Imprimir acórdão
Processo n.º 898/07
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., S.A. Recorrente no presente recurso de constitucionalidade, notificado da
decisão sumária proferida a fls. 81 a 90, veio reclamar para a conferência, ao
abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional
(L.T.C.), nos seguintes termos:
“1. Decidiu o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator não tomar conhecimento do
recurso ‘por considerar que existe pressuposto processual não preenchido –
legitimidade activa – que obsta ao conhecimento do recurso de
constitucionalidade’.
2. Salvo o devido respeito, a douta decisão reclamada apreciou erroneamente a
razão de ser da intervenção da recorrente nos autos e os fundamentos do recurso
interposto.
3. Com efeito, a recorrente foi notificada para apresentar nos autos informação
de saúde da qual é depositária, nos termos do disposto no n° 3 do artigo 30 da
Lei n° 12/2005, de 26 de Janeiro.
4. Ora, como depositária da referida informação de saúde, não pode a recorrente
deixar de ter interesse, directo e pessoal, na questão de saber se os seus
deveres de depositária são ou não violados caso cumpra a determinação judicial
que lhe ordenou a junção aos autos dessa informação.
5. Sendo que a questão de saber se a recorrente, como unidade de saúde
depositária da informação de saúde em causa, deve ou não agir no sentido de essa
mesma informação ser entregue nos autos através de médico designado para o
efeito pelo proprietário dela – como a recorrente defendeu e como também dispõe
a citada disposição legal – é do seu óbvio interesse, porque essa questão emerge
daquela outra questão, relativa à identificação dos seus deveres de depositária
e ao modo legal de os cumprir.
6. E sucede que essas questões relevam, afinal, dos valores protegidos pelo
normativo citado, os quais se inserem no âmbito dos direitos fundamentais de
personalidade.
7. Assim, parece evidenciada a legitimidade da recorrente.
8. A douta decisão sumária, claramente, omitiu a referida perspectiva das
questões suscitadas, desviando-se dela de tal modo que acabou por ignorar que a
unidade de saúde não age por referência aos interesses de terceiros, mas sim em
função da necessidade que tem de acautelar e defender os seus próprios
interesses.
9. Tais interesses da recorrente são consubstanciados na evidente utilidade que
para si própria decorre da definição clara da qualificação jurídica, lícita ou
ilícita, da sua própria conduta, no que respeita ao modo como deve ou não agir
na sua qualidade de depositária de informação tão sensível e relevante
jurídico-constitucionalmente face ao que dispõe, designadamente, o normativo
cuja constitucionalidade se questiona.”
Decorrido o prazo legal, o Recorrido não respondeu.
A fundamentação constante da decisão reclamada tem o seguinte teor:
“4. Considerando o requerimento onde vem interposto o recurso de
constitucionalidade ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da
Lei do Tribunal Constitucional, verifica-se que a questão da invocada
inconstitucionalidade tem por objecto a aplicação pelas instâncias dos artigos
535.º e 519.º do Código de Processo Civil, numa interpretação segundo o qual:
‘ (…) o normativo de tais disposições impõe à recorrente a entrega nos autos do
processo clínico integral relativo ao autor, depositado na unidade de saúde da
recorrente, denominada B., com fundamento no facto de ser o próprio titular da
informação e dos dados constantes do processo clínico a prescindir do seu
direito à confidencialidade, tendo renunciado a esse direito, em função de um
valor mais alto, que é o seu direito a indemnização, cujo exercício pode ser
posto em risco, se não forem conhecidos os elementos clínicos em questão, não
havendo qualquer incompatibilidade, no caso concreto, entre o disposto no artigo
3º, n° 3, da Lei n° 12/2005, que é inaplicável ao caso presente, e o normativo
processual consagrado nos artigos 535º e 519º, CPC, que impõe à agravante a sua
colaboração com o tribunal com vista à descoberta da verdade, como se lê no
douto acórdão recorrido.
Ora, a aplicação do referido normativo, com o apontado sentido, ofende o direito
à vida, o direito à integridade pessoal, o direito à reserva da intimidade da
vida privada e o direito à saúde, direitos fundamentais consignados,
designadamente, nos artigos 24º, n° 1, 25º, n°1, 26°, n°s 1, 2 e 3, e 64°, n° 1,
todos da Constituição.’
Ora, a invocada inconstitucionalidade não pode proceder por duas ordens de
razões.
Uma processual, outra substantiva.
5. Quanto à primeira, a qual preclude a segunda que, não obstante, será objecto
de abordagem infra, é sabido que no direito processual comum, a legitimidade
para agir respeita, em regra, aos titulares do direito subjectivo, mesmo de raiz
pública.
Assim, a legitimidade para recorrer está conexionada com o interesse directo em
impugnar a decisão por via de recurso.
Porém, no direito processual constitucional, a legitimidade não corresponde
necessariamente à titularidade do interesse específico para o qual se requer a
tutela jurisdicional, pois que o interesse público limita, de alguma forma, o
âmbito da autonomia da vontade privada na condução do processo.
Assim, a lei processual constitucional reconheceu a faculdade de recorrer não só
às ‘pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a decisão foi
proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso’ (artigo 72.º, n.º 1,
alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional), como também ao Ministério Público
(artigo 280.º, n.ºs 3.º e 5.º da Constituição da República Portuguesa e artigo
72.º, n.º 1 alínea a) daquele diploma).
Na situação em apreço, vindo invocada a eventual violação, na perspectiva da
Recorrente, de diversos direitos fundamentais como sejam, o direito à vida, à
integridade pessoal, à reserva da intimidade da vida privada e o direito à
saúde, relativamente a uma determinada pessoa que accionou uma companhia
seguradora no sentido de a ressarcir, pedindo que, para o efeito, lhe seja
fixado um montante indemnizatório, resulta do artigo 26.º, n.º 1, do Código de
Processo Civil que só essa pessoa, como titular dos invocados direitos de
personalidade elencados, terá legitimidade para interpor o presente recurso de
constitucionalidade.
6. Há, assim, que aferir a legitimidade (activa) pela titularidade dos
interesses em jogo, isto é pelo interesse directo – que não meramente indirecto,
derivado ou reflexo – em demandar, o qual se exprime pela vantagem jurídica, no
sentido de utilidade, que resultará para o autor da procedência da acção.
Verifica-se, na situação dos autos, que a Recorrente não patenteia qualquer
interesse directo em ver reconhecido que os direitos fundamentais de C., no que
se refere ao direito à vida, à integridade pessoal, à reserva da intimidade da
vida privada e o direito à saúde tenham sido violados, sendo, ainda, pouco
evidente, mas seguramente irrelevante, o seu interesse indirecto que se desenha
numa situação de depositária de elementos clínicos de um doente que, a sua
solicitação, foram requisitados por um tribunal para instruir um processo
judicial em que essa doença integra a respectiva causa de pedir.
7. Efectivamente, a Recorrente para além de não ter legitimidade para interpor o
presente recurso de inconstitucionalidade, depara-se, ainda com a vontade do
titular do respectivo direito em que esses elementos clínicos sejam facultados
ao Tribunal.
Isto porque, ainda que não falhasse o pressuposto processual atinente à falta de
legitimidade da Recorrente para a interposição do recurso de
constitucionalidade, sempre o mesmo improcederia por manifesta falta de
fundamento.
Com efeito, constata-se, claramente que foi o autor da mencionada acção
indemnizatória, ora Recorrido, que requereu ao Tribunal que solicitasse à
Recorrente os elementos clínicos destinados a comprovar as lesões por si
sofridas, em consequência de acidente de viação, e que constituem fundamento do
seu pedido de indemnização deduzido na acção. A ausência de tais elementos no
processo seria susceptível de inviabilizar esse pedido de indemnização.
Fundou-se a Recorrente, para legitimar a sua recusa, no disposto no artigo 3.º,
n.º 3, da Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro, alegando, em síntese, que a
confidencialidade dos dados pessoais de saúde, de que goza o respectivo titular,
exigiria que ele escolhesse um médico a quem a unidade de saúde deverá facultar
tais dados e que decidiria se tais dados deveriam ou não ser facultados ao
tribunal, consoante as razões por este invocadas.
Com efeito, o artigo 519.º, n.º 3 do Código de Processo Civil diz que a recusa
na facultação dos elementos requisitados é legítima se ela importar violação da
integridade física ou moral das pessoas (alínea a)), intromissão na vida privada
(alínea b)) ou violação do sigilo profissional (alínea c)).
A razão de ser da recusa da Recorrente funda-se na alínea b), uma vez que ela
acena com a reserva da intimidade da vida privada do titular dos dados de saúde
para os não fornecer ao Tribunal.
Porém, e, conforme se exarou na decisão recorrida, essa confidencialidade dos
dados de saúde não se coloca no caso em apreço. Porquanto foi o próprio titular
desses dados a prescindir desse direito, ao solicitar e ao insistir pela sua
obtenção e junção aos autos. E foi o Tribunal que, usando as suas prerrogativas
de autoridade (artigos 535.º e 519.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), os
requisitou directamente à Recorrente.
E acrescentou-se ainda, na decisão recorrida, ‘e não vemos que essa autoridade
possa aqui ser posta em causa, uma vez que, visando aquela norma a tutela do
direito do titular dos dados de saúde à reserva da sua vida privada, é ele
próprio que, no caso vertente, renuncia a esse direito, em função de um valor
mais alto, que é o seu direito à indemnização, cujo exercício pode ser posto em
risco, se não forem conhecidos nos autos os elementos clínicos em questão.’
Não resulta dos autos que essa renúncia não tivesse sido o ‘produto inequívoco
de uma vontade livre e esclarecida’, no dizer de José Carlos Vieira de Andrade,
‘Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976’, 3 ° ed., Coimbra,
Almedina, p. 331, e, como tal, surgindo, legitimamente, como uma autolimitação
de um direito por vontade do respectivo titular.
Também por esta razão, facilmente se intui que o presente recurso não poderia
proceder.”
Cumpre decidir.
II – Fundamentos
Conforme foi exarado na decisão sumária, objecto da presente reclamação, a
questão de constitucionalidade invocada não poderia proceder por duas ordens de
razões.
Uma processual; outra substantiva.
O ora Reclamante somente vem pôr em crise a primeira questão, ou seja, a
argumentação de índole adjectiva, que foi formulada. Nenhum reparo foi suscitado
ao segmento substantivo.
Assim sendo, e nada tendo sido arguido nesta sede, sempre subsistirá a decisão
reclamada, pelo que a presente reclamação não poderá proceder.
Assim,
III – Decisão
Acordam, na 1.ª Secção, do Tribunal Constitucional, em indeferir a reclamação
deduzida pelo Recorrente A., S.A., confirmando a decisão sumária de fls. 81 e
seguintes.
Custas pelo Recorrente, fixando em 20 (vinte) UCs o imposto de justiça.
Lisboa, 22 de Janeiro de 2008
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos