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Processo n.º 676/07
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O representante do Ministério Público no Tribunal da
Relação de Coimbra interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra o acórdão do referido Tribunal, de 9 de Maio de 2007, “porquanto a
predita decisão judicial declarou inaplicável o contido no artigo 175.º, n.º 4,
do Código da Estrada, na versão que actualmente lhe confere o Decreto‑Lei n.º
44/2005, de 23 de Fevereiro, sustentando a inconstitucionalidade
especificamente incidente sobre o segmento da redacção que constitui o último
parágrafo da mencionada norma estradal por integrante da presunção inilidível
que acarreta a derrogação do direito de defesa ampla do arguido enquanto
restrito à possibilidade de abranger o âmbito delineado pela gravidade da
infracção e aplicável sanção de inibição de conduzir”.
O referido acórdão foi proferido em recurso interposto
da sentença de 6 de Dezembro de 2006 do Tribunal Judicial da Comarca de
Penamacor, que, não concedendo provimento ao recurso de contra‑ordenação,
manteve na íntegra a decisão administrativa proferida pela Governadora Civil do
Distrito de Castelo Branco, de 24 de Outubro de 2005, que aplicou a A. (que
procedera ao pagamento voluntário da coima correspondente à prática da
contra‑ordenação prevista no artigo 21.º, n.º 1, do Regulamento de Sinalização
de Trânsito – não cumprimento do sinal de paragem obrigatória num cruzamento),
a sanção acessória de inibição de conduzir, especialmente atenuada nos termos do
artigo 140.º do Código da Estrada, pelo período de 30 dias.
A motivação do recurso da recorrente para o Tribunal da
Relação de Coimbra terminava com a formulação das seguintes conclusões:
“I – A arguida, no dia, hora e local em causa, parou ao sinal STOP
que se encontrava no cruzamento em questão [e], tendo verificado que não
circulava qualquer veículo na outra via, iniciou novamente a sua marcha com a
correcta e devida segurança, pelo que não cometeu qualquer infracção.
II – A arguida só pagou voluntariamente a coima, como consta da
decisão recorrida, porque pensou assim estar obrigada, mas não reconheceu nem
reconhece ter cometido a infracção por que foi condenada.
III – O Tribunal a quo não concedeu provimento ao recurso de
contra‑ordenação interposto pela arguida por basear a sua decisão no facto de a
coima ter sido paga voluntariamente, não podendo agora ser questionada a
prática da contra‑ordenação, devendo antes dar‑se como assente – artigo 175.º,
n.º 4, do Código da Estrada –, e não admitindo a alegação de factos que possam
pôr em causa a existência do ilícito contra‑ordenacional.
IV – Esta interpretação e aplicação das normas do RGCO restringe
direitos de defesa da arguida e os direitos à tutela efectiva, na dimensão de
garante de controlo judicial das decisões administrativas que lesem direitos e
interesses legítimos, mostrando‑se ferida de ilegalidade e de
inconstitucionalidade, pois viola o disposto nas normas conjugadas dos artigos
55.º, 59.º, n.ºs 1 e 3, do RGCO e dos artigos 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1, e 32.º,
n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
V – No processo de contra‑ordenação valem os direitos e garantias
constitucionalmente consagrados de direito de audiência e de defesa dos
arguidos e de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, na dimensão
da garantia de controlo das decisões finais administrativas que lesem direitos e
interesses legalmente protegidos, caso contrário estar‑se‑ia a violar a
Constituição.
VI – Apesar de paga voluntariamente a coima, pode‑se discutir a
existência de contra‑ordenação quando for aplicada uma sanção acessória.
VII – O Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questões que
deveria ter apreciado, o que torna a sentença nula – alínea c) do n.º 1 do
artigo 379.º do CPP.
VIII – Se não fosse possível discutir a existência da infracção,
estamos perante uma inconstitucionalidade por restrição dos direitos
fundamentais – violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa.
IX – A douta sentença recorrida é manifestamente contraditória
quando dá por provado que a arguida necessita da carta de condução, porquanto
lhe é imprescindível a utilização do automóvel para o exercício das suas funções
laborais e que a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir pelo
período de 30 dias põe em risco a sua situação laboral e a séria possibilidade
de poder tornar‑se trabalhadora «normal» da referida entidade, e, por outro,
mantém a decisão da autoridade administrativa de aplicar a sanção de inibição
de conduzir por um período de 30 dias, colocando em risco o emprego da arguida
(com a precariedade a nível laboral, se tiver de cumprir a sanção acessória de
inibição de conduzir, a arguida com toda a certeza perderá o emprego e não
poderá procurar outro).
X – Também se pode afirmar que a douta sentença entra em
contradição ao concluir que as sanções acessórias terão de ser aferidas ao
facto ilícito cometido e à culpa do agente, e, por outro lado, não permitiu que
se alegassem factos que põem em crise a existência do ilícito
contra‑ordenacional e partiu de uma presunção de culpabilidade.”
O Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão ora
recorrido, desenvolveu a seguinte fundamentação jurídica:
“Das várias questões aportadas pela recorrente sobressai como
primacial a da não admissão de defesa quanto ao cometimento da infracção, na
procedência da qual ficarão prejudicadas as restantes.
E assim que se tenha escrito, como supra se viu: «A título de
questão prévia cumpre referir que o presente recurso apenas se destina à
apreciação da gravidade da infracção e à aplicação da sanção acessória. Na
verdade, como refere a recorrente, esta procedeu ao pagamento voluntário da
coima, pelo que o presente recurso encontra‑se circunscrito à apreciação da
aplicação da referida sanção acessória e da gravidade da infracção, tal como
resulta do disposto nos artigos 72.º, n.º 5, e 175.º, n.º 4, do Código da
Estrada. Assim, a questão decidenda nos presentes autos consiste em se apurar da
gravidade da infracção e se se encontram preenchidos os pressupostos para a
suspensão da execução da sanção de inibição de conduzir».
Mas «… só em audiência de julgamento é atribuído à confissão o seu
valor especial de meio de prova e, mesmo neste caso, fica sujeita ao controle do
tribunal sobre o seu carácter livre, a veracidade dos factos confessados…»
[Código de Processo Penal Anotado, de Simas Santos e Leal Henriques, 2.ª edição,
II volume, p. 364].
Ora, não foi permitido à recorrente pronunciar‑se sobre a veracidade
dos «factos confessados», incluindo‑os, sem mais, no acervo factual provado.
Admitindo‑se e concordando‑se mesmo que em causa estará não o n.º 1
do artigo 32.º da CRP, mas «apenas» o seu n.º 10, aplicável aquele em processo
penal e este em processo contra‑ordenacional, teremos de admitir alguma
hipocrisia se dissermos que, sendo ao arguido conferidos os «direitos de
audição e de defesa» – n.º 10, citado –, se haja de limitar (ainda) esta defesa
a questões subsequentes a uma anunciada e legalmente imposta condenação: o cerne
da questão, o crime é indiscutido e indiscutível.
Só que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado
de sentença de condenação, devendo ser julgado … com as garantias de defesa –
artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
Ora, a nosso ver, a falada restrição apenas pode ser aportada a uma
mera presunção – juris tantum – de que o pagamento voluntário da coima implica a
prática da contra‑ordenação, mas não a de que tal pagamento implica
necessariamente a presunção inilidível – juris et de jure – do cometimento da
infracção.
Deste modo, a consagrada presunção constitucional de inocência é
afastada, e de modo inilidível, por normativo estradal!
A aplicação de normas sobre direitos, liberdades e garantias faz‑se
de modo directo, sendo que essa «aplicação directa não significa apenas que os
direitos, liberdades e garantias se aplicam independentemente da intervenção
legislativa (cf. artigos 17.º e 18.º, n.º 1). Significa que eles valem
directamente contra a lei, quando esta estabelece restrições em desconformidade
com a Constituição (cf. CRP, artigo 18.º, n.º 3)» [Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, de J. J. Gomes Canotilho, 7.ª edição, p. 1179].
O segmento do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, em que se
diz que depois de paga a coima apenas se pode apresentar defesa «restrita à
gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável», sem
discutir a verificação/cometimento da infracção, é inconstitucional, por
afastamento injustificado da garantia de todos os direitos de defesa, «devendo
as restrições limitar‑se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos» – artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
Em nosso entender, o indiciado infractor pode defender‑se, sem
quaisquer restrições, alegando mesmo a não verificação/prática da infracção,
ainda que tenha ele mesmo (quiçá, outrem, a fortiori) procedido ao pagamento
voluntário da coima.
Destarte que o parágrafo último do artigo 175.º, n.º 4, do Código da
Estrada, na versão actual do Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, é
inconstitucional, face ao estabelecimento de uma presunção inilidível, que
acarreta a derrogação do direito de defesa ampla do arguido.
Termos em que se acorda, em consonância e na procedência do recurso,
em anular o julgamento, devendo proceder‑se a nova audiência, com observância
de todas as garantias de defesa do arguido/recorrente.”
No Tribunal Constitucional, o representante do
Ministério Público apresentou alegações, no termo das quais formulou as
seguintes conclusões:
“1.º – O pagamento voluntário da coima, nas contra‑ordenações
estradais, constitui confissão tácita da autoria do facto imputado ao arguido,
susceptível de dispensar a prova quanto à materialidade da infracção, no âmbito
da impugnação deduzida quanto à aplicação da sanção de inibição de conduzir.
2.º – Tal regime não é violador dos comandos ínsitos no artigo 32.º
da Constituição da República Portuguesa, dos quais não decorre a necessária
aplicabilidade, em processo contra‑ordenacional, do regime estabelecido no
artigo 344.º do Código de Processo Penal para a confissão do arguido.
3.º – A norma constante do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada
deve ser interpretada, em conformidade com a Constituição, de modo a não
precludir a demonstração pelo impugnante de que ocorreu falta ou vício da
vontade, necessariamente subjacente àquela confissão tácita, susceptível de
impedir aquele acto de reconhecimento voluntário da responsabilidade
contra‑ordenacional.
4.º – Termos em que deverá proferir‑se decisão interpretativa, no
sentido atrás sustentado, nos termos do artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional.”
A recorrida contra‑alegou, concluindo:
“I – O pagamento voluntário da coima, nas contra‑ordenações
estradais, não constitui confissão tácita – de juris et de jure –, antes uma
mera presunção – juris tantum – em relação à possibilidade de impugnação do
cometimento da infracção;
II – O valor especial de meio de prova da confissão advém de a mesma
ter sido produzida em audiência de julgamento e sujeita ao controle do tribunal
sobre o seu carácter livre – artigo 344.º, n.º 1, do Código de Processo Penal,
aplicado ao processo contra‑ordenacional nos termos do artigo 41.º do Regime
Geral das Contra‑Ordenações;
III – Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado
de sentença de condenação, devendo ser julgado … com as garantias [eventual
omissão de texto] presunção inilidível, que acarreta a derrogação do direito de
defesa ampla do arguido.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Na sua redacção originária, o Código da Estrada
vigente, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, permitia o
pagamento voluntário das coimas previstas para as contra‑ordenações nele
definidas, pagamento que seria feito pelo mínimo da coima aplicável (artigo
154.º, n.º 1) e que “implica[va] a condenação do infractor na sanção acessória
correspondente, também pelo mínimo, sem prejuízo do disposto nos artigos 143.º,
144.º e 145.º” (artigo 154.º, n.º 2), que, respectivamente, possibilitavam a
dispensa da sanção acessória (tendo em conta as circunstâncias da mesma e o
facto de o condutor ser infractor primário ou não ter praticado qualquer
contra‑ordenação grave ou muito grave nos últimos três anos – artigo 143.º), a
sua atenuação especial (com redução para metade da sua duração mínima e máxima,
tendo em conta os mesmos factores – artigo 144.º) ou a suspensão da sua execução
(verificando‑se os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a
suspensão da execução das penas – artigo 145.º). O procedimento para aplicação
das sanções era regulado no artigo 155.º, que previa que, antes da
correspondente decisão, as pessoas interessadas fossem notificadas dos factos
constitutivos da infracção e das sanções aplicáveis (n.º 1), sendo, “quando
possível, o interessado […] notificado no acto de autuação, mediante a entrega
de um exemplar do auto de notícia, donde conste a possibilidade de pagamento
voluntário pelo mínimo e suas consequências quanto à sanção acessória, prazo e
local para pagamento voluntário e para apresentação de defesa” (n.º 2), devendo
os interessados, no prazo de 15 dias a contar da notificação, apresentar a sua
defesa por escrito ou proceder ao pagamento voluntário (n.º 3), dispondo o
subsequente n.º 4 que: “Os interessados que procedam ao pagamento voluntário da
coima não ficam impedidos de apresentar a sua defesa para efeitos do disposto
nos artigos 143.º, 144.º e 145.º”, ou seja, para efeitos de alcançar a dispensa
de aplicação da sanção acessória, a sua atenuação especial ou a suspensão da sua
execução.
Das alterações ao Código da Estrada introduzidas pelo
Decreto‑Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, resultou que, continuando a admitir‑se o
pagamento voluntário da coima, pelo mínimo (artigo 153.º, n.º 1), esse pagamento
“determina o arquivamento do processo, salvo se a contra‑ordenação for grave ou
muito grave, caso em que prossegue restrito à aplicação da inibição de
conduzir” (n.º 4 do artigo 153.º). O artigo 155.º passou a dispor que, “antes da
decisão sobre a aplicação das sanções, os interessados devem ser notificados: a)
Dos factos constitutivos da infracção; b) Das sanções aplicáveis; c) Do prazo
concedido para a apresentação de defesa e o local; d) Da possibilidade de
pagamento voluntário da coima pelo mínimo, bem como do prazo e do local para o
efeito, e das consequências do não pagamento” (n.º 1), podendo os interessados,
no prazo de 20 dias a contar da notificação, apresentar a sua defesa ou
proceder ao pagamento voluntário (n.º 2), dispondo o subsequente n.º 3 que: “Os
interessados que procedam ao pagamento voluntário da coima não ficam impedidos
de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção de
inibição de conduzir aplicável”.
O Decreto‑Lei n.º 265‑A/2001, de 28 de Setembro,
relativamente aos preceitos em causa, limitou‑se a transferir para o n.º 5, sem
alteração de redacção, o n.º 4 do artigo 153.º; a acrescentar, no n.º 1 do
artigo 155.º, a exigência da menção à “legislação infringida” (nova alínea b),
tendo transitado as anteriores alíneas b), c) e d) para as novas alíneas c), d)
e e)) na notificação que deve ser feita ao arguido “após o levantamento do
auto”; e, no n.º 3 do artigo 155.º, a substituir a expressão “interessados” por
“arguido” (“O arguido que proceda ao pagamento voluntário da coima não fica
impedido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à
sanção de inibição de conduzir aplicável”).
Finalmente, o Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de
Fevereiro, transferiu para os artigos 172.º e 175.º a matéria anteriormente
regulada nos artigos 153.º e 155.º, dispondo agora o n.º 5 do artigo 172.º que
“o pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores determina o
arquivamento do processo, salvo se à contra‑ordenação for aplicável sanção
acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma” e o n.º 4 do
artigo 175.º que “o pagamento voluntário da coima não impede o arguido de
apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória
aplicável”.
Apesar de as normas referidas (artigos 154.º e 155.º da
versão originária, artigos 153.º e 155.º das versões de 1998 e de 2001 e
artigos 172.º e 175.º da versão de 2005) estarem inseridas na regulamentação da
fase administrativa do procedimento contra‑ordenacional em causa e, portanto, a
“defesa” neles referida respeitar à defesa apresentada pelo arguido perante a
autoridade administrativa competente para proferir a decisão sancionatória, o
certo é que a restrição desta defesa, primeiro, para os “efeitos do disposto nos
artigos 143.º, 144.º e 145.º” (ou seja, para efeitos de alcançar a dispensa de
aplicação da sanção acessória, a sua atenuação especial ou a suspensão da sua
execução) e, desde 1998, “à gravidade da infracção e à sanção de inibição de
conduzir [ou sanção acessória] aplicável” tem sido jurisprudencialmente
entendida como implicando também uma restrição da defesa que o arguido pretenda
deduzir perante os tribunais, no âmbito da impugnação judicial da decisão
administrativa sancionatória.
Neste sentido podem citar‑se, entre outros, os seguintes
acórdãos (todos disponíveis em www.dgsi.pt): do Tribunal da Relação do Porto,
de 19 de Julho de 2006, proc. n.º 0644050 (“Com o pagamento da coima, pelo
mínimo, o arguido renuncia ao recurso a discutir a verificação da
contra‑ordenação”), de 10 de Janeiro de 2007, proc. n.º 0645886 (“O pagamento
voluntário a que se refere o artigo 155.º, n.º 3, do Código da Estrada, implica
a aceitação da existência da contra‑ordenação”), de 14 de Março de 2007, proc.
n.º 0647091 (“Do artigo 172.º do Código da Estrada decorre que o pagamento
voluntário da coima pelo mínimo implica conformação com a prática da
contra‑ordenação”), e de 23 de Maio de 2007, proc. n.º 0740433 (“Nos termos do
artigo 172.º do Código da Estrada, o pagamento voluntário da coima pelo mínimo
significa que o arguido se conformou com a verificação da contra‑ordenação”);
do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de Janeiro de 2006, proc. 3623/05
(“Depois de paga voluntariamente a coima apenas se pode apresentar defesa
restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável,
sem discutir a veracidade da infracção”), e de 23 de Maio de 2007, proc. n.º
2971/06.4TBVIS.C1 (“Tendo sido paga a coima voluntariamente, o processo de
contra‑ordenação é remetido para julgamento, havendo lugar à aplicação de sanção
acessória, apenas para apreciar a gravidade da infracção e, consequentemente,
da sanção a aplicar”).
Não se ignora que esse entendimento jurisprudencial, que
surge como dominante, não se pode considerar pacífico, pois, pelo menos, o
acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25 de Outubro de 2004, proc. n.º
1427/04‑1, dele se dissociou, ao sustentar o seguinte:
“A recorrente levanta a questão de saber se, paga voluntariamente a
coima, pode ou não discutir a existência da contra‑ordenação quando foi
aplicada uma sanção acessória.
E a resposta é claramente afirmativa.
Estatui o n.º 3 do artigo 155.º do Código da Estrada: «O arguido que
proceda ao pagamento voluntário da coima não fica impedido de apresentar a sua
defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir
aplicável».
A única interpretação [do] preceito em causa vai no sentido de que o
arguido, porque pagou voluntariamente a coima, não pode discutir a existência da
infracção, mas apenas na parte que diz respeito a essa mesma coima.
Pode, todavia, discutir a infracção no que toca à gravidade da
mesma.
E pode discuti‑la quanto à sanção de inibição de conduzir.
E, neste aspecto, em toda a sua extensão.
Ou seja, pode querer demonstrar que não praticou a infracção ou que
praticou infracção diversa.
O vocábulo «aplicável» aponta, sem sombra de dúvida, neste sentido.
Se o legislador entendesse que não podia discutir‑se a existência da
infracção utilizaria o vocábulo «aplicada».
Este teria como única referência a infracção em causa.
O vocábulo aplicável abrange a própria incriminação, como nos parece
óbvio.
Mas, se assim fosse – não poder discutir‑se a existência da
infracção –, estaríamos em face de norma violadora do n.º 1 do artigo 32.º da
CRP e, por isso, inconstitucional, já que se estaria a restringir ao arguido
direitos fundamentais.
O legislador, no preceito em causa, ficcionou a existência da
infracção constante do auto, cuja coima foi voluntariamente paga. Isto é,
consagrou uma presunção ilidível.
Por isso se diz no preceito que o arguido «não fica impedido de
apresentar a sua defesa».
O que vale por dizer que o legislador não quis comprimir qualquer
direito fundamental do arguido, que, de resto, nem sequer o podia fazer.
Ou seja, o arguido que pagou voluntariamente a coima pode,
designadamente, pôr em crise a prática da infracção que lhe é imputada sempre
que pretenda pôr em crise a sanção acessória de inibição de conduzir.
Como é lógico e decorre da interpretação correcta do preceito em
análise.
Se assim não fosse, estar‑se‑ia a violar a Constituição (em situação
paralela, e no mesmo sentido do texto, cf. o Acórdão do Tribunal
Constitucional, de 20 de Abril de 2004, in Diário da República, II série, de 8
de Junho de 2004).
A sentença em recurso interpretou diversamente o n.º 3 do artigo
155.º, concluindo que a arguida não podia questionar a prática da
contra‑ordenação.
Ora, tal interpretação, para além de ilegal, como se crê ter
demonstrado, seria claramente violadora do n.º 1 do artigo 32.º da CRP.”
Como é sabido, não compete ao Tribunal Constitucional
pronunciar‑se sobre qual a mais correcta interpretação do direito ordinário, mas
antes constatar – como um dado da questão de constitucionalidade que lhe cumpre
apreciar – que a decisão recorrida adoptou o entendimento segundo o qual do
segmento do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, na redacção do
Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, que diz que, depois de paga a
coima, o arguido apenas pode apresentar defesa restrita à gravidade da infracção
e à sanção de inibição de conduzir aplicável, resulta que, mesmo na fase de
impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de
inibição de conduzir, não é consentido ao arguido discutir a
verificação/cometimento da infracção. Do que se trata, pois, é de decidir se
este entendimento padece de inconstitucionalidade, como considerou a decisão
recorrida para recusar a sua aplicação, ou se, pelo contrário, se deve
considerar constitucionalmente conforme.
2.2. Relativamente ao parâmetro constitucional a ter em
conta na apreciação da questão, importa salientar que o n.º 10 do artigo 32.º da
Constituição da República Portuguesa (CRP), na sua directa estatuição, é
irrelevante para o presente caso. Como se demonstrou nos Acórdãos n.ºs 659/2006
e 313/2007, ambos desta 2.ª Secção, com a introdução dessa norma constitucional
(efectuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de
contra‑ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos
sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nesses tipos de processos, os
direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão
originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos
arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º,
n.º 3, correspondente ao actual artigo 269.º, n.º 3). Tal norma implica tão‑só
ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção,
contra‑ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer
outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa
defender‑se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando
meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a
verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo
I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do
artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional
de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido,
“nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as
garantias do processo criminal” (artigo 32.º‑B do Projecto de Revisão
Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da
Assembleia da República, II Série‑RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp.
541‑544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466).
Mas, como se reconheceu nesse Acórdão n.º 659/2006, é
óbvio que não se limitam aos direitos de audição e defesa as garantias dos
arguidos em processos sancionatórios, mas é noutros preceitos constitucionais,
que não no n.º 10 do artigo 32.º, que eles encontram esteio. É o caso, desde
logo, do direito de impugnação perante os tribunais das decisões sancionatórias
em causa, direito que se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e,
especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da
CRP. E, entrados esses processos na “fase jurisdicional”, na sequência da
impugnação perante os tribunais dessas decisões, gozam os mesmos das genéricas
garantias constitucionais dos processos judiciais, quer directamente referidas
naquele artigo 20.º (direito a decisão em prazo razoável e garantia de processo
equitativo), quer dimanados do princípio do Estado de direito democrático
(artigo 2.º da CRP), sendo descabida a invocação, para esta fase, do disposto
no n.º 10 do artigo 32.º da CRP.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se respeita
os requisitos constitucionais do acesso aos tribunais para tutela efectiva de
direitos e interesses legalmente reconhecidos, através de um processo
equitativo, no âmbito de um processo judicial de impugnação de uma decisão
administrativa de cariz sancionatório, o critério normativo segundo o qual o
pagamento voluntário da coima por contra‑ordenação rodoviária impossibilita o
arguido de discutir em tribunal a própria existência da infracção.
A resposta – adiante‑se desde já – é negativa, quer se
considere que na base de tal entendimento se encontra o estabelecimento de uma
presunção inilidível, quer a atribuição de valor probatório absoluto à confissão
do arguido que estaria implícita na sua opção pelo pagamento voluntário da
coima.
2.3. Em anteriores decisões deste Tribunal é possível
encontrar contributos úteis para a apreciação do presente caso.
Assim, no Acórdão n.º 29/84 julgou‑se inconstitucional a
norma do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro, “quanto ao seu § 2.º, quando
estatui que o pedido de liquidação importa a confissão dos factos referidos no
auto de notícia ou na participação”, pretendendo‑se com tal disposição “fazer
resultar do pedido de liquidação de responsabilidade pelo arguido a condenação
automática deste, fazendo equivaler esse pedido à aceitação de uma qualquer
condenação pela infracção constante do auto de notícia”.
Antes da conversão da generalidade das infracções
rodoviárias de transgressões (ou contravenções), ainda inseridas no âmbito
penal, em contra‑ordenações, diversos juízos de inconstitucionalidade (Acórdãos
n.ºs 28/83, 315/85, 135/86 e 187/96) conduziram, através de processo de
generalização, à prolação do Acórdão n.º 337/86, que declarou, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.ºs
1, 3 e 5, da CRP, da norma do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada então
vigente, na parte em que atribuía competência à Direcção‑Geral de Viação para
aplicar a medida de inibição da faculdade de conduzir ao condutor que, tendo
cometido uma transgressão estradal, paga voluntariamente a multa. E no Acórdão
n.º 442/94 foi julgada inconstitucional, por violação do princípio
constitucional da defesa que para os processos sancionatórios decorre do
princípio do Estado de Direito democrático e das garantias que o realizam,
consagradas no artigo 32.º, n.ºs 1, 3 e 5, da CRP, a norma do artigo 1.º, n.º 1,
alínea e), do Decreto‑Lei n.º 387‑E/87, de 29 de Dezembro, na interpretação
(acolhida na decisão então recorrida) segundo a qual, havendo pagamento
voluntário da multa pela transgressão prevista no artigo 1.º da Lei n.º 3/82, de
29 de Março (condução sob efeito do álcool), a medida de inibição de conduzir
pode ser decretada por despacho, sem prévia audiência de julgamento;
consignando‑se neste acórdão que a controvérsia acerca da natureza da medida de
inibição de conduzir (medida de segurança, pena acessória ou efeito da pena)
“não afasta a evidência de que ela representa a ablação de um espaço de
liberdade cívica que só pode ser determinada por acto de juiz e com prévia
audiência de julgamento”.
Já após a aludida introdução do ilícito de mera
ordenação no domínio das infracções rodoviárias, o Acórdão n.º 264/99 viria a
não julgar inconstitucional a norma do artigo 154.º, n.º 2, do actual Código da
Estrada (aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 114/94, de 3 de Maio), na versão anterior
à que lhe foi dada pelo Decreto‑Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, mas fê‑lo porque
entendeu que o pagamento voluntário da coima não tinha como efeito automático a
aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, consignando‑se neste
acórdão que “este pagamento não impõe só por si a aplicação da sanção acessória,
dependendo das «circunstâncias da mesma» ser ou não aplicada em cada caso”.
Diversamente, segundo o critério normativo cuja
aplicação a decisão ora recorrida recusou com fundamento em
inconstitucionalidade, o pagamento voluntário da coima implica inexoravelmente a
aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, estando vedado ao arguido
discutir a existência da infracção, mas tão‑só a sua gravidade, relevante para a
fixação da duração da inibição.
Este entendimento não pode deixar de ter‑se como
constitucionalmente insolvente. Não se questiona a possibilidade de o
legislador, mesmo em matéria sancionatória (inclusive penal) estabelecer
presunções e, portanto, seria lícito fazer presumir do pagamento voluntário da
coima a ocorrência da infracção. Mas o que é intolerável é a inilidibilidade
dessa presunção, ao proibir‑se que o arguido faça prova, perante o tribunal, da
sua não verificação. No sentido da admissibilidade de presunções, desde que
ilidíveis, cf. os Acórdãos n.ºs 63/85, 447/87, 135/92 e 922/86 (sobre a
responsabilidade criminal dos directores de periódicos) e 252/92 (sobre
presunção de origem estrangeira de determinadas mercadorias).
Não se ignorando que serão menos intensas as
preocupações garantísticas em processos contra‑ordenacionais em comparação com o
processo criminal (cf. Acórdãos n.ºs 269/87 e 313/2007), aquelas não podem,
contudo, ser de tal modo desvalorizadas que ponham em cheque a própria
efectividade da tutela jurisdicional e as exigências de um processo equitativo.
Mesmo que não se transponham para o processo
contra‑ordenacional as apertadas regras de que o artigo 344.º do Código de
Processo Penal rodeia a relevância da confissão do arguido em processo criminal,
não pode, porém, deixar de considerar‑se que não pode valer como confissão da
prática da infracção – em termos de postergar em definitivo qualquer hipótese de
retratação – o pagamento voluntário da coima, designadamente feito no próprio
acto da autuação, por arguido normalmente desprovido da possibilidade de
aconselhamento jurídico e que poderá não se ter apercebido das consequências
dessa opção. Como já no Acórdão n.º 337/86 se admitiu, no domínio de anterior
legislação, “o arguido pode ter liquidado a multa apenas para evitar o incómodo
de ir a tribunal discutir a prática da própria contravenção, mas sem sequer se
ter lembrado de que poderia vir a ficar privado, por algum tempo, do direito de
conduzir (…), ou sem que, ao menos, essa consequência se lhe apresentasse como
provável (…)”. Eventualidade de desconhecimento esta que, no regime legal ora em
apreço, ganha plausibilidade, pois, enquanto na redacção originária do Código da
Estrada de 1994 se impunha que na notificação da autuação fosse entregue ao
arguido um exemplar do auto de notícia “donde conste a possibilidade de
pagamento voluntário pelo mínimo e suas consequências quanto à sanção acessória”
(artigo 155.º, n.º 2), a partir das alterações introduzidas pelo Decreto‑Lei
n.º 2/98, de 3 de Janeiro, o interessado passou a ser notificado “da
possibilidade do pagamento voluntário da coima pelo mínimo (…), e das
consequências do não pagamento” (artigo 155.º, alínea d)); isto é: o interessado
deixou de ser informado das consequências do pagamento voluntário,
designadamente da inevitabilidade da aplicação da sanção acessória de inibição
de condução e da impossibilidade de discutir, quer na fase administrativa, quer
na fase judicial do procedimento contra‑ordenacional, a existência da
infracção.
Neste contexto, o entendimento em causa não pode deixar
de ser considerado como determinando um encurtamento intolerável das garantias
exigidas pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva e do processo
equitativo.
Representando esse entendimento uma interpretação
admissível dos preceitos legais em causa e sendo seguido, como se referiu, por
significativa corrente jurisprudencial, não se justifica, no caso, o uso do
mecanismo da interpretação conforme à Constituição previsto no artigo 80.º, n.º
3, da LTC (usado no Acórdão n.º 276/2004 – que impôs a interpretação do artigo
152.º, n.º 1, do Código da Estrada “no sentido de que se limita a estabelecer
uma presunção ilidível de que o proprietário ou possuidor do veículo é o seu
condutor, desde que não identifique outrem como tal” – por entender que o
preceito em causa “não comporta a interpretação feita pela decisão recorrida, no
sentido de que está consagrada a responsabilidade contra‑ordenacional de quem,
não sendo proprietário nem possuidor do veículo, ainda conste no registo como
tal, quando resulte provado nos autos que foi um terceiro devidamente
identificado o responsável pela contra‑ordenação em causa”), optando‑se antes
pela emissão de um juízo de inconstitucionalidade.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos
20.º, n.ºs 1 e 5, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, a
interpretação do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, na redacção do
Decreto‑Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, segundo a qual, paga
voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação
judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de
conduzir, discutir a existência da infracção; e, consequentemente,
b) Confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2008.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos