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Processo n.º 28/08
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional.
1. O representante do Ministério Público junto do 1.º Juízo do
Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto deduziu reclamação para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 77.º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (LTC) contra o despacho do Juiz daquele Juízo, de 9 de
Novembro de 2007, que não admitiu recurso por ele interposto, ao abrigo da
alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do despacho de 9 de Novembro de 2007,
que teria recusado a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da
norma do artigo 389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP).
O arguido, a quem foi nomeado defensor, respondeu à reclamação
sustentando a sua improcedência porque não houve efectiva recusa de aplicação de
qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade, mas a recusa de
substituição da acusação pelo auto de notícia porque este, no caso concreto, não
satisfaz os requisitos legais para poder valer como acusação.
No Tribunal Constitucional, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu
o seguinte parecer:
“Importa notar liminarmente que – sendo o recurso, interposto pelo Ministério
Público e rejeitado no Tribunal a quo, – exclusivamente fundado na alínea a) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, apenas poderá reportar‑se à recusa de
aplicação da norma identificada no respectivo requerimento de interposição – e
não a quaisquer outros preceitos legais, eventualmente aplicados no despacho
reclamado, já que tal implicaria a ampliação do respectivo objecto de modo a
incluir estes últimos, bem como a invocação, como base recursória, da alínea b)
daquele artigo 70.º, n.º 1, o que se afigura inviável face à regra de que a
delimitação do objecto do recurso decorre irremediavelmente (no que se refere ao
seu máximo âmbito) do teor daquele requerimento.
A sorte da presente reclamação dependerá, deste modo, da determinação da
existência de uma «verdadeira» recusa de aplicação normativa, reportada ao
artigo 389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal fundada em violação dos
princípios constitucionais da estrutura acusatória do processo penal e das
garantias de defesa.
Qual a interpretação normativa feita pelo juiz a quo de tal preceito legal?
A nosso ver, considerou‑se ser inviável a substituição da apresentação de
acusação pelo Ministério Público em processo sumário pela simples leitura do
auto de notícia, no início da audiência, sem qualquer «aditamento», num caso em
que o referido auto omitiria elementos essenciais a qualquer acusação, nos
planos fáctico (estruturantes do elemento subjectivo do crime imputado ao
arguido), da qualificação jurídica (especificação das disposições legais
aplicáveis) e probatório (indicação das provas que fundamentam tal imputação ao
arguido).
É feita, no despacho reclamado, a seguinte leitura da norma constante do artigo
389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:
Em processo sumário, pode o Ministério Público substituir a apresentação da
acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à
detenção, salvo se de tal auto não constarem todos os elementos – fácticos, de
qualificação jurídica e probatório – que obrigatoriamente – por força das
disposições gerais – devem constar de qualquer acusação.
Ou seja: não se considerou inviável, de modo genérico, a actuação processual
ali consentida ao Ministério Público, procedendo‑se antes a uma leitura
conjugada de tal preceito legal com as disposições que regulam os requisitos da
acusação, só consentindo a «substituição» da acusação pela leitura do auto
quando este satisfaça minimamente tais requisitos gerais.
Procedeu, deste modo, o despacho recorrido a uma leitura conjugada da norma que
integra o objecto do presente recurso (a do artigo 389.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal) com outras disposições que regem sobre os requisitos da
acusação (artigos 283.º, n.º 3, e 311.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo
Penal) para concluir que a possibilidade de mera leitura do auto de notícia, no
início da audiência, pressupõe a suficiência deste, na óptica das exigências
formuladas por aqueles preceitos legais.
Sendo duvidosa a definição da precisa «linha de fronteira» entre a verdadeira
«recusa de aplicação» normativa, enquadrável na alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei do Tribunal Constitucional, e a mera interpretação de preceitos
legais «em conformidade com a Constituição» (cf., v. g., os Acórdãos n.ºs
170/85, 425/89, 137/89, 636/94 e 1020/96), afigura‑se que – no caso dos autos –
o juízo de inaplicabilidade de certa interpretação que – a ser feito – violaria
determinados princípios constitucionais se não fundou «única ou primacialmente»
(para utilizar a expressão de Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade,
pp. 331 e seguintes) no princípio da interpretação conforme à Lei Fundamental,
mais não desempenhando «o apelo à Constituição (princípio do acusatório e das
garantias de defesa) em sede hermenêutica, uma função de apoio ou de confirmação
de um sentido da norma já sugerido pelos restantes elementos de interpretação»
(cf. ainda o Acórdão n.º 285/2002).
Assim, por se afigurar que o Tribunal a quo, no despacho recorrido, se limitou a
proceder a uma leitura conjugada de diversos regimes processuais penais,
referentes aos requisitos da acusação, articulando‑os com a possibilidade de
mera «leitura» pelo Ministério Público do auto de notícia no início da audiência
em processo sumário, não será a circunstância de se considerar que a
imperatividade de tal aplicação conjugada dos regimes legais decorre dos
princípios constitucionais do acusatório e das garantias de defesa que traduz a
ocorrência de uma verdadeira «recusa de aplicação normativa», enquadrável no
tipo recursório previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82.”
2. Para decisão da presente reclamação interessam as ocorrências
processuais seguintes:
a) O processo de que emerge a presente reclamação teve origem em
“auto de notícia por detenção”, instaurado, por agente da PSP, a A., por, no
dia 27 de Outubro de 2007, pelas 6 horas e 29 minutos, conduzir um veículo
automóvel na via pública, na cidade do Porto, e, ao ser submetido a teste para a
detecção de álcool, ter acusado a taxa de 1,68 g/l, e, posteriormente conduzido
à Secção de Acidentes da Divisão de Trânsito do Porto da PSP, onde foi submetido
a novo controlo, ter acusado a taxa de álcool no sangue de 1,40 g/l, o que
integraria a prática de “crime contra a segurança das comunicações”. O referido
condutor foi constituído arguido e notificado, nos termos do artigo 385.º, n.º
3, do CPP, para comparecer perante o Ministério Público, junto do Tribunal de
Turno do Porto, nesse dia 27 de Outubro de 2007, pelas 10h00, para ser
submetido a audiência de julgamento, em processo sumário (fls. 30).
b) O representante do Ministério Público no Tribunal do Turno do
Porto exarou, com data de 27 de Outubro de 2007, o seguinte despacho: “Apresente
o expediente ao M.mo Juiz de Turno, para os efeitos do artigo 387.º, n.º 2,
alínea a), do Código de Processo Penal, atento o disposto no artigo 60.º, n.º 1,
alínea a), do Decreto‑Lei n.º 186‑A/99” (fls. 31).
c) O Juiz do Tribunal de Turno do Porto proferiu, na mesma data,
despacho a verificar a impossibilidade de julgamento imediato ordenar a remessa
do processo para “a comarca competente”, determinando a comparência do arguido
no dia 31 de Outubro de 2007, pela 14 horas, para aí ser julgado (fls. 33).
d) Distribuído o processo ao 1.º Juízo do Tribunal de Pequena
Instância Criminal do Porto, o respectivo Juiz, em 29 de Outubro de 2007, exarou
o seguinte despacho: “Ao Ministério Público, uma vez que no tribunal de turno
foi apenas requerido o adiamento do início da audiência, nos termos do artigo
387.º, n.º 2, alínea a), do CPP, não tendo sido deduzida acusação” (fls. 36).
e) Dada vista dos autos ao representante do Ministério Público junto
desse Juízo, o mesmo consignou, na mesma data, que “Reservamos para o início da
audiência de julgamento o poder de substituir a apresentação de acusação pela
leitura do auto de notícia elaborado pelo órgão de polícia criminal detentor”
(fls. 37).
f) Ainda nesse dia 29 de Outubro de 2007, o Juiz do 1.º Juízo do
Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto exarou o seguinte despacho (fls.
38):
“Não foi deduzida, até ao momento, acusação no processo, sendo certo que o Digno
Procurador Adjunto, no douto requerimento que antecede, se limita a referir que
reserva «para o inicio da audiência de julgamento o poder de substituir a
apresentação de acusação pela leitura do auto de notícia elaborado pelo órgão
de polícia criminal detentor».
Ora, se é certo que o auto de notícia contém factos susceptíveis de integrarem
o elemento objectivo do crime de condução em estado de embriaguez, o mesmo é, no
entanto, totalmente omisso quanto:
– aos factos susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo do mesmo crime, ou
seja, a culpa na forma de dolo ou negligência, sendo certo que a jurisprudência
é unânime no entendimento de que tais factos devem constar da acusação (vide,
por todos, o acórdão da Relação de Guimarães, de 7 de Abril de 2003, in
Colectânea de Jurisprudência, tomo II, págs. 291‑294);
– às disposições legais aplicáveis, já que se refere apenas «Tipificação: Crimes
contra a segurança das comunicações»;
– às provas que fundamentam a acusação.
Conclui‑se, assim, que, pretendendo o Ministério Público substituir a
apresentação da acusação pela simples leitura do auto de notícia, sem qualquer
«aditamento» que o complete nos aspectos supra referidos, deve a acusação ser
rejeitada por não conter a narração completa dos factos que integram a prática
do crime, não indicar as disposições legais aplicáveis nem as provas que a
fundamentam (cf. artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) a d), e 311.º, n.ºs 2, alínea
a), e 3, alíneas b), c) e d), do CPP).
Realizar a audiência de julgamento, em processo sumário, tendo por acusação
apenas o que consta do auto de notícia violaria o princípio constitucional da
estrutura acusatória do processo criminal e poria em causa as garantias de
defesa do arguido, que desconheceria, face à mera leitura daquele auto, a
totalidade dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua
qualificação jurídica e a prova.
Pelo exposto, determino a remessa dos presentes autos ao DIAP do Porto para
tramitação sob outra forma processual (artigo 390.º, alínea a), do Código
Processo Penal).
Notifique e transitado remeta”
g) O Ministério Público interpôs recurso deste despacho, para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC,
através de requerimento onde refere que a decisão recorrida, “ao recusar a
aplicação do artigo 389.º, n.º 2, do mesmo diploma legal [CPP], com os
fundamentos que sustentou e remetendo os autos para o DIAP, fez uma
inconstitucional interpretação quer dos preceitos legais que aplicou, quer do
que se recusou a aplicar, na medida em que com essa sua concreta actuação violou
o princípio do caso julgado formal, uma vez que voltou a pronunciar‑se acerca de
uma questão já ultrapassada (leia‑se, processualmente precludida), no sentido de
que relativamente a ela se encontrava já esgotado o poder jurisdicional com o
proferimento do anterior despacho judicial que procedeu ao adiamento do início
da audiência de julgamento em processo sumário, sendo certo que, a acolher‑se a
argumentação expendida no despacho judicial ora recorrido, o que parcialmente se
tenderia a conceder, deveria ter‑se enveredado por trilhar caminho diverso,
iniciando a audiência e fazendo oportuno uso dos mecanismos da alteração
(substancial, parece‑nos, porque a questão, na certeira óptica da M.ma Juiz a
quo, colocar‑se‑ia entre factos que, por serem insuficientes, não integrariam
qualquer crime, e factos que, se acrescentados de outros, preencheriam já um
tipo legal de crime) dos factos, o que se nos afigura que seria suficiente para,
dando guarida aos propósitos de celeridade subjacentes ao processo especial
sumário, não deixar de salvaguardar ainda as garantias de defesa do arguido”
(fls. 43).
h) Este recurso não foi admitido pelo despacho de 9 de Novembro de
2007, ora reclamado, porque “o despacho recorrido não recusa, expressa ou
implicitamente, a aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime jurídico
de qualquer norma jurídica e, muito menos, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, sendo certo que apenas esta recusa, com este específico
fundamento, abriria a via de recurso para o Tribunal Constitucional” (fls. 46).
3. É contra este despacho que vem deduzida a presente reclamação.
Sucede que, sobre reclamações em tudo semelhantes à presente,
oriundas do mesmo Tribunal, tendo por referência a mesma sequência processual,
com promoções e requerimentos do Ministério Público e despachos judiciais de
idêntico teor ao que ficou descrito no ponto n.º 2 e com o mesma argumentação
dos sujeitos processuais perante este Tribunal, recaíram já vários acórdãos, de
que destaca, por ter sido o proferido em primeiro lugar, o acórdão n.º 8/2008,
proferido no Processo n.º 1187/07, em que o Tribunal ponderou o seguinte:
“2. Face ao teor do requerimento de interposição de recurso, o respectivo
objecto era integrado por alegada decisão de recusa de aplicação da norma do
artigo 389.º, n.º 2, do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade.
Tem este Tribunal entendido que a recusa de aplicação de norma com fundamento
em inconstitucionalidade, para abrir via ao recurso previsto na alínea a) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC, tanto pode consistir numa recusa explícita, como numa
recusa implícita, e que são equiparáveis a recusas determinadas decisões de
aplicação da norma interpretada em conformidade com a Constituição, “sempre que
se esteja perante uma clara rejeição de certa interpretação, mormente da
interpretação literal ou «natural», com fundamento na sua inconstitucionalidade”
(José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª
edição revista e actualizada, Coimbra, 2007, p. 73, nota 93). Necessário é
sempre, porém, que o juízo de inconstitucionalidade (ou de desconformidade
constitucional) constitua uma verdadeira ratio decidendi, e não um mero obiter
dictum, da decisão recorrida.
No presente caso, resulta da leitura da decisão recorrida que o elemento
primordial e determinante do entendimento da inadmissibilidade, no caso, de o
Ministério Público “substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto
de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção”, prevista no n.º 2 do
artigo 389.º do CPP, resultou da leitura conjugada desse preceito com as
disposições dos artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) a d), e 311.º, n.ºs 2, alínea
a), e 3, alíneas b), c) e d), do mesmo Código, que, respectivamente,
determinam que a acusação do Ministério Público, sob pena de nulidade, deve
conter a narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis e a
prova, e que o presidente do tribunal, se o processo tiver sido remetido para
julgamento, sem ter havido instrução, deve rejeitar a acusação se a considerar
manifestamente infundada, sendo tida como tal a acusação que não contenha a
narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas
que a fundamentam, ou se os factos não constituírem crime.
Isto é: foi com base na interpretação do direito ordinário que a decisão
recorrida entendeu só ser admissível a substituição da acusação pela leitura do
auto de notícia quando este auto contenha todos os elementos legalmente
exigíveis para a validade de qualquer acusação.
A posterior referência a que violaria a estrutura acusatória do processo
criminal e poria em causa as garantias de defesa do arguido a realização da
audiência, em processo sumário, tendo por acusação apenas o que consta de um
auto de notícia, que não possibilitava ao arguido a conhecimento da totalidade
dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua qualificação
jurídica e a prova, constituiu um mero argumento de conforto da justeza do
entendimento a que anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por
correcta, ao nível da interpretação do direito ordinário aplicável, da
possibilidade de substituição da acusação pelo Ministério Público pela leitura
do auto de notícia.
Só existiria recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade se o tribunal tivesse interpretado o artigo 389.º, n.º 2,
do CPP no sentido de permitir essa substituição mesmo quando o auto de notícia
não contivesse os elementos exigidos para a validade da acusação, e, depois,
sustentasse que, assim interpretada, tal norma violaria princípios
constitucionais. Mas não foi esse, como se evidenciou, o caminho seguido pela
decisão recorrida.
Não encerrando esta, sequer implicitamente, uma recusa de aplicação de norma com
fundamento em inconstitucionalidade, o presente recurso surge como inadmissível,
sendo de todo irrelevante, para o efeito, a menção a eventual violação de caso
julgado”.
Nenhuma razão se vislumbra para divergir desta análise – seguida,
sem preocupações de exaustão, pelo menos nos acórdãos n.ºs 12/2008, 15/2008,
16/2008, 31/2008, 48/2008 e 49/2008 (disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt) – ou algo acrescentar, pelo que com esta mesma
fundamentação, se indefere a reclamação.
4. Decisão
Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Sem custas.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão