador...
Do mesmo modo, afigura-se pouco curial exigir que a Recorrente, ainda em sede de
interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tivesse que
requerer, ela própria – ao abrigo da tal “estratégia processual cautelosa”... –
a intervenção do pleno das secções cíveis, quando é certo que – como reconheceu
o Supremo Tribunal de Justiça –, as duas únicas decisões proferidas sobre a
matéria haviam sido em sentido idêntico ao sustentado pela própria Recorrente.
Assim, no firme entendimento da Recorrente, o caso dos autos tem, forçosamente,
de ser enquadrado nas “situações excepcionais, anómalas”, às quais se refere
expressamente, quer a decisão reclamada, quer diversos outros acórdãos do
Tribunal Constitucional, como sejam, por exemplo, o Acórdão n° 479/89 (publicado
no DR, II Série, de 24.04.95 e parcialmente reproduzido na decisão reclamada), o
Acórdão de 19.01.94 (acessível in http://www.dqsi.pt, com o n° convencional
ACT00004565), o Acórdão n° 291/89 (publicado no DR, II Série, de 15.03.91), ou
ainda o Acórdão de 03.03.93 (acessível in http://www.dqsi.pt, com o n°
convencional ACT00003858).
Permita-se à Recorrente, pela sua relevância, aqui citar parte do sumário do
Acórdão do Tribunal Constitucional de 19.01.94, acima melhor identificado:
“II – O poder jurisdicional esgota-se, em princípio, com a prolação da sentença,
pelo que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua
nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a
questão de inconstitucionalidade.
III – Só assim não será, em situações excepcionais, anómalas, nas quais o
interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de
inconstitucionalidade antes de pro ferida a decisão final”.
Ora, é de todo o ponto manifesto que a Recorrente não teve outra oportunidade
processual, que não no seu requerimento de arguição de nulidade, para suscitar a
questão da inconstitucionalidade, uma vez que, como se viu, tal questão apenas
nasceu... com a prolação do douto acórdão objecto da arguição de nulidade!
Donde, no firme entendimento da Recorrente – entendimento este que a mesma
espera ver sufragado pelo Tribunal Constitucional –, o facto da questão da
inconstitucionalidade apenas ter sido suscitada após a prolação do douto acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça, não pode constituir válido obstáculo ao
conhecimento, pelo Tribunal Constitucional, do recurso para o mesmo interposto
pela Recorrente, ora Reclamante.
Quanto à segunda questão suscitada pela Meritíssima Juíza Relatora, é um facto
que a alínea b) do artigo 70° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional apenas se refere directamente à apreciação das decisões
dos tribunais que apliquem uma norma inconstitucional.
Contudo, e salvo o devido respeito por entendimento diverso, mal se compreende
como pode o Tribunal Constitucional não se pronunciar sobre um caso como o dos
autos, isto é, sobre a interpretação que um Tribunal (in casu, o Supremo
Tribunal de Justiça) faz de uma determinada norma legal (no caso, o artigo
732°‑A do Código de Processo Civil), quando essa interpretação se traduz numa
redução, manifestamente inconstitucional, da garantia constitucional de acesso
ao direito e aos tribunais. Maxime quando a apreciação dessa questão de
inconstitucionalidade não é enquadrável em qualquer das demais alíneas do nº 1
do artigo 70º da mencionada Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional.
Impõe-se aqui, pois, no firme entendimento da Recorrente, e tal como sucede a
propósito do outro pressuposto da alínea b) do n° 1 do artigo 70º, fazer uma
interpretação que permita, também quanto a este pressuposto, salvaguardar
“situações excepcionais, anómalas”, como é, manifestamente, o caso dos autos.
Com efeito, e reportando-nos agora, directamente, ao caso em apreço, teremos que
concluir que, em último termo, a eventual não apreciação, pelo Tribunal
Constitucional, da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça,
“legitimará” o facto da Recorrente se ter visto confrontada com uma
decisão-surpresa de inflexão judicial, violadora do princípio da confiança –
posto que a Recorrente gozava da legítima expectativa de que a jurisprudência do
tribunal superior se mantivesse –, consequência, ademais, da supressão de uma
importante garantia processual, em clara violação, pois, do disposto no n° 1 do
artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre decidir.
II
Fundamentos
3. Adiante-se desde já que a presente reclamação não pode obter provimento, por
não abalar os fundamentos em que se baseou a decisão reclamada.
Como muito bem se sabe – e como inúmeras vezes tem sido repetido por este mesmo
Tribunal – através deste tipo de recursos [previstos, antes do mais, pela alínea
b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição] só pode o Tribunal Constitucional
conhecer de questões relativas à constitucionalidade de normas. As decisões
judiciais, em si mesmas consideradas, não são, em direito português, objecto de
controlo de constitucionalidade. Daí que, para o Tribunal Constitucional, surja
naturalmente como um dado a norma de direito infraconstitucional que é
questionada no recurso. No nosso sistema de fiscalização concentrada e
incidental da constitucionalidade, não cabe ao Tribunal Constitucional, nem
controlar o modo como a matéria de facto foi apurada pelos tribunais recorridos,
nem sequer controlar o mérito da decisão recorrida, em si mesma, ou, sequer,
apurar se as normas nela aplicadas correspondem ou não ao melhor direito. Como
se disse no Acórdão n.º 44/85, “saber se a norma era ou não aplicável ao caso,
ou se foi ou não bem aplicada – isso é da competência dos tribunais comuns, e
não do Tribunal Constitucional” (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5,
1985, p. 408).
É, por isso, liminarmente de afastar o alegado a fls. 603 e 604 da reclamação,
que se relembra:
Contudo, e salvo o devido respeito por entendimento diverso, mal se compreende
como pode o Tribunal Constitucional não se pronunciar sobre um caso como o dos
autos, isto é, sobre a interpretação que um Tribunal (in casu, o Supremo
Tribunal de Justiça) faz de uma determinada norma legal (no caso, o artigo
732°‑A do Código de Processo Civil), quando essa interpretação se traduz numa
redução, manifestamente inconstitucional, da garantia constitucional de acesso
ao direito e aos tribunais. Maxime quando a apreciação dessa questão de
inconstitucionalidade não é enquadrável em qualquer das demais alíneas do nº 1
do artigo 70º da mencionada Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional.
Impõe-se aqui, pois, no firme entendimento da Recorrente, e tal como sucede a
propósito do outro pressuposto da alínea b) do n° 1 do artigo 70º, fazer uma
interpretação que permita, também quanto a este pressuposto, salvaguardar
“situações excepcionais, anómalas”, como é, manifestamente, o caso dos autos.
Com efeito, e reportando-nos agora, directamente, ao caso em apreço, teremos que
concluir que, em último termo, a eventual não apreciação, pelo Tribunal
Constitucional, da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça,
“legitimará” o facto da Recorrente se ter visto confrontada com uma
decisão-surpresa de inflexão judicial, violadora do princípio da confiança –
posto que a Recorrente gozava da legítima expectativa de que a jurisprudência do
tribunal superior se mantivesse –, consequência, ademais, da supressão de uma
importante garantia processual, em clara violação, pois, do disposto no n° 1 do
artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
4. Acresce que, como se disse na decisão sumária reclamada e a própria
reclamante acaba por reconhecer, não se verifica o pressuposto, indispensável
para se poder tomar conhecimento do recurso, consistente na aplicação como ratio
decidendi, pela decisão de que se pretende recorrer, da norma do artigo 732.º-A
do Código de Processo Civil, na dimensão normativa que o requerente pretende ver
apreciada por este Tribunal.
De acordo com tal dimensão normativa, o artigo 732.º-A do Código de Processo
Civil conferiria ao juiz um poder discricionário de sugerir a intervenção do
colectivo de juízes que compõem a Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
quando estivesse em causa a prolação de um acórdão que invertesse jurisprudência
anteriormente firmada. Ora, semelhante “norma” não constituiu verdadeiramente a
ratio decidendi da decisão de que se pretende recorrer.
O Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o requerimento de fls. 534 e segs. por
entender que
(…) não só não existe jurisprudência que se possa considerar firmada sobre a
questão fundamental de direito analisada no acórdão, como não há uma absoluta
coincidência normativa justificativa da conveniência em assegurar a uniformidade
da jurisprudência, como, ainda, a evolução doutrinária de que também se dá nota
ao longo do acórdão de fls. 504 e ss. desaconselhava que o STJ tomasse desde já
uma posição uniformizadora, sem a desejável sedimentação jurisprudencial.
Neste contexto, entenderam, quer o Relator, quer os Adjuntos, quer o próprio
Presidente da Secção Social que não se verificava, como efectivamente não se
verifica, no caso vertente fundamento para sugerir a uniformização de
jurisprudência.
E, um pouco mais à frente, que
Ao invés do que sucede com a intervenção das partes e do Ministério Público ao
requerer o julgamento alargado, que se traduz numa faculdade [como se infere da
terminologia “(...) pode ser requerido por qualquer das partes ou pelo
Ministério Público (...)”], ou quando muito num ónus processual, afigura-se-nos
que a sugestão do Relator, dos Adjuntos ou do Presidente da Secção tem a
natureza de um dever legal [“...deve ser sugerido pelo relator, por quaisquer
adjuntos, ou pelos presidentes das secções (...)]”.
Constituindo um dever legal, só haverá, contudo, a obrigação de o observar
quando se mostrarem preenchidos os fundamentos prescritos na lei para o seu
exercício, ou seja, quando se verificar fundamento para sugerir a uniformização
de jurisprudência nos termos enunciados no art. 732.°-A do CPC.
Donde, o Supremo Tribunal de Justiça não fundamentou o indeferimento da arguição
de nulidade deduzida mediante um juízo discricionário quanto à prática do acto
de sugerir o julgamento ampliado quando se verifiquem os fundamentos enunciados
no artigo 732.º-A do Código de Processo Civil. Antes considerou que
(…) não se verifica fundamento para uniformização de jurisprudência, não só
porque os dois acórdãos de 1997 e 1998 não constituem jurisprudência firmada
sobre a questão neles decidida em moldes diversos da perspectiva jurídica
acolhida no acórdão proferido nestes autos, como também por não haver absoluta
coincidência do quadro legislativo aplicável, como, ainda, porque se entende ser
efectivamente desaconselhável que o Supremo intervenha desde já com uma posição
jurídica uniformizadora, não se verificando a necessidade ou conveniência da
uniformização jurisprudencial pelas razões já apontadas.
Não incidia, pois, sobre o Relator, os Adjuntos ou o Presidente da Secção o
dever de sugerir o julgamento ampliado da revista interposta pelo A. nos
presentes autos, de modo algum podendo perfilhar-se a afirmação da R. de que tal
falta de sugestão constituiu omissão de um acto que deveria ter sido praticado e
inquinou de nulidade o acórdão proferido nestes autos pelo Supremo Tribunal de
Justiça.
Reitere-se que num recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade
normativa não tem cabimento vir discutir a forma como o direito ordinário foi ou
deveria ter sido aplicado.
E, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente observado, o recurso de
constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica, como se sabe, que
é condição de conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão
do julgamento que nele venha a ser efectuado na decisão recorrida.
No caso, nenhuma repercussão teria o julgamento da questão de
constitucionalidade da norma impugnada pela recorrente, ainda que o Tribunal
viesse a concluir no sentido da inconstitucionalidade.
Tanto basta para concluir pelo indeferimento da reclamação.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e
confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso, bem como condenar a
reclamante em custas, com 20 ( vinte ) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2008
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão