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Processo n.º 938/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. – Companhia de Seguros,
S.A., e recorrido B. e Outros, o relator proferiu decisão sumária de não
conhecimento do objecto do recurso, nos termos seguintes:
«1. No presente recurso, interposto por A. – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., ao
abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. b) da Lei do Tribunal
Constitucional, vem pedido que seja julgado inconstitucional o segmento
normativo do artigo 754.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, “salvo se o
acórdão estiver em oposição com outro, proferido na mesma legislação pelo
Supremo Tribunal de Justiça, ou por qualquer Relação”, interpretado no sentido
de que a oposição de julgados “se reduz à questão da interpretação da lei”,
dispensando a análise da similitude das situações concretas do
acórdão-fundamento e da decisão reclamada, por tal interpretação normativa
incorrer em violação dos artigos 13.º, n.º1, 18.º, n.º1. 20.º, n.º 1, 202.º, n.º
2, e 204.º da CRP.
2. A acção em que se proferiu a decisão recorrida foi instaurada por B., C., D.
e E., no Tribunal de Trabalho de Lisboa, contra a predita companhia seguradora.
Nessa instância, houve prolação de um despacho em que, considerando-se “haver
toda a conveniência em que os pedidos sejam julgados em separado” se declarou
ilegal a coligação dos autores.
Estes agravaram desse despacho, com êxito, pois o Tribunal da Relação de Lisboa
revogou-o, ordenando a sua substituição por outro que admitisse a coligação dos
autores.
Foi a vez de a ré interpor agravo, defendendo a inadmissibilidade da coligação.
Na contra-alegação, os autores opuseram-se à admissão deste agravo, com base na
proibição do agravo continuado, cominada no n.º 2 do artigo 754.º do CPC, ao que
a recorrente, notificada para se pronunciar sobre esta questão, veio contrapor
estar presente a ressalva da oposição de julgados, consagrada na segunda parte
desta norma.
O Relator entendeu, todavia, que “não se mostra verificada a oposição de
julgados, requisito indispensável para afastar a regra da inadmissibilidade do
recurso consignada na primeira parte do citado artigo 754.º, n.º 2”. Em
conformidade, decidiu não conhecer do objecto do agravo, julgando findo o
recurso.
A ré reclamou desse despacho para a conferência, arguindo que ele se fundara
numa interpretação inconstitucional do segmento supra referido do n.º 2 do
artigo 754.º do CPC, nos termos já expostos.
É do acórdão que confirmou o despacho reclamado que vem interposto o presente
recurso.
3. Compulsados os autos, constata-se que o acórdão recorrido não sufragou, nem
aplicou, a interpretação do segmento normativo do artigo 754.º, n.º 2, do CPC,
que o recorrente alega ter estado na base da decisão, e cuja constitucionalidade
impugna.
De facto, o fundamento da confirmação do despacho reclamado pode ser colhido de
forma expressiva, nas seguintes considerações:
«Em suma, o despacho em causa, após a análise dos textos das três decisões, […]
apurou, também, não haver identidade entre as circunstâncias factuais dos casos
concretos sobre que se debruçaram, tendo concluído não se verificar oposição de
julgados, uma vez que o sentido das decisões não decorreu de uma diferente
interpretação e aplicação da lei aos factos, mas das particularidades dos
contornos de cada caso.»
E, na verdade, esse despacho já tinha concluído não ter existido oposição entre
o acórdão-fundamento e o acórdão da Relação agravado, não obstante se ter
decidido, num dos primeiros, pelo afastamento da coligação, e, no segundo, pela
sua admissão, por tal ter resultado “das circunstâncias concretas de cada caso,
cujos contornos, tanto quanto se pode aquilatar dos textos dos acórdãos,
apresentam particularidades susceptíveis de fundamentar diferentes juízos quanto
à conveniência da tramitação e julgamento conjunto dos pedidos cumulados”.
Ora, como aí também se esclarece, só há oposição de julgados “quando a mesma lei
for interpretada e aplicada diversamente a factos idênticos”. Foi por dar como
comprovada a falta deste último requisito, a não similitude das factualidades
envolvidas em cada caso – e, quanto à correcção desse juízo, não tem este
Tribunal competência para se pronunciar –, e não por se abster de analisar a
situação concreta da cada pleito, em aplicação do critério normativo impugnado,
que o Relator se decidiu pela inexistência de oposição de julgados e,
consequentemente, pela inadmissibilidade de interposição de agravo da decisão da
2.ª instância. Conclusão a que também chegou o acórdão recorrido, onde se
refere:
«[…] de harmonia com a jurisprudência deste Supremo, para que se verifique
oposição de acórdãos ou oposição de julgados, é necessário que sejam proferidos
dois acórdãos adoptando soluções opostas, o que pressupõe que esses acórdãos,
proferidos no domínio da mesma legislação, hajam resolvido a mesma questão
fundamental de direito e aplicada a situações de facto idênticas […]»
É, pois, de suma evidência que a decisão recorrida não aplicou o segmento
normativo do artigo 754.º, n.º 2, do CPC, neste recurso em apreço, com o sentido
que lhe é imputado.
Falta, assim, um pressuposto indispensável ao conhecimento do recurso.
4. Pelo exposto, e nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não
conhecer do objecto do presente recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 (sete) unidades de
conta.»
2. Notificada desta decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência, ao
abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, com fundamento, em síntese, no seguinte:
«[…] Entende o Tribunal Constitucional que a decisão recorrida não aplicou o
segmento normativo do artigo 754.° n.º 2, do CPC, neste recurso em apreço, com o
sentido que lhe é imputado pelo recorrente.
Contudo, no Acórdão de fls…, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, na
sequência de reclamação para a conferência, do douto despacho do Ex.mo
Conselheiro Relator, que não admitiu o recurso de agravo por oposição de
julgados, interposto pela ora Recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça, do
mesmo Acórdão a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional
alegando o seguinte que aqui se invoca também:
1. Que o presente recurso é interposto ao abrigo do disposto a alínea b) do n.°
1, do art.° 70.º da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro;
2. Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie da inconstitucionalidade da
norma contida no art.° 754.°, n.° 2, do Código do Processo Civil, no segmento
“salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma
legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça, ou por qualquer Relação”, na
interpretação que o STJ consumou, ao abster-se de analisar a situação concreta
do presente pleito e de a confrontar com as situações concretas dos casos
decididos pelos acórdãos identificados pelo recorrente, em que o mesmo
fundamentou a oposição de julgados.
3. Abstenção que se funda numa interpretação do n.° 2 do artigo 754.° do CPC
segundo a qual a noção de oposição se reduz à questão da interpretação da lei.
4. Daí decorre que o douto despacho proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça,
aplicou o citado segmento normativo com um sentido incompatível com o artigo
13.°, n.° 1, da Constituição.
5. E que, aplicado com esse sentido, o mesmo segmento do n.° 2 do artigo 754.°
do CPC viola, desse modo, ainda, a garantia de tutela jurisdicional efectiva,
consignada no n.° 1 do artigo 20.° da CRP.
6. Sendo, de resto, que o n.° 1 do artigo 13.° e o n.° 1 do artigo 20.°, ambos
da CRP, consagram direitos constitucionalmente protegidos que emergem dos
direitos, liberdades e garantias, sendo por isso de aplicabilidade directa, como
se consigna no artigo 18.°, n.° 1, da mesma Constituição.
7. Ora, a questão de saber se está ou não um acórdão em oposição com outro
implica, não só conhecer de uma certa interpretação da mesma legislação
aplicável, mas também conhecer e ajuizar sobre a solução dada aos casos
concretos.
8. Haver ou não oposição de julgados, não se reduz a uma questão de
interpretação da lei, antes emerge da questão de saber se os tribunais decidiram
ou não, de modo diferente e incompatível entre si, dois casos concretos.
9. O que implica a consideração das circunstâncias concretas, dos casos
concretos a comparar, o que salvo o devido respeito — não foi feito no âmbito do
douto Acórdão proferido na sequência da reclamação para a Conferência, do douto
despacho proferido pelo Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator.
10. O aludido segmento normativo não implica saber apenas se dois tribunais, em
dois casos concretos, interpretaram ou não de igual modo a mesma lei.
11. Esse segmento normativo não tem o fim redutor de assegurar que os tribunais
superiores interpretam da mesma maneira a mesma lei: não visa a uniformização da
interpretação da lei sem consideração das concretas soluções dadas aos pleitos
que lhes são submetidos.
12. Esse segmento radica, obviamente, em exigências que emergem do princípio da
igualdade e da preocupação de o Estado de Direito assegurar o princípio da
igualdade de tratamento dos casos julgados pelos tribunais.
13. O que, necessariamente, implica conhecer as circunstâncias concretas dos
casos julgados.
14. Com efeito, só da consideração dessas circunstâncias concretas poderá
resultar um juízo sobre se, relativamente a dois casos concretos, o sistema de
justiça tratou ou não de modo igual dois casos similares.
15. Esse desiderato, o da observância do princípio constitucional da igualdade,
não se alcança fraccionando o juízo jurisdicional decisório, que é constituído
por duas vertentes inseparáveis: o juízo de facto e o juízo de direito.
16. Se, como sucede com o douto despacho de que oportunamente se reclamou, bem
como com a douta decisão sumária ora emitida pelo Tribunal Constitucional, se
cindir o juízo jurisdicional decisório, de modo a reduzir esse juízo à sua
vertente interpretativa da lei aplicada, perde-se a possibilidade de apreender
as decisões em confronto, só susceptíveis de compreensão na sua integralidade.
17. E, assim, deixa de ser possível saber se em dois casos concretos os
tribunais superiores julgaram ou não de modo diferente, que o mesmo é dizer, se
observaram ou não o princípio da igualdade.
18. Se em dois acórdãos se verifica que os tribunais interpretaram de modo
similar a mesma lei aplicável, mas de tal modo que decidiram de modo
incompatível duas situações concretas similares, não pode concluir-se que os
acórdãos em confronto não estão em oposição entre si.
19. Mas sim que existe essa oposição, sendo certo que é, precisamente, essa
oposição que justificou a concessão do direito a recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça, como meio de garantir o princípio da igualdade de tratamento dos
cidadãos, isto é, a justiça relativa.
20. Ora, o douto Acórdão recorrido, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça,
bem como a douta decisão sumária ora reclamada, emitida pelo Ex.mo Senhor Juiz
Conselheiro Relator do Tribunal Constitucional, abstiveram-se de analisar a
situação concreta do presente pleito e de a confrontar com as situações
concretas dos casos decididos pelos acórdãos identificados no requerimento de
interposição de recurso.
21. O douto despacho oportunamente reclamado proferido pelo Supremo Tribunal de
Justiça, bem como o douto Acórdão proferido pelo mesmo Tribunal, e ainda a douta
decisão sumária proferida pelo Ex.mo Senhor Doutor Juiz Conselheiro Relator no
âmbito do Tribunal Constitucional, não observaram, pois, o dever de assegurar a
defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos da recorrente, imposto à
função jurisdicional pelo n.° 2 do artigo 202.° da Constituição.
22. E aplicaram norma com um sentido inconstitucional, em violação do disposto
no artigo 204.° da mesma Constituição.
Nestes termos e nos demais de direito e com o douto suprimento de Vossas
Excelências, Venerandos Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, se
requer seja conhecido o objecto do presente recurso interposto para o Tribunal
Constitucional, devendo admitir-se o recurso ora interposto e ser declarada a
inconstitucionalidade e inaplicabilidade do segmento do n.° 2 do artigo 754.° do
CPC, acima identificado, enquanto aplicado com o sentido que lhe foi dado pelo
douto Acórdão recorrido, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, aceite por
decisão sumária proferida pelo Tribunal Constitucional, por violação dos art°s
13.°, n.º 1, 18.°, n.° 1, 20.º, n.° 1 e 202.°, n.° 2 e 204.° da CRP.»
3. Os recorridos nada disseram.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada pronunciou-se no sentido do não conhecimento do
objecto do recurso, com fundamento no facto de o acórdão recorrido não ter
aplicado o segmento do artigo 754.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, “salvo
se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma
legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação”, na
interpretação normativa cuja constitucionalidade é impugnada.
Na sua reclamação, a reclamante contesta esta conclusão, alegando que o Tribunal
recorrido, “ao abster-se de analisar a situação concreta do presente pleito e de
a confrontar com as situações concretas dos casos decididos pelos acórdãos
identificados pelo recorrente, em que o mesmo fundamentou a oposição de julgados
“, fez uma aplicação daquele segmento da norma do artigo 754.º, n.º 2, do CPC,
contrária à Lei Fundamental, na medida em que a interpretou no sentido de que a
oposição de julgados “se reduz à questão da interpretação da lei”.
Pelas razões que já constam na decisão reclamada, de modo explícito e claro, a
decisão recorrida não aplicou o segmento normativo do artigo 754.º, n.º 2, do
CPC, com o sentido que lhe é imputado pela recorrente, faltando, assim, um
pressuposto indispensável ao conhecimento do objecto do recurso.
Não pode deixar de se acrescentar que as considerações expendidas nos pontos 20
a 22 da reclamação revelam uma representação incorrecta da função e da
competência do Tribunal Constitucional, em matéria de recursos visando a
fiscalização concreta da constitucionalidade. Este Tribunal não aplica normas à
situação concreta dos pleitos, antes se pronuncia, em sede de recurso, sobre as
questões de constitucionalidade das normas aplicadas ou desaplicadas nas
decisões recorridas.
A presente reclamação é, pois, a todas as luzes, manifestamente improcedente.
III. Decisão
6. Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2008
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos